Mostrar mensagens com a etiqueta Alemanha. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Alemanha. Mostrar todas as mensagens

sábado, 21 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21565: Os nossos seres, saberes e lazeres (424): Na RDA, em fevereiro de 1987 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Passados estes mais de 30 anos desta visita à República Democrática Alemã, ainda hoje é mistério indecifrável a natureza do convite, a cornucópia das visitas, isto tudo a despeito do embaixador Julian Hollender me ter perguntado quais as cidades que me interessavam visitar, se havia algum museu em especial, que informações pertinentes eu desejaria obter daquele país tão pacífico, tão cooperante, tão amigo da paz.
Sabia das belezas de Dresden e de como o centro histórico da cidade se ia reerguendo das cinzas depois dos grandes bombardeamentos de fevereiro de 1945; Berlim era um fascínio, lera a obra de Trevor-Roper e vira o filme com Alec Guiness, Os Últimos Dez Dias de Hitler, e obras posteriores, Berlim calcinada, dividida, uma verdadeira fronteira da Guerra Fria. Recebi informações que poderia ter recebido de outras procedências, umas em comunicação vívida, outras em tom sorumbático, e o trabalho de reconstrução de Berlim, a despeito de uma arquitetura moderna de um gosto um tanto duvidoso, era de tirar o chapéu. Empolguei-me com a descoberta deste caderno que me veio reavivar um universo político que desapareceu, conversas que hoje são puros anacronismos, mas algo ficou e que se chama gratidão por quem me deu a possibilidade de percorrer aquela linha da Guerra Fria sempre com a perceção de que algo estava prestes a acontecer, mas ainda um sentimento indefinível.
Dois anos depois, repimpado em frente do televisor, aquele muro começou a ser demolido e a civilização europeia andou mais depressa.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (4)

Mário Beja Santos

Os meus anfitriões não querem que eu saia da República Democrática Alemã sem saber como atua o país em prol da paz, questiono-me a toda a hora o que pretendem estes mestres da comunicação quanto ao que eu devo trazer para Lisboa, já levei uma boa ensaboadela sobre a Acta Final de Helsínquia, as relações com a República Federal Alemã, como é imprescindível haver a todo e qualquer momento equilíbrio militar, as vantagens em reduzir armas, tropas e despesas afins que deviam estar voltadas para o desenvolvimento. Os EUA têm sido os obreiros deste inferno, serventuários do complexo militar industrial. A RDA procura em todos os órgãos internacionais mostrar como está o serviço dos direitos humanos, o Ocidente repudia qualquer hipótese de fazer uma conferência em Moscovo sobre direitos humanos, a RDA propôs Estocolmo, no âmbito da segunda fase da conferência sobre desarmamento e cooperação na Europa. Tudo isto que eu estou a ouvir está a acontecer numa sala bastante austera do Ministério dos Negócios Estrangeiros, perto de tudo o que eu tenho vindo a apreciar, desde a Catedral de Berlim, toda a Unden den Linden, a Ópera, onde parece que irei esta noite ou amanhã. Não sei por que carga de água, mas entrou há minutos na sala alguém bem engravatado que veio com a missão de me esclarecer de que a RDA e o seu Partido-Estado tudo faz para ter boas relações com a Internacional Socialista, começo a ter medo e ainda vou sair daqui diplomado em relações internacionais. Alguém na mesa me informa também que está a ter lugar uma conferência sobre os 750 anos da cidade de Berlim e pede-me algumas sugestões sobre a participação portuguesa. Apanhado de chofre, ocorreu-me propor que se tivesse em conta o que aconteceu em Berlim em 1884 e 1885, uma conferência de repartição colonial, Portugal mandou conveniente representação, saiu com garantias que as parcelas do seu império não eram cobiçadas por outrém (pura mentira) e passou-se a ter a certeza que era uma fatura carota, havia que ocupar os territórios coloniais. Não sei se falei de mais ou de menos, com entusiasmo sim, coisa que não vi nos rostos impenetráveis dos circunstantes. Um dos diplomatas olhou para o relógio e avisou-me que a minha agenda continuava, eu ia visitar o Bairro Nicolau que ficara totalmente destruído durante a Batalha de Berlim, em abril de 1945.
Era assim a arquitetura na Berlim (RDA) em 1987
Bairro Nicolau na atualidade
Câmara Municipal de Berlim junto do Bairro Nicolau
Igreja do Bairro Nicolau

Somos recebidos no Bairro Nicolau pelo arquiteto Viktor Schlichte que começou por dizer que Berlim era uma cidade relativamente nova, o que achei estranho pois logo adiantou que fora fundada no século XII, e que na Idade Média era altamente planificada, o centro era a praça do mercado e à sua volta o Bairro Nicolau. Parecendo que estava a falar de igual para igual, o meu anfitrião disse-me com ar muito sério que temos que analisar os aspetos arquitetónicos como espelho das relações sociais, e não esquecer que as cidades mais velhas são as mais ricas em cultura, era assim o Bairro Nicolau, onde havia mostras dos estilos românico, gótico, renascentista, barroco e do classicismo, tudo seriamente afetado pelas destruições da guerra. A reconstrução do Bairro Nicolau, por decisão governamental, pretendeu recriar um conjunto arquitetónico novo, com referências ao passado e espaços verdes. Fora chumbada a proposta de reconstruir ali a Berlim da Idade Média. A proposta vencedora assentava numa arquitetura contemporânea em estreita ligação com a Berlim original. Tinham-se perdido, foram devorados pelo fogo, os antigos projetos, tudo quanto era desenho das praças e edifícios, reconstruiu-se a Câmara Municipal, fez-se uma ligação entre o Bairro Nicolau e a área da Câmara sem esquecer o rio Spree, fez-se uma promenade, houve muita crítica. Reconstruiu-se a Igreja do Bairro Nicolau, que era uma basílica românica, cujos fundamentos foram encontrados nas escavações e que passou a ser o vestígio arquitetónico mais antigo e que tem uma estreita ligação com a fundação de Berlim. Gerald olha para o relógio, pede desculpa ao Sr. Arquiteto, temos que seguir para a etapa seguinte, pede licença para regressarmos amanhã de manhã, o ilustre convidado da RDA será recebido amanhã de manhã aqui perto, o mesmo é dizer no Ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo embaixador Hans Vogel, se podemos visitar a Igreja Nicolau às 9h30. O Sr. Arquiteto diz que sim, a despedida é efusiva. Entramos no carro e Petra Peterson anuncia-me que vamos visitar o Memorial de Treptow. Devo ter feito uma expressão de completa surpresa, nunca ouvi falar no Memorial, não sei do que trata.

Ministério dos Negócios Estrangeiros da RDA, felizmente já demolido

Gerald arruma o carro e anuncia-me triunfante que estamos no Parque de Treptow. Dada a minha ignorância, pergunto a Petra a que se deve esta visita, parques há muitos. E então vem a história. Que depois de finda a II Guerra Mundial os Soviéticos construíram vários monumentos, terão perdido cerca de 80 mil homens na Batalha de Berlim, Treptow é um parque-cemitério, tem um vasto conjunto de esculturas alusivas à Grande Guerra Pátria, é melhor eu percorrer cuidadosamente todas essas esculturas até chegar ao grande monumento, eu que circule à vontade, não preciso de guia. O parque é imenso, as esculturas disseminam-se nesta vastidão, o silêncio ajuda à contemplação, guerra é dor, destruição, dispersão calamitosa. Ando por ali no meu próprio passo, volto à guerra que fiz na Guiné, sem aqueles tanques nem aquelas batalhas, mas conheço aquelas expressões de sofrimento incomensurável, os olhos lacrimejam, o coração aperta-se, a surpresa é total, ando de escultura em escultura de arte estalinista, todo este monumento foi inaugurado em 8 de maio de 1949, virá a ser vandalizado com a queda do Muro de Berlim, não voltei lá, mas não me importaria absolutamente nada de lá regressar. Enxugo as lágrimas, por mim já chega, Petra e Gerald esperam-me à entrada, anunciam-me que vamos almoçar numa residência apalaçada onde viveu o marechal Gueorgui Zhukov, e depois, diz-me Petra com o sorriso de orelha a orelha, o ilustre convidado vai receber o prémio desta visita, será hoje que irá contemplar uma das 7 Maravilhas do Mundo, ou talvez a oitava, o Altar de Pérgamo, mas também a Porta de Istar, de Babilónia e a entrada do Mercado de Mileto, uma preciosidade da Grécia Antiga.
Soldado a salvar criança, detalhe do Memorial de Guerra Soviético em Treptow, Berlim
Detalhe das esculturas do Memorial de Guerra Soviético

(continua)
______________

Notas do editor:

Poste anterior de 14 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21542: Os nossos seres, saberes e lazeres (420): Na RDA, em fevereiro de 1987 (3) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 21 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21564: Os nossos seres, saberes e lazeres (423): Memórias de Remondes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

sábado, 14 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21542: Os nossos seres, saberes e lazeres (422): Na RDA, em fevereiro de 1987 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Eram tempos novos, a URSS elegera um novo líder, Gorbatchov, trazia novas consignas, a reestruturação económica e a transparência, melhor dizendo queria alterar profundamente um sistema económico-financeira anquilosado e já corrupto, dentre em pouco um parente do líder defunto Leonid Brejnev será preso por mão baixa, cresceu a liberdade de criticar o pesadelo burocrático, Gorbatchov desdobra-se em viagens, promete desarmamento e apela aos Estados socialistas da Europa de Leste que se reatualizem. Os líderes da RDA tudo farão para não o ouvir, tive a oportunidade de conferir que o discurso político continuava na moda antiga.
E confesso que adorei Dresden, senti que os restauros naquela Berlim que fora reduzida a escombros estava a reaparecer graças a um trabalho colossal de requalificação. Irei ainda emocionar-me muito, conhecera o Museu de Pérgamo em 1981, fiquei embasbacado com as Portas de Babilónia e o Altar de Pérgamo, voltarei a visitá-los de boca à banda.
A Berlim de hoje é mais formosa, sem dúvida, graças aos arrojos arquitetónicos que começaram em Potsdamer Platz até às avenidas das embaixadas, não queria partir para as estrelinhas sem lá voltar.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (3)

Mário Beja Santos

Tenho direito a um início de manhã altamente cultural, contente com o pequeno-almoço de pão preto e uma boa xícara de café e uma peça de fruta, o tempo melhorou, faz um frio de rachar, mas não neva. Petra Petersen anuncia-me que temos de partir já, a bagagem a bordo, almoçaremos pelo caminho, dentro de dez minutos seremos recebidos por uma guia na Pinacoteca dos Velhos Mestres. E assim foi. O carro fica parqueado a pouca distância do Zwinger, avançamos para a porta grande da Pinacoteca, é uma senhora gentil que nos acolhe, escolheu doze obras para comentar e está previsto percorrermos as principais salas. Logo observou que nenhuma destas obras-primas foi afetada pelos bombardeamentos, em devido tempo este preciosíssimo acervo recolheu às caves dos edifícios mais resistentes, foi o caso da fortaleza de Königstein. A primeira grande surpresa é ouvir esta competente guia a apresentar-me a Madona de Pés Descalços de Rafael, é de ficar emudecido. A eficiente guia não perde oportunidade de me dizer que a Pinacoteca alberga mais de 70 mil obras-primas, é com prazer que me vai mostrar telas de Ticiano, Pinturicchio e muitos outros. No termo da visita, com uma expressão de quem vai pregar uma surpresa, diz que tem uma tela de um grande pintor português para eu admirar, e tinha mesmo, um quadro de André Pires de Évora. Agradeci imenso, o condutor olha para o relógio, temos ainda o passeio pedestre no interior de Dresden, contemplar o Elba e as suas pontes, há um outro guia dentro de 15 minutos que irá apresentar o Fürstenzug, houvesse tempo passaríamos toda a tarde a subir e a descer colinas para apreciar a belíssima arquitetura romântica, Arte-Nova e Arte-Déco que circunda a cidade, milagrosamente poupada nos terríveis bombardeamentos de fevereiro de 1945.
Apetecia-me ficar, mesmo nesta atmosfera gélida, a sentir estalar o gelo da noite debaixo dos pés. É uma cidade esplendorosa, nem me passa pela cabeça que aqui regressarei duas vezes mais, e com o coração aos saltos. Ala morena que se faz tarde, adverte o motorista, temos que galgar mais de 300 quilómetros até Berlim, depositar os trastes no meu hotel, mesmo junto da Porta de Brandeburgo, num canto da Unten den Linden com a Friedrichstrasse, e seguir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Uma das salas da Pinacoteca dos Velhos Mestres de Dresden
Um dos mais célebres quadros da Pinacoteca dos Velhos Mestres, a Madona de Pés Descalços de Rafael
Zwinger, o portento do Rococó alemão, Dresden
Fürstenzug, mural representando os governantes da Saxónia, com 23 mil azulejos da porcelana Meissen

À distância de mais de 33 anos, pasmo como guardei no caderninho a conversa havida com dois diplomatas no interior do Ministério dos Negócios Estrangeiros, um edifício construído numa área nobre, perto da Catedral de Santa Edwiges, uma pequena aberração moderna que felizmente foi demolida nos trabalhos de embelezamento de Berlim transformada em capital da Alemanha. Era uma tarde morna, felizmente havia luz natural dentro da sala quando começou o primeiro monólogo, o pretexto era uma conversa informativa sobre a política externa da RDA. Que não se queria mais guerra em território alemão, fora neste território que começaram duas guerras mundiais, que uma guerra termonuclear não teria vencedores nem vencidos, de todos os países socialistas fazia o possível para diminuir a tensão armamentista oriundo do Washington, que na Europa havia vinte vezes mais armas espalhadas por todo o mundo, que a ideia de fazer um escudo defensivo para o mundo só se justificava para dar mais dinheiro aos advogados do complexo militar industrial. Aqui se interrompeu a primeira exposição, outro interveniente informou que a RDA não exportava situações revolucionárias, pautava a sua política externa para alcançar uma atmosfera de paz, estabelecera através do COMECON as melhores relações comerciais com o bloco socialista, não obstante tinha uma política comercial bem disponível para a RFA e havia até bons negócios com Portugal. A RDA oferecia cooperação técnico-científica em vários continentes. Havia agora ajustamentos graças ao pensamento de Gorbatchov, fazer da Europa uma casa comum, para a RDA não havia propriamente uma novidade, desde que se assinara a Ata Final de Helsínquia, em 1975, só se pensava no desanuviamento, que começava exatamente nos dois países alemães. Lamentava-se muito a propaganda ocidental hostil referindo atentados aos direitos humanos e prisões arbitrárias na RDA, tudo falso, aceitavam-se críticas ao regime socialista, ninguém era preso pelas suas opiniões, salvo as altamente lesivas, conotadas com traição, espionagem ou incitamento ao regresso ao passado. A abertura a quem quisesse deixar a RDA era uma realidade, no ano anterior fora autorizada a saída de um bom número de cidadãos para a Alemanha Federal, e aí um dos oradores lamentou que os trabalhadores da RFA ainda não estivessem maduros para construir o socialismo.
A conversa começa a ser um tanto o mais do mesmo, há citações a torto e a direito da Ata Final de Helsínquia, dos sucessos do socialismo da RDA, e quando peço novo café para estar espevitado, o Dr. Zoske substitui o Dr. Vogel para dar opinião sobre as conversações Salt-3, para redução dos armamentos nucleares, aguardava-se agora um novo quadro de negociações entre Gorbatchov e Reagan, era nítido que este último estava a precipitar nova corrida armamentista, sonhava com uma Guerra das Estrelas, instalara-se um novo quadro de desconfiança entre o Ocidente e o Leste, a RDA era favorável ao abatimento dessas tensões, pugnada por um equilíbrio militar entre os dois blocos.
É nisto que os dois oradores se entreolharam e me deram a saber que por hoje chegava, amanhã haveria nova pratada de informações, que o ilustre convidado pudesse sair da RDA ciente de que a política externa do país era a mais pacífica do mundo. Havia notícia de que esse mesmo ilustre convidado iria fazer uma visita guiada na Unten den Linden desde a Catedral até à Porta de Brandeburgo, e que amanhã também teria uma visita comentada no Bairro Nicolau.
Despedimo-nos com uma efusão controlada, conhecer metro por metro a Unten den Linden maravilha-me. Despeço-me de Petra e Gerald, voltamos a falar de Dresden e das alegrias de tão bela viagem. Amanhã há mais, ainda não sei irei fazer uma visita a um cemitério onde seria assaltado por um choro convulsivo, o velho combatente veio ao de cima. Eu depois conto.
Palácio da República, Berlim, anos 1980, ao fundo a torre de Alexanderplatz, o carro é o Trabant
A Catedral de Berlim, profundamente restaurada
Memorial aos Mortos da Guerra, obra de Käthe Kollwitz, Unten den Linden

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 7 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21523: Os nossos seres, saberes e lazeres (421): Na RDA, em fevereiro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 7 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21524: Da Suécia com Saudade (84): Ainda as “anedotas” do outro lado da “Cortina de Ferro”: recordações da Deutsche Demokratische Republik (José Belo)


José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia; de tempos a tempos,  dá um salto 
a Key West, Florida, EUA [ onde frequenta e às vezes pode ser visto 
 


1. Mensagem de José Belo José Belo, ex-alf mil, CCAÇ 2381 (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampaté e Empada, 1968/70); cap inf ref, jurista, criador de renas, autor da série "Da Suécia com Saudadr"; vive na Suécia há mais de 4 décadas; régulo da Tabanca da Lapónia; tem c. 180 referências no nosso blogue: entrou "de jure" na nossa Tabanca Grande em 8 de março de 2009]

 
Date: segunda, 2/11/2020 à(s) 15:01
Subject: Ainda as "anedotas"do outro lado da "Cortina de Ferro"
 
Caro Luís 

Em conjunto com a "história" da Praça Vermelha de Moscovo (*) e a propósito do texto e comentários quanto à DDR (Deutsche Demokratische Republik) (**),  aqui segue um texto que confirma um "certo estado de espírito " existente um pouco por toda a parte do outro lado da ....Cortina.

O ano seria 1981. Encontrava-me de férias na costa Báltica da Alemanha e decidi dar uma saltada até Berlin, então ainda bem dividido pelo muro [, derrubado em 1989].

As autoestradas alemãs ocidentais, então praticamente sem limites de velocidade, eram boas pistas para experimentar o meu novo Saab. Ao entrar na autoestrada alemã oriental desconhecia haver na sua quase totalidade um limite de 90 quilómetros/hora.

Frente a um desvio fui obrigado a parar por um polícia de trânsito. Uniforme impecável.Atitudes também impecáveis num distinto porte militar. No entanto a comunicação verbal não era a melhor.
O polícia falava um alemão com forte pronúncia do nordeste e eu um alemão demasiadamente assuecado
´
Depois de muita mímica lá apontou para o conta quilómetros do meu carro.Acabámos por  nos entender quanto ao excesso de velocidade 

Tirando do bolso um papel com multas impressas escreveu à margem: "100 Deutsche Mark".[100n Marcos Alemães]

Perguntei-lhe se referia a moeda alemã oriental.

- Nein! Nein! Nein!...

... Marco alemão ocidental e... a "el contado"!

Mostrei-lhe a carteira,  ao mesmo tempo que explicava tudo pagar com cartão bancário. Manifestamente contrariado,  ordenou-me que o acompanhasse até uma pequena casa construída à entrada do desvio.

Com a minha mulher, sueca e "patrioteira", a gargalhar ao mesmo tempo que cantarolava o hino nacional sueco, lá conduzi o carro até à agência policial.

Lá dentro, o polícia apontou uma cadeira frente a uma secretária com imponente máquina de escrever de "outros tempos". Tendo ele compreendido a impossibilidade de meter ao bolso os 100 marcos ocidentais, ,agora  tudo deveria ser feito para salvar as aparências,  tornando a situação o mais "oficializada" possível .

Rapidamente escreveu os meus dados pessoais, matrícula do automóvel, etc., etc.

Pediu-me então o cartão de crédito bancário para escrever o número. Entre outros, tinha no bolso lateral do meu casaco o cartão bancário e o cartão hospitalar sueco,em tamanho e material idêntico ao bancário, só variando na sua cor branca.

Sem olhar, entrego o cartão ao polícia que, de imediato,  escreve o seu número no impresso da multa.
Só então verifiquei que o cartão por ele empunhando era o cartão hospitalar sueco.

Confesso que o pensamento foi: "Agora é que vou mesmo dentro! Acusado de estar a gozar com tão importante autoridade como a policial."

Não tive tempo para mais divagações pois o senhor polícia limitou-se a apontar a porta da rua, dando por terminado o encontro.

E é uma das muitas recordações da Deutsche Demokratische Republik [, RDA, em português].

Um abraço, J. Belo.

___________

Notas do editor:


Guiné 61/74 - P21523: Os nossos seres, saberes e lazeres (421): Na RDA, em fevereiro de 1987 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Felizmente que me aviara em terra antes de partir para uma RDA cheia de nevões e sempre com a temperatura abaixo de 0ºC, calçado ideal para não partir uma perna, ceroulas, casacão e gorro. Jamais esquecerei esta visita à fortaleza de Königstein, inexpugnável como repetia com o maior entusiasmo o guia, agitando-se entre flocos de neve. Inexpugnável em termos militares, mas houve fugas audaciosas, como a do General Giraud, em 1942. O museu não deixa de impressionar pelas riquezas acumuladas dos reis da Saxónia, a museografia e a museologia eram altamente atrativas. E no último patamar, felizmente em período em que os nevões estavam ausentes, saboreei a panorâmica dos Montes Metálicos e o serpentear do Elba. Voltarei ainda mais duas vezes a Dresden, e não me importaria de regressar amanhã, mais não fosse para entrar na Igreja das Mulheres que conheci ainda em estado de escombro. E entraria com o pé leve na Pinacoteca dos Velhos Mestres, pedindo, ufano, que me indicassem onde podia apreciar o quadro de André Pires de Évora.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (2)

Mário Beja Santos

Num ápice, chegámos à histórica e renomada Fábrica Planeta, conhecida em todo o mundo por produzir máquinas de imprensa, cortadeiras e maquinação, trata-se de uma empresa de consórcio de poligrafia, estão na vanguarda da maquinaria que produz publicações a cores. É um senhor entusiasta, de nome Wensel, que faz a apresentação, mostra-me folhas, rolos, máquinas impressoras e bobinas, máquinas para livros ilustrados. Sempre orgulhoso do que exibe, tudo isto é exportado, e refere mesmo exportações para Portugal, fala na Heska Portuguesa. Revela também orgulho nos fotolitos produzidos, por todas aquelas máquinas de alta produtividade, havia para ali máquinas que imprimiam dez mil folhas à hora. O senhor Wensel olha para o relógio, está adiantada a hora, o almoço espreita, despede-se efusivamente, sabe que vamos seguidamente para um lugar histórico com tanto ou mais renome que a Planeta, Königstein.
E lá vamos, com a barriga a dar horas, Königstein fica na província de Dresden e está junto da fronteira da República Checa, ouvirei dizer mais tarde que é a grande atração da Suíça Saxónica, pode ser que seja mas com toda esta neve não há sonho suíço que me tire do enregelamento. Lá em baixo corre o rio Elba a caminho do Mar do Norte, há montanhas a toda a volta, é uma panorâmica soberba, sobretudo a que se percebe dos Montes Metálicos, avistam-se encostas penhascosas, desfiladeiros em precipício, o olhar avança até ao outro lado, à Boémia. Entramos na fortaleza, há uma senhora na receção que nos conduz a uma cantina, felizmente aquecida. Atirei-me ao pão preto e à manteiga, depois chegou aquela sopa clássica de beterraba com pedacinhos de carne e natas, confortou o estômago, seguiu-se uma salsicha com chucrute, estou pronto, depois de uma taça de café, para enfrentar os densos flocos de neve que caem sobre esta sólida fortaleza que foi até ao século XIX uma reserva da Corte saxónica, tem a sua origem no século XV, ganhou valor militar na sua reconstrução no fim do século XVI, o guia irá igualmente dizer no decurso da II Guerra Mundial foi prisão para prisioneiros políticos, aqui se guardaram os tesouros artísticos da Pinacoteca dos Velhos Mestres de Dresden e foi simultaneamente campo de prisioneiros de guerra, houve fugas audaciosas.
Entrada da fortaleza de Königstein
Detalhe da fortaleza de Königstein
Pormenor da fortaleza de Königstein, com panorama do rio Elba e a República Checa ao fundo

O mínimo que ocorre dizer, mesmo a pingar do nariz, a sentir os efeitos no nevão e a procurar não patinhar na neve (à cautela, trouxera calçado apropriado, umas solas com aderência, bem quentinho no interior, é que a estrutura é muito mais do que impressionante, com as suas três pontes levadiças, a dimensão das torres e torreões, compartimentos que serviram de prisões, olhar para aqueles penhascos inacessíveis, de onde outrora se vertia azeite a ferver e havia armadilhas que funcionavam como paliçadas com pontas de aço. O guia é perentório: aqui nunca entrou um inimigo enquanto houve fortaleza. Canhões não faltam, muralhas também não, já desisti de contar os edifícios, as cisternas, as torres de vigilância e as casas-matas. Estamos a mais de 360 metros do nível do mar e a 240 metros acima do Elba. É uma fortaleza em cima da rocha, Augusto, o Forte, dava aqui festas. Lá no fundo há poços, o guia insiste em descer, obedeço, meio agarrado ao corrimão. Fiz bem em preparar-me para ouvir a oratória ideológica. Aqui esteve preso em 1919 e 1920 o cofundador do Partido Comunista Alemão, Fritz Heckert, juntamente com outros 49 companheiros de luta. Durante a I Guerra Mundial aqui se utilizou uma sala como igreja para oficiais russos prisioneiros. Ao guia não escapa eu estar de ouvido à escuta. Vai-me mostrar o local por onde o General Henri Giraud se escapou em abril de 1942, uma fuga espantosa até à Suíça. Mais tarde veio a saber-se que contou com apoios de gente de Vichy, histórias. E a visita termina com uma passagem pelo museu da fortaleza de Königstein, tudo bem exposto, o guia parece ser muito humano, acha que já debitou o essencial, convida-me, com Petra e Gerald, a ir beber um chá. Creio que nunca bebi um chá com tanta satisfação, a alegria de ver as estranhas a aquecer. É fevereiro, anoiteceu ainda não passava das cinco da tarde, Gerald sugere regressar cuidadosamente a Dresden, agradeci-lhe a compaixão. O jantar foi saboroso, um pedaço de joelho de porco acompanhado por batata cozida e um molho a rescender a mostarda. O melhor seria ir mesmo para o quarto, mas não resisti a dar um passeiozinho para fazer horas. Espequei-me em frente da Semper Opera, na verdade a pedra que eu vi estava bem poluída, mas trata-se de uma construção circular de grande beleza. Amanhã de manhã, imagine-se, antes de partirmos para Berlim, deambularemos pelo Zwinger, terei de novo guia para visitar a Pinacoteca dos Velhos Mestres, e verei o interior da Semper Opera. Uns bons anos depois, aqui regressarei e terei o privilégio de assistir a uma récita da ópera Arabella, de Richard Strauss.
Castelo de Königstein, vista parcial
Semper Opera, a casa de ópera de Dresden

sábado, 31 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21499: Os nossos seres, saberes e lazeres (419): Na RDA, em fevereiro de 1987 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2020:

Queridos amigos, 

Foi na recolha de todos os materiais que guardei ao longo de décadas referentes à Bélgica, e no intuito de escrever o romance que não o foi, Rua do Eclipse, que encontrei dentro de uma capa que dizia Bruxelas um farto canhenho, abri e encontrei dezenas e dezenas de páginas de notas de uma visita efetuada à República Democrática Alemã em fevereiro de 1987.

Já conhecia Berlim, a Berlim dividida, que visitei em 1981, a RTP representava num festival um dos meus episódios televisivos de defesa do consumidor. Atravessei Checkpoint Charlie, fui obrigado a comprar vinte marcos da Alemanha Oriental, e no final do dia fui obrigado a converter esses vinte marcos num saco de maços de cigarros, deu jeito para prendas, entretanto visitei o fabuloso Museu de Pérgamo, a Galeria Nacional, a icónica torre de televisão em Alexanderplatz. Sempre sonhara visitar Dresden, Leipzig e Erfurt, a ocasião veio imprevistamente, num rigorosíssimo fevereiro percorri locais que me encantaram, e me deu facilmente para perceber que aquele regime de partido único estava a dar as últimas, mas estrebuchava com dinamismo, não escondi a boa impressão de ver os alemães da RDA sem barracas nem bairros miseráveis. 

E o passeio vai continuar.

Um abraço do
Mário


Na RDA, em fevereiro de 1987 (1)

Mário Beja Santos

Algures, em finais de outubro de 1986, ocorreu-me escrever para todas as embaixadas do denominado bloco socialista europeu pedindo-lhes informações sobre as políticas a favor dos consumidores em execução nos respetivos países. Recebi respostas de diferente teor, de um modo geral o diplomata que assinava a carta dava-me a saber que era missão do Estado proteger o consumidor nos preços dos géneros alimentícios e todos os bens de primeira necessidade, incluindo a habitação, os serviços de saúde e os educativos. E enunciavam-se os respetivos departamentos responsáveis pela supervisão destas legislações. Não havia associações de consumidores e os problemas ambientais era coisa inexistente, tratava-se de matéria a cargo de diferentes ministérios e das regiões. 

Dentro desta monotonia de respostas, destacava-se um farto documento vindo da Embaixada da República Democrática Alemã, onde se propunha uma conversa com um primeiro-secretário. Nada tinha a obstar, o que me interessava era perceber as diferenças entre as práticas associativas ocidentais e o modelo em curso na então CEE com as políticas do chamado socialismo real. 

Recebido com enorme afabilidade, em dado momento o primeiro-secretário anunciou-me que o Sr. Embaixador me queria conhecer, agradeci a honra e dirigimo-nos para o gabinete do diplomata. Mais afabilidade, notei que era um homem precocemente envelhecido, uma voz estranhamente modulada, ele viu nos meus olhos o que eu procurava esclarecer, e explicou-me que sofrera um tremendo AVC em Maputo, já como embaixador. 

Os minutos passaram, falámos de música e filosofia, do génio alemão em geral, de que sou indefetível admirador, e no termo da conversa o embaixador perguntou-me se eu aceitava o convite para visitar o desenvolvimento e o progresso na RDA, conhecer a política pacifista e ver com os meus olhos a importância dada à cultura. Aceitei o convite, acertou-se numa data, perguntou-me que cidades gostaria de visitar, falei-lhe de Berlim, que conhecera em 1981, Erfurt, Dresden, mas evidentemente estava recetivo a conhecer outras paragens.

E em fins de janeiro aterro em Berlin-Schönefeld, tinha intérprete e motorista à espera. Seguimos diretamente para Dresden, a temperatura muito abaixo do zero, neve por toda a parte, uma jovem intérprete encantadora, para conversar com Gerald era preciso que Petra traduzisse. Chegámos ao anoitecer, à boa maneira alemã Petra deu-me conhecimento do programa em Dresden. Na manhã seguinte, ao raiar da aurora, um tal Dr. Steiner apresentava-me Dresden e a Saxónia, a seguir um arquiteto, de nome Globisch, falaria sobre a reconstrução da cidade, que fora altamente devastada pelos bombardeamentos de fevereiro de 1945.

Pontualmente às oito da manhã, com um frio de rachar, fomos recebidos num escritório e tornou-se inequívoco, vendo estandartes e as fotografias dos altos dirigentes da RDA, que me seria dada informação histórica e política. Registei num caderno o que o Dr. Steiner entendia que eu devia conhecer. Que data de 1206 o primeiro documento que menciona Dresden colonizada pelo Suábios; no século XIV foi capital dos Vetinos; que no século XVIII, no período de Augusto, O Forte, que foi também rei da Polónia, se construíram o Zwinger e todas as joias barrocas merecem admiração mundial. 75% deste riquíssimo património foi destruído pelos bombardeamentos de fevereiro de 1945 em que morreram trinta mil pessoas.

E entram na conversa o arquiteto Globisch, que descreveu os programas de reconstrução iniciados em 1946, possuíam-se todas as plantas e fotografias da Dresden destruída, aproveitava-se a oportunidade para reconstruir aquele património único alterando as redes de tráfego, quer junto do rio Alba, quer no interior da cidade, quer melhorando a área pedonal. Projetava-se reconstruir o lado medieval do velho mercado, e que o convidado ilustre que vinha de Portugal soubesse que o 8.º congresso do Partido decidira em 1970 acelerar a construção de habitações de modo que na década de 1990 não houvesse uma família alemã na RDA que não tivesse um apartamento condigno. 

E choveram os números sobre as construções e reconstruções em Dresden, seguiu-se uma longa apresentação dos desafios postos aos projetistas, eu devia ir visitar o estado em que estava a Igreja das Mulheres e tomar nota de que a conceção urbanística estava absolutamente atenta às necessidades sociais, culturais e económicas do povo socialista. Despedimo-nos com largos sorrisos, recebi imagens e desejos de boa estadia.

A etapa seguinte foi o Museu da Higiene, confesso que gostei do que vi, o objeto fundamental desta entidade promotora de saúde e da cultura era a educação para a saúde em múltiplas vertentes, tais como o alcoolismo, o tabagismo, a planificação familiar e os estilos de vida saudáveis. E logo veio à baila os prodígios do atletismo alemão-oriental, os grandes nadadores; fizeram-se rasgadas referências às creches e jardins de infância, às campanhas na comunicação social, aos programas escolares dedicados ao nutricionismo. 

Esta promoção para a saúde, tal como me foi referida, contava com a cooperação de todas as regiões da República Democrática Alemã. Na altura, o Museu da Higiene preparava programas para cozinheiros nas cadeias hoteleiras e materiais para os estabelecimentos escolares. Havia já restaurantes onde era proibido fumar, a médica de Saúde Pública (fixei o nome de Helga) não deixou de referir que apesar de não haver publicidade, um terço da população fumava, e o mais preocupante era a alta percentagem de jovens e de mulheres. A estratégia antitabaco recusava o proibicionismo, centrava-se nos aspetos positivos das vantagens de não fumar. 

Passámos a visitar o museu, ouvia-se perfeitamente uma ranchada de crianças divertidas a ver figuras de seres humanos e animais em material plastificável, alguém explicava o corpo humano e o interior de uma vaca. O entusiasmo dos professores nestas visitas era tal que logo pediam que dali a dois meses voltassem e tivessem um novo programa. E foi-me dado conhecimento do trabalho de investigação e dos materiais divulgativos, fundamentalmente filmes de 35 mm, diapositivos e brochuras. Aquele material pedagógico que me tinha impressionado em material plastificável corria o mundo, era considerado altamente inovador.

Já passa das onze horas, o visitante não veio para se divertir, Gerald tem o carro à porta, vamos para os arredores de Dresden, para Radebeul, visitar a Planeta, uma empresa de vanguarda, aqui produzem-se máquinas de impressão a cores, maquinaria computorizada. Antes de partir, o visitante tem direito a um espesso café preto e a uma fatia de tarde de maçã. Vamos ao trabalho!

(continua)

Imagem de Dresden destruída após bombardeamentos maciços, fevereiro de 1945
Imagem do princípio da reconstrução da Igreja das Mulheres, em Dresden
Altar-mor da Igreja das Mulheres depois da reconstrução
Obra de um dos artistas iconográficos de Dresden, Bernardo Bellotto
Cartaz de 1911, já se anuncia a Arte Nova
Museu de Higiene da Alemanha
Os materiais pedagógicos mais populares do Museu da Higiene, percebe-se porquê

____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21478: Os nossos seres, saberes e lazeres (418): No Alto Minho, lancei âncora na Ribeira Lima (12) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20965: FAP (116): O último ano do Fiat G-91 - II (e última) Parte (José Matos)



Fig. 9 - O primeiro Fiat G.91 a ganhar a nova pintura verde escura para evitar o míssil. Infografia: Paulo Alegria. 


O último ano do Fiat G.91 na Guiné
por José Matos
,

[Publicado originalmente na
Revista Militar N.º 4 – abril 2020, pp. 395-414-
Cortesia do autor e editor]





José Matos [, foto à direita]: 

(i) investigador independente em História Militar, tem feito pesquisas sobre as operações da Força Aérea na Guerra Colonial portuguesa, principalmente na Guiné;

(ii) é  colaborador regular em revistas europeias de aviação militar e de temas navais;

(iii) colaborou nos livros “A Força Aérea no Fim do Império” (Lisboa, Âncora Editora, 2018) e "A Guerra e as Guerras Coloniais na África Subsariana" (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019);

(iv) é autor, com Luís Barroso, do livro, a sair brevemente, "Nos meandros da guerra: o Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné" (Lisboa, Editora Caleidoscópio, 2020).

(v) é  membro da nossa Tabanca Grande desde 7 de setembro de 2015, tendo cerca de 3 dezenas e meia de referências no nosso blogue]


II (e última parte) (*)

Operações nocturnas 

As missões de Fiat à noite são executadas com luzes de posição apagadas. Esta restrição implicava que a força atacante não fosse superior a 2 caças e que a actuação, no local de acção, obedecesse a um rígido sistema de escalonamento em altitude, tanto na fase da entrada como na da saída dos passes de tiro e à selecção de um ponto em terra bem conhecido para a reunião e regresso à base, dos aviões.

Quanto ao apoio, este era relativamente fácil de prestar, porque o clarão do disparo das armas da guerrilha, denunciava a sua posição no terreno. No local de acção, o primeiro jacto a entrar tinha, por isso, grande probabilidade de infligir danos ao inimigo. Fizeram-se saídas desta natureza a favor de Gadamael Porto e outra em apoio de Cufar.[33]

Em relação ao C-47, foi engendrado um visor a partir de um derivómetro usado no DC-3 Skymaster, que media ângulos na horizontal e na vertical. Ao fim de alguns voos gerou-se uma tabela de tiro e a aeronave entrou em acção, a coberto da noite. O avião adaptado era, habitualmente, usado em missões de reconhecimento fotográfico e tinha, por isso, uma abertura no dorso inferior traseiro, para instalação da máquina fotográfica. Era por essa abertura que os militares a bordo lançavam manualmente bombas de 15 kg. Os voos eram habitualmente feitos a 10 000 pés (3000 metros) fazendo bombardeamento de área. [34] 


A estreia do C-47 nesta função acontece em Setembro de 1973 com 3 acções/3 saídas nocturnas, continuando em Novembro com 5 acções/5 saídas e em Dezembro com 12 acções/12 saídas.[35]

Podemos agora ver pela análise dos SITREPS (“Situation Report”) da época que o número de acções aéreas de ataque do G.91 aumenta de forma consistente a partir de Agosto de 73, atingindo o pico máximo em Outubro (126 acções).[36]





Fig 6 - Fiat G-91: ações aéreas de ataque (1973)


A partir da análise do gráfico [Fig nº 6], constatamos que o número de missões ATIP (Ataque Independente Preparado) é significativo, a partir de Julho (49) sendo durante o resto do ano superior ao mês de Março, ou seja, antes do aparecimento do míssil. As missões ATAP (Ataque de Apoio Próximo) atingem um pico em Maio/Junho, durante a crise militar de Guidage, Guileje e Gadamael, baixando depois durante o resto do ano. Quanto às missões ATIR (Ataque Independente em Reconhecimento) desaparecem praticamente durante o ano.

Ataques a Kandiafara 

Em Agosto, o Tenente-Coronel Fernando de Jesus Vasquez substitui o Major Pedroso de Almeida no comando do GO1201. Um mês depois da sua chegada, os Fiat são empenhados em várias missões de bombardeamento a Kandiafara, na Guiné-Conakry. Estas missões começam no início de Setembro e intensificam-se a meio do mês, quando os “Tigres” bombardeiam esta base várias vezes, apesar da forte oposição das antiaéreas.[37] Num destes ataques, a 20 de Setembro, é morto um oficial cubano, o Tenente Raúl Pérez Abad, que apoiava as forças do PAIGC.[38]

Entretanto, a 1 de Setembro, a Força Aérea perde mais um G.91, mas, desta vez, por razões desconhecidas. O Fiat 5416 era pilotado pelo Capitão Carlos Wanzeller e participava numa missão de bombardeamento em apoio a uma helicolocação, usando bombas de 750 libras (340 kg). 


Durante o passe de bombardeamento e após largar a primeira bomba, o avião de Wanzeller enrola bruscamente para a esquerda até uma posição invertida, ficando o piloto sujeito a uma aceleração excessiva e sem controlo do avião. Após a perda momentânea de consciência, Wanzeller ejecta-se, sendo recuperado posteriormente por um helicóptero que procedia às helicolocações. Na investigação que é feita ao acidente não se consegue apurar o motivo da perda de controlo do avião, ficando o piloto ilibado de qualquer responsabilidade. [39]

No seguimento deste incidente, o Comando da Zona Aérea solicita a substituição do Fiat acidentado, sendo decidido que o avião 5439, previsto sair de IRAN 
[Inspect and Repair As Necessary] em Fevereiro de 1974 para a BA5, seja atribuído à ZACVG. 

No entanto, o chefe da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea (EMFA), Coronel Costa Gomes (um veterano da guerra na Guiné), salienta “que tal decisão irá afectar a já difícil situação da Base Aérea nº 5, no que respeita à preparação operacional de pilotos de G.91 para o Ultramar.” 

Atendendo que a BA5 dispunha apenas de 5 Fiat (3 disponíveis) e que, provavelmente, todas as futuras substituições só poderiam ser realizadas recorrendo aos restantes aviões que estavam em Monte Real, Costa Gomes considera oportuno que seja revisto o problema da preparação operacional em Fiat na BA5, cada vez com menos aviões para essa função. [40] O problema agrava-se no mês seguinte com a perda de outro caça na Guiné.


Ejecção na selva 

A 4 de Outubro, os “Tigres” perdem o Fiat (5409), no norte da Guiné, na região de Jagali, a sul do rio Cacheu, perto da mata do Tancroal. Na manhã desse dia, dois G.91 descolam da BA12 rumo ao norte, pilotados, respectivamente, pelo Capitão Alberto Cruz e pelo Coronel Lemos Ferreira, na altura Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné (ZACVG). Cada avião transportava nas asas 2 bombas de fragmentação de 200 Kg e 4 bombas de demolição de 50 Kg, além das munições habituais nas metralhadoras do nariz. 


O tempo estava encoberto por nuvens altas, mas a zona suspeita distava apenas 50 quilómetros de Bissau e em 15 minutos de voo a parelha estava sobre a mata do Tancroal à procura de vestígios da guerrilha. O ponto de convergência de alguns trilhos suspeitos é assumido como alvo e a zona é de imediato bombardeada pelos dois aviões. Os dois jactos atacam o alvo de forma desfasada no tempo para que cada um possa vigiar a recuperação do outro e avisá-lo em caso de disparo do míssil e atacar o local de lançamento. 


Depois de largadas as bombas, o Capitão Alberto Cruz mergulha em ângulo de picada de 60º para metralhar a posição suspeita e de repente sente um grande estrondo e percebe que qualquer coisa de grave aconteceu ao G.91. O avião vibra com tanta violência que o piloto bate constantemente com o capacete na “cannopy” e a consola do Fiat mostra luzes acesas por todos os lados. De repente, o G.91 entra numa espiral descontrolada e o piloto perde completamente a visão à sua volta e decide ejectar-se. 


A ejecção ocorre a cerca de 400 nós (740 km/h), ou seja, muito perto do limite do cabo de disparo do pára-quedas de abertura que é de 470 nós (870 km/h). É uma ejecção violenta, tão violenta que o piloto perde o capacete e os sentidos, durante algum tempo, e sofre também uma forte compressão na coluna. A descida até ao solo é rápida. Em pouco mais de 15 segundos, o piloto aterra na floresta, mas fica pendurado numa árvore a cerca de 5 metros do solo. 


Perante a situação, deixa o paraquedas deslizar suavemente até que a cerca de 2 metros de altura cai desamparado no chão. Logo de imediato sente dores nas costas, além de um joelho dorido e de perda de visão no olho esquerdo, magoado durante a ejecção. Mas a velha cadeira Martin-Baker salvou-lhe a vida. Recupera da queda e ouve vozes dos guerrilheiros ou da população; discretamente desloca-se a custo para uma clareira, onde fica à espera de ser recolhido. [Fig. nº 7]




Fig. 7 - Capitão Alberto Cruz na Guiné.

Crédito fotográfico: Alberto Cruz 



O líder da parelha alerta Bissalanca e dois Fiat de prevenção acompanhados por dois helicópteros Alouette III armados com canhões de 20 mm partem imediatamente da base para fazer a recuperação. O primeiro G.91 chega rapidamente ao local, mas com receio de ser localizado pela guerrilha, o piloto não emite qualquer sinal luminoso. 

Passados 35 minutos, os Alouette III começam a sobrevoar a área e é nessa altura que o Capitão Cruz lança um flare que é visto por um dos helicópteros, sendo então recuperado. De regresso à base, é elaborado o relatório do que se passou em que o motivo do incidente é atribuído a “causas indeterminadas”. 


De facto, o Coronel Lemos Ferreira que estava no outro Fiat não viu qualquer míssil e o Capitão Cruz fica com a ideia de que pode ter sido o painel das metralhadoras do lado esquerdo que se abriu durante o voo, pois na inspecção que tinha feito antes de levantar voo tinha notado alguma folga neste painel. 

A suspeita do piloto leva a FAP a consultar o construtor do avião (a Dornier), que informa que “os painéis laterais de armamento já se abriram, em alguns casos, mas durante a fase de descolagem” existindo nesses casos “uma tendência de o avião enrolar para o lado oposto ao da abertura, tornando-se crítico o controlo direccional. A firma construtora especificou que no caso particular da perda do painel lateral de armamento em voo, o centro de gravidade deslocar-se-á significativamente para trás, desconhecendo-se qual a alteração da estabilidade da aeronave.”[41]

Entretanto, em Bissalanca, todos os Fiat são inspeccionados detectando-se fracturas nas longarinas da chapa pára-fogo das metralhadoras e também nos ailerons, o que obriga à respectiva reparação em todos os aviões. [42]


Os receios da época seca 

Com o início da época seca (Dezembro-Maio), as chefias militares na Guiné registam um crescendo progressivo da actividade da guerrilha, depois de alguns meses de baixa actividade (principalmente Outubro e Novembro de 73). Esperam obviamente por outro ataque de grande envergadura contra as guarnições de fronteira, sendo Bigene, Guidage, Copá, Canquelifá, Buruntuma e Gadamael, os alvos mais prováveis. Há também o receio de acções de fogo sobre núcleos populacionais importantes, como o caso de Bissau, Bafatá ou Farim. [43] 

Mas nada disso acontece. Durante toda a época seca, o PAIGC não volta a lançar ataques de grande envergadura como os de Guidage, Guileje ou Gadamael, no entanto, concentra a sua acção sobre Copá e Canquelifá na frente leste junto à fronteira com o Senegal e a Guiné-Conakry.[44] Em apoio a estas acções, os guerrilheiros continuam a usar mísseis, mas sem grandes resultados. Entre finais de Abril até Dezembro de 1973, são detectados 15 disparos contra os “Tigres”, mas sem consequências.[45]


Em busca de novos Fiat 


Em Dezembro de 1973, a Força Aérea recebe informações de que a Luftwaffe pretende desactivar durante o ano de 1974, 50 a 60 jactos Fiat G.91 R/3 com uma média de 1800 a 2000 horas de voo havendo interesse da parte portuguesa em comprar alguns destes caças para reforçar a frota da FAP.[46] 


O problema é que o Governo de Bona não pretende vender os aviões a qualquer país estrangeiro, com o receio que o destino final seja sempre Portugal. A venda de armas a Portugal é um tema politicamente sensível na Alemanha, desde que o G.91 do Tenente-Coronel Almeida Brito apareceu nos jornais alemães como sendo de origem germânica, o que gerou críticas contra o Governo. [47] 


Desta forma, torna-se impossível a compra dos aviões na Alemanha. O Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), General Tello Polleri, ainda tenta explorar, junto de Espanha, a possibilidade destes aviões serem comprados pelas Construcciones Aeronáutica S.A (CASA), para depois serem vendidos a Portugal, mas sem sucesso.[48] 


Ao mesmo tempo, o Governo português tem em curso negociações para a compra de caças Mirage em França, mas o negócio esbarra na intransigência francesa de não permitir que os Mirage sejam usados na Guiné ou em Cabo Verde, uma exigência que dificulta um acordo entre Paris e Lisboa. [49]

A falta de novos Fiat preocupa a Força Aérea e a 3ª Repartição do EMFA produz, em Fevereiro de 1974, um estudo sintético sobre o problema em que considera que, face ao número de aviões existentes (31 unidades) e tendo em conta a depreciação da frota por acidentes e acção do inimigo, a FAP precisa de mais 25 aviões e 28 motores que deviam ser adquiridos nos dois anos seguintes. 


Na altura, a ZACVG dispunha de 11 caças, a 3ª Região Aérea em Moçambique de 16 e a BA5 de 4, embora estivesse previsto o reforço da 3ª RA com mais 4 jactos, ficando Monte Real sem qualquer avião para treino operacional.[50]


A fuga espectacular de Castro Gil 

Com o início de 1974, a guerrilha começa a tentar penetrar na zona nordeste da Guiné aumentando a pressão sobre Copá com bombardeamentos de artilharia. A resposta portuguesa passa pela utilização do C-47, em bombardeamentos nocturnos e do Fiat G.91, durante o dia. 

Na tarde de 31 de Janeiro de 1974, acontece um desses ataques e a BA12 recebe um pedido de apoio de fogo do quartel de Canquelifá, na fronteira norte com o Senegal. Em resposta, dois G.91 descolam de Bissalanca rumo à zona flagelada. Assim que os aviões começam a sobrevoar a área de Canquelifá, os guerrilheiros suspendem o ataque e os pilotos pedem aos militares do Exército, as referências necessárias para bombardear as posições da artilharia. 


O primeiro Fiat, pilotado pelo Tenente-Coronel Jesus Vasquez, efectua o seu bombardeamento sem qualquer reacção antiaérea, mas quando o segundo Fiat, pilotado pelo Tenente Castro Gil, executa a mesma acção é atingido por um míssil quando recupera do passe e despenha-se perto do território do Senegal. Castro Gil ejecta-se e aterra perto das linhas inimigas. A proximidade da noite não permite que seja desencadeada uma operação de regaste e o líder da parelha, após ter informado a base, regressa à BA12, que, entretanto, coloca em marcha os planos para o inevitável resgate. 


Para a operação, são mobilizados os comandos africanos de Marcelino da Mata e dois pelotões de pára-quedistas, que iriam descolar logo de manhã cedo para Nova Lamego, de onde iriam de helicóptero para a zona onde o piloto português caíra. Um C-47 fora também colocado no ar, sobrevoando a zona de Canquelifá para que Castro Gil percebesse que a Força Aérea o iria resgatar assim que possível. 


O piloto, depois de chegar ao solo e vendo-se numa zona queimada pelos bombardeamentos da guerrilha decide afastar-se para norte, para o lado do Senegal, de forma a despistar a guerrilha. Munido de uma bússola, esgueirou-se pela cinza de forma a não deixar grande rasto e caminhou o mais que pôde para não ser encontrado pelos guerrilheiros. Já depois do raiar do dia, mudou de direcção para sul, em busca da estrada alcatroada de Buruntuma-Piche-Nova Lamego. O plano de Castro Gil era chegar ao quartel de Piche.

O raiar do dia trouxe também o início das operações do Exército português. Os homens de Marcelino da Mata foram colocados no terreno e encontraram o que restava do pára-quedas e do assento ejectável, mas sem sinal do piloto. 

Entretanto, um pequeno DO-27 de reconhecimento foi colocado no ar também para procurar o piloto que,  ao ver o avião, lançou um very-light, mas desesperado, apercebeu-se que a tripulação não o vira, e o monomotor a hélice afastou-se do local onde estava. Foi um rude golpe, sobretudo tendo em conta que já se afligia com sede e calor. Mesmo assim, não desistiu e resolveu prosseguir com o seu próprio plano. 





Fig. 8 – Regresso do Tenente Castro Gil a Bissalanca. Crédito fotográfico: Grupo Operacional 1201. 



Ao fim de muitas horas, acabou por encontrar uma tabanca. Escondido entre a vegetação, estudou os habitantes para se certificar de que eram de confiança. Ao fim de uma hora, decidiu arriscar, indo ter com uma mulher para lhe pedir água. Estava agora rodeado pela população, que se revelou amigável e pediu a um habitante local para ser levado para o quartel de Piche. O homem surgiu com uma bicicleta de assento atrás e mandou Castro Gil instalar-se e arrancou a pedalar em direcção ao sul. 

No caminho, ainda passou por dois homens armados, caminhando em sentido inverso, que o condutor da bicicleta cumprimentou sem levantar qualquer suspeita. No espírito de Castro Gil ficou a dúvida se os homens seriam milícias de um destacamento existente entre Piche e Canquelifá (Dunane) ou dois guerrilheiros que teriam andado à sua procura e regressavam ao seu acampamento.

Enquanto isto se dava, a equipa de resgaste prosseguia a sua missão durante o dia, na zona de Canquelifá, mas sem encontrar vestígios do piloto.

Só ao final do dia é que receberam uma comunicação de Piche que dizia, em termos muito simples, que o piloto tinha chegado ao quartel, de bicicleta! [51]


Sistemas antimísseis 

Na altura em que Castro Gil foi abatido existiam já contactos para adquirir, em França, uma tinta de baixa reflexão de tonalidade verde escura para evitar o míssil. O primeiro Fiat a ganhar esta nova pintura foi o 5401, que estava em Monte Real na BA5, sendo transferido para a Guiné em Março de 1974. [52] [Fig. nº 9]

A Força Aérea procura também equipar os Fiat com um sistema antimíssil do tipo flare a comprar nos EUA e o ministro da Defesa, Silva Cunha, autoriza, em Fevereiro de 1974, a compra de dispersores de flares para instalar no G-91.[53] O modelo escolhido é o TRACOR TBC-72 de fabrico americano semelhante ao AN/ALE-40 da mesma empresa. A ideia era instalar 4 dispersores por avião junto ao bordo de fuga dos suportes internos. Os TBC-72 permitem a utilização, não só de artifícios iluminantes, como também de “chaff” (limalha de perturbação de radar).

Em Abril, são feitas diligências junto da embaixada portuguesa em Washington para saber da possibilidade da venda de tal equipamento pelos americanos, mas com o 25 de Abril e o fim do regime, a compra perde sentido.[54]


O fim da guerra 


A actividade operacional dos “Tigres” em 1974 vai decrescendo nos primeiros meses do ano até à revolução de Abril. Mesmo assim, a média mensal é de 140 horas/voo, ou seja, superior aos 10 meses anteriores (130 horas/voo).[55] De Janeiro a Abril de 1974, são detectados disparos de 11 mísseis contra os Fiat, mas com excepção do abate de Castro Gil, nenhum Strela atinge os jactos. [56]

Apesar do 25 de Abril e da mudança do regime em Lisboa, a guerra não acaba de imediato e os Fiat continuam a voar nos céus da Guiné. Bettencourt Rodrigues é demitido das suas funções e chamado a Lisboa, sendo substituído pelo Tenente-Coronel Mateus da Silva e depois pelo Tenente-Coronel graduado em Brigadeiro, Carlos Fabião, que toma posse em Bissau, a 8 de Maio.[57] Na Força Aérea, o Tenente-Coronel Vasquez continua no comando do GO1201, não havendo qualquer mudança.

No início de Maio, os G.91 ainda efectuam algumas missões de ataque e uma de apoio próximo em Mamboncó,[58] mas com o cessar-fogo acordado em Dacar em meados de Maio, as operações ofensivas cessam na Guiné.[59] Os “Tigres” ficam limitados a missões de vigilância até à independência da Guiné. Terminava assim a vida operacional do Fiat neste território africano.

José Matos

__________

O autor agradece ao Arquivo da Defesa Nacional, ao Arquivo Histórico-Militar e à Torre do Tombo, as facilidades concedidas para esta investigação. Ao TGen Fernando de Jesus Vasquez, ao TGen António Martins de Matos e ao Maj Alberto Cruz a leitura e informações prestadas. 
 

[Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
____________


Referências:


[33] Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vasquez.

[34] Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vasquez.

[35] Análise dos Sitreps Circunstanciados n.º 40/73 e 46/73 a 52/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/87

[36] SITREPS do COMZAVERDEGUINÉ, ADN/F2/16/87 e 88.

[37] SITREPS nº 36-39/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/88.

[38] Hernández, op. cit., p. 237.

[39] Informação n.º 166 da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Acidentes com as aeronaves Fiat n.º 5416 em 1 Set. 73 e 5409 em 4 Out. 73, 22 de Abril de 1974, Serviço de Documentação da Força Aérea/Arquivo Histórico (SDFA/AH).

[40] Informação nº 287 da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Aviões Fiat G-91 da ZACVG, 10 de Setembro de 1973, SDFA/AH-SEA/Guiné 1964-1974/Fiat Processo 430.121.

[41] Informação nº 166, ibidem.

[42] Informação prestada ao autor pelo Capitão Alberto Cruz e pelo General Lemos Ferreira e Informação n.º 166, ibidem.

[43] Relatório da situação militar no TO Guiné, período de Outubro 73 a Janeiro de 74, Conselho Superior de Defesa, ADN F3/15/32/41.

[44] Idem, ibidem.

[45] Correia, José Manuel, Strela: A Ameaça ao Domínio dos céus no Ultramar Português, 2ª parte, Mais Alto n.º 393 Setembro/Outubro 2011, p. 28.

[46] Memorando do Estado-Maior da Força Aérea, 25 de Janeiro de 1974, SDFA/AH, 3ª Divisão/EMFA 71/74, Processo 400.121.

[47] Carta de Alberto Maria Bravo & Filhos, Assunto: Aviões G-91, 4 de Dezembro de 1973, Arquivo Histórico Diplomático (AHD) PEA 655.

[48] Carta do Secretário de Estado da Aeronáutica para o General Enrique Jimenez Benamu, 25 de Fevereiro de 1974, AHD PEA 655.

[49] Matos, José, A história secreta dos Mirage Portugueses, 2ª parte, Revista Mais Alto nº 401, Jan/Fev. 2013, pp. 25-29.

[50] Informação nº 44/A da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Recompletamento da Frota de Aviões Fiat G-91, 2 de Fevereiro de 1974, SDFA/AH-SEA/Guiné 1964-1974/Fiat Processo 430.121.

[51] Informação prestada ao autor pelo General Jesus Vasquez.

[52] Correia, op. cit., p. 31.

[53] Informação n.º 355 da Secretaria de Estado da Aeronáutica, Assunto: Equipamento antimíssil Strela (TRACOR), 18 de Abril de 1974, ADN/F3/7/13/5.

[54] Nota secreta do Director Geral do MNE para o Embaixador de Portugal em Washington, Assunto: Aquisição de equipamento antimíssil Strela, 22 de Abril de 1974, ADN /F3/7/13/5.

[55] Análise dos Sitreps Circunstanciados n.º 1/74 a 17/74 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/89 e AHM/DIV/2/4/295/3.

[56] Correia, op. cit., p. 28.

[57] Silva, António Duarte, A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, Edições Afrontamento, Lisboa, 1997, pp. 179-180.

[58] SITREPS Circunstanciados n.º 18 e 19/74 do COMZAVERDEGUINÉ, AHM/DIV/2/4/295/3.

[59] Silva, op. cit., pp. 227-228.

___________

Nota do editor:

Último poste da série > 11 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20963: FAP (115): O último ano do Fiat G-91 - Parte I (José Matos)

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18644: Historiografia da presença portuguesa em África (116): Otto Schacht, um comerciante alemão, que deu dores de cabeça às autoridades da colónia e à diplomacia portuguesa... e que terá sido avô de um outro Otto Schacht, futuro dirigente do PAIGC, assassinado em 14 de novembro de 1980, data do golpe de Estado de 'Nino' Vieira (Armando Tavares da Silva)



Otto Schacht,  membro da Comissão de Segurança e Controlo e do Serviço de Logística do PAIGC. c. 1963/73. Assassinado em 14 de novembro de 1980. Foto. Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral (com a devida vénia...).

Citação:
(1963-1973), "Otto Schacht", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43793 (2018-5-17)



1. Texto enviado pelo nosso amigo e grã-tabanqueiro  Armando Tavares da Silva, com a data de ontem, e a seguinte mensagem

Caro Luís,

Passada a grande azáfama e momento alto da “Grande Reunião” de 5 de Maio, deve haver agora tempo para a publicação do texto que anexo.

De facto, entre as inúmeras personagens que ilustram o blogue, notei o nome de Otto Schacht, o mesmo nome de um comerciante alemão cujo comportamento, entre os finais do Século XIX e primeiras décadas do Século XX, muitos problemas causou às autoridades portuguesas na Guiné. 

Este novo Otto Schacht, personagem importante do PAIGC, é, muito provavelmente, filho do anterior, e por isso é interessante ilustrar com alguns episódios o que foi a passagem daquele na Guiné no período de tempo referido e que poderá, eventualmente, permitir estabelecer alguma comparação entre ambos.

Abraço

Armando Tavares da Silva


Capa do livro de Armando Tavares da Silva, “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)” (Porto: Caminhos Romanos, 2016, 972 pp.)

2. Otto Schacht

por Armando Tavares da Silva

Entre as personagens que têm vindo mencionadas nos vários Posts há uma que me prendeu a atenção. Trata-se de Otto Schacht, cuja última referência é a do Post P18439 de Jorge Araújo, relativo ao ataque a Bolama em 3 de Novembro de 1969.  (*)

Ora , na obra “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar (1878-1926)”,  há um grande número de citações de um certo comerciante alemão com o nome de Otto Schacht.

A sua presença na Guiné ao longo de várias décadas constitui um exemplo da pressão que os comerciantes estrangeiros, de entre os quais se salientavam os franceses e alemães, exerciam sobre a administração da província. Os sucessivos governadores tinham de, constantemente, acorrer a resolver situações que aqueles provocavam, de que resultavam reclamações as quais, muitas vezes de má fé e distorcendo os factos, eram apresentadas pela via diplomática ao governo de Lisboa, causando-lhe acrescidos problemas, e que este procurava evitar.

Otto Schacht era um daqueles habitantes da praça de Bissau que o governador Gonçalves dos Santos considerava que colaborava no “vil procedimento” que consistia no desrespeito e desacatos à autoridade que “o gentio branco e mulato (filhos da ilha do Fogo)” praticava “mancomunados com os gentios e grumetes”.

De facto, durante os graves acontecimentos que ocorreram em Bissau, em Fevereiro e Março de 1891, o comerciante Otto Schacht, representante da casa alemã Bernardo Soller, fizera balas em sua casa para as fornecer aos grumetes e gentio.

Acontece, porém, que depois deste tipo de actuação Otto Schacht virá a encontrar razões para se queixar junto do governo. Sucedera que estes acontecimentos tinham levado à paralisia do comércio, ficando as casas estrangeiras em risco de perder as importâncias dos créditos que os grumetes e gentios de Bissau lhes deviam, e Otto Schacht apresenta protestos por este facto. O governador irá alegar que tais créditos não estavam garantidos pelo governo da província, visto que fora das muralhas da praça, território onde a acção do governo era nula, não havia estabelecimentos comerciais.

A reclamação de Otto Schacht vem a ter desenvolvimentos a nível diplomático, chegando a ser referida verbalmente pelo ministro da Alemanha em Lisboa, manifestando o desejo de que ela fosse atendida, e obrigando a que o ministro Ayres d’Ornellas refutasse responsabilidade pelos prejuízos que, por motivo de força maior, pudessem sofrer residentes estrangeiros em tempo de guerra.

Foram muitos outros os problemas ocasionados por Otto Schacht. Entre estes conta-se o facto de os manjacos da ilha de Pecixe terem obstado a que se procedesse à descarga de umas mercadorias do comerciante Otto Schacht, o que levou a uma intervenção directa do governo. A recusa prendia-se com problemas de dívidas entre Schacht e um manjaco. 

No fundo, parecia que a verdadeira razão se relacionava com uma história dos amores entre a filha do régulo e um antigo empregado de Schacht. Era mais um episódio resultante de ser vulgar os pretos e mulatos de Cabo-Verde, quando estavam em territórios dos gentios, em lugar de tratarem dos negócios dos seus patrões ou fornecedores, se meterem com as mulheres, ou de os aconselharem a não cumprir as ordens do governo. Isto era origem muitas vezes de guerras ocasionando perda de vidas e dinheiro.

Mais tarde, em finais de 1908, é uma lancha ao serviço de Otto Schacht que é assaltada e apresada por balantas. Desta vez Otto Schacht não pede qualquer indemnização, mas faz intervir na questão o governo alemão, o que vem a ocasionar extensas trocas diplomáticas e a realização de inquéritos locais para averiguar até que ponto eram aceitáveis e justas as reclamações alemãs. 

Numa dessas trocas o ministro alemão é informado que Otto Schacht já fora condenado pela justiça da colónia por tentativa de suborno. Registemos que, numa outra nota, o ministro da Alemanha vai ao ponto de escrever que por “ordem do governo Imperial, o governo de S. M. Fidelíssima atire a atenção sobre a necessidade de estabelecer na Guiné uma autoridade estável e apta a garantir a liberdade do comércio em conformidade à obrigação tomada pelos Estados signatários do Acto Geral de Berlim de 1885”.

Porém, daqueles inquéritos vem a apurar-se que o comércio que Otto Schacht realizava no território dos balantas não tinha sido autorizado pelo governo, visto aí a guerra ser declarada: os próprios grumetes que negociavam no chão balanta faziam-no sem licença, e o fornecimento dos géneros que Otto Schacht lhes facultava para negócio era feito clandestinamente. 

Este assunto só acaba por ser completamente esclarecido junto da Legação da Alemanha em 1910, depois de sobre ele o governador fornecer todos os esclarecimentos complementares que mostravam quanto era infundada a reclamação de Otto Schacht.

Acrescentemos que Otto Schacht já tinha dirigido nesse ano uma queixa ao governo alemão, declarando ter sofrido prejuízos nas feitorias, alegadamente por não ter recebido aviso para retirar de uma região onde se desenrolavam operações militares (margem esquerda do rio de Geba). Vem a verificar-se que a reclamação era infundada por a região em guerra estar desocupada e Otto Schacht não ter licença para ali negociar.

O ano de 1908 foi fértil em reclamações de Otto Schacht. Em Abril este faz nova queixa ao governo alemão reclamando contra a construção de uma linha e estação, vindo a constatar-se a má-fé com que esta reclamação fora feita, visto que a propriedade agrícola em causa tinha sido comprada em hasta pública quando estava em construção a estação telegráfica.

Também em 1910 Otto Schacht é preso sob inculpação do uso de medidas falsas no negócio de azeites. Mais uma vez irá procurar desencadear conflitos diplomáticos, queixando-se ao governo alemão daquele facto. Ora as medidas que Otto Schacht usava eram medidas falsas e ilegais, não pertencendo a qualquer sistema (incluindo o “decimal”) e nas quais tinha feito uns cortes ou marcações que lhe permitiam enganar os compradores.

É interessante mencionar que Otto Schacht virá a pedir a naturalidade portuguesa em 1930. Apreciado em Lisboa este pedido, mas faltando vários documentos que a lei exigia, entre eles o certificado do registo criminal passado na colónia (apenas apresentara o certificado do registo criminal passado pela repartição de polícia de Lubeck) é a documentação devolvida à Guiné. Ao ter conhecimento deste resultado Otto Schacht informa que decide ir a Lisboa para tratar pessoalmente de legalizar o processo perante o ministério das Colónias. Mas nenhum outro documento é anexo ao seu pedido.

Terá Otto Schacht adquirido a nacionalidade portuguesa como pretendia? Seria essa a nacionalidade do seguramente seu descendente, também Otto Schacht de nome, que foi responsável pela segurança do PAIGC (que até teria estado no local onde Cabral foi assassinado) e que viria a pertencer ao “Comité Executivo da Luta”, e em 1973 ao “Conselho de Estado” da auto-proclamada República da Guiné-Bissau, e assassinado em 1980 (Post acima referido)? (***)

3. Nota do editor:

O Otto Schacht, dirigente do PAIGC, assassinado em 14 de novembro de 1980, tal como Buscardini, os dois responsáveis máximos da segurança do Estado (**), devia ser neto deste comerciante alemão, homónimo. Devia ser mais velho que o cantor José Carlos Schwarz (1949-1977), também ele neto de um comerciante alemão.

Uma das raras fotos existentes no Arquivo de Amílcar Cabral, é a que publicamos acima, com a devida vénia...Era então membro da Comissão de Segurança e Controlo e do Serviço de Logística do PAIGC. Um homem poderoso... tal como Buscardini, assassinado no mesmo dia 14 de novembro de 1980, o do golpe de Estado de 'Nino' Vieira (ou associado ao seu nome).

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de :


(***) Último poste da série > 16 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18641: Historiografia da presença portuguesa em África (114): Uma reunião invulgar: a Conferência dos Administradores, Bissau, 1941 (1) (Mário Beja Santos)