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segunda-feira, 8 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19956: Historiografia da presença portuguesa em África (167): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - Parte I


Guoleghal, a ave mensageira do conto de Canhánima (Sancorlã) e de Fuladu ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina). Conhecida na Guiné, coloquialmente, como ganga... Havia muitos na grande bolanha de Bambadinca. (*)

Foto (e legenda): © Armando Pires (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Cherno Baldé, com data de 1 do corrente:

Conforme prometido, junto envio mais um texto fruto de algumas notas de leitura feitas à volta da figura mítica, entre os fulas, de Alfa Moló e a criação do reino de Fuladu. Neste texto faço sobressair a importante figura de El-Hadj Omar (Foutyou) Tall, que as crónicas sobre Firdu e sobre Fuladu conferem o papel primordial no levantamento da população fula contra os soninquês pagãos (mandingas) do reino de Gabu na segunda metade do séc. XIX.(*)

Espero que tenha interesse e possa ser publicado no nosso blogue da Tabanca Grande.

Com os melhores cumprimentos, Cherno Baldé




2. Notas de leitura (**):

ALFA MOLÓ E O MITO FUNDADOR DO REINO DE FULADU - Parte I

por Cherno Baldé


Em Junho de 2010, no poste P6661 (*), falando sobre os acontecimentos ocorridos no regulado de Sancorlã, nos períodos de antes e após independência (1903-1974), tinha escrito:

“Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana dos últimos séculos, nada acontecia por acaso. Tudo se fundamentava e se justificava, partindo de pressupostos de ordem mística que, aparentemente, estariam na génese de todos os acontecimentos, fossem eles bons ou maus, fossem de natureza política, económica ou social, sempre explicados a partir da conjunção de determinados factores de ordem mística, muitas vezes sob a forma de pactos com seres invisíveis ou simplesmente entre indivíduos ou grupo de pessoas e cujo (in)cumprimento poderia ser sancionado ou premiado a seu justo valor e no devido tempo ».

Estes, eram tempos em que não havia só um Deus, mas muitos deuses, não havia só uma crença, mas uma pluralidade delas, tempos em que a África ainda não se orientava por Meca ou pelo Vaticano, mas sim através dos deuses (Irãs) que habitavam ao seu lado e com os quais podiam falar na sua própria língua.

Os povos que habitavam no reino mandinga de Gabu, mesmo se chegaram em tempos diferenciados, com origens diversas e viviam sob condições sociais diferentes, tinham em comum o facto de partilharem o mesmo espaço sócio-económico e ambiental, obrigando-os, necessariamente, a uma interação económica e mestiçagem cultural constante. Nessas condições, deveras adversas, que os indivíduos fossem de puro sangue (se o termo faz algum sentido) ou que fossem de sangue mestiço ; que fossem homens livres ou de condição servil, as identidades não eram imutáveis, mas submetidas a uma permanente construção, como foi o caso da família de Alfa Moló Baldé.

[Recorde-se: (i) Gabu foi a capital do Império Kaabu (também conhecido por Ngabou ou N’Gabu), um reino Mandinga que existiu entre 1537 e 1867 na chamada Senegâmbia, região que abarcava o nordeste da atual Guiné-Bissau, mas que se estendia até Casamança, no Senegal. 

(ii( Antes disso, Gabu, ou Kaabu, fora uma província do Império Mali que se tornara independente depois do declínio do império. 

(iii) No século XIX, os fulas estabeleceram a sua supremacia na região, pondo fim ao domínio de Kaabu. 

(iv) Durante o período colonial a cidade passou a ser designada por Nova Lamego, mas recuperou o seu nome tradicional após a independência do país." Fonte: Gabu (região). In: Wikipédia, com a devida vénia...]

(i) A chegada e a instalação de familias Fulas no território mandinga de Gabu

Segundo Abdarahmane Ngaindé, os mandingas do reino de Gabu enquanto guerreiros e esclavagistas, tinham construido fortins (tatas),) cobrindo este grande espaço territorial. Citando Michel Benoît, ele escreve :

 "Uma provincia, muitas vezes, não era mais que um tata instalado no meio da floresta que algumas famílias de pastores fulas percorriam com as suas manadas de gado bovino" (Benoît 1988, 510). 

Esta ocupação descontinua do território e a facilidade de instalação dos pastores fulas permitiam amplo aproveitamento do espaço para a criação itinerante dos seus animais.

Os especialistas da história do império de Gabu não são unânimes quanto à data exacta da chegada das primeiras vagas de famílias fulas nesta região de África Ocidental. As testemunhas, quando solicitadas, perdem-se sempre nas neblinas de longas histórias invocadas com muita emoção, mas pontuadas de muitas fantasias e imprecisões. As migrações, dizem, teriam sido feitas por escalas incessantes, facto que dissipa e impossibilita qualquer tentativa de descrever em detalhes a origem e percurso exacto desta ou daquela vaga de habitantes fulas.

Todavia, é sabido que as populações fulas de Fuladu são de origens diversas, podendo-se dinstinguir as originárias de Macina (actual Mali) ], como é o caso da família do autor destas linhas, o Cherno Baldé], de Bundu e Futa-Toro (actual Senegal), assim como do Futa-Djalon (Guiné-Conacri). A chegada desta última categoria é mais recente e data da segunda metade do séc. XIX.

Alguns autores, tais como Mamadu Mané ou Djibril Tamsir Niane, pensam que uma parte desta população se teria fixado nesses territórios com as primeiras vagas mandingas cuja chegada remonta aos séculos XIII/XIV, baseando-se num provérbio popular entre os mandingas segundo o qual "quando um mandinga chega de manhã, invariavelmente, o fula chega à tarde".

No entanto, pensam outros, é bem possível que tenham chegado um pouco mais tarde do Futa-Djalon na sequência das repressões que se seguiram à tomada de poder dos letrados muçulmanos, contra as populações pagãs a quando da revolução teocrática de 1725 (Ngaide, 1998).

De notar que estes movimentos de populações fulas para esta região foram muito semelhantes à digressão conduzida pelo célebre Coli Tenguella que chegou ao Futa-Toro (Senegal) em 1512 para fundar o primeiro reino fula dos Denyankês, tendo atravessado o Futa-Djalon e o actual território da Guiné-Bissau onde teria tido confrontos com os Biafadas, atravessando o rio Corubal (para os fulas o rio Corubal é Mayôh-Côli, isto é, rio Coli, em homenagem ao lendário chefe fula que teria abandonado o Mali, após a morte do pai «Tenguella Bâ », durante o reinado de Askia Mohamed),  o que teria favorecido o aumento da população fula, juntando-se aqueles que ja lá estavam.

A abundância de pastagens,  aliada à existência de extensas bacias hidrográficas, permitiram-lhes consolidar as suas bases económicas e sociais em todas as províncias que os acolheram, reforçadas pelos dons e oferendas aos príncipes e aos diferentes governadores (Farins) dos clãs mandingas reinantes naquelas províncias. Mais tarde e paulatinamente, eles se sedentarizam e se  passaram a dedicar-se, também, a uma agricultura pouco extensiva aos cuidados dos seus escravos ou servos, a fim de garantirem seu sustento.

Em conclusão, diz-nos Ngaidé Abdurahmane, poder-se-ia dizer que, desde finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, os fulas, chegados em vagas sucessivas, predominam em várias províncias de Gabu e as riquezas destas mesmas províncias dependiam, em larga medida, do número destes últimos. Isto é confirmado, diz-nos Ngaindé, pelo testemunho de Francis Moore [c. 1708 - c. 1756],  citado por Mamadou Mané. Este autor sublinha que « …sem estes estrangeiros (os fulas), os mandingas correriam o risco de passar fome, pois eles tiram deles todo o seu sustento » (F. Moore, 1978).

Este testemunho do inglês F. Moore, é datado do início do sec. XIX (1804). Um pouco mais tarde, na segunda metade do mesmo sêculo, o residente francês em Karabane (Casamansa), E. B. Bocandé (1812-1881), oferece-nos um testemunho similar ao afirmar:

«…é em proporção do número de Fulas estabelecidos no seu território que os chefes das aldeias mandingas devem a sua força, poder, a riqueza e a consideraçao de que beneficiam, porque aqueles o dão presentes de forma continua".

Ainda, segundo Abdarahmane, citando um outro testemunho inglês, Joye Bowman Hawkins « Os fulas eram tratados como sujeitos sob dominação e, como tal, deviam pagar uma taxa anual pela utilização das zonas de pastagens. Nessas condições, cada família era obrigada a pagar um determinado número de cabeças de gado. Os chefes mandingas davam-se ao luxo de escolher os melhores animais da manada, às vezes de forma abusiva, o que tornava as coisas cada vez mais insuportáveis na perspeciva dos fulas" (Bowman,  1981), para os quais aqueles animais não eram simples animais, mas considerados como membros da própria família.

E, é neste mesmo sentido que Mamadou Mané sublinha:  « Porque eram detentores das riquezas materiais (gado e produtos agrícolas como algodão e milho) os fulas eram constantemente abusados e explorados mais que todos os outros, pela aristocracia kaabunké" (Hawkins, 1981 et Quinn, 1971).

Estes testemunhos, entre muitos outros deixados por administradores e aventureiros europeus em África, permitem fazer-nos ver, para além dos abusos recorrentes e das suas consequências sociais, o papel fundamrental que detinham os fulas no reino mandinga de Gabu.

A acumulação de vexames e a situação económica e social no interior do reino no periodo após a abolição da escravatura, pelos ingleses, e o consequente declinio do comércio atlántico, vão estar na origem da revolta que vai derrubar os alicerces do reino e afastar os mandingas dos seus territorios de dominio tradicional.


(ii) Alfa Moló e o nascimento do reino de Fuladu

« Os primeiros anos do reino de Alfa Moló coincidem com a constituição do reino (1867-1881). Durante este período o povoamento fula se reforça e as populações ocupam zonas bem determinadas no antigo reino Gabunké, espalhando-se através do território recentemente 'libertado'. A sociedade fula implanta-se progressivamente e os diferentes elementos da sua organização económica e social se estabilizam. A secunda fase (1881-1903) coincide com o reino do seu filho, Mussa Moló. Este período é caracterizado por uma guerra fratricida que opõe Mussa ao seu tio Bacar Demba e de seguida ao seu irmão Dicori Cumba. Será um período dominado pela recrudescência da violência e das destruições humanas que acompanham-no" (Abdarahmane Ngaindé, 1998).

A juventude de Alfa Moló, diz-nos Abdarahmane citando De Roche, parece ter tido "um carácter particular" (Roche, 1985) na medida em que numerosas fontes de informação confirmam que ele foi educado pelo seu mestre, Samba Egué, que não tinha um filho varão , pelo que considerava aquele como seu filho legítimo a quem, de resto, tinha dado o seu apelido, facto que explica os privilégios que Alfa Moló vai beneficiar durante a sua juventude.

Com efeito, ele teria sido educado como um nobre, beneficiando de toda a atenção requerida e, em vez de se ocupar do gado, ele gostava de se entreter nas lides de cavalos, as idas à caça e ao maneio das armas, actividades reservadas, exclusivamente, aos homens corajosos e também livres. Mais tarde, ele será um caçador destemido, tendo à sua volta auxiliares (aprendizes) aos quais ele introduzia na arte do ofício. Naquela época, os caçadores eram muito considerados, gozando de um grande prestígio, fruto da sua coragem para enfrentar os diversos perigos visíveis e invisíveis escondidos na floresta africana.

Mas, apesar de tudo o que se pode dizer sobre Alfa Moló, que seja de origem nobre ou servil, de nada diminui a importância e o valor da acção que ele e seus companheiros vão realizar e a notoriedade que ele vai adquirir no periodo subsequente. Todavia, o nome de Alfa Moló Baldé só entra, verdadeiramente, em cena depois da passagem de El-Hadj Omar Tall (mais tarde imperador do Sudão), o Marabu que vai estar na origem do mito que envolve o surgimento do reino de Fuladu e os seus principais protagonistas.

terça-feira, 25 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19919: Historiografia da presença portuguesa em África (164): O reino de Fuladu, de Alfa Moló Baldé a Mussá Moló, da bacia do rio Gâmbia ao rio Corubal (1867 - 1936) (Cherno Baldé)


Mussá Moló (1845-1931), ao centro, sentado; de pé, à sua direita, Dembá Dançá, e à sua esquerda Maransará, cabo de guerra deste último (in: Francis Bisset Archer, The Gambia Colony and Protectorate: An Official Handbook, London,  St. Bride's Press, 1906, 364 pp., il.) (*)

Cortesia de Armando Tavares da Silva / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)


1. Mensagem de Cherno Baldé [, Bissau, nosso colaborador permanente, nascido c. 1960, faz anos a 20 de junho,l tem cerca de 190 referêmcias no nosso blogue]: 

Data - Quinta-feira, 20/6/2019, 17h32 

Assunto - O reino de Fuladu, de Alfa Moló Baldé a Mussá Moló, da bacia do rio Gâmbia ao rio Corubal (1867 - 1936) (Notas de leitura) 

Caros amigos Luis Graça e Carlos Vinhal, 

Venho pela presente agradecer a todos pela atenção e carinho de sempre e,  juntamente, envio um texto sobre o tardio e efémero reino de Fuladu (reino dos fulas em mandinga) que surgiu nos escombros do antigo reino mandinga de Kaabu ou Gaabu [, Gabu,] entre as bacias dos rios Gâmbia e Corubal. 

Aproveito, igualmente, agradecer o interessante trecho histórico sobre a deslocação do destemido ten Marques Geraldes até a Indornal, capital do reino de Fuladu e suas consequências (*). Da minha parte estão autorizados a publicar no Blogue, caso tenha interesse que o justifique, em atenção ao nosso ilustre historiador português, Armando Tavares da Silva. 

De Bissau, com saudações fraternais, Cherno Baldé. 


2. O REINO DE FULADU DE ALFA MOLÓ BALDÉ A MUSSÁ MOLÓ,  DA BACIA DO RIO GÂMBIA AO RIO CORUBAL (1867 - 1936) (Notas de leitura) 

por Cherno Baldé

Alfa Moló nasceu no início do séc. XIX na aldeia de Sulabali, região de Firdu (situado entre as duas margens dos rios Gâmbia e Casamansa). O seu avô paterno, Fali Culibali, de origem Bâmbara (Mali), tinha sido comprado por uma família nobre de Fulas pastores,  de apelido «Baldé». 

Mais tarde, entre Malal Culibali,  um dos filhos de Fali Culibali,  e Gueladio Baldé, seu senhor, ambos caçadores, desenvolve-se uma amizade e sobretudo uma cumplicidade que vai permitir a fusão das duas famílias com a adopção pelo seu filho, Moló Egué (futuro Alfa Moló), do apelido dos seus senhores e mestres, eliminando, desta forma, os traços da sua origem servil. 

« Entre o Malal Culibali e Gueladjo Baldé, todos eles grandes caçadores, detentores da mística do ofício, existiam fortes laços de 'badinn’ya' (#),  espécie de pacto de irmandade, de entreajuda e de lealdade,  unindo os membros duma mesma familia mas de linhagens e castas sociais diferentes »,  diz-nos o historiador e especialista da história de Fuladu, o Senegalês Mouhamadou Moustafa Sow (3), Professor de História no Liceu Regional de Kolda, Senegal, apoiando-se nas crónicas e memórias por ele recolhidas na região do antigo Firdu (Gloria Alex) (2). 

Segundo os cronistas, Moló Egué Baldé, com idade de 15 anos, vai a Timbo (Futa-Djalon), para aprender (memorizar) o Alcorão e os rudimentos da religião, convertendo-se ao islamismo. No seu regresso, obtém a permissão de casar com Cumba Udé, filha de Gueladjo Baldé, e futura mãe de Mussá Moló. Entre os Fulacundas de Firdu, Moló Egué e Samba Egué (filho de Gueladjo Baldé) encabeçam a rebelião contra os mandingas pagãos de Gabu, a partir da floresta de Ndorna (Indornal,  na versão portuguesa), onde construiram um fortim (Tata, em mandinga), uma espécie de praça forte, a que, de forma provocatória, designam em mandinga « Mban Ulém – Eu recuso absolutamente…». 

Com a generalização da guerra, enviam um mensageiro ao chefe da Província (Diwal) de Labé, Alfa Ibrahima, a fim de pedir ajuda na sua luta contra os mandingas pagãos de Gabu (Gloria Alex). De 1840 à 1850, intensificam-se em todo o espaço do reino, guerras internas de resistência contra o domínio dos reis mandingas de Gabu. Na sequência, o Alto e o Médio Casamansa transformaram-se em lugares de combates violentos. 

Convertidos ao islamismo, os grupos fulas de Fuladu procuram aliar-se aos Almames de Timbo (Futa-Djalon) para combater os mandingas de Gabu. E, por sua vez, os mandingas islamizados de Gâmbia e do Baixo Casamansa aproveitam-se para se revoltar contra os seus irmãos pagãos de Gabu. Assim, das margens do rio Gâmbia e da Casamança até ao país Gaabunké na Guiné-Portuguesa, os últimos e derradeiros clãs Soninques do império, caiem sob os assaltos dos Fulacundas (Fuladu) e dos Futa-Fulas (Futa-Djalon) assim como dos Marabus mandingas, formando uma verdadeira Confederação de forças muçulmanas. 

Em meados de 1850, os reinos pagãos mandingas (Soninquês) do Médio Casamansa acabam de desaparecer, corridos pelos muçulmanos e os chefes pagãos foram substituídos por Marabus, animados pelo desejo da guerra santa contra os não muçulmanos. Bercolon ou Berecolon (Sankolla), praça forte Soninquê de Birassu (Braço,  na versão portuguesa), é assaltado e destruido em 1852. 

A partir de 1854, a França entra em cena na região e inicia o processo de colonização em direcção ao interior do Sudão Ocidental com o Faidherbe – Capitão e Governador do Senegal (1854/1864). Em 1867, os Confederados muçulmanos, liderados por Alfa Ibrahima de Labé, conseguem tomar Cansala, capital do império mandinga, onde morre Djanké Waly, o último Mansa de Gabu. 

Na iminência da sua derrota, Djanké Waly manda incendiar o paiol de pólvora e acontece o morticínio conhecido em mandinga por «Turuban », ou seja,  o fim da sementeira (dos mandingas de Gabu). Em 1873, a guerra termina com a derrota dos mandingas pagãos de Gabu. Alfa Moló e seus companheiros assinam o tratado de paz com o chefe mandinga, Fodé Madja. 

Entretanto, no campo dos fulacundas há um forte desentendimento sobre quem deve tomar as rédeas do poder no novo reino de Fuladu. Por um lado posiciona-se Moló Egué e grande parte dos seus seguidores saídos das fileiras dos « Jiaábhé » Fulas-Pretos e, por outro, o Samba Egué, da linhagem Fula-Forro,  que pretende ser o detentor da nobreza e logo da condição natural e necessária para chefiar o novo reino que acaba de nascer. 

A batalha entre as duas partes desentendidas terá lugar na localidade de Boguel e termina com a morte de Samba Egué e a ascenção fulgurante de Moló Egué, o filho do antigo cativo (Malal Culibali) que, doravante, assume a liderança do que poderia ser uma dupla revolução ou uma dupla rebelião no reino de Fuladu : a rebelião contra o domínio dos mandingas pagãos de Gabu e também a rebelião contra os seus antigos senhores, da linhagem Fula-Forro. 

Dali para a frente as coisas nunca serão como dantes em Fuladu, e esta nova situação política vai alterar o cenário das relações económicas e sociais até aí estabelecidas no seio das duas categorias de Fulacundas, convivendo no mesmo espaço territorial e que, mais tarde, serão reforçadas pela decisão dos europeus de acabar com todas as relações de servidão entre os seus sujeitos. Mas, a morte de Samba Egué (filho de Gueladjo Baldé) e a consagração de Moló Egué (filho de Maalal Culibali), visto na óptica dos cronistas da epopeia de Fuladugu (terra dos fulas , em mandinga), configura uma violação do pacto entre as duas linhagens da família « Baldé », com origens diferentes mas consagradas pelo ritual de irmandade e de lealdade «badinn’ya». 

Alfa Moló divide o seu reino em cinco Províncias, entregues aos seus homens de confiança: 

(i) os territórios de Monting (Bankuton) e Madina Pakane foram entregues a Maudê Baldé;
(ii) a Provincia de Manda Serakholé – Daba Baldé e os seus descendentes actuais vivem em Bantantoh Thierno (situado a Oeste de Kerewane);
(iii)  Sintcha Suruel – Alanso Cumbirry, seus descendentes actuais formam a familia de Moulaye Baldé (Bâba Moulaye) em Velingará;
(iv) Kandiaye (koukane) – Faran Djabu;
(v) Kaone – Coly Embaló, seus descendentes vivem em Pathiana, actual regiao de Gabu (N’gaide Abdarahmane). 

A partir de 1882, com Mussá Moló (1845-1931), as relações com o Futa-Djalon deterioram-se e a hostilidade é permanente, facto que será bem aproveitado pelos Franceses, presentes na sua colónia do Senegal, onde actua o Governador Faidherbe, decidido a ampliar e pacificar a colónia francesa do Senegal. 

Mussá Moló, para fazer face à ameaça dos Almames de Futa-Djalon que, de facto, o consideram como seu vassalo, vai aproximar-se dos Franceses com os quais vai assinar, em 1883 (3 de Novembro), um tratado de amizade e de protecção (N’gaide Abdarahmane). Com esse acordo, Mussá Moló pensa poder proteger-se contra as pretensões expansionistas de Futa-Djalon e ao mesmo tempo, poder conservar e ampliar o reino legado pelo seu pai. A França, por seu lado, está satisfeita, pois com o acordo vai poder construir o caminho de ferro há muito projectado do Este a Oeste, eliminar todas as contestações da parte da Grã-Bretanha e Portugal sobre aqueles territórios do Alto Casamansa e abrir assim o caminho de acesso ao Futa-Djalon, o seu próximo alvo, já à partir de Noroeste (N’gaide Abdarahmane). 

Alpha Yaya, que sucede ao seu pai (Alfa Ibrahima), vai protestar junto do Governador do Senegal e da Guiné-Francesa contra o que eles consideram de secessão do seu vassalo de Fuladu, mas os Franceses fazem orelhas moucas e preparam-se para atacar o Futa-Djalon com a ajuda de Mussá Moló.

Em 1894 (Abril), Mussá Moló parte em campanha e, com o apoio dos Franceses, derrota o rei de Pakisse, vassalo de Alpha Yaya, mas estes não perdem tempo e apertam o cerco, propondo ao Mussá Moló a assinatura de um novo tratado (1896), entre outros pontos, o pagamento de impostos (metade dos impostos de Fuladu deviam ser entregues a França) e a construção de um posto militar em Hamdalaye, capital do reino de Fuladu, situado entre a bacia do rio Gâmbia e o rio Casamansa. 

Mussá Moló que se aproximara dos Franceses para se libertar da dependência de Labé (Futa-Djalon), e extender o seu território, escolheria assim a melhor forma de perder a sua independência, pois os Franceses encontraram nele o meio para assegurar as suas ambições coloniais naquela zona de Africa (N’gaide Abdarahmane). Em 1903, Mussá Moló, sentindo o peso insuportável de tutela da França, foge para a Gâmbia, junto dos Ingleses, pensando encontrar um tutor que fosse menos exigente. Antes de partir, mandou queimar todas as aldeias a volta da sua capital e foi acompanhado por uma multidão de seguidores. 

Os Ingleses receberam-no muito apreensivos e foi autorizado a ficar sob custódia inglesa, com a condição de mandar embora a sua gente. Decididamente, Mussá Moló tardou muito a compreeender que o tempo dos monarcas africanos tinha chegado ao fim. Morreu em Kesserkunda, sua última residência, em 1931, com 85 anos. Como tinha acontecido com o seu pai, Mussá não será sepultado na sua terra natal e muito menos no território que tinham conquistado e, em partes opostas, o pai, Alfa Moló, enterrado na fronteira Sul, em Dandum (território da Guiné-Portuguesa) e o Mussá na fronteira Norte (território da Gâmbia) deixando o reino de Fuladu dividido em pequenos regulados independentes. 

Tendo durado apenas pouco mais de meio século (69 anos), o reino de Fuladu será um reino efémero (1867-1936). Aconteceu assim, dizem os cronistas, devido a violação de uma das partes (Alfa Moló), ao pacto de sangue, «Badinn’ya»,  celebrado entre Maalal Culibali (o servo) e Gueladjo Baldé (o senhor), aos quais unia uma verdadeira irmandade de sangue, para lá das condições e ditames sociais da época em que viviam.

Com a partida de Mussá Moló para a Gâmbia, a guerra e as razias que a acompanhavam tinham, finalmente, acabado no território de Fuladu e os chefes das províncias (Regulados), que muito o temiam pela sua crueldade e violência, acabaram por se sentir livres de celebrar alianças com os representantes locais das potências coloniais (França e Portugal), os novos senhores da situação que, com a Convenção Luso-francesa de 1886, tinham acabado de traçar as fronteiras que iriam separar os territorios das suas colónias. 
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Notas do autor:

# «Badinn’ya»:  termo mandinga que designa uma relação de irmandade outra que não consanguínia. As famílias e/ou pessoas ligadas por estas relações deviam considerar-se como irmãos de facto, com todas as obrigações e deveres de solidaredade e entreajuda a isso inerentes, e que nenhuma das partes podia violar sob pena de sofrer o castigo dos Irãs onde este ritual era celebrado. 

Referências bibliográficas : 

1. Ngaidé Abdarahmane : Le royaume Peul du Fuladu, de 1867 a 1936: L’Esclave, le Colon et le Marabout, 1997/98, Thèse de doctorat de troisième cycle en histoire, UCAD (Université Cheik Anta Diop, Faculté des Lettres et Science Humaines, Dakar, Sénégal. 

2. Gloria Lex : Le Dialecte Peul du Fouladou (Casamance, Sénégal): Thèse de doctorat en Linguistique et Phonétique. 

3. Mouhamadou Moustafa Sow, Professeur d’histoire, Lycée Régional de Kolda, Sénégal.

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(**) Último poste da série > 21 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19906: Historiografia da presença portuguesa em África (162): Ainda a viagem, ao Indornal (na atual Gâmbia), em março de 1883, do alferes Francisco António Marques Geraldes, cmdt do presídio de Geba, para ir resgatar duas mulheres cristãs, raptadas em São Belchior (Cherno Baldé / Armando Tavares da Silva / Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19906: Historiografia da presença portuguesa em África (163): Ainda a viagem, ao Indornal (na atual Gâmbia), em março de 1883, do alferes Francisco António Marques Geraldes, cmdt do presídio de Geba, para ir resgatar duas mulheres cristãs, raptadas em São Belchior (Cherno Baldé / Armando Tavares da Silva / Mário Beja Santos)



Parte V - De Catedi (dia 15) a  Indornal (dia, 16)


Parte IV - De Salicocum (dia 14,) a  Catedi (dia 15, pernoita)



Parte III - Menino Cundá (dia 13, pernoita) a Salicocum (dia 14, pernoita)



Parte II -  De Sede  Cundá (dia 12)  Menino Cundá (dia 13, pernoita)



Parte I - De Geba, dia 11 de março de 1883, a  Sede Cundá (dia 12, pernoita)



Percurso seguido pelo alferes Francisco Marques Geraldes entre Geba e o Indornal, de 11 a 16 de março de 1883 (feita a partir da Carta original conservada na Sociedade de Geografia de Lisboa)





1. Comentários (ao poste P19905),  de Cherno Baldé, Armando Tavares da Silva e Mário Beja Santos (*):

(i) Cherno Baldé:

Caro amigo Armando da Silva,

No dia 17 do corrente fiz um comentário num Poste de Luís Graça sobre a região de Ganadu/Joladu e do seu primeiro régulo Fula, Mbucu ou Umbucu, contemporâneo do ten Marques Geraldes, nos seguintes termos:

Luís,

O Régulo de Joladu que é o mesmo que dizer Ganadu, seria da linhagem do régulo M'bucu ou Umbucu que, em 1886, ofereceu a logística e o serviço dos seus homens para apoiar o ten Marques Geraldes na Batalha de Fanca (Sancorlã) contra os homens de Mussa Molo, rei de Fuladu, com a capital em N'dorna ou Indornal (grafia portuguesa), tendo mudado mais tarde para Hamdalaye, localidades situadas entre o rio Gambia e o rio Casamansa.

Mbucu ou Umbucu era de ascendência Fula-Forro e por isso as suas relações com o Mussa Molo, rei de Fuladu, de ascendência Fula-preto, não eram muito amistosas pelo que a sua aliança com a administração portuguesa através do presídio de Geba era uma forma subtil de recusar a vassalagem ao Mussa Molo, rei do Fuladu que tinha destronado o seu tio, Bacar Demba (vulgo Dembel). De notar que o mesmo (estes conflitos de poder) não acontecia na época de Alfa Molo, pai de Mussa Molo e fundador do reino, que respeitava muito e permitia uma larga autonomia aos Fulas-forros a quem ele próprio tinha entregado a gestão de vastos territórios, muitos dos quais ainda por conquistar às mãos dos mandingas / soninques como era o caso de Joladu.

Abraços,

Cherno Baldé
17 de junho de 2019 às 17:31


Observando atentamente o conteúdo do Poste de hoje e a descrição do percurso seguido até Ndorna (Indornal), a capital do império de Fuladu ou Firdu (ver parágrafo seguinte).

"Prosseguindo viagem atravessam as povoações de Duricundá, Chume-Cundá, Sede-Cundá, Sincho, Nhama-Dicundá, Menino-Cundá, Banco, Quinheto, Cuento, Salicocum, Caredi-Cundá, Pate-Cundá, o rio de Farim, as povoações de Mori-Cundá, Camaco-Geba, Tambuiel, Cotedi, o rio de Selho, e as povoações de Culijan-Cundá, Cutetó e Ille-Cundá".

Deve ter havido algum mal entendido nesta descrição, pois as localidades de Saré-Minine (Menino-Cunda), Banco e Solucocum (Salicocum) que ainda existem e habitadas, estão localizadas na margem direita do rio Farim e não na margem esquerda como esta aqui descrito. Com a Convenção Luso-Francesa de 1886, Solucocum estaria mesmo junto à linha da fronteira e perto de Sitato, entre as localidades de Cuntima e Cambaju.

É muito interessante notar que alguns meses após a passagem do ten Marques Geraldes ao Indornal, mais precisamente a 3 de Novembro de 1883, o mesmo Mussa Molo assina um tratado de amizade e de protecção com representantes da França presentes no presídio de Sedio (Selho) e deste modo garantir o apoio das forças francesas para destronar o seu tio (Bacar Demba) e afastar o irmão Dicory Cumba, também pretendente ao trono. Mas, daí para a frente estaria em guerra permanente com os régulos Fulas-Forros de Sancorlã, Joladu e de Gabu/Forreá que, aliando-se aos portugueses em Farim e Geba, não reconheciam a autoridade de Mussa Molo sobre esses territórios.

Estou a terminar um texto sobre esta parte menos conhecida da história da Guiné e de Casamança, conhecida como o reino de Fuladu, ou a tentativa da construção do último império na África ocidental.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 13:29

PS - Há uma grande probabilidade de a designação de Ganadu ter a sua origem a partir da localidade de Saré-Gana, onde residia o régulo Mbucu, aliado dos portugueses, em detrimento de Joladu, a antiga designação do regulado


(ii) Armando Tavares da Silva:

Caro amigo Cherno Baldé,

Obrigado pelos comentários. Eu já tinha notado que a carta com o itinerário seguido por Marques Geraldes contém alguma incongruência. Creio que esta deriva do facto de quem desenhou a carta (que terá participado na expedição ?) ter confundido o rio de Pateá pelo rio de Farim, de que é afluente. Penso que é o rio de Pateá que se encontra assinalado na carta como rio de Farim.

As guerras contra os régulos fula-forros empreendidas por Mussá Moló estão largamente referidas no meu livro, para as quais foram arrastadas as autoridades portuguesas, interessadas na “manutenção do sossego” no território, indispensável para que o comércio progredisse, bem como o papel dos franceses nestas contendas. E até conduziram à tentativa de realização de um tratado de paz com Mussá Moló em Abril de 1887, já depois da Convenção Luso-Francesa de 1886.


Em 1901 escreve o governador Judice Biker referindo-se a Mussá Moló: foi um ”grande chefe-de-guerra que expulsou os beafadas e os mandingas, antigos senhores do território, dividindo este, depois, por diferentes cabos-de-guerra seus. Alguns destes cabos-de-guerra tornaram-se independentes de Mussá Moló, procurando o auxílio do nosso governo, e a maior parte conservou-se-lhe fiel. Daqui a origem das guerras constantes em Geba – o Mussá procurando bater os que lhe não eram fiéis, o nosso governo auxiliando-os e procurando bater os que se conservavam fiéis àquele”.

“Com o tempo e as derrotas que foi sofrendo, Mussá foi perdendo o prestígio e, de 1892 para cá, Geba tem-se conservado sensívelmente sossegada, o que não quer dizer que aquele não conserve ainda alguma influência e não possa incomodar-nos mandando reunir gente para realizar alguma correria no nosso território”.

A operação de 21 de Setembro de 1886 empreendida por Marques Geraldes, em que participou o régulo Umbucú e todos os seus filhos, e em que as forças de Mussá Moló são atacadas em Fancá (San Corlá) está, entre outras, também, detalhadamente relatada no meu livro.

Uma questão: a povoação de Caramtabá (ou Carantambá) ainda existe? Fiz uma cuidada tentativa de a encontrar nas cartas actuais, sem sucesso. Pode o Cherno dizer-nos alguma coisa sobre isto?

Com um abraço amigo,

Armando Tavares da Silva
20 de junho de 2019 às 18:06


(iii) Cherno Baldé:

Caro amigo Armando,

Nao posso confirmar a existência da localidade de Carantaba na zona de Ganadu, parece que já não existe com esse nome no mesmo sítio onde, em contrapartida, existem outras com designações diferentes em língua fula, tais como Saré-Banda e Sincha Sutu.


Todavia, no conjunto da regiao do nordeste guineense, existem muitos Carantabas descendentes e espalhadas pelo território e que em mandinga significa literalmente "a árvore do saber".

A parte II do percurso traçado corresponde a minha zona (Cansonco/Fajonquito), onde passei toda a minha infancia, pastando gado bovino nas matas e que conheço melhor, e posso confirmar a existência das seguintes localidades citadas: Sanecunda (Sede Cunda), Saré-Minine (Menino Cunda), Banco, Quenhato (Quinheto) e Solucocum (Salucocum). Poderão verificar, consultando o mapa de Colina do Norte, inserido neste Blogue, subindo de sul para norte na carta.

Saré Minine esta perto de Saré-Jamara e que foi um dos destacamentos das companhias que passaram por Fajonquito na estrada para Canjambari-Jumbembem-Farim.

Muito agradecido pela simpatia e carinho no meu dia de aniversario. Um bem haja para todos os Editores e Colaboradores do Blogue.

Um forte abraço,

Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 19:05

(iii) Mário Beja Santos

Prezados confrades, é da mais elementar justiça relevar quem foi destemido e zelador pelas vidas alheias, como lhe cabia. Todo este episódio já aqui foi referido no blogue e permite-me acentuar que a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia, sobre o assunto, enviou para Lisboa, possui finura literária, foi este documento que conduziu à elevada condecoração deste militar que, infelizmente, anos mais tarde irá ter problemas disciplinares muito graves, que lhe mancharam a carreira.

Aqui se reproduz o que veio publicado no nosso blogue, em 30 de julho de 2014, segue o link (***):


https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/07/guine-6374-p13449-biblioteca-em-ferias.html

Um abraço aos dois, Mário Beja Santos

21 de junho de 2019 às 12:43
_________________
Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série > 20 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19905: Historiografia da presença portuguesa em África (161): Viagem do alferes Francisco Marques Geraldes, de 11 a 17 de março de 1883, de Geba ao Indornal, feito que lhe valeu a atribuição, por el-rei D. Luís, do grau de cavaleiro da Torre e Espada (Armando Tavares da Silva)

(**) Vd. poste de 30 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13449: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (1): Francisco Marques Geraldes, um herói militar português na Guiné

(...) No Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa vem reproduzida a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia dirigiu a partir do palácio de Bolama, em 4 de Maio de 1883 ao Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. A carta reza o seguinte:

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,

Em princípios de Março, os Fulas Pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem direita do rio Geba, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica e inerte, que faziam algum comércio com os poucos recursos que dispunham.

Os Fulas Pretos, capitaneados por Deusá [Dansa, segundo Cherno Baldé], queimaram as cubatas, levando prisioneiros dez homens e duas mulheres, todos cristãos.

Este ponto fica sob a jurisdição imediata do presídio de Geba e do concelho de Bissau.

Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do governo português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.

Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lho e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gambia e dois proximamente ao NE de Selho.

Aquelas mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo gentílico Dembel, potentado entre os Fulas Pretos, e a que todos obedecem, e pai [, irmão, segundo Cherno Baldé,] do agressor do Deusá, ou então trocadas por vacas, conforme os usos do gentio.

Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, por atacar aquela povoação, dizendo ignorar que São Belchior [, na margem direita do Rio Geba Estreito,] pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres, aliás que lhe seriam também apresentadas.

Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba; participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior pelo receio de que, esperando, chegasse tarde, receio fundado, pois no dia seguinte à sua chegada ao Indornal já estariam trocadas por vacas, segundo os ajustes feitos.

Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância de 35 mil reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.

Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excecionais, sem cómodos, sem força, levando a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs, que, abusiva e violentamente, foram arrebatadas dos seus lares. Chegada à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente, e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro Fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia e obviar a algumas dificuldades de ocasião, que em seu trajeto lhe aparecessem.

Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajeto (cerca de 54 léguas) sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia. Atravessou o rio Farim no dia 15, dois dias a jusante desta praça, onde é estreitíssimo e obstruído de paus, de difícil navegação, e no dia seguinte o rio Casamansa, a maior distância de Selho [Sedio, no atual Senegal, segundo o Cherno Baldé], também a jusante, chegando no dia 16 às oito horas da noite ao Indornal.

No dia seguinte, expôs ao régulo de Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que têm havido entre o governo português e os da sua raça; que não podia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que aliás obrigava o governo português a usar de represálias, como já tinha procedido para com os Fulas Forros, Beafadas e todos que praticassem violências para com gente sossegada, que apenas trata do seu comércio, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.

O régulo ouviu no mais profundo silêncio a peroração do oficial, e considerou-a caso tão melindroso que só depois de conferenciar com os seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte, mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas povoações importantes, como o próprio oficial presenciou, e daí grandes despesas a fazer para abrigar os seus vassalos; que também ia mandar cavaleiros buscar o seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele, e nunca que pudesse indispô-lo com o governo português.

Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.

No dia 24, apareceu o filho de Deusá, e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40.560 reis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.

O oficial saiu no dia 26 do Indornal, sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro-cabo de guerra, em quem deposita toda a confiança (***). A este ofereceu o alferes Geraldes uma espingarda de repetição que possuía, como presente dos seus bons serviços. Mussá declarou que, em quaisquer circunstâncias que o governo português carecesse dos seus serviços, que podia contar com ele e toda a sua gente, cuja força é superior a 6 mil homens.

No dia 26 saiu às seis horas da tarde do Indornal, seguindo o mesmo itinerário, tendo sido, tanto na ida como no regresso, admiravelmente recebido pelos povos onde passou.

Causou espanto no Indornal à aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco,

Excelentíssimo senhor, um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu a mandar para a junta da fazenda a despesa feita, que importa apenas em cerca de 70 mil reis.

Pedindo toda a atenção de vossa excelência para o serviço relevante que o alferes Francisco António Marques Geraldes acaba de prestar ao país, entende cumprir o meu dever levando ao conhecimento de vossa excelência tão relevante serviço.

Deus guarde a vossa excelência.

(***) Segundo o nosso especialista em questões etnolinguísticas, o Cherno Baldé (*), (...) "sabe-se que o Dembel assim como Bacar Demba eram irmãos de Alfa Molo, rei de
Firdu, que fez a Guerra aos soninques / mandingas de Gabu e em consequência disso eram sérios pretendentes ao trono que acaba por ser arrebatado pelo filho, o Mussa Molo, o mesmo que acompanhou o Marques Geraldes no seu regresso ao Geba e, mais tarde, em 1886 estarão frente a frente na batalha de Fanca onde o Mussa e seus numerosos partidários são destroçados por M. Geraldes, tendo ao seu lado poucos homens (menos de 200 homens armados)."

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18218: Historiografia da presença portuguesa em África (107): Alfa Moló (c 1820-1881) e Mussá Moló (1846-1931), heróis de todos os fulas, tanto dos fulas-pretos (antigos servos) como dos fulas-forros (antigos senhores), uns e outros oprimidos pelos mandingas (Cherno Baldé, Bissau)




Mussá Moló, tendo à sua direita Dembá Dançá, e à sua esquerda Maransará, chefe-de-guerra deste último (in Francis Bisset Archer, The Gambia Colony and Protectorate. An Official Handbook, London, 1906). [O Cherno Baldé leu mal a legenda: a foto não é do Alfa Moló mas do filho, Mussá Moló].

Cortesia de Armando Tavares da Silva (2018)

Comentários do Cherno Baldé ao poste P18216 (*)
Cherno Baldé, Bissau

1. Caro amigo Armando: Muito obrigado pelos importantes subsídios para a história da Guiné. Obrigado, também, pela imagem do lendário Alfa Moló Baldé [, não, trata-se do Mussá Moló].

Dizem que o seu apelido original [do Alfa Moló], antes do cativeiro, seria Culubali. O Baldé era o apelido do seu Senhor e Suserano que ele foi obrigado a adoptar, como se fazia na época. Para quem não sabia, é isto que explica o número elevado de famílias "Baldé" no antigo território por eles governado, onde a maior parte eram descendentes de antigos captivos. "os fulas-pretos".

O Demba Dança, ou Dansa, era irmão mais novo e herdeiro legítimo do irmão Alfa Moló Baldé, facto que a administração colonial não compreendia na altura, tomando-o por um simples aventureiro, arruaceiro.

O Mussa Moló era o filho, pelo que, de acordo com os usos e costumes da época, devia esperar até chegar a sua vez. Não quis e usurpou o poder no meio de muita guerra e intriga palaciana, entre fulas-pretos, fulas-forros, futa-fulas, mandingas em decadência, beafadas e potências estrangeiras. [Morreu em 1931]

2. Caro Luis, duvido que encontres o topónimo Cabucussara. Deves ver o Cabu na persprctiva de Gabu e Cussará poderia ser a actual Cossaraá (Regulado de Bafatá) ou Gussará. Assim Cabucussara deveria ser Cossara ou Gussara do Gabu ou Cabu em mandinga.

Gostei imenso de ler estes textos e os mapas da época apresentados por Armando T. Silva. Espero ver um bom trabalho da história da Guiné contada, desta vez, pela voz de quem conhece.

3. Como se costuma dizer, uma imagem vale mais do que muitas palavras. A imagem do (Alfa) Moló Baldé corresponde bem ao que ouvimos dos nossos pais e avós, de um homem simples que, certamente, estava imbuído do alto espírito e designo de libertar os fulas da opressao insuportável a que estavam sujeitos pelos mandingas durante séculos. Não tinha ambicoes imperialistas.

A sua ligação ao Futa-Djalon é atestado pelo título que recebeu: "Alfa" quer dizer Chefe de Província, um pouco abaixo do titulo imperial de " Almame" que estava reservado ao Chefe teocrático do Futa, o Ibrahima Sory Maudo e seus sucessores.

Já o seu filho, Mussa Molo, era mais ambicioso e em consequência, mais belicoso. Todavia, os tempos tinham mudado e, na região. tinham chegado os Europeus que teriam a sua palavra a dizer no contexto da região, da África e do mundo.

4. Após consulta a alguns sites na Net, constatei que a foto que acompanha o texto não é o de Alfa Molo, mas o de Mussa Moló, seu filho.

O Alfa Molo ou Molo Egué (nome original) não teria feições tão finas e bonitas como o Mussá Molo. Pois que este último tinha nascido da união de seu pai (Molo Egué) com a Cumba Udé, filha do seu Senhor que era fula-Forro.

Também a data que consta na foto (1913) indica claramente que não poderia ser o pai pois este morreu em 1881 na localidade de Dandum Cossara que ele escolhera para capital do império de Fuladu e que se estendia entre as bacias dos rios Geba e Gâmbia.

Dandum Cossara ou Gussara situa-se a cerca de 15 km a nordeste de Bafatá, na Estrada antiga que ligava Bafatá a Contuboel. Estou convencido que o tal topónimo de Cabucussara seria a junção de duas palavras ou seja Cabu+Cussara e há fortes probabilidades de estar ligado com a história do actual regulado de Cossara ou Gussara.

Quanto ao conteúdo do titulo de que o Alfa Moló e seu filho seriam heróis dos fulas pretos, acho que não é bem assim, eles ainda hoje são considerados como os heróis de todos os fulas, sejam eles Forros (antigos senhores), sejam Pretos (antigos servos), na realidade todos eles eram servos dos mandingas e foi contra estes que todos os Fulas se reuniram para acabar, aparentemente, com os seus abusos de poder.


A propósito destes heróis Fulas, Amílcar Cabral, no livro da “História da Guiné e as ilhas de Cabo-Verde, diria assim: "...sempre que os africanos se levantaram para lutar e libertar os seus irmãos da dominação e da tirania dos outros, acabaram por se transformar ainda em maiores tiranos e continuar a oprimir os seus próprios irmãos".

Ironia de destino, o movimento de libertação que o próprio criou e dirigiu, o PAIGC, acabaria por se transformar na pior de todas as tiranias que os nossos povos jamais conheceram e, ainda hoje, continuamos a ser reféns da ditadura militar que nos impuseram e para a qual não encontramos saída.

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segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18216: Historiografia da presença portuguesa em África (106): a história desconhecida da Guiné dos anos 60-70 do séc. XIX: Alfa Moló e Alfa Mussá, heróis dos fulas-pretos (Armando Tavares da Silva)


Mussá Moló, tendo à sua direita Dembá Dançá, e à sua esquerda Maransará, chefe-de-guerra deste último (in Francis Bisset Archer, The Gambia Colony and Protectorate. An Official Handbook, London, 1906)-Cortesia de ATS.


[A vermelho, a atual fronteira da Guiné-Bissau. Cortesia de ATS]


1. Mensagem de 11 do corrente, do nosso grã-tabanqueiro Armando Tavares da Silva:


Assunto - Blogue: Guiné Séc. XIX

Caro Luís Graça,

Para quem se interessar pelos acontecimentos que se foram desenrolando na Guiné no decorrer do tempo, o texto que envio poderá ser útil e esclarecedor.

Há quem se queixe que em meados do século XX nada se sabia sobre aquele teritório. Tal não era também possível, pois não havia escritos que o pudessem permitir. Pouco mais se sabia além de que a Guiné tinha sido descoberta por Nuno Tristão.

Se percorrermos as “Histórias de Portugal”, mesmo, e sobretudo, as mais recentes, nada se encontra. E alguns trabalhos onde sumariamente se referem acções militares, confundem factos e apresentam erros. Acresce ainda que, quando se fala da Guiné, é quase sempre para denegrir. Talvez isto seja consequência do que ainda hoje leva a que se oiça dizer: “Mas aquilo tem algum interesse?”.

Parabéns ao blogue e seus editores, e... vida longa!

Abraço

ATS



2. Em comentário ao Post P18172  de 4-01-2018 (*), relativo à identificação do topónimo Gan Sancó, muito possivelmente um antigo regulado mandinga, Cherno Baldé menciona as contendas em que estiveram envolvidos mandingas e fulas. A menção destas contendas  levou-me a rever o que havia escrito em “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926” [, imagem da capa à esquerda,],  sobre a própria emancipação dos fulas-pretos do domínio de mandingas e beafadas.

O alferes Francisco António Marques Geraldes, que havia sido comandante do presídio de Zeguichor, e que era chefe do presídio de Geba, relatando o que fora acção de Alfá Moló, diz-nos em 1886 que este, fula-preto, era chefe de uma “raça que há muitos anos vergava sob o jugo da escravidão. Beafadas, mandingas, fulas-forros e futa-fulas eram seus senhores e, enquanto estes descansavam das fadigas da guerra a que sempre se dedicaram, os fulas-pretos, largando as armas com que defenderam seus senhores, pegavam nos instrumentos agrícolas e ei-los curvados sobre o solo tirando do seu seio, à custa de trabalhos insanos, o alimento preciso para sustentar as tribos guerreiras de que dependiam.” 

Este estado de escravidão resultava da ausência de um chefe enérgico e audaz que se opusesse ao poder dos mandingas e beafadas. Moló, porém, entendeu fazer um esforço sobre-humano para tentar tal milagre e, à frente de um punhado de fulas, edifica a ocultas uma tabanca em lugar inculto e cheio de denso arvoredo, tabanca pequena e povoada só por homens. À distância de duas léguas existia uma outra de mandingas com suas famílias e haveres. “Os fulas-pretos atacam uma madrugada e de improviso esta tabanca; matam os homens, tomam as mulheres e cavalos; alargam a sua tabanca para assim haver cabimentos para as famílias entradas”.

Marques Geraldes situa em 1864 o começo da emancipação dos fulas-pretos, conseguindo Moló, que lutou até ao último dia da sua vida, destruir quase todo o poder dos beafadas e mandingas nos territórios de Geba até Gâmbia.

Depois da morte de Alfá Moló, será um dos seus filhos –Mussá Moló – possuidor de grande energia e superior inteligência, que chama a si os principais guerreiros jalofes, saracolés e mesmo antigos fidalgos mandingas que foram possuidores daqueles territórios e, devido às suas liberalidades, premiando os mais valentes, dando-lhes cavalos e mulheres, soube criar um tal prestígio que se tornou o ídolo dos fulas-pretos. Assim, Mussá soube vencer aqueles restos dos grandes povos que dominaram na Guiné e, em poucos anos tinha suplantado beafadas e mandingas, ficando possuidor de ambas as margens do rio de Geba desde a sua embocadura.

O território do Forreá povoado por fulas-forros estava igualmente cheio de escravos fulas-pretos. Em 1879, quando Agostinho Coelho inaugurou o governo da província, decorria a luta sangrenta entre os fulas-forros e os fulas-pretos, altura em que o Rio Grande mantinha o seu esplendor, ostentando as suas cinquenta e três feitorias prósperas e ricas, e em que a população de Buba era numerosa. 

Por espírito humanitário Agostinho Coelho, na difícil situação de procura da pacificação entre os povos que se digladiavam, e portanto da pacificação da província, recebeu na sua praça de Buba todos os fulas-pretos que quisessem ser livres, arrostando assim com uma guerra que lhe trouxe o completo definhamento do comércio e agricultura. Vendo-se os fulas-forros repentinamente privados dos seus escravos, não tiveram em mira senão vingar-se, o que deu começo a uma guerra no território de Forreá, que aniquilou o comércio e agricultura em Buba e feitorias do Rio Grande.

Joaquim da Graça Correia e Lança, que fora governador interino entre 1888 e 1890, referindo-se também, em relatório de 1890, aos povos que ocupavam a província, escreve: 

“Toda a região do alto Geba era ocupada pelos fulas-pretos, que se estendiam até ao Forreá, onde dominavam os fulas-forros. Era uma enorme área, outrora ocupada por mandingas e beafadas. Estes estendiam-se pela margem esquerda do rio Geba até à povoação deste nome e ocupavam o território de Bricama, Corubal e o Forreá. Aqueles, estendiam o seu império desde Farim até ao Futa-Djalon”. 

Ora, tanto a grande nação mandinga do interior, como os mandingas de Geba viram entrar no seu território “sem desconfiança os inofensivos pastores fulas que, com os seus rebanhos caminhavam sem cessar na direcção do oceano, apenas pedindo pastagem para os seus gados e sal para as suas comidas”. Vivendo sujeitos aos mandingas e beafadas, os fulas haviam sido objecto de “inúmeras extorsões e violências, vivendo uma vida verdadeiramente servil”, até que, em 1863, se dá um primeiro movimento de revolta, tendo-se verificado o primeiro combate em Cabucussará.

Como aqui se vê, Correia e Lança situa o primeiro combate de emancipação dos fulas-pretos em 1863, em Cabucussará.


Atlas da Guiné (1914): posição relativa de Gam Sancó e Ber[e]colon. Cortesia de ATS

Mas os mandingas também sofreram ataques e pesadas derrotas infligidas por futa-fulas, como se infere do referido comentário de Cherno Baldé ao Post P18172 (*).  Segundo este, a fortaleza mandinga de Berecolon foi destruída pelos almames do Futa-Djalon no início de uma guerra que se iniciara em 1852, e que terminaria com a derrota dos mandingas na batalha de Cansala em 1864. Marques Geraldes diz-nos que fora o almame Ibráhima, denominado o Sory, que maiores vitórias alcançara contra os mandingas, e eu faço notar que em 1882, na praça de Buba, circundada por uma paliçada, existia uma autêntica aldeia mandinga, onde se terão acolhido, provavelmente fugidos dos ataques de futa-fulas.    

Houve, porém, um território – o Oio – onde mandingas soninqueses conseguiram resistir aos avanços fulas. É o governador Júdice Biker que, em 1903, mais demoradamente se vai referir a este facto, começando por notar que por muitos anos durou a luta entre fulas e soninquezes, ficando aqueles vencedores tomando posse do chão dos soninquezes, à excepção da região chamada Oio, ainda hoje pertencente aos soninquezes.

Acrescenta Júdice Biker:

“Depois, os fulas passaram a conquistar o território pertencente aos beafadas, luta que igualmente durou bastantes anos, mas sendo os beafadas expulsos do seu chão que igualmente ficou pertencendo à raça fula, refugiando-se os beafadas em Quinará e Cubissegue, que ainda hoje conservam devido à protecção do governo”.

E continua:

 “Relativamente ao Oio, os fulas empregaram todos os esforços para ocupar aquela região. A tabanca de maior nome do Oio é a de Gussará; cinco vezes foi atacada pelos fulas que foram sempre derrotados sofrendo perdas enormes”. Por isso, “para os fulas o Oio passou a ser considerado como território com feitiço”.

Vai ser na sequência de uma incursão no Oio em 1902, e do “prestígio” de que dela resultara, que Júdice Biker, devidamente autorizado, vai proceder a título provisório à primeira cobrança do imposto de capitação (que antecedeu o imposto de palhota), o que realiza durante uma extensa digressão, entre Fevereiro e Março de 1903, em que percorreu de Buba a Geba 275 quilómetros. (**)
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quarta-feira, 30 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã




Guoleghal, a ave peralta do conto de Canhánima ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina), dizem os nossos especialistas José Corceiro, Mário Dias, Nelson Herbert... Conhecida na Guiné, coloquialmente,  como ganga...

Foto: Armando Pires (2010)



Guiné-Bissau > Bissau > 2004 > Cherno Baldé e família, no Tabaski  ou festa do carneiro (i)


Guiné-Bissau > Bissau > 2006 > Família Baldé > Construir hoje e amanhã...


Fotos: © Cherno Baldé (2010). Direitos reservados


1. Mensagem do Cherno Baldé (ii)

Data: 16 de Junho de 2010 17:20

Assunto: Envio de mais uma crónica

Caro amigo e irmão Luís Graça,

Envio mais uma das minhas crónicas habituais, cabendo a vocês, da incansável equipa do blogue, a decisão de publicar ou não.

Juntamente envio, também, a imagem de uma ave pernalta, que encontrei no poste (P6536) do Sr. Armando Pires, onde ele pede ajuda para a identificação da ave. Esta ave pernalta corresponde exactamente à descrição da 'gueloghal' do conto que acabo de vos enviar.

Com um grande abraço

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)



2. Memórias do Chico, menino e moço (16): Canhámina, o  fim do triângulo da vida e do poder de Sancorlã 

por Cherno Baldé (ii)

Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel (ii) estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O Primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.
- Tcherno!...Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.
- Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!...Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 
- Um, dois, três!... Um, dois, Três!...A esquerda!...A esquerda!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.

Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:
- Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:
- Eu sou!..
O Comissário perguntou-lhe:
- Tu és o quê?
- Eu sou! - respondeu.
-Tu és da FLING, não é? - sugeriu o Comissário.
-Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas (iii)  na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.

No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:
- Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... - E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado.

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

***
Ainda hoje, a primeira coisa que nos chama a atenção quando visitamos a localidade de Canhámina é a sua mata de poilões bem no centro da aldeia. Ė impressionante.

Contam que, em tempos idos, quando a relação dos homens com a natureza ainda era muito próxima e viva, aqui habitava uma miríade de aves de diferentes espécies e a sua vozearia era audível a quilómetros de distância. A mais importante, dentro do imaginário colectivo era, sem dúvida, a Gueloghal ou ave real, cuja presença testemunhava a sacralidade e proeminência do lugar no contexto do mundo espiritual dos homens da época, onde tudo era importante e tudo fazia sentido.
-
Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti ! Maudhô yannô to dourôh, banenguél wilti ! Si bhô uri men ganda, banenguél wilti ! Si bo may men ganda, banenguél wilti … (1)

A
Gueloghal, para além de se distinguir pela sua beleza e graciosidade que lhe valeram o epíteto de ave real, também, era conhecida como ave mensageira, dotada de capacidades de transportar mensagens de partes incertas e/ou de revelar aos homens, acontecimentos vindouros. A sua presença nesse lugar misterioso se revestia de uma auréola simbólica e ancestral de confiança na probabilidade de uma vida de paz e tranquilidade. Não se deve admirar muito pois, todos os povos que chegaram até aqui, vindos do interior do continente, sem excepção, vieram na vã esperança de encontrar a paz e a tranquilidade a que ansiavam.

Quem terá sido o primeiro habitante de Canhámina? Uma pergunta difícil de responder porquanto, os actuais habitantes de Sancorlã seriam capazes de jurar, a pés juntos, que foram os seus antepassados e com provas provadas dentro do esquema mitológico habitual do tipo: “Era uma vez, a família de caçadores do grupo dos nossos antepassados que, após um longo percurso, em perseguição de um animal de caça, acabaram por desembocar neste local milagroso…”

O que, porém, não deverá suscitar muita controvérsia, é o facto de que estas paragens já eram habitadas quando os Fulbhé (fulas) chegaram com as suas manadas de gado, vindos de Macina (Mali), de Tekrur (Senegal) ou Futa-Djalon (Guiné-Conacri).

Conta-se que, no seu périplo pela região na primeira metade do século XIX, El-Adj Omar, imperador do Sudão, teria passado por aqui a caminho de Futa-Djalon acompanhado do seu
djatigui (2) e futuro rei de Firdu, Alfa Moló a quem ele teria dado todas as terras situadas entre as bacias dos rios Gâmbia e Geba, mais concretamente até ao local designado Dandum (Dandum Cossará?), à condição que as pudesse retirar aos “infiéis” reis Soninquês, claro. Despediram-se após ter recebido das mãos do grande homem de letras a promessa de que a sua aventura seria coroada de êxito.

De regresso a casa, Alfa Moló convocou os grandes de entre os Fulbhé [, fulas,] e disse-lhes:
- Como todos sabem, desde que vivemos entre os Soninquês [, ou Saracolés, gravura à direita, 1890, co
rtesia de Wikipédia], não somos mais os donos das nossas vacas, das nossas ovelhas nem das nossas próprias mulheres, por isso, vamos combatê-los e acabar com os seus abusos de poder.

Os grandes de entre os Fulbhé após terem escutado e, cheios de medo, responderam:
- Nós não vamos combater os Soninquês e tão pouco iremos ajudar aquele que o irá fazer. 

Então o Alfa Moló levantou-se em toda a sua altura e, sacudindo o fundilho das calças, disse a frase que ficaria para sempre gravada nos anais da história épica do reino de Firdu:
- Se não me ajudarem a combatê-los, então ajudar-me-ão a fugir.

E foi assim que tudo começou, Alfa Moló e os seus apoiantes atacaram os Soninquês e, com o apoio decisivo dos
Almamis de Futa-Djalon, acabariam por conquistar a região e instalar o reino de Firdu (Fuladu), repartido em pequenos regulados entre os quais o de Sancorlã que ele confiou aos seus aliados locais (Samba Shábu?) e que escolheram para capital a localidade de Canhámina. (3).

Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana, nada acontece por acaso, tudo se justifica e se fundamenta em fórmulas simples e ao mesmo tempo complexas, e neste caso concreto de Canhámina/Sancorlã, conta-se que a origem da força e do poder local se devia à conjunção de determinados factores de ordem mística e que, por conseguinte, a perda daquela força e do poder, verificada mais tarde (1974),  se deveu a violação do princípio regulador do equilíbrio ou pacto inicial estabelecido, que começou com a penetração de elementos estranhos ao meio, entrando nesse leque tudo o que veio a ligar-se com o processo da dominação colonial, da submissão e da penetração do sistema mercantilista da produção e comercialização (borracha, coconote, amendoim etc.); de elementos novos de sujeição, de opressão e alienação cultural e espiritual que se lhe seguiram os passos, onde os impostos de capitação e a balança dos comerciantes eram os elementos mais nocivos dentro do sistema de exploração e empobrecimento das populações, terminando com a entrada silenciosa e criminosa dos guerrilheiros do PAIGC que transformaram o recinto dos poilões num campo de tortura e de exterminação dos próprios filhos de Sancorlã.

***

Conta-se que, antigamente, da mata de poilões situada no centro de Canhámina, descia uma linha de força para sul até a floresta de palmeiras (
surumael), situada nos limites do regulado e no meio da qual se encontrava uma nascente cujas águas abasteciam a população da aldeia, estando ligada, por sua vez, à bolanha, (prolongamento da bacia hidrográfica do rio Farim-Canjambari).

Surumael (matagal) representava o ângulo feminino do triângulo de Canhámina onde se praticavam não só a produção do arroz nas terras baixas mas também todos os rituais femininos ligados a educação e/ou reprodução social (cerimónias de casamento, fanados etc.).

De
Surumael, seguindo sempre o percurso da bolanha para poente até à distância de três  km, estava situado o terceiro ângulo ou o complexo masculino, Djunkoré, formado, por uma extensa área alagada durante a estação das chuvas e no meio da qual se encontrava um grande lago bem no centro da bolanha.

As populações das aldeias mais próximas e as aves pescadoras vinham aqui encontrar os peixes que subiam com as águas do rio Farim. Também aqui davam de beber as grandes manadas de gado (vacas, ovelhas, cavalos) que faziam a fama da região, acompanhadas de crianças nuas e barulhentas, com a flauta numa mão e a varra noutra.

Na margem esquerda do lago
Djunkoré encontrava-se um poilão bem alto e que, durante o período nocturno, irradiava uma luz florescente provocando o efeito bômina (claridade), que era visível a uma grande distância. Djunkoré funcionava como o refúgio dos homens e das aves, onde se praticavam as cerimónias e rituais masculinos. Todas as gerações passadas fizeram-se homens neste espaço mítico e verdejante.

Deste ângulo subia outra linha de retorno à aldeia, formando assim uma espécie de triângulo, o triângulo de vida de Canhámina. O conjunto formava um ambiente natural propício para a vida animal, em particular das aves selvagens. Mas, também constituía o centro da vida económica, social e cultural da aldeia e seus arredores.

E, numa escala maior, reproduzindo fielmente o triângulo de Canhámina, a organização social e política do regulado, também, se apoiava em três pilares ou áreas geográficas (
diwal): A área de Canhámina (ângulo sudoeste), a área de Lenkebembe/Cambaju (ângulo noroeste) e a área de Panambo/Kerwane (ângulo nordeste) e, cada uma das quais gozando de uma certa autonomia.

Esta divisão administrativa fomentava muitas rivalidades, algumas das quais ainda hoje subsistentes, mas também era factor de concorrência e de dinâmica criativa que permitia manter a necessária coesão social e política assim como a chama guerreira do regulado.


***

Todavia, a sucessão de Alfa Moló na segunda metade do Séc. XIX, não viria a ser nem bem sucedida e muito menos pacífica, obrigando ao seu sucessor, o intrépido Mussá Moló, a disputar não somente o trono com outros pretendentes dentro da família, como fazer face a pretensões autonomistas dos pequenos regulados em que estava dividido o reino de Fuladu, (com particular incidência naqueles cuja liderança era chefiada por Fulas-Forros, antigos suseranos e pouco inclinados a aceitar a vassalagem
vis-a-vis dos Fulas-pretos cujo poder representava Mussá Molo), sob o olhar atento dos Almamis de Futa e ainda a presença cautelosa mas insidiosa das potências europeias (os Portugueses a partir de Farim e Geba, e os Franceses a partir do Senegal) que cobiçavam a região meridional do Firdu. (4).

Nestas circunstâncias, os pequenos regulados Fulbhé do nordeste e leste Guineense tinham que escolher entre submeter-se à tirania de Mussá Molo, apoiado subrepticiamente pelos Franceses,  ou aliar-se aos Portugueses. Assim nasceu a aliança de interesses entre os Fulas e Portugueses que, tudo somado, pareciam distantes e sem quaisquer interesses em comum.

Porém, esta aliança fortuita não estava isenta de algumas contradições. Os Fulas, de um lado, precisavam dos Portugueses para se proteger das ameaças e razias constantes dos homens de Mussá Molo mas, sendo muçulmanos,  eram portadores de um inevitável “proselitismo religioso” que estava na base da sua libertação e do seu poder conquistado perante os Soninquês. 

Os portugueses, por seu turno, precisavam de aliados no interior onde não conseguiam chegar para fazer valer as suas pretensões para lá do Geba mas, também, tinham na bagagem a Bíblia e o compromisso da salvação de almas perdidas para justificar as suas conquistas de além-mar.

Mas tarde e, sempre que se sentiriam aflitos, os portugueses não hesitariam em recorrer aos seus aliados muçulmanos do interior (Fulas e Mandingas) para reprimir os povos guerreiros “animistas” do litoral Guineense mas, logo que se sentiam minimamente aliviados da pressão, se apressavam a afastá-los destas zonas para não espalhar a sua indesejada influência religiosa.

Com Teixeira Pinto e seus auxiliares muçulmanos, os portugueses fecharam o capítulo da conquista e pacificação (?) do território da Guiné no início do século XX, impondo de seguida,  a todos os habitantes da Guiné, a obrigação do pagamento de impostos. Com estes, veio a necessidade de produzir excedentes comerciais abrindo, desta forma, uma porta de entrada a produção do amendoim que,  juntando-se a colecta da borracha,  se transformariam, durante muito tempo, nas actividades obrigatórias de toda a região do interior.


***

Com o florescimento do comércio nos anos 40 e 50, houve a necessidade de abrir vias de acesso e de ligação com as zonas portuárias de Farim e Bafatá. As medições feitas determinaram que a estrada tinha que passar no meio da mata de poilões de Canhámina, que seria o ponto de convergência das três estradas (Cambaju ao norte, Bafata ao sul e Farim a Oeste,). Esta foi a primeira abertura (ferida) no triângulo de Canhámina, o primeiro sinal inquietante da mudança dos tempos, que abriu as portas para a penetração de elementos estranhos no círculo de vida de Sancorlã.

Com o intuito de preservar Canhámina da invasão do novo mundo e das suas consequências inevitáveis, Fajonquito serviu de escoadouro e aldeia satélite para canalizar todos os elementos que não se enquadravam no pacto de equilíbrio do mundo antigo. Foi assim que as casas comerciais que queriam instalar-se em Canhámina, foram empurradas para lá, a três quilómetros a oeste a fim de preservar o triângulo.

Foi assim que, pelas mesmas razões, tanto a escola portuguesa (1964) assim como a primeira companhia de tropas metropolitanas (1965) enviada para reforçar o regulado com o início da luta para a independência, ficaram pouco tempo na aldeia, tendo sido, de seguida, transferidas para Fajonquito. Era preciso manter o equilíbrio do pacto, tanto assim que, pese a vontade de o fazer, os guerrilheiros do PAIGC nunca conseguiriam penetrar no triângulo e atacar Canhámina, o coração de Sancorlã, mesmo desguarnecida de tropas. Eram desviados para longe por uma força misteriosa.



***

Mas, nem tudo correu tão bem como se pensava, e o mal já estava feito e pouco a pouco assistir-se-ia ao desmoronar da vitalidade do sistema que vigorara até ali. O primeiro sinal de alarme foi a diminuição drástica do barulho das aves e das chuvas, também. As espécies mais inteligentes simplesmente tinham desaparecido dos poilões de Canhámina, entre as quais a famosa Gueloghal. Em seguida, veio um outro alarme do sudoeste com a extinção da luz de Djunkoré e do seu lago que parecia inesgotável. O velho poilão florescente, completado o seu ciclo de vida, tinha cessado as suas actividades de faroleiro para as aves viajantes.

Por fim, as mulheres, alarmadas, vieram informar que os olhos da fonte de Surumael tinham secado e já não corria água da nascente. Também, os macacos (babuínos, pára-quedistas,  etc.) que espantavam as crianças no seu interior, já não viviam no matagal. Era o fim do pacto de equilíbrio? Parecia incrível, e os olhos virados para Canhámina não encontravam nenhuma resposta. Decididamente, os ventos da história tinham mudado de direcção e com esta viragem, acontecia o fim de um ciclo histórico e, por coincidência, também climático.

Tudo parecia combinar para acelerar as mudanças. Em 1974, aconteceria o improvável. Os portugueses, cansados de ver seus filhos morrer longe da sua terra natal, por uma causa cada vez mais difícil de defender, tinham descoberto uma nova pátria, mais pequena desta vez mas, assim mesmo, a pátria mãe, abandonando a guerra nos territórios do ultramar com o seu calor infernal e seus insuportáveis mosquitos. E numa coluna como nunca dantes visto, levaram consigo todo o equipamento de guerra. Canquelifá… Gabu…Canjufa…Pirada…Canjadude… Piche…Bafatá…Bambadinca…Farim…Guidaje, tudo.

As milícias, eternas sacrificadas, voluntárias da sua própria desgraça, num repente incompreensível, se pasmaram na vã gesticulação de mãos vazias. Adeus, camaradas, nada se pode fazer, é o virar de uma época. Os tempos mudam e os homens também.

Com a conquista da independência, os guerrilheiros do PAIGC, qual exército de Gengis Cã, silenciosa e furtivamente instalaram-se nos portões de Canhámina bem no centro dos poilões, tecendo paciente e meticulosamente a sua teia de morte, desafiando insolentemente os deuses de Sancorlã, completando a missão histórica que Amílcar Cabral lhes tinha legado: “A sociedade fula é do tipo vertical, em cima estão os régulos, no meio os Djilas ambulantes e, em baixo, os camponeses. Entre os vários segmentos sociais, uma coisa os une fortemente, são contra a luta armada…”

Enfraquecida pela guerra que quase esvaziou as suas aldeias, ferida mortal e traiçoeiramente pela abdicação dos seus aliados, Sancorlã não conseguiu reagir atempadamente ao infortúnio que se abateu sobre ela e, em menos de dois anos completou-se a destruição (decapitação) das suas forças vivas e da sua elite dirigente, encurralada, fragilizada e justamente vitimada. O mundo aplaudia a Guiné-Bissau independente, pais onde não havia lugar para aqueles que tinham fraquejado. O acordo de Argel, uma quimera e, não se esqueçam: ”Nem toda a gente é do povo”.

Todos os valorosos que não quiseram pactuar com o novo regime e eram demasiado orgulhosos para fugir dos seus ex-inimigos, entregaram seus peitos às cordas de nylon dos comissários políticos de PAIGC e mais tarde as suas vidas, fazendo a viagem sem regresso para os cárceres de Bafatá e Bambadinca. As justificações teóricas e práticas não faltaram. As festas também. “Páa-nô-uni! Páa nô mamáa… Páa-nô-uni, Pa-nô-mamáá, Panó terráá…”.

Em Fajonquito, ainda continuamos durante muito tempo, a pescar e a nadar no lodo do que restava do rio Farim/Canjambari e, sem pudor, ao sabor da brisa, mudamos também de camisola e hino. Continuamos a pedir as armas mas já não eram contra os canhões mas contra os colonos e seus aliados. Os heróis de mar não tinham aguentado tão bem em terra firme. Os peixes também, assim como os ex-soldados, para se adaptarem ao novo clima, se metamorfosearam em coisas pequenas e escuras escondidas na imundície da lama das bolanhas, escorregadios como o sabão chinês que invadiu os nossos mercados.

Alguns realizaram a proeza de, em tempo recorde, arrastando seus bubus brancos, transformar-se em Marabus de esquinas e mesquitas com salmos e cuspo na testa, pedindo a perdão dos nossos pecados colectivos. Outros passaram as fronteiras. Mas, muitos foram os que morreram sufocados nas prisões de Farim, brigando por escassos graus de cereais crus. Os deuses estavam a ouvir? Aláau…akbaar!

Os tempos, verdadeiramente, tinham mudado e nós vivíamos ou melhor sobrevivíamos sem dar por isso. Aconteceu exactamente como no poema ecológico de Júlio Roberto (5):
 - Onde se encontra o matagal?... Destruído!
- Onde está a água, o lago e o poilão?... Desapareceram!
- Onde estão os valorosos de Sancorlã?... Morreram!

 Bissau, Junho de 2010.

[ Revisão / fixação de texto / bold a cores: L.G.]
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Notas de Cherno Baldé:


 (1) Canto das aves mensageiras “Guelodhé” em língua fula: A árvore da vida floriu! Ao velho que tinha visitado as terras altas, informamos: A árvore de vida floriu! Se estiver em vida que nos informem! Se não estiver em vida, que nos elucidem! A árvore da vida floriu de novo! 

 (2) Djatigui – Anfitrião, palavra de origem incerta utilizada em quase todas as línguas de África do oeste.

(3) Crónicas guerreiras dos reis de Firdu (Fuladu)

 (4) Ver René Pélissier: Historia da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegambia. (1841-1936), vol. I e II, Imprensa Universitaria, Editorial estampa, Lisboa, 1989.

(5) Carta do chefe Seattle (Índio) em 1884 ao grande chefe branco de Washington, inserido no poema ecológico de Júlio Roberto
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 Notas de L.G.:

 (i) Tabaski ou festa do carneiro: comemoração da vontade de Abraão de sacrificar o seu filho por vontade de Alá... Uma das mais importantes festas do calendário religioso muçulmano.

 (ii) Vd. último poste da série > 18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!

Vd. os postes anteriores, e em especial o de 13 de Julho de 2009 >  Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

 (...) A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países.

Dessa época não sei quase nada que possa transmitir. Mais tarde, a familia mudou-se para Canhámina, capital do regulado de Sancorlã, [a nordeste de Fajonquito, carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line' ,] o que aconteceu após a morte do nosso avô paterno, Morô Baldé (Morseide), ocorrida, provavelmente, entre os anos de 1922/23.

Os seus descendentes eram sobrinhos directos da casa reinante de Sancorlã (Soncoia?), através da mãe, nossa avó paterna, Eguê Mariama Baldé, facto que certamente terá pesado na decisão de se mudar para esta localidade. Em Canhámina, durante muito tempo, a nossa família viveu sob protecção da casa do régulo, tendo beneficiado de algumas regalias daí inerentes, encabeçada pelo mais velho dos irmãos, Naor, que foi pajem de seu tio Braima Djame Baldé, mais conhecido por Burandjame (ou Brandjame?), o régulo de Sancorlã, e era colega e amigo íntimo de Abdu Buram, o príncipe herdeiro do trono, que encontrou a morte na última guerra de Canhabaque entre 1935/36 [, nas Ilhas Bijagós, referência à repressão de uma das últimas revoltas dos habitantes locais] . (...)


(iii) AKA - Kalash, Espingarda Automática Kalashnikov (AK),  Calibre 7,62 mm

 (iv) Soninquês (também chamados Saracolês): grupo etnolinguístico mandinga maioritarimente islamizado. Habitam a África ocidental. Em francês, Soninkés.