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sábado, 16 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24962: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (3): Amboim, Angola: crianças pilando café

 

Angola - Indígenas de Amboim descascando café

Fonte: Capa da Gazeta das Colónias: quinzenário de propaganda e defesa das colónias, Ano II, nº 26, Lisboa, 25 de setembro de 1925. Diretor: Leite de Magalhães; editor: Joaquim Araújo; propriedade: Empresa de Publicidade Colonial Lda.

O então diretor, António Leite de Magalhães, foi major do exército, governador da Guiné entre 1927 e 1931.





Por este anúncio, de página inteira, ficamos a saber que em 1925 a Companhia Nacional de Navegação, SARL tinha já uma importante frota: 

  • 14 paquetes (os mais pequenos, com menos de 4 mil toneladas, só faziam serviço de cabotagem);
  • 5 vapores de carga;
  • 3 rebocadores (no Tejo);
  • o maior dos paquetes, em termos de arqueação bruta (c. 9 mil toneladas), era o "Nyassa".

A CNN fazia transporte de passageiros e mercadorias para os portos da Afríca Ocidental e Oriental. Era conhecida anteriormente pela sigla ENN (Empresa Nacional de Navegação a Vapor para a África,  Portuguesa, ou Empresa de Navegação Nacional, 1899-1918), e teve o monopólio das rotas para as colónias, até 1922, ano em que foi criada a empresa concorrente, a  Companhia Colonial de Navegação, com sede em Angola.



Postal da Empresa Nacional de Navegação a Vapor para a África Portuguesa (ENN)
Portugal. 2 de janeiro de 1899. Imagem do domínio público. Cortesia da Wikimedia Commons

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Nota do editor:

Vd. postes anteriores da série:


15 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24958: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (1): Os "angolares", indígenas de São Tomé

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24958: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (1): Os "angolares", indígenas de São Tomé


São Tomé - "Angolares", indígenas de S. Tomé nas suas caraterístiias casa de tábuas 
de "pau-caixão" (Urophyllum insulare)"


Gazeta das Colónias: semanário de propaganda e defesa das colónias, Ano I, nº 13, Lisboa, 6 de novembro de 1924. Diretor: Oliveira Tavares. (Cortesia da Hemeroteca Digital de Lisboa).


I. Este periódico publicou-se de 1924 a 1926. Começou por ser de periodicidade semanal e depois quinzenal. Mas saiu com irregularidade (por vários motivos: falta de papel, dificuldades financeiras, etc.). 

Era propriedade da Empresa de Publicidade Colonial Lda. A redação e administração originalmente ficavam na Rua do Diário de Notícias, ao Bairro Alto, Lisboa, e a tipografia na Rua do Século. Foram publicados 41 números.  Na coleção da Hemeroteca Digital de Lisboa faltam alguns números (10, 25, 30, 39). 

(...) "Variando as dimensões entre as 32 e as 24 páginas (...) , manteve sempre a paginação a três colunas, com muita ilustração, reservando a primeira página, na íntegra, à publicação de uma fotografia de motivo colonial (etnográfico, histórico, monumental, etc.). 

"A apresentação dos conteúdos, fluida e bem delimitada, obedecia a um critério de agrupamento por territórios coloniais ('Angola', 'Cabo Verde', 'Macau',  'Timor', etc.) a que se seguia o título próprio do artigo, ou à arrumação por secções temáticas ('Desporto', 'Arte', «Noticiário', 'Estrangeiro',  etc.). 

"A publicidade, disseminada pelas páginas do jornal, foi ocupando um espaço cada vez maior, vindo a ser exclusiva em meia dúzia de páginas iniciais e em quase outras tantas finais de cada número. " (...)

Da leitura do nº 1 da Gazeta (que saiu a público a 19 de junho de 1924),   ficamos a saber qual era a sua orientação editorial. Diz-se na  “A missão que nos impomos”, editorial não assinado:

(...) "Desde que, por virtude da Grande Guerra, a Alemanha se viu despojada dos seus extensos domínios ultramarinos, Portugal tomou o terceiro lugar no grémio das Nações coloniais. 

um lugar que nobilita, mas é também um lugar que obriga. 

"É uma situação que chama sobre nós as atenções gerais, e que se atrai sobre a nossa ação as vistas imparciais duns, pode atrair por parte doutros, vistas turvadas pela ambição. Nem sempre lá fora é devidamente apreciado o nosso esforço de colonização. 

"Abstraindo da exiguidade dos nossos recursos, em homens e em dinheiro, pretende-se por vezes menoscabar a nossa obra colonizadora. 

"Pois é indispensável que se mostre clara e nitidamente, que essa obra é grande, considerada em absoluto, é formidável se a relacionarmos com outras e ainda com os apoucados recursos de que temos disposto. 

"Essa propaganda da nossa ação colonizadora, é uma das missões que a si própria impôs a 'Gazeta das Colónias', que hoje sai à luz da publicidade, como sói dizer-se. Mas, se a obra de colonização por nós já realizada nos nobilita, não quer isto dizer que ela esteja completa." (...)

Sobre a estrutura editorial:

(...) "Teve a Gazeta por diretores os majores Oliveira Tavares (que foi também seu administrador até ao n.º 2), António Leite de Magalhães (1878-1944) — a partir do n.º 21, de 25 de abril de 1925 — e José Veloso de Castro (1869- 1930) — do n.º 37 (10 de setembro de 1926) em diante; foram seus editores Maximino Abranches e, a partir do n.º 6 (7 de agosto de 1924), Joaquim Araújo — resumindo-se a este pequeno núcleo a sua estrutura 'fixa', composta à vez por duas pessoas, onde não não havia corpo de redatores." (...)

Teve um amplo leque de colaboradores, muitos deles "africanistas" e "colonialistas", com experiência de administração colonial:

(...) Gazeta constituindo-se antes como plataforma de colaborações várias, articuladas pela figura central (mas sempre em segundo plano) do editor. Prescindindo de redação, caberia ao seu diretor a manutenção geral da linha 'programática' da publicação ('dando voz' ao jornal quando tal fosse necessário) e, podemos supô-lo pela escolha constante de perfis militares com forte ligação colonial para a função, o trabalho de relacionamento e promoção externos do jornal em termos formais e informais." (...)

Quanto ao conteúdo da Gazeta:

(...) A quase totalidade (...) consistiu em artigos doutrinários, de divulgação ou estudos sobre temáticas coloniais, uns de escopo mais abrangente visando a 'política colonial'  em horizonte lato, outros (a grande maioria) centrados em questões específicas desta ou daquela província — todos assinados por colaboradores, num amplo espectro que variou entre o responsável administrativo ou político até ao colono opinativo, passando pelos especialistas em diversas áreas técnico-científicas e pelos colonialistas de renome." (...)

Numa primeira exploração de uma amostra dos números disponíveis, não encontrei uma única referência à "nossa" Guiné...

Para saber mais sobre a Gazeta das Colónias, ler aqui a respetiva "ficha histórica", da responsabilidade da BLX (Bibliotecas de Lisboa, assinada por Pedro Teixeira Mesquita.

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, links: LG)


II. Sobre a fotografia da capa que escolhemos para dar início a esta série, retirada do nº 13, de 6/11/1924, acrescentaremos apenas o seguinte sobre o significado do vocábulo "angolar" / "angolares".


angolar
(an·go·lar)
adjectivo de dois géneros

1. Relativo aos angolares.

nome de dois géneros

2. Indivíduo dos angolares.

nome masculino

3. [Economia] Antiga unidade monetária de Angola, entre 1928 e 1958.

4. [Linguística] Crioulo de base portuguesa falado em São Tomé.

angolares
nome masculino plural

5. [Etnologia] Grupo étnico proveniente de Angola que se fixou no Sudeste da ilha de São Tomé.

Origem etimológica: Angola, topónimo + -ar.

Fonte: "angolares", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/angolares.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24948: S(C)em comentários (22): Caçadores de Angola...



Legenda: "Caçadores de Angola: Um elefante morto pelo grande caçador Teodoro Cabral, antigo Fiscal Geral da Caça da Colónia. Foto: c. 1930. Fonte: Portugal Colonial: revista de propaganda e expansão Colonial,. nº 1, março de 1931, pág. 16. 



Desta revista publicaram-se 72 números, de março de 1931 a janeiro-fevereiro de 1937. Estão dsponíveis, no sítio Hemeroteca Digital da Câmara Municipal de Lisboa... Imagens reproduzidas com a devida vénia... Foi seu fundador,  e primeiro director, Henrique Galvão (1895-1970).

sábado, 9 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24935: S(C)em comentários (21): A caça nos impérios coloniais europeus... ou um certa visão etnocêntrica dos velhos "africanistas"


Congo ex-Belga (hoje República Democrática do Congo) > c. nos 20 > "Troféus de caça"... ou uma certa  visão europocêntrica de África. 

Fotos de Victor Jacobs (digitalizadas e editadas por LG.). 

Fonte: Louis Franck - Le Congo Belge, Tome I.  Bruxelles: La Renaissance du Livre.  1928. p. 152...  

Angola > c. anos 30 > "A Exma. Esposa  do Coronel Félix montada num búfalo-pacaça, que, minutos antes, ela própria abatera a tiro de rifle"  (Joaquim António da Silva Félix era ofcial do exército, coronel, industrial, agricultor e publicista, dono da fazenda Glória, colabordor do Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, que congregava parte da "intelligentsia" do colonialismo republicano, radicada no Brasil)

Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 8, janeiro e março de 1934, pág. 35.

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Nota do editor:

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24904: S(C)em Comentários (20): Já devo alguns 10 anos à terra, graças ao SNS (António Rosinha)


Lisboa > República Portuguesa > SNS (Serviço Nacional de Saúde) > IPO (Instituto Português de Oncologia) de Lisboa > 28 de Novembro de 2023 > Fotograma de vídeo, sobre obra inédita do artista português Bordalo II oferecida ao IPO, e inaugurada no passado dia 28 de novembro.

"O artista plástico é conhecido pela utilização do espaço público como palco para as suas intervenções de cor e de escala e, no IPO Lisboa, o pintainho foi o animal escolhido como símbolo de renovação e futuro."



1. Comentários ao poste P24893 (*):

(i) Antº Rosinha:

Estes rapazes [reunidos à volta do gen Norton de Matos e da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro] deram o fora para se verem livres do Salazar.

Se o Botas fosse na cantiga desta gente, tínhamos sido 10 milhões de retornados naquela data que nos trouxe a melhor coisa do mundo, o SNS.

28 de novembro de 2023 às 20:32 


(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

Rosinha, para fazeres o elogio do SNS - Serviço Nacional de Saúde, é porque precisaste dele, mais recentemente... como eu já precisei (e continuo a precisar)...

Está tudo bem contigo? Que os bons irãs te protejam e que o SNS continue a cuidar bem de ti e de mim e de todos nós...

28 de novembro de 2023 às 23:26 

(iii) Antº Rosinha:

Luís,

Por mim tudo normal com a saúde, as enxaquecas normais (várias) para a idade.

Mas, como conheci a mortalidade infantil na metrópole, e a assistência médica familiar era zero, nesta metrópole, e cheguei a África e vi uma assistência veterinária no sul de Angola, na Namíbia dos boeres, tal, que fiquei com inveja dos bois dos cuanhamas.

A mim com 19 anos, novo com toda a irresponsabilidade do mundo, mandaram-me trabalhar para aquela fronteira, um cu-de-judas, e como primeiros socorros, levava apenas uma injeção anti-ofídica, caducada há 4 anos, com a recomendação de a devolver da mesma maneira no fim do serviço.

Ora quando um dia cavei para o Brasil e vim passados 5 anos, fiquei sem inveja das vacas dos cuanhamas.

Para mim era o que o país precisava, saúde... mais nada, já devo alguns 10 anos à terra, graças ao SNS. (**)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 28 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24893: Notas de leitura (1638): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte I: a voz dos colonialistas republicanos nostálgicos e exilados

(**) Último poste da série > 26 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24889: S(C)em comentários (19): O silêncio da CECA (Comissão de Estudo para as Campanhas de África) sobre a trágica Op Abencerragem Candente: Xime, 26 de novembro de 1970, 6 mortos e 9 feridos graves

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24893: Notas de leitura (1639): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte I: a voz dos colonialistas republicanos nostálgicos e exilados




Fonte: Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 2. maio de 1932,  pág. 71


1. A Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro foi fundada a 22 de Maio de 1930.

Este boletim foi um dos primeiros projectos desta associação. O seu objetivo era   dar a conhecer aos portugueses do continente americano, e em especial do Brasil, as colónias portuguesas espalhadas pelo mundo. Tinha como subtítulo "Pela Raça, Pela Língua". 

(...) "A nossa bandeira cobre umna superfície de mais de dois milhões de quilómetros quadrados, onde gravitam 16.860.000  portugueses", dos quais 8,7 milhões "negros", 7 milhões de "brancos", 550 mil "índios", 450 mil "malaios" e 160 mil "amarelos" (sic).

Na realidade, a Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro era "a única associação dedicada exclusivamente à propaganda colonial portuguesa no Brasil" (Assunção, 2017, pág. 60) (#).  Além disso, " também congregava a especificidade de ser produzido por intelectuais republicanos exilados no Brasil, nostálgicos de um ideário 'republicano' de colonização que detinha como principal modelo as gestões de Norton de Matos em Angola (1912-14 e 1921-1924)." (Assunção, 2017,  pág. 59).(#)

Do Boletim publicaram-se 25 números  (alguns são números duplos),  de maio de 1931  (nº 1) a dezembro de 1939 (nº 25). Diretor: António de Sousa Amorim (um republicano, minhoto de Ponta de Lima, exilado no Brasil).

Velhos africanistas como o nosso camarada António Rosinha vão gostar de  o "folhear": está disponivel, em formato pdf e html, na Hemeroteca Digital, sítio da Hemeroteca Municipal de Lisboa (HML).

De entre os  colaboradores do Boletim, descortinámos, um pouco ao acaso, e numa leitura rápida de uma amostra, nomes conhecidos como Norton de Matos, Paiva Couceiro, Henrique Galvão, Manuel Teixeira Gomes, Sarmento Pimentel, Augusto Casimiro (1889-1967) (capitão de infantaria, herói da I Grande Guerra,  braço direito de Norton de Matos em Angola, cofundador da "Seara Nova"...), e outros (quase todos republicanos,  exilados e nostálgicos de um pretenso império que ia "do Minho a Timor", como defenderá mais tarde a propaganda estado-novista )... 

A linha político-ideológica é a do "nacionalismo imperial",  do "panlusitanismo"  e mas também do incipiente "luso-tropicalismo" (teorizado por Gilberto Freire, e rejeitado nos anos 30 e 40 pelo Estado Novo)... 

São termos usados por Marcelo Assunção, na sua tese de doutoramento em história pela Universidade Federal de Goiás, para caracterizar a linha editorial do Boletim e a orientação política da Sociedade,  cada vez mais em rota de colisão com o Estado Novo e a política colonial de Salazar.

A trajetória do Boletim passa por duas grandes fases, a da crítica velada (1931-1934) à repulsa ao salazarismo (1935-1939) (que são analisados no cap. II, da tese de doutoramento abaixo citada).

(...) No segundo momento (capítulo III), analisaremos o fenômeno do pan-nacionalismo (da Sociedade Luso-Africana e outras instituições e personagens do período) no quadro mais amplo dos pan-etnicismos, evidenciando as visões sobre o panlusitanismo/luso-brasilidade nas três primeiras décadas do século XX. 

Em seguida, perscrutaremos o panlusitanismo nos anos 30, sendo o Boletim o principal órgão de reprodução do ideário, seja através da sua visão do panlusitanismo como resposta a ascenção do imperialismo germânico e italiano, seja através da 'Cartilha Colonial', de Augusto Casimiro, a principal expressão da visão de mundo dos republicanos que publicam nesta. 

Em um terceiro momento (capítulo IV), trataremos do “republicanismo nostálgico” no Boletim a partir das distintas críticas ao modelo de gestão colonial do salazarismo (centralismo, trabalho forçado, arcaismo economico, etc.). 

Por fim, no capítulo V, analisaremos os “exotismos” construídos sobre o “outro” colonizado a partir da historiografia e dos estudos africanistas (etnologia e antropologia) publicados no Boletim." (... ) (Assunção, 2017, pág. 59).(#)

Há referências à Guiné, mas as estrelas do império (e as   que ocupam mais espaço no Boletim)  são, sem dúvida, Angola e Moçambique. Talvez valha a pena, numa próxima oportunidade, explorar essas referências, o que implica percorrer com atenção os 20 exemplares disponíveis. Destaque para já para o número especial do Boletim, dedicado à Exposição Colonial do Porto de 1934 (de que foi diretor Henrique Calvão).


Capa do nº especial dedicado à exposição colonial do Porto (1934). Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 9, abril-julho de 1934.
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(#) Vd. ASSUNÇÃO, Marcelo. F. M. - A sociedade luso-africana do Rio de Janeiro (1930-1939): uma vertente do colonialismo português em terras brasileiras. 2017. 324 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017. Disponível em formato pdf em: http://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/6960 

Resumo:

Nosso objetivo principal nessa tese é analisar o projeto colonial da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, tendo como fonte primordial de estudo os vinte volumes do seu Boletim (1931-1939), como também os livros, cartilhas e outras produções oriundas dos membros da Sociedade. 

Para realizar esse intento, num primeiro momento (capítulo I) analisamos as condições de emergência do “nacionalismo imperial” do qual o boletim é somente uma das expressões. 

Nos outros quatro capítulos, buscamos entender as diversas especificidades do Boletim. No capítulo II evidenciamos a trajetória da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro em suas duas grandes fases: da crítica velada ao salazarismo e a busca por uma grande “coalização panlusa” (1931-1934) até a repulsa ao Estado Novo dos últimos anos (1935-1939), apreendendo essas transformações a partir de diversas fontes, mas primordialmente através dos editoriais do Boletim. 

No III capítulo buscamos explorar os sentidos políticos do “panlusitanismo” no seio do contexto mais global dos “pan-etnicismos”, abordando também a partir do boletim e da obra “Cartilha Colonial”, de Augusto Casimiro” o discurso panlusitano. A frente, no capítulo IV, fizemos uma análise do projeto colonial dos gestores militares republicanos e sócio-correspondentes da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, dando ênfase as críticas que estes faziam às práticas coloniais do salazarismo e o espelhamento idealizado no “modelo Norton de Matos”. 

Por fim, no capítulo V, perscrutamos as relações entre a historiografia do colonialismo e os estudos africanistas com um ideário de “vocação imperial” tão presente no saber colonial hegemônico nos anos 30. 

Em suma, o exame destes discursos permitem visualizar no seio do Boletim, e das publicações da Sociedade, a particularidade do colonialismo republicano em meio à hegemonia política salazarista nos anos 30. Estes irão ser uma vanguarda do reformismo colonial que só ganha força nos anos 50. A derrota do seu projeto nos anos 30 é uma expressão de que em tempos de Estados Novos a retórica “democrática” (mesmo que restrita ao discurso) não tinha espaço. 

Palavras-chave: Colonialismo, Republicanismo, Salazarismo, Panlusitanismo, Relações Luso-Afro-Brasileiras, Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro.

 https://repositorio.bc.ufg.br/tedeserver/api/core/bitstreams/082dfd1d-ce90-4507-9e4f-cae7720dc11b/content (Com a devida vénia...)

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24869: (In)citações (260): Ainda os Esquecidos. Para o António Silva, Soldado Paraquedista morto em Angola em 1963 (Juvenal Amado)

Lobão da Beira, Tondela, 2017 > Funeral do Soldado Paraquedista António Silva

1. Em mensagem de 19 de Outubro de 2023, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), fala-nos dos (combatentes) Esquecidos, nós todos afinal, mortos ou vivos.


Ainda os Esquecidos

Para o António Silva, Soldado Paraquedista morto em Angola em 1963

Patriotismo é querermos o melhor para o nosso país.
Nacionalismo é querermos o país só para nós.

Os dois foram homenageados na Assembleia da República por diferentes razões a meu ver. Mereceram a homenagem?

Um era esquivo, não tinha travões na língua, discreto quanto à sua vida pessoal, rico dono de uma cadeia de supermercados, que se enchem quase todos os dias de gente que o enriqueceu e promete continuar a enriquecer os seus familiares nos anos mais próximos. Dizem que à custa de salários baixos e de o defender com a boca toda, era responsável pelo fecho de milhares de pequenas empresas, lojas, talhos, mercearias, retrosarias e até ao definhar de mercados tradicionais, onde os produtores vendiam os seus produtos directamente ao consumidor.

Digno de todas a honras, para além de entender que devia pagar o menos possível aos seus trabalhadores, também não estava de acordo com a tributação devida no seu país e passou a sede das suas empresas para a Holanda, onde paga menos. Era comendador pelos serviços prestados ao nosso país, aliás como muitos que o merecem, e outros tantos ou mais que o não merecem, como se veio a comprovar-se nos anos seguintes.

Quanto ao outro que vi actuar desde cedo como músico, era como dizem, um gajo porreiro, amigo do seu amigo, que integrado numa banda primeiramente punk e depois rock, que quer se goste ou não, marcou trinta e tal anos das nossas vidas, pois a sua música não nos atingiu a nós, atingiu os nossos filhos e também netos. Na verdade ele não explorou ninguém, não enriqueceu (quem é que enriquece pela música em Portugal?) mas levava milhares de apreciadores atrás dele para onde fosse, como eu fui testemunha disso. Quando ele estava no palco sabíamos que conhecia muita gente que ali estava e nós, tínhamos a sensação de pertencermos ao seu núcleo de amigos sem nunca termos estado a menos de trinta metros dele. Tenho pena que ele tenha morrido, do outro tenho uma dualidade entre o lamento e a embirração.

No dia que eram homenageados na AR, chegava a Portugal finalmente o soldado paraquedista António Silva morto em combate Angola 1963. Morreu por uma Pátria que já não existe.

Essa Pária alterou no seu conceito, já não tem guerra, modernizou-se, encheu-se autoestradas, dos tais supermercados, de temas musicais que não lhe diriam possivelmente nada, tem uma juventude que não sabe o que é ter guerra estar longe de casa sem telefone por vezes sem água e com uma alimentação que faria torcer o nariz a qualquer jovem frequentador de centros comerciais de hoje.

O soldado António Silva por lá esteve morto e enterrado 11 anos antes da viragem do seu país e, se voltou no dia 6 de Dezembro de 2017 a pisar solo pela Pátria, pela qual deu a vida, não foi o Estado que lhe prestou esse derradeiro e devido serviço.

No dia em que homenagearam dois, talvez, discutíveis portugueses na AR, esqueceram aquele que morreu pela Pátria, lamentavelmente não lhes mereceu uma só palavra, que era indiscutível.

Os esquecidos, continuam isso mesmo, esquecidos.

Feliz Natal e um Grande Ano para todos os camaradas.

Escrevi em 2017 mas como continua actual cá vai.
Juvenal Amado

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Foto: Nuno André Ferreira - Com a devida vénia ao Correio da Manhã
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24860: (In)citações (259): Depois da "mina A/P" que me atirou, em 29/10/2023, para um leito de hospital, com o fémur partido, estou de regresso à vida, à luta, a escrita, enquanto a a recuperação prossegue (José Saúde, Beja)

sábado, 21 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24777: Manuscrito(s) (Luís Graça) (239): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte VI: no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios" (Padre Manuel Vieira Aguiar, 1947)


Contracapa do livro de Padre Manuel Vieira de Aguiar - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp.




Uma das raras imagens do Zé do Telhado, de seu nome de batismo José Teixeira da Silva (c. 1816-1875), aqui com o seu irmão Joaquim Telhado, também ele bandoleiro, à sua direita. Fonte: Aguiar, 1947, op. cit., pág. 273. (Foto extraída do livro de Sousa Costa, " Grandes dramas judiciários: tribunais portuguees", Porto, O Primeiro de Janeiro, 1944)


1. O Zé do Telhado (ou melhor,  a sua memória popular) calhou-me... "em herança". Tendo casado em Candoz, a escassos quilómetros de Fandinhães (terra da minha sogra, Maria Ferreira), na serra de Montedeiras, e a 5 minutos de carro da Casa do Carrapatelo na margem direito do rio Douro (o mais célebre dos assaltos cometidos por aquele "capitão de bandoleiros", no dia 8 de janeiro de 1852), tinha que me interessar pelas "lendas e narrativas" que sobre esta personagem oitocentista se contavam, ainda nos anos 70 do séc. XX.


Andava há anos para ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890). Só agora tive tempo e pachorra para o fazer. (E também só há uns anos conheci a casa-museu do Camilo, em São Miguel de Seide, V. N. Famalicão)

E, atrás do Camilo, vieram outros autores, não muitos, dos que tèm escrito sobre o banditismo no séc. XIX, em geral, e o Zé do Telhado, em particular.

Também, por "herança", veio-me parar às mãos o livro cuja contracapa se reproduz acima, da autoria do padre Manuel Vieira de Aguiar, "Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses" (Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp). Está completo (falta-lhe a capa), mas em muito mau estado, muito manuseado, a precisar de ser restaurado e reencadernado.

O autor, Manuel Vieira de Aguiar, na altura era professor do ensino liceal, sendo irmão do padre Agostinho de Aguiar. ( Este foi pároco da freguesia de Paredes de Viadores, a que pertence Candoz, e também ele conterrâneo e condiscípulo do meu sogro, ao tempo da escola primária, e amigo da família Ferreira Carneiro, para cujos convívios costumava ser convidado: Já faleceu há já  uns largos anos; era natural de Mondim, uma lugar perto de Candoz, e a sua família foi um alforge de padres e freiras.)

O livro tem interesse documental, como monografia do concelho do Marco de Canaveses e as suas trinta e duas freguesias (na altura), incluindo Paredes de Viadores. Destaque também para as 75 gravuras (reproduçóes fotográficas), que ilustram o livro, e que são valiosas para o estudo etnográfico das gentes daquela terra do Vale de Tàmega, uma das tábuas do berço onde nasceu Portugal.

A I parte do livro  é dedicada à história dos concelhos, entretanto extintos em meados do séc. XIX, que deram origem ao atual concelho de Marco de Canaveses (Bem-Viver, Canaveses, Soalhães, Alpendurada, Santa Cruz de Riba Tàmega e Porto Carreiro) e ainda aos diversos coutos que existiam dentro do território do concelho, cinco privados (Alpendurada, Tabuado,Burgo de Entre-Ambos-os-Rios, Tuías, Vila Boa do Bispo) ou e 1 real (Vila Boa de Quires), Fala-se ainda de duas beetrias do Reino, Canaveses e Paços de Gaiolo (pp. 55-154).

Já agora, defina-se, muito sumariamente, esta terminologia, menos familiar ao leitor:

(i) beetria , segundo o dicionario, é uma  localidade medieval que gozava o direito  de eleger os seus senhores, um privilégio raro:
(ii) couto era "uma determinada zona de terra, limitada por autoridade real, com certos privilégios, isenções, justiça própria, pagando determninadas pensões aos senhorios diretos" (op, cit., pág. 117).

Havia os coutos privados (dos conventos e da nobreza) e os reais (estes também chamados "coutos de homiziados", ou sejam, de fugitivos à justiça: na prática, era um instrumento de "colonização interna", ficando situados  de preferência nas regiões fronteiriças; os criminosos encontravam ali protecçáo e guarida, com exceçáo para traidores, regecidas e hereges...); foram extintos em 1790.

A II parte do livro é dedicada à "história, demografia e corografia de cada uma das freguesias do a
tual concelho" (pp. 155-360),

E a III (e última) parte é sobre "o folclore em Marco de Canaveses" (pp.361-435): vida rural, com destaque para os trabalhos agrícolas (arranca do linho, espadeladas, malhas, vindimas, esfolhadas), folclore, romarias, serões, festas, bailados populares, superstições, janeiras e reis, carnaval, clamores e pregões, alminhas e cruzeiros, etc.

Na entrada sobre a freguesia de Penha Longa, o autor dedica 13 páginas (pp. 252-265) ao Zé do Telhado e o assalto ao Carrapatelo (passados 70 anos sobre a morte do assaltante e 85 sobre o assalto).

Socorre-se, no essencial, sobre fontes já nossas conhecidas, com destaque para o Camilo "Memórias do Cárcere), Eduardo Noronha ("Zé do Telhado"), Sousa Costa (" Grandes dramas judiciários"), Pinho Leal (" Portugal Antigo e Moderno"), e António Cabral ("Perfil de Camilo").

Antes de apresentar um resumo da vida do Zé Telhado, como militar e depois como bandoleiro, o autor descreve-o nestes termos:

"Alto, gordo, de agradãvel apresentação, génio indomável e fartas barbas, eis o temível capitão de bandidos, que, durante cerca de 10 anos, espalhou o terror do saque e do sangue em terras de Entre-Douro e Minho" (pãg. 252).

O tom é "hagiográfico": afinal trata-se de saber por que é que "os nobres e os ricos lhe davam guarida e proteção"... Já o povo tinha por ele "uma certa estima que, avolumada pela tradição, se transfornou, mais tarde, em admiração profunda" (sic) (pág, 252).

O autor resume o porquê em duas linhas: Porque se dizia que José do Telhado: 

(i) "cumpria sempre a sua palavra; 

(ii) "dívida contraída, na hora marcada se saldava"; 

e (iii) "distribuía pelos pobres o fruto das suas rapinas aos ricos"...

A sua vida "épica e aventurosa", resumida pelo autor (e que inclui o episódio da  da Guerra da Patuleia em que o José Teixeira da Silva conquista a medalha da "Torre e Espada") vai acabar em 1859, quando é preso... 

Vai acabar ou é apenas interrompida... Porque, na verdade, qual Fénix Renascida, há um Zé do Telhado II, em África, onde acaba por morrer, prematuramente,  em 1875, e do qual sabemos pouco, embora saibamos que a sua memória ainda hoje é lá recordada e respeitada... De facto, ao ser desterrado para a Angola, numa época em que ainda era escassa a presença portuguesa (uns poucos de milhares, na sua grande maioria desterrados), o Zé do Telhado torna-se um  dos seus seus primeiros povoadores e colonizadores.


2. Citemos então o autor, o padre Manuel Vieira de Aguiar, conterrâneo do meu sogro, José Carneiro (1911-1996), nascido portanto em Paredes de Viadores, Marco de Canaveses: 

(...) Por fim, cansado de desgostos, resolveu embarcar para o Brasil. A bordo já da barca Oliveira foi preso por iniciativa de Adriano José de Carvalho e Melo, ex-comissário da polícia do Porto [. Foi também Deputado da Nação e Governador Civil de Bragaça, nota de rodapé, pág. 260], e naquela data administrador do jovem, concelho do Marco de Canaveses, o qual soube soube do paradeiro do famoso facínora, por indicações de José Morgado, agora a ferros.

Conduzido à cadeia da Relação do Porto, ali respondeu por tentar fugir para o estrangeiro, sem a documentação precisa. É entregue depois ao Tribunal do Marco, onde corre o processo do crime de Carrapatelo, é é transferido da cadeia do Porto para a do Pisão, em Canaveses.

O seu companheiro de clausura, que também aguarda julgamento pelo crime de adultério com Ana Plácido, o insigne escritor Camilo Castelo Branco, atendendo à sua pobreza e amizade, conseguiu-lhe para defensor o seu próprio advogado, Dr. Marcelino de Matos, que gratuitamente lhe presta os seus serviços.

E em 25 de abril de 1861, realiza-se na casa da Quinta, freguesia de Tuias, um notável julgamento em que José do Telhado é condenado a degredo perpétuo e trabalhos públicos em África. Mais tarde, mediante recurso, foi a sentença reduzida pela Relação do Porto a simples degredo.

Na selva africana continua porém a realizar proezas: subjuga os pretos, funda prósperas roças, dirige negócios. No exílio, longe da terra natal e da família, a estrela cintilante, tão nimbada de luz que por vezes nuvens negras envolveram, de novo surgia na sua velhice alquebrada. E assim, lá longe. no olvídio de tantos que o temeram e respeitaram, se findou esse bravo, de sentimentos generosos, que foi grande mesmo no crime.

É assim o destino de alguns homens tatuados com o sinete do génio!....

José Teixeira da Silva tinha qualidades como várias vezes demonstrou, de aguerrido, fidelíssimo soldado. Se, do regresso das lutas partidárias, mãos amigas o tivessem auxiliado, teria sido um homem de bem, honestíssimo. Se nas sendas tortuosas, nubladas da existência, alguém orientasse a sua juventude, tão inclinada à epopeia, ao maravilhoso, teria sido um chefe invencível, talvez mais dominador que Napoleão Bonaparte, mais temido que Júlio César, mais intrépido que Alexandre Magno.

Assim, abandonado às suas próprias forças, sem o amparo carinhoso da avara família humana, foi o que foi − um misto formidável de glória e infâmia, de grandeza e baixeza, de epopeias e tragédias. (pp. 260-262).


Não deixa de ser surpreendente este retrato, feito por um homem, sacerdote católico, que escreve em meados dos anos 40, no auge do Estado Novo. Já agora, não é de ignorar esta dedicatória do livro:  "ao Instituto para a Alta Cultura, Secretariado Nacional de Informação, Câmara Municiapl de Marco de Canavese e Junta da Província do Douro Litoral, que se dignaram patrocinar esta obra, a gratidáo reconhecida do autor"... 

Em 1945, recorde-se, tinha chegado aos écrãs das salas de cinema em Portugal, o filme de longa metragem, "Zé do Telhado", realizado por Armando de Miranda, com exteriores filmados perto de Candoz, na Serra de Montedeiras, e protagonizado pelo romàntico e popular ator Virgílio Teixeira, no papel principal. Um verdadeiro "western à portuguesa", disponível no You Tube, em versão integral, aqui (com a duração de cerca 86 minutos).

Um Zé do Telhado, vítima das "circunstâncias histórias" (as lutas fratricidas dos portugueses, na época do liberalismo), e de algum modo "reabilitado" pela História, também convinha à propaganda de um Estado Novo, "antidemoliberal": no desterro em Angola, Zé do Telhado "continua (...) a realizar proezas", isto é, "subjuga os pretos (sic), funda prósperas roças, dirige negócios" (a expressão é de Manuel de Aguiar).

(Continua)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos: LG)

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24753: Notas de leitura (1624): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
Descritas as revoltas em Angola desde a rebelião da baixa de Cassange até ao caos sangrento após a insurreição de 15 de março, o historiador Valentim Alexandre dá-nos um retrato das movimentações políticas em Angola, tanto das organizações dos colonos como dos movimentos de emancipação. A segunda parte da obra atende às pressões externas, ao novo quadro da Assembleia Geral da ONU, onde a administração norte-americana se mostrava inequivocamente adversa ao nosso colonialismo, o regime procura apoios externos, revelara-se-ão poucos, a despeito do comércio do armamento, parceiros fixe só serão encontrados na África do domínio branco, Salazar tem a consciência de que não pode bater as palmas ao apartheid. E entramos num vórtice das tensões entre militares, o historiador dá-nos uma narrativa bem impressiva de como foi desencadeado o golpe de Botelho Moniz e como o regime se defendeu. Na conclusão, fala-se detalhadamente da explosão nacionalista em África e como ela a prazo foi bem-sucedida, era um processo histórico inexorável.

Um abraço do
Mário



O início da guerra em Angola, os três primeiros meses (3):
Uma surpreendente obra de referência sobre a génese da convulsão anticolonial


Mário Beja Santos

Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril) por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, marca o regresso de Valentim Alexandre à história colonial, de que possuí extenso e brilhante currículo, ainda há escassos anos nos ofereceu outra obra de referência, Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), também publicado em Temas e Debates/Círculo de Leitores, que pode ser encarada como a primeira peça de algo que se afigura vir a ganhar corpo como a História da Guerra Colonial (1961-1975), empreendimento de grande dimensão, que até hoje nenhum investigador nem nenhuma equipa se acometeu, tal a grandeza da tarefa e o distanciamento que impõe.

Para concluir esta curta viagem em torno de uma obra que se tornou indispensável para o estudo dos primórdios da Guerra Colonial, passa-se em revista as movimentações políticas em Angola e as repercussões destas sublevações angolanas na vida política do regime, irão culminar com a Abrilada, um golpe palaciano falhado, a que se seguirá a declaração política de Salazar de se ir rapidamente e em força combater os focos subversivos. O autor recorda que as revoltas de 4 de fevereiro e 15 de março fizeram fervilhar iniciativas e movimentações entre a população branca, que se sentia ameaçada e não via nas instâncias oficiais a capacidade para dominar a situação, e elenca um conjunto de nomes de intervenientes, recorda que os relatórios da PIDE sublinhavam o clima de desconfiança e suspeição que se vivia em Angola. As estruturas da sociedade angolana mostravam-se paralisadas, numa enorme confusão, e a oposição angolana ao Estado Novo também mostrava incapacidade, tal como as autoridades, para combater a revolta, naquele exato período predominavam as milícias e ninguém as contestava – enfim, oposicionistas e nacionalistas brancos nada mais sabiam fazer do que atividades desgarradas. Terá sido a única exceção a recém-fundada Frente Unida Angolana “pela corrente nacionalista africana que se tinha afirmado politicamente nos últimos anos da década de 50 no distrito de Benguela”. Em 5 de abril, a Frente publicou o manifesto “À população de Angola”, apresentava-se como um movimento cívico, sem distinção de raças, tendo em vista a construção de uma sociedade multirracial. Houve igualmente uma reação das associações comerciais, apelando a Lisboa meios militares para fazer frente à gravidade do momento, sugeria mesmo o estudo imediato da transferência de todo o governo da nação para Angola. O contra-almirante Lopes Alves chega a Luanda a 24 de março, é um homem com pouca saúde, fala diariamente com Adriano Moreira, então subsecretário da administração ultramarina, não esconde a sua inquietação com a situação que se vive no Norte de Angola, pede tropas, armas e polícia. O seu ponto de vista sobre a génese da sublevação diverge da dos militares, estes diziam que todos os acontecimentos resultavam dos abusos nas relações de trabalho, especialmente no problema do algodão, Lopes Alves atribui mais importância à agitação lançada do exterior. E inopinadamente regressa a Lisboa a 2 de abril. O texto da exposição de associações económicas chegará ao conhecimento de Salazar. Este continua sem reagir.

Quanto às organizações políticas africanas, temos as declarações do MPLA e da UPA. Viriato da Cruz, figura preponderante do MPLA, revela que o partido se tinha até então abstido de qualquer ato de violência, mas esta linha de pensamento irá evoluir rapidamente com os atos subversivos. Mário Pinto de Andrade, então presidente do MPLA, revela numa conferência em Casablanca, em fins de abril, que o partido decidira passar à ação direta, estavam ao lado do povo em armas. O autor escreve: “Com a sua direção em Conacri, mal implantado no Congo ex-Belga, dizimado pela repressão policial em Luanda e áreas limítrofes, o MPLA tinha de facto grandes dificuldades em afirmar a sua ação no curso da rebelião desencadeada pela UPA no Norte de Angola. Em compensação, procurava ganhar apoios no exterior”. E dá-nos igualmente o quadro de ação da UPA, e de outras organizações de base étnica bacongo, o MDIA e a NGWIZAKO, com programas nada coincidentes, até porque a NGWIZAKO vinha lutando pela eleição do Rei do Congo. E há a questão do enclave de Cabinda, tinha à frente uma organização clandestina que se apresentava publicamente como um movimento de libertação do enclave.

O autor trata as pressões externas no palco da ONU, onde a nova administração de Kennedy em nada se revelava favorável à política do Estado Novo, montou-se em Portugal uma campanha antiamericana, o regime procurava apoios, encontrava poucos e de fidelidade duvidosa, intervinha mesmo no continente africano, só recebera atenção na África Austral, Salazar não tinha ilusões de que não se podia apresentar como apoiante do apartheid de Pretória; temos o quadro interno, naturalmente complexo, mas o regime não se sente ameaçado. É nesta atmosfera que surge a Abrilada, uma última tentativa nascida na cúpula militar do regime para destituir o ditador e mudar o curso dos acontecimentos.

As chefias militares cedo mostraram que não queriam só debater os programas de armamento e da resposta mais conveniente às sublevações angolanas, queriam debater as questões de política geral. O próprio ministro do Exército assinalou três questões críticas de índole política geral: a atmosfera internacional pouco favorável a Portugal, a existência da censura, criadora de mal-estar, a existência de pessoas ligadas à política do governo simultaneamente ligadas a empresas que afetavam os interesses económicos da Nação. Trata-se de um descontentamento em surdina que apanha transversalmente a cúspide militar, formam-se inevitavelmente grupos, um é polarizado pelo antigo presidente Craveiro Lopes, outro por Santos Costa, um indefetível de Salazar, as fações vão entrar em confronto. O general Botelho Moniz, um ministro que começara a sua carreira apoiando sem tergiversações Salazar revela-se crítico, pretende manter boas relações com os Estados Unidos, sucedem-se os textos, e para 27 de março marca-se o início da fase decisiva da Abrilada, ensaia-se que Américo Thomaz tome partido e demita Salazar, o autor esmiúça com rigor o golpe e o contragolpe, inevitavelmente Salazar ganha e os contestatários são afastados.

Em jeito de conclusão, o historiador recapitula os acontecimentos que levaram às diferentes sublevações, recorda o passado da história de Angola sempre marcado pela violência, também a génese das independências africanas, a ideia de defesa do Império como imperativo nacional, a fissura entre as Forças Armadas quanto à resposta adequada quanto ao despoletar dos nacionalismos africanos e lembra-nos como todas as insurreições em África irão marcar uma nova época de um continente cada vez mais liberto do colonialismo do século XIX.

De leitura obrigatória.


Holden Roberto
General Botelho Moniz
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24740: Notas de leitura (1623): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24748: Manuscrito(s) (Luís Graça ) (238): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte V: um país de brandos costumes: quatro mil degredados em Angola, nos finais do séc. XIX, três em cada quatro dos colonos brancos


Porto : Museu Nacional Soares dos Reis > "O desterrado"0¥(¥, escultura, em mármore de Carrrara, datada de 1877.  Uma obra-prima da escultura portuguesa naturalista do séc. XIX. Autoria; Soares dos Reis (1847-1889). Inspirado no extenso e pungente poema de Alexandre Herculano, que conheceu bem o exílio:  "Tristezas do Desterrado" (1852):  Fonte: Imagem do domínio público,  adaptada. Cortesia da Wikimedia Commons. 



Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, I e II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 53 e 54")



Camilo Castelo Branco.
Cortesia de Wikipedia


1. Às voltas com a figura, intrigante e contraditória, de Zé do Telhado (1816-1875) (*), tinha que ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890), obra que eu, confesso, não conhecia.

Trata-se, de resto, de um autor prolífero, compulsivo, que, para além de uma história de vida, pessoal, amorosa, familiar,  turbulenta, truculenta, infeliz, que acabou em tragédia (o suicídio, aos 65 anos), nos deixou mais de duas  centenas e meia de títulos, de quase todos os géneros, embora de qualidade literária desigual. (Declaração de interesse: não é um dos meus escritores favoritos, mas têm sido as "Memórias do Cârcere", nos últimos tempos,  uma leitura de cabeceira; a par disso, conheço meia dúzia de títulos do autor.)

É um prosador portentoso, genial, um mestre da língua, com uma enorme capacidade de efabulação, e com grandes recursos estilísticos, mesmo se algumas das suas criações são dramalhões de ""faca e alguidar, ao gosto do público burguês oitocentista, que devorava os "folhetins" camilianos  (publicados semanalmente na imprensa), com a mesma avidez com que os portugueses no pós-25 de Abril consumiam as telenovelas brasileiras.

Deixou-nos, muitas vezes a traço grosso, um retrato de uma época conturbada socialmente em que Portugal estava longe de ser o tal país de brandos costumes que, no nosso tempo de meninos e moços, nos tentaram impingir na escola e na catequese.

O livro, "Memórias do Cárecere", foi escrito em 40 dias (cerca de 500 pp.
), depois dele sair da prisão, como explica no prefácio da 2ª ediçáo (1862). É constituído por mais de uma trintena de "historietas" (o termo é dele), incluindo um esboço biográfico relativo à figura do Zé do Telhado (op. cit, vol, II, cap XXVI, pp. 83-107).

E é seguramente ele, Camilo,  quem, através do seu advogado do Porto,  Marcelino de Matos, o salva da condenação à morte (pena que ainda não tinha sido abolida...), a ele,  Zé do Telhado, e  depois, com o livro, o transforma  numa herói romântico, com um destino trágico ( tal como  a  Brasileira de Prazins e tantas outras figuras da tragicomédia camiliana, sem esquecer o Simão Botelho e a Teresa Albuquerque, protagonistas da novela, com muitos traços autobiográficos, "Amor de Perdição", escrito na prisão, em 15 dias, em 1861).

Na realidade, o Zé do Telhado (das "Memórias do Cárcere")  é também uma criatura camiliana, romântica e trágica como o  seu criador...

No ano e picos em que esteve na cadeia do Tribunal da Relação do Porto, entre outubro de 1860 e novembro de 1861 (se não erro), pelo crime de adultério, o escritor conheceu dezenas e dezenas de homens (e também mulheres), a maior parte condenados, à espera de partir para Lisboa para depois aí embarcarem para o desterro em África; homicidas, parricidas, 
infanticídas, violadores, adúlteras, ladrões, bandidos, sicários, loucos, cleptómanos, moedeiros falsos, etc.

Um pouco ao acaso, ao sabor da leitura, selecionei uns tantos excertos do livro (I volume),  com algumas destas figuras, representantes da subumanidade que apodrecia nas enxovias da cadeia do Porto. Escolhi excertos menos "sombrios", de preferência com descrições  e cenas galhofeiras,   grotescos ou picarescas, fazendo  jus sobretudo ao sarcasmo com que o autor tratava os "maus fitas" de então ( a "corja", como ele lhes chamava).

Na época já se discutia vivamente a urgência da reforma do sistema prisional e o livro do Camilo, ao denunciar as miseráveis condições de carceragem em que viviam então os reclusos (que tinham de pagar "cama, mesa e roupa lavada"!), também dá um importante contributo nesse sentido. Aires Gouveia era então o grande paladino dessa reforma, cuja efectivação há de chegar ao séc. XX, com a criação de um moderno sistema penitenciário. (**)

2. Excertos de "Memórias do Cárcere" (I Volume, 1862):

(i) José Bernardino Tavares, lavrador de Santa Maria da Feira, que roubou a Felícia ao abade, acabando por ser preso por ajustes de contas com o rival (pp. 170/178):

(…) Tinha o padre no presbitério uma espadaúda a moça, que era o feitiço de seu amo, e dos rapazes. Rentavam-lhe todos, e ela a todos voltava as costas de esquiva, e de soberba pelas peias em que trazia o coração do abade (pág. 170).

(…) José Bernardino tirou-se de seus cuidados e fez dois dedos de namoro à sécia. (pág. 170).

(…) As carícias do abade como que lhe cheiravam a simoneta, os colóquios ao lar com ele, nas noites grandes, faziam-na tosquenejar, bocejar e dormir sobre a roca (pág. 171).

(…) Aquela casta de mulheres, quando adregam de amar, criam sangue novo, espanejam-se, enramalham-se, são como leoas na selva, quando ruído do leão lhes sacode os músculos (pág. 171).

(…) – Traz o leite, Felícia!, berra o pastor daquele tinhosa ovelha, que àquela hora estava já tresmalhada e sisada no aprisco do senhor José Bernardino (pág. 171).

(…) O abade amava Felícia quando todos as potências da sua imoralidade, da sua compleição, da sua estupidez (pág. 172).

(…) Uma noite pegaram lhe fogo à casa, e por um triz que a labareda não chorrisca os torresmos do padre (pág. 174).

(…) Nenhum outro preso [como o José Bernardino] encontrei ali tão ansioso da liberdade, e ao mesmo tempo tão regalado de amiudadas visitas de valentes e atoicinhadas mocetonas de sua terra (pág. 175).

(…) Com a morte do soberano [o rei Dom Pedro V (1837-1851), que visitou duas vezes o cárcere do Tribunal da Relação do Porto, quando o Camilo lá estava, em 1860/61 ] morreram as esperanças do preso [de obter perdão ou comutação da pena]. Desvanecidas estavam elas já para mim. A palavra dos reis era sagrada quando os reis governavam; agora apenas reinavam. Um amanuense de secretaria basta a entupir os canais por onde aflui a misericórdia do rei ao povo (pág, 177).

(ii) Outra história de um abade, minhoto, mas este homicida (matou a tiro o irmão da amante), e que conseguira fugir da cadeia de Braga, antes de voltar a ser apanhado e metido no cárcere do Tribunal da Relação do Porto (pp. 221/227)

(…) O padre Manuel [dos Arcos] teria cerca de trinta e oito anos, os olhos espelhavam melhor a alma, que eu sinceramente imaginava má (pág, 221).

(...) Estava ao padre condenado a calceta perpétua. Não sei de pena mais dura nem mais aviltante (pág. 221).

(…) Padre Manuel tinha uns amores com uma mocetona do concelho dos Arcos; e a mocetona tinha um irmão honrado, contrário a tais amores. Prevaleceu o coração do padre sobre as razões do irmão, e o escândalo sobre os rumores da opinião pública.

O padre era valente e temido; e a moça, afoitada por ele, afrontava o desprezo, e ostentava despejadamente a sua concubinagem (pág. 222).

(…) Estava o padre Manuel nas cadeias de Braga e entendeu que estava mal (pág. 222).

(…) Tomou por caminhos travessos que o levavam aos Arcos, e, porventura, surpreendeu a moça fiando e humedecendo a estriga com lágrimas, senão é que a encontrou contemplativa e sentada no rebordo da pia dos cevados (pp. 223/224).

(…) A moça foi à salgadeira, escolheu os melhores salpicões, respigou da horta os mais tenros renovos, e fez a ceia como as mulheres laboriosas de Homero, e ele comeu à tripa forra, como os heróis do mesmo poeta, que conhecia melhor o seu mundo e o nosso, que nós outros romancistas, falsificadores do coração humano (pág. 224).

(iii) Sobre o parricida, que foi desterrado para África (pp. 180/187):

(…) O hospital da misericórdia [do Porto] não queria receber doidos, porque não tinha enfermaria especial. Ninguém o dirá do estabelecimento de caridade mais dotado e rico do país. (pág, 180).

(…) Eu tenho de coração humano ideias sempre em divórcio com as ideias comuns. Quero acreditar que há remorsos e saudades naquele homem, que foi filho, que teve mãe, que orou com ela, que a viu morta, que a chorou talvez nos braços do pai, que foi tudo o que são os bons filhos, antes de serem parricidas. (pág. 187).

(iv) Os fabricantes e passadores de moeda falsa também passavam pela cadeia da relação do Porto, era um delito frequente na época. Um deles foi desterrado para Cabo Verde, deixando no Porto mulher e três filhos (pp. 117/129)

(…) Três deles esta hora estão a caminho da África, e não mais para eles aquele ardente céu lhes dará monção de voltarem à pátria. (pág. 117)

(…) [Um deles] o senhor Máximo que, ao tempo da sua prisão, tinha um lá, tinha no largo do Carmo um botequim. (pãg. 117)

(…) Na prisão trabalhava ele incansavelmente, desde o arraiar da manhã até alta noite na manufatura de caixinhas para as boticas, e fazia trezentas por dia. O lucro de cada tarefa diária orçava por quatrocentos e oitenta réis.

(...) Quando foi preso, tinha ele em começos de formatura na escola médico-cirúrgica um filho; outro em latinidade, e projetava educar o terceiro também na carreira das letras. Sua mulher tinha nascido, senhora, e recatada se mantivera sempre como exemplar mãe e esposa (pág. 118).

(...) Vou, como iria para a sepultura, deixando protegida mulher e filhos (...). De ora avante, já se me dá de morrer aqui ou no degredo (pág. 119).


(v) Zé do Telhado, salvo da pena capital, condenado a degredo perpétuo com trabalhos públicos  (pp.  83/107)

(…) Marcelino de Matos defendeu gratuitamente o seu cliente. Querer dar-lhe a liberdade era um paradoxo,  querer salvá-lo da pena capital era um arrojo. E salvou-o! 

Não foi o sofisma que embaíu os jurados;  foi a sincera e comovida eloquência que os pungiu a lágrimas. Muitas deviam ser necessárias para lavar tanta nódoa de sangue acusador! (pág. 105).

(…) Marcelino de Matos venceu muito; fez que José do Telhado fosse julgado como réu de uma única morte, sem premeditação, e como caluniado na maioria dos roubos arguidos. Fez muito ali, onde estavam os testemunhos, os roubados, os feridos, a multidão que o vira,  ou só vira pelos olhos do seu terror!

José Teixeira foi condenado a degredo perpétuo com trabalhos públicos.

A meio caminho, quando voltava ao antecipado inferno da reclusão incomunicável, encontrou sua mulher que lhe saiu a despedir-se… para sempre (pág. 106).

(…) Um dia, quando eu já era livre,  foi-lhe intimada imprevista ordem de embarcar para Lisboa. José Teixeira entroixou a sua pequenina bagagem, desceu a entrar na escolta, estendeu os pulsos às cordas, e pediu a um preso circunstante um vintém de esmola para cigarros. E recebeu a esmola mais alegre do que tinha recebido, em Valpaços, uma condecoração  [a "Torre e Espada"] por ter salvo a vida ao Bayard português [o  general Sá da Bandeira]   (pág. 107).

(...) Os jornais têm contado façanhas do José Teixeira do Telhado  contra a negraria [em Angola] . O comércio de África deve lhe muito, e espera muito mais daquele braço de ferro, e sede de sangue. Os pretos é que pagam os agravos que os brancos lhe fizeram cá. Se José Teixeira for esperto, pode morrer, pelo menos, rei daqueles sítios. (Nota da segunda edição). (Nota de rodapé, pag. 107). (#)

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Fonte: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, I Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 53).

(#) Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966 (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 54).

(Seleção, revisão, fixação de texto e notas, LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24745: Manuscrito(s) (Luís Graça) (237): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte IV: 10 anos de impunidade

(**) Vd. Diário de Notícias, 1 de julho de 2017 : "A pena de morte estava abolida na consciência social desde 1840". Entrevista do director do Museu do Aljube, por Ana Sousa Dias.

 [O entrevistado é Luís Farinha. Estranhamente não é mencionado o seu nome, nesta peça do DN. Recorde.se que ele, com o nosso Renato Monteiro, é autor do livro "Fotobiografia da Guerra Colonial" (Publicações Dom Quixote, 1990; Círculo de Leitores, 1998)]

(...) Qual foi o percurso até à abolição?

Os abolicionistas começaram por tentar que nos códigos e nas leis houvesse menos motivos para a pena de morte, é uma estratégia clara desde a Viradeira, desde Pascoal de Melo e Freire, a quem D. Maria I manda fazer um Código Penal novo. As razões previstas na lei vinham desde as Ordenações Filipinas do século XVII, era uma longa listagem. A outra estratégia era tentar que o rei comutasse a pena, o que aconteceu constantemente com a D. Maria I, D. João VI , D. Maria II e D. Pedro V - com os reis da Guerra Civil, D. Pedro IV e D. Miguel, não, evidentemente.

Comutação em prisão perpétua?

Pode ser perpétua, trabalhos forçados ou degredo. Normalmente é degredo... as colónias nesse sentido deram sempre muito jeito. Um dos argumentos dos finais do século XIX contra a abolição era o facto de se mandar pessoas para as colónias aos milhares. Entre 1870 e 1896 há quatro mil degredados, são três quartos da população branca de Angola. (...)

(...) Os bem-intencionados queriam construir penitenciárias em todos os distritos, mas não havia dinheiro. E os que eram contra a abolição da pena de morte diziam: "Se não conseguem construir é melhor matar. Para que estão a criar ilusões? As pessoas vão para o degredo durante anos e anos - há lá alguma penitenciária, algum trabalho que regenere?" Claro que não havia. Os desgraçados viviam miseravelmente de trabalhos forçados, não só para o Estado mas também para particulares que faziam deles escravos. É isso que diz Ramalho Ortigão: estão a criar uma situação falsa, não há meios para regenerar as pessoas, não há cadeias preparadas. (...)