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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Guiné 6/74 - P25217: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte V: Angola 'versus' Guiné


Gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011)


1. Há documentos que devem merecer a nossa atenção e ser divulgados neste blogue de antigos combatentes da Guiné... É o caso do depoimento do gen Bettencourt Rodrigues (Funchal, 1918 - Lisboa, 2011), o último governador e com-chefe da Guiné, antes do 25 de Abril, prestado em 1997, no âmbito dos Estudos Gerais da Arrábida. 

O sítio original na Net foi descontinuado. Só há pouco tempo o conseguimos recuperar através do Arquivo.pt.  Devido à sua entensão,  será reproduzido,  com negritos nossos (e itálicos), em duas parte (com a devida vénia, ao ICS - Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa). 

A primeira parte é dedicada a Angola, onde o general Bettencourt Rodrigues foi o "herói da região militar leste" (1971-1973). A segunda, à Guiné.

Os entrevistadores, já falecidos, Manuel Lucena, cientista político (1938-2015)  e Luís Salgado de Matos, sociólogo (1946-2021), foram dois brilhantes investigadores do ICS - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Este documento também está disponível no Arquivo de História Social do ICS. Faz parte do espólio de Manuel Lucena.

Estudos Gerais da Arrábida > 
A DESCOLONIZAÇÃO PORTUGUESA

Painel dedicado à Guiné (29 de Julho de 1997) 


Manuel de Lucena

Antes da eclosão da guerra Angola - e baseando-me no depoimento que concedeu a José Freire Antunes  (2) - sei que estagiou em unidades norte-americanas e esteve integrado na Divisão SHAPE. Quer falar-nos um pouco dessa experiência? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em 1952, depois de ter feito o curso de Estado Maior no Instituto de Altos Estudos Militares, o então Chefe de Estado Maior, general Barros Rodrigues, destacou-me para tirar o curso de Comando e de Estado Maior nos EUA (Kansas). Seguidamente, estagiei na 1ª Divisão de Infantaria norte-americana instalada no campo de Graffenworhr, na Alemanha Ocidental. 

Passado algum tempo, constituiu-se a Divisão SHAPE, que actuou em numerosos exercícios e manobras, dentro e fora do país, Nessa unidade, fui adjunto da 3* Repartição do Quartel General durante o período de manobras de 1953 e anos seguintes. 

Quando regressei a Portugal, estive durante algum tempo colocado em Santa Margarida, onde se começaram a aplicar os modelos e técnicas americanas ao Exército português: foi em Santa Margarida que nasceu o moderno Exército portuguesa. 

Foi talvez em 1958 que começámos a ter a percepção de que algo iria acontecer em África, fundamentalmente devido ao exemplo da guerra da Argélia e às primeiras independências na África negra. 

Por essa  altura tomaram-se certas providências tendo em vista a adaptação do Exército ao tipo de inimigo que poderia ter de vir a enfrentar. 

Enviaram-se alguns oficiais para a Argélia (Hernes de Oliveira, Almiro Canelhas, Franco Pinheiro, entre outros), a fim de se familiarizarem com os métodos de luta anti-guerrilha; mudaram-se os planos de instrução; no Instituto de Altos Estudos Militares, na Academia Militar e nas Escolas Práticas começou leccionar-se a teoria da «guerra subversiva»; em Lamego, foi criado o Centro de Instrução de Operações Especiais, especialmente vocacionado para a luta antissubversiva 

Em 1960 - o ano da independência do Congo belga -, o coronel Almeida Fernandes, então ministro do Exército, mandou uma missão do curso de Estado-Maior a Angola. Fiz parte dessa missão - era então professor no curso Estado Maior - tendo levado comigo os alunos da parte complementar do curso, Percorremos toda a fronteira Norte de Angola em duas station wagons sem que tivéssemos dado conta de algo de anormal. Angola parecia estar perfeitamente pacificada. 

Quando a grande bronca rebenta, - os massacres da UPA de 14 de Março -, eu estava lá em missão, juntamente com os generais Beleza Ferraz e Câmara, respectivamente CEMGFA e CEME. Em Buco-Zau (Cabinda), onde nos encontrávamos, chamaram-nos de urgência para a Luanda. Depois daqueles dois responsáveis terem regressado a Lisboa, na companhia do ministro do Ultramar, Vasco Lopes Alves, ainda lá fiquei uns dias. 

Manuel de Lucena: 

Qual era o propósito dessa última missão? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Tratava-se de uma simples missão de rotina, tanto quanto me recordo. Simplesmente, calhou estarmos lá aquando da eclosão da guerrilha. Depois dessa ocasião, voltei repetidas vezes a Angola, uma delas com o então major Pedro Cardoso, adjunto do Secretário-Geral da Defesa Nacional, por ocasião do cerco a Carmona. 

Em Novembro de 1961 teve lugar um acontecimento dramático: o desastre do Chitado, onde pereceu o general Silva Freire, então comandante da região militar de Angola. Pouco tempo depois, o general Holbeche Fino, designado para suceder a Silva Freire, telefona-me dizendo que gostaria de me levar para Angola como seu chefe de gabinete. 

À minha maneira, respondi-lhe que tinha dois patrões; o general Gomes de Araújo e o general Câmara Pina; se ele se entendesse com eles, muito bem, iria para Angola, Comigo foi sempre assim: basta apresentarem-me a guia de marcha e eu vou para qualquer lado. 

Luís Salgado de Matos: 

Quando em Março de 1961 rebenta a «bernarda» em Angola, o dr. Salazar não quis falar com as pessoas que lá estavam?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Pela minha parte, só falei com o Costa Gomes e o Almeida Fernandes. 

Luís Salgado de Matos: 

Não é no regresso daquela visita que os generais Beleza Ferraz e Câmara Pina classificam os incidentes em Angola como um simples caso de polícia e depois são muito criticados? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, admitia-se que o general Beleza Ferraz talvez não tivesse medido bem a gravidade da situação; e daí essas declarações menos felizes. 

Luís Salgado de Matos: 

Ainda em relação a esse ano de 1961, como viu o golpe do general Botelho Moniz? 

General Bettencourt Rodrigues: 

O general Botelho Moniz era um homem muito complicado, muito fechado sobre si mesmo. Quem não segue as regras no Exército, acaba sempre por «dar gato»

Ainda hoje não sei bem o que foi a «Abrilada». Que eles queriam derrubar o dr. Salazar e o almirante Américo Tomás é um facto - e o Craveiro Lopes até já tinha a mala feita para se instalar em Belém. Agora o que sucederia depois do golpe, isso permaneceu sempre um mistério para mim. 

Manuel de Lucena: 

Como é que o sr. general sentiu o ambiente das Forças Armadas em Angola, em 1961? Nos escalões que contavam, é evidente. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Apesar de uma certa surpresa perante a proporção que as coisas assumiram em Março de 1961, já havia um certo planeamento por parte dos responsáveis militares. O general Silva Freire, um estratega brilhante, tinha alinhavado algumas ideias para enfrentar um possível foco de subversão. 

Infelizmente, no desastre do Chitado faleceram também dois chefes de Repartição do Quartel General. Escaparam, valha-nos isso, o hoje coronel Moreira Rebelo, da 1ª Repartição, e o hoje general Salazar Braga, da 2ª Repartição. 

Em finais de 1961 tínhamos para resolver: a reconstituição Quartel General, as comunicações, a logística e a montagem do sistema de quadrícula. Ou seja, praticamente o essencial. 

O sistema de quadrícula, de inspiração francesa, surgiu-nos como o mais adequado, até porque os massacres tinham eclodido em regiões onde não existiam guarnições militares, deixando os fazendeiros num grande isolamento. 

Luís Salgado de Matos: 

O general Silva Freire era um oficial da escola francesa? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, mas era sem dúvida o nosso melhor general, um dos mais brilhantes estrategas da sua geração. Ele teve a inteligência de perceber que era através da quadrícula que poderíamos contactar com as populações, trazê-las para o nosso lado. 

Repare: a guerra dita subversiva é um conflito assimétrico; uma disputa entre dois adversários desiguais em termos de organização, recursos e implantação no terreno. 

O sistema da quadrícula adaptou-sese bem às características da guerra subversiva. Era a quadrícula que integrava o médico que fornecia os cuidados de saúde básicos, o cabo que dava a instrução primária aos indígenas, o soldado que conhecia bem os musseques, a sanzala, enfim, a tropa que ia fazendo o  «trabalhinho». 

Quando se queria bater com força, então chamavam-se as forças de intervenção. Foram ambas indispensáveis e complementares uma da outra. 

Luís Salgado de Matos: 

Diz-se que a quadrícula deixou de combater em 1965. 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não tenho essa ideia. Sinceramente. Quando voltei a Angola em 1971 (a minha missão com o general Holbeche Fino terminou em 1964), para chefiar a Zona Militar Leste, combatia-se com determinação. Tanto assim que ainda nesse ano voltou a ser possível circular à vontade nessa região.

 Manuel de Lucena: 

Entre 1961 e 1964, a ideia era cooperar e pacificar, por um lado, e bater quando necessário, por outro? 

General Bettencourt Rodrigues: 

A ideia do apaziguamento era primordial. Era a razão de ser da nossa guerra. Nunca se perseguiu uma estratégia de aniquilamento do inimigo. O nosso lema era «a conquista pelas mentes». 

Luís Salgado de Matos: 

Voltando um pouco atrás. O general Beleza Ferraz tinha ou não razão quando dizia que a situação em Angola se pacificava num ápice? Porque em 1962 as coisas estavam aparentemente controladas... 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não é tanto assim. Aquela gente era determinada, batia-se bem, tinha armamento, apoios internacionais. 

Manuel de Lucena: 

A guerrilha era então vista como um inimigo a longo prazo?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Era impossível liquidá-la de uma só vez. Repare: qual é a finalidade da guerra subversiva? Substituir uma autoridade por outra, naquele caso, portugueses por angolanos. 

Nesse aspecto, a subversão falhou: foi o 25 de Abril que nos derrubou. 

Como a finalidade era aquela, não podia haver soluções de compromisso. Como é que se faz um cessar-fogo no âmbito de uma guerra subversiva? Nunca ninguém mo soube explicar até hoje. 

Utilizando uma imagem conhecida: uma mulher está grávida ou não; não pode estar apenas um bocadinho grávida…

Manuel de Lucena: 

O que o sr. general pretende dizer é que na guerra subversiva o compromisso é sempre o prelúdio da derrota de um dos lados. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Eu vou mais longe: qualquer compromisso equivale sempre a uma derrota incondicional

À guerrilha nunca interessam partilhas territoriais, soluções intermédias. É a vitória total ou nada. 

Manuel de Lucena: 

E em relação ao compromisso, quando é que se percebe que um dos lados se está a precipitar no abismo? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Veja esta hipótese: o general Spínola chegava a um entendimento com o Amílcar Cabral e conseguia chamá-lo para o Governo, oferecendo-lhe o cargo de secretário-geral ou coisa que o valha. Neste caso, quem vencia era o general Spínola porque o Governo, a autoridade, mantinha-se portuguesa. 

Luís Salgado de Matos: 

A esse respeito tenho uma espécie de teoria sentimental sobre a descolonização portuguesa. Ganhámos a guerra militarmente - com a possível excepção Guiné - mas o pais decidiu que se retirava, que não valia a pena continuar em África. 

Manuel de Lucena: 

Depois do trabalho com o general Holbeche Fino, entre 1961 e 1964, e até voltar a Angola, por onde andou o sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Estive três anos em Londres como adido militar e depois fui ministro do Exército, já com o professor Marcelo Caetano. Em 1971 fui então nomeado Comandante da Zona Militar Leste.

 Manuel de Lucena: 

Como surgiu essa sua última nomeação? 

General Bettencourt Rodrigues: Creio que foi o general Costa Gomes, meu grande amigo, que me propôs. 

Luís Salgado de Matos: 

Com quem tinha grandes afinidades tácticas, segundo julgo saber… 

General Bettencourt Rodrigues: 

Direi que partilhávamos de uma certa unidade de vistas. Em 1970-71 a situação em Angola apresentava sinais de deterioração. A subversão alastrou do Norte até ao Leste, à Lunda, ao Mochico e, o que era verdadeiramente preocupante, começara a ameaçar Nova Lisboa, o centro nevrálgico de Angola. 

Nessa altura, o general Costa Gomes decidiu remodelar o dispositivo e criar a Zona Militar Leste, que abrangia os distritos do Bié, Lunda, Mochico e Cuando Cubango. Essa sua iniciativa coincidiu com uma viagem do general Sá Viana Rebelo, ministro da Defesa a Angola. 

Em conversa, o general Costa Gomes sugeriu o meu nome para a chefia do novo comando, tendo obtido a anuência do ministro. 

Manuel de Lucena: 

Entretanto, falou também com o professor Marcelo Caetano? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Exactamente. De resto, eu sempre estive muito à vontade com o professor Marcelo. Tinha sido seu ministro, conhecíamo-nos bem... Ele até dizia que eu usava uma linguagem muito pitoresca... 

Luís Salgado de Matos: 

O professor Marcelo alguma vez se confessou consigo sobre os contados secretos com o PAIGC? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Não acredite nisso... Eu não duvido que o Villas-Boas tenha ido a Londres, mas foi só ver o que é que os tipos queriam, mais nada. Havia um toque do Foreign Office e não se podia dizer que não. 

Manuel de Lucena: 

Quando falou com o professor Marcelo antes de ir para o Leste,  havia mais alguma coisa na manga, ou era apenas uma conversa normal entre o Presidente do Conselho e um antigo ministro que ia desempenhar uma importante missão militar? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Prefiro essa segunda hipótese. Para ser sincero, a conversa foi até relativamente inócua. Discutimos a delicadeza da situação militar, particularmente dramática à volta de Nova Lisboa; falámos das acções que se poderiam desenvolver junto das populações. 

Este último desiderato era, não me canso de sublinhá-lo, muito importante para nós. Nisso, o dr. Salazar e o prof. Marcelo não eram muito diferentes. 

Nas três frentes em que estivemos envolvidos, não arrasámos nada, não recorremos a bombardeamentos maciços, não seguimos uma política de terra queimada

É claro que, numa situação de conflito, há sempre uns tipos desequilibrados que podem praticar abusos. 

Luís Salgado de Matos: 

Na Argélia o uso da tortura em uma directiva explícita do Estado-Maior. O comando de pára-quedistas de Argel estava especificamente treinado para aterrorizar. 

Manuel de Lucena: 

Bem, a esse respeito há até quem fale de uma excessiva brandura por parte da tropa portuguesa. Quer comentar,  sr. general? 

General Bettencourt Rodrigues: 

É claro que quando era preciso bater, nós batíamos. No entanto, é sempre muito difícil dosear essas coisas... 

Mas fomos sempre formados para não cometer excessos. 

Manuel de Lucena: 

Sobre a sua acção no Leste, pode dizer-nos alguma coisa sobre os seus acordos com Jonas Savimbi? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Relativamente a esse assunto, entendo que não devo falar, uma vez que a pessoa em questão ainda está viva e politicamente activa. 

No entanto, esclareço que após o 25 de Abril nunca tive nada a ver nem com a UNITA, nem com o MPLA. 

Manuel de Lucena: 

O brigadeiro Passos Ramos, que nos prestou dois depoimentos em 1995 e 1996, levantou um pouco a ponta do véu sobre esses acordos. Disse-nos, nomeadamente, que houve um entendimento entre o Exército português e a UNITA com vista à formação de um santuário, que, naturalmente, funcionava contra o MPLA. 

Disse-nos também que a UNITA não era um movimento fantoche: estava bem implantada, cobrava impostos aos madeireiros, controlava áreas muito vastas - em suma, dava-nos trabalho. 

General Bettencourt Rodrigues: 

A única coisa que posso dizer é que o general Costa Gomes estava dentro desse entendimento, tal como o professor Marcelo Caetano. O que não equivale a atribuir-lhes a paternidade da ideia. 

Luís Salgado de Matos: 

O fim do 'modus vivendi' com Savimbi ficou a dever-se à inabilidade do seu sucessor? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Em certa medida. A guerra subversiva é uma guerra - como direi? - suja, pouco ortodoxa. 

Se sigo com demasiada intransigência os meus princípios - e essa foi a opção meu sucessor - não estou a jogar pelas regras do jogo. 

Luís Salgado de Matos: 

Mas essa inflexão face à UNITA terá tido o assentimento do ministro, não?

 General Bettencourt Rodrigues: 

Não sei. Mas note que o Leste de Angola é um sítio remoto. Naquele conflito gozávamos de uma grande margem de autonomia. 

Manuel de Lucena: 

Quando estive exilado, falei uma vez com um homem do MPLA, um mestiço, Castro Lopo, que se confessou muito impressionado com as dificuldades que o movimento então experimentava na Frente Leste. Dificuldades sobretudo ao nível dos abastecimentos - vinha tudo de muito longe, da Zâmbia, por exemplo, forçando-os a longas caminhadas…

 General Bettencourt Rodrigues: 

Precisamente. Por outro lado, eram essas as vantagens dos terroristas na Guiné. Mas o Governo Zâmbia não regateava apoios à subversão. À semelhança, aliás, de alguns lobbys norte-americanos, como o American Comitte for Africa

Quem tocava no Caminho de Ferro de Benguela era a UNITA, o que não convinha nada à Zâmbia, um país de hinterland com acesso ao mar bloqueado. Isso dava-nos um grande trunfo sobre o Kaunda. É por isso que chamei à guerra subversiva uma guerra suja: cada um dos lados combatia com manhas e artimanhas. 

Manuel de Lucena: 

Nesse sentido, o acordo com a UNITA revestía-se de um carácter eminentemente prático; quanto muito implicaria uma integração de quadros dirigentes daquele movimento na administração portuguesa. É isso? 

General Bettencourt Rodrigues: 

Sim, é mais ou menos isso. 

Luís Salgado de Matos: 

Passando agora para a Guiné (...)

(Continua em próximo poste)

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Notas dos entrevistadores:

1 José Manuel Bettencourt Rodrigues (n. 1918): Oficial de Infantaria. Ministro do Exército (1968-70). Comandante da Zona Militar Leste de Angola (1971-73). Sucedeu a Spínola como governador da Guiné (1973-74). 

(2) José Freire Antunes, A Guerra de África, 1° vo1. Lisboa; Círculo de Leitores, 1996. 

(Revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, para efeitos de publicação neste blogue: LG)

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Nota do editor:

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25163: Notas de leitura (1666): "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o Terrorismo no Ultramar", por Martinho Simões; Empresa Nacional de Publicidade, 1966 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Já aqui estavam referenciados alguns apóstolos da hagiografia jornalística, caso de José Manuel Pintasilgo, Horácio Caio, Dutra Faria, Amândio César. Inesperadamente, surgiu-me este trabalho de Martinho Simões, era inevitável que o trouxesse ao vosso conhecimento. Andou muito de quartel em quartel, graças à DO. Nunca se fala em bombardeamentos, nos nossos mortos e feridos, não há descrição de um aquartelamento, as conversas ficam circunscritas aos oficiais, dá como inteiramente fidedignos os comentários de quem lhe faz os briefings; não há quartéis do PAIGC dentro do território, são sempre bandoleiros que batem e fogem para o Senegal ou República da Guiné; Amílcar Cabral é um fantoche do comunismo, um traidor e um renegado, tem sofrido tanta deceção e repúdio das populações que é cada vez mais difícil recrutar gente para o terrorismo. É mais uma relíquia para juntar às outras. E a sua proposta para a existência de correspondentes de guerra não foi levada a sério.

Um abraço do
Mário



Martinho Simões, enviado especial do DN na Guiné, 1965

Mário Beja Santos

Sob a forma de livro, com o título "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o Terrorismo no Ultramar", por Martinho Simões, Empresa Nacional de Publicidade, 1966, temos agora acesso às reportagens do enviado especial do DN a Moçambique, Angola e Guiné, em 1965, todas elas publicadas no jornal Diário da Avenida da Liberdade.

 Naturalmente que é uma obra apologética, combatemos terroristas, bandidos que têm bases perto das fronteiras das nossas colónias, felizmente que eles têm pouquíssimo apoio das populações que preferem a soberania portuguesa. Desconhecia inteiramente esta obra, faz todo o sentido aqui se deixar do seu conteúdo as ideias principais. Tinham dito a Martinho Simões (e ele reconhece que não passava de boato malévolo) que as populações guineenses viviam apavoradas; que os nossos soldados não se atreviam a sair dos quartéis; que os terroristas se não eram os senhores da guerra, tomavam, contudo, iniciativas que traziam a marca da confiança que nasce da superioridade; e que uma parte da província caíra em poder do inimigo. Ora a verdade desfaz o boato e a verdade disseram-lhe oficiais com quem contatou logo à chegada, mesmo o general Arnaldo Schultz. Não teve quaisquer restrições no seu trabalho, e apresenta o leitor a Guiné, a superfície, as etnias, a quase total lealdade a Portugal. Seja como for, a luta era dura e cruel, estes comunistas às ordens de Moscovo procuravam metodicamente a subversão.

Alude à História da Guiné, não deixa de se assombrar com a mistura de povos, refere o portuguesismo dos comerciantes da Guiné depois de nos dizer que os nativos eram os donos de todo o território da Guiné. Não sei onde é que ele foi buscar a convicção de que Barbosas & Comandita foi a primeira firma a hastear a bandeira nacional em território guineense, em 1920 já António da Silva Gouveia tinha empresa; e refere as obras sociais de grande significado de Barbosas & Comandita, da Casa Gouveia e da Sociedade Comercial Ultramarina; Martinho Simões esteve no Ilhéu do Rei e pôde apreciar o centro industrial da Casa Gouveia. Tece louvores ao trabalho do Movimento Nacional Feminino na Guiné, à sua importante atividade de assistência à família, lembranças aos militares, o seu serviço de contencioso, a sua intensa atividade em apoio das subvenções e pensões.

Vai de DO até perto da fronteira, nunca ficaremos a saber qual e onde; acompanhado pelo Tenente-coronel Rebelo de Andrade percorreu toda a linha da fronteira, desde a ponta Norte ao extremo Sul – o Cantanhez e a ilha do Como incluídos. 

“Posso acrescentar que passei algumas horas num posto, a meia dúzia de metros de terras da República da Guiné. Ao longe, os pobres palhaços de Amílcar Cabral (não resisto a nomear, desde já, o traidor) mantêm uma expetativa ansiosa, hesitantes entre as ordens dos seus chefes e o amor à pele que, mau grado e promessas discursatas, constituem um bem que lhes custa perder.” 

E avalia o potencial inimigo: 

“Os bandoleiros são cobardes. Vêm pela calada da noite, lançam os engenhos de morte que os comunistas lhes oferecem em abundância e fogem para os seus acampamentos centralizados nos países vizinhos”.

Visita o Comando da Defesa Marítima da Guiné, visita pela mão do Comodoro Ferrer Caeiro, reunião elucidativa, ouviu relatórios e explicações, viu mapas, examinou provas concretas e fez perguntas, recebeu respostas objetivas. E visitou as oficinas navais, em franco desenvolvimento. Esteve na base aérea, pôde avaliar o trabalho extraordinário na recolha de feridos, no transporte e ligação de militares e civis, em reconhecimentos e em missões táticas. Estranhamente, nem uma palavra sobre os bombardeamentos. Visitou o Batalhão da Intendência na Fortaleza de São José da Amura, viu o seu trabalho ciclópico para que os alimentos e iguarias chegassem a todos os pontos da Guiné para os festejos do Natal. Ficou surpreendido com o funcionamento do hospital militar, dá conta das camas, das consultas, das intervenções cirúrgicas. Apreciou o programa radiofónico das Forças Armadas, emocionou-se a valer quando viu um artigo do dr. Augusto de Castro, então diretor do DN, lido aos microfones da emissora provincial, em português, em crioulo e fula. Encontrou-se em Bula com o Tenente-coronel Henrique Calado, glória do hipismo nacional.

E veio a história do chefe dos bandoleiros da Guiné, o traidor e ingrato Amílcar Lopes Cabral, conhecido na subversão como Abel Djassi. Quanto lhe pagará o movimento comunista. Faz uma curta digressão sobre a FLING e a UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa) e como o traidor se sobrepôs a todos. Pior do que tudo, Abel Djassi naturalizara-se cidadão da República da Guiné e trabalhara para o Ministério da Agricultura local. Como castigo, o renegado, agora, só dificilmente podia fazer o recompletamento dos seus grupos desfalcados, fez-se amigo dos vietcongs, visita Havana. E ficamos a saber que em Paris há um outro libertador, Fradique Castro, que promete a independência de Cabo Verde e condena o PAIGC. De novo em avião, segue para Cabedu, dá como inteiramente demonstrado que este posto, situado entre o Cantanhez e a Ilha de Como, rechaça as investidas dos bandoleiros. 

“Estive em Cabedu e em Beli. Nos dois postos, os militares não se confinam aos estreitos limites dos quartéis, não se escondem atrás do arame farpado, não vivem amedrontados. De Cabedu e de Beli as patrulhas continuam a sair regularmente, batendo os caminhos e os campos limítrofes, restabelecendo a ordem que a subversão perdurou. O inimigo só de longe em longe aparece, em rápidas e cobardes incursões, para logo regressar às bases de onde veio – na República da Guiné.”

Visita Bolama, sente que a cidade perdeu animação e fulgor. Increpa-se contra o que ele chama o terrorismo branco – os derrotistas, os fabricantes de mentiras, aqueles que, no doce viver da paz, se esquecem dos que estão em guerra, os que entendem ser preferível a renúncia à defesa do património nacional. Lança críticas também ao jornalismo, não percebeu o silêncio da imprensa moçambicana com a guerra feroz que se trava no Norte. Mostra-se favorável ao aparecimento de correspondentes de guerra. 

“Só eles sabem e podem desenvolver e esclarecer as indicações forçosamente sintéticas dos comunicados oficiais, que, aliás, também não são em número suficiente.” 

Agradece a colaboração recebida nas três frentes. E comenta: 

“Apercebi-me do autêntico significado de terrorismo, das implicações de uma luta de guerrilhas, em que o inimigo se dilui e foge ao contato com as forças da ordem, em que os bandidos recusam, sistematicamente, o combate em campo aberto, contentando-se com surtidas eventuais.
Torna-se inevitável, portanto, uma tenaz perseguição, que lhes crie o desassossego, que os desmoralize, que lhes roube a possibilidade de qualquer iniciativa. É uma guerra sem quartel, fluida, por isso mesmo mais demorada e difícil.”

Jornalista Martinho Simões, imagens dos arquivos da RTP
Em Pequim, a preparação do primeiro grupo de revolucionários, vemos de pé, entre outros, Osvaldo Vieira, Constantino Teixeira e Francisco Mendes e de joelhos Nino Vieira, Saturnino da Costa e Rui Djassi
O centro de Bissau em 1966
General Arnaldo Schulz a dirigir a mensagem de Natal de 1966, arquivos da RTP
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25153: Notas de leitura (1665): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (11) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25075: (In)citações (263): Falemos dos Combatentes Portugueses e da forma como sempre foram tratados (Carlos Pinheiro)


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2024, trazendo até nós este seu artigo onde fala dos Combatentes de Portugal e da forma como sempre foram tratados pelo poder político:


Falemos dos Combatentes Portugueses e da forma como sempre foram tratados

Sem pretender fazer um tratado sobre os Combatentes, teremos que começar pelo CEP Corpo Expedicionário Português que mobilizou, mal e apressadamente, cerca de 100.000 soldados.
Portugal enviou dezenas de milhar de militares para Angola e principalmente para Moçambique que a Alemanha queria conquistar.

É certo que Portugal, como aliado da Inglaterra tinha apresado dezenas de navios alemães nos nossos portos e essa terá sido uma das razões para que a Alemanha atacasse Moçambique de forma feroz. Morreram na guerra em Moçambique dezenas de milhar de militares portugueses, a maior parte dor doença na medida em que não iam preparados para aqueles climas e os serviços de saúde eram exíguos e quanto a armamento nem é bom falarmos.

Entretanto, em 1917 foram também para França outros milhares de Soldados portugueses, também sem condições, sem preparação e sem armamento conveniente e foram mesmo carne para os canhões dos alemães enquanto viviam, ou sobreviviam nas trincheiras.

Porque a miséria era muita em todos os aspectos, em 1921 foi criada a Liga dos Combatentes chamada da 1.ª Grande Guerra, a fim de auxiliar os sobreviventes, especialmente os feridos e doentes, as viúvas e os órfãos dada a miséria que grassava no país.

Como a 1.ª Grande Guerra nunca ficou bem resolvida, em 1939 rebentou a 2.ª que durou até 1945, mas nessa não tomámos parte, apesar do país ter sofrido fome e miséria a rodos enquanto outros se encheram de dinheiro à custa do trabalho escravo na pesquisa do dito volfrâmio que era vendido a peso de ouro aos dois beligerantes.

Depois, em 1961 rebentaram as guerras de África que duraram até 1974, na Guiné, em Angola e em Moçambique já depois da Índia se ter tornado independente da Inglaterra em 1947 e ter começado a invadir os enclaves de Dradá e Nagar Aveli em 1954 no chamado Estado da Índia Portuguesa e em 18 de Dezembro de 1961 ter invadido por terra, mar e ar os enclaves de Goa, Damão e Diu e tornados presos todos os militares portugueses sobreviventes, porque ainda houve alguns mortos, apesar das nossas forças em nada se pudessem comparar com as Forças Indianas.

As Nossas tropas foram presas e seguiram para campos de concentração depois do Governador Vassalo e Silva não ter respeitado a Ordem de Lisboa para que resistíssemos até ao último homem.

O regresso a Portugal desses militares aconteceria em Maio de 1962, com uma ponte aérea de Goa para Carachi, no Paquistão. Daí, os militares foram transportados em navios até Lisboa.
À chegada, foram chamados de traidores. Oito oficiais, incluindo o governador-geral, foram demitidos como era a política da época, sem mais comentários.

Isto é um pequeno resumo, muito resumido, do que as nossas forças armadas ali passaram até serem repatriadas como acima se refere.
Mas nessa altura já estavam em marcha as três Guerras de África, Guiné, Angola e Moçambique, mas também tínhamos tropas em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e até em Macau e Timor, com as dificuldades inimagináveis, em territórios com climas tórridos e escaldantes, sem estradas, sem pontes, sem pistas de aviação, sem quartéis, sem nada.

Foram os nossos soldados, que para além de combaterem o inimigo, também foram construindo algumas estradas, inventando algumas pontes e algumas pistas de aviação, e construindo alguns barracões para servirem de quartéis, outros aproveitando antigos celeiros que também passaram a servir de quartéis e normalmente viviam cercados de arame farpado, muitas vezes cheios de minas e armadilhas, para que se evitassem incursões indesejáveis.
Muitos viveram em abrigos subterrâneos cobertos por troncos imensos de árvores, tempos infinitos debaixo do chão como foi o caso da CCAÇ 1790 que viveu nessas condições em Madina do Boé até que um dia houve ordem para abandonarem o local e depois deu-se a tragédia da jangada que se virou e onde morreram largas dezenas de soldados.

O material de transportes, pelo menos nos primeiros anos, eram as velhas GMC e os Jipões da 2.ª Grande Guerra. Era a guerra.

A Liga dos Combatentes criada, foi organizada em 1921 e tem vários serviços de apoio aos Combatentes mas vive com orçamentos insignificantes mas mesmo assim mantém dois Lares para Combatentes idosos, um em Estremoz e outro no Porto, certamente com ajudas locais e agora, recentemente, abriu-se-lhe uma oportunidade de criar uma nova unidade no centro do País, mais concretamente no Entroncamento, fruto da oferta da Câmara Municipal do Entroncamento dum terreno para a construção de um Centro de Dia, de uma Creche, de um Lar para Idosos e de uma Unidade de Cuidados Continuados.

Como se pode imaginar, uma obra de vulto que os Combatentes bem merecem e bem precisam.

Claro que a Liga não tem meios para tão grande como útil obra, e ter-se-á candidatado a Fundos da UE, parece que ao PARES, mas exigiram-lhe um projecto da obra, o que é natural. Porém, esse projecto custará cerca de 150.000 euros e parece não haver dinheiro para o projecto até porque não há garantia que o financiamento fosse garantido.
Aliás a Liga, na sua Revista de Dezembro de 2022, no Editorial do Presidente General Chito Rodrigues, denuncia claramente esta situação que põe em risco a construção de uma unidade polivalente para os Combatentes na sua fase final da vida terrena.
Mas não se conhecem respostas ou comentários do poder instituído, o que é lamentável, para quem deu o melhor da sua juventude ao serviço de Portugal.

É assim que os Combatentes são tratados. Aliás já estão habituados a serem bem tratados com a esmola de 70 ou 100 Euros anuais que normalmente recebem em Outubro, sujeita a impostos.
E está tudo bem e ninguém diz nada.
Não temos dinheiro para ajudar os nossos que precisam, mas mesmo assim vamos ajudando outros lá longe, que também precisam, é certo, mas para os nossos não há nada.

É triste, mas é o que temos.

Carlos Pinheiro

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25069: (In)citações (262): "A Rainha" (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25071: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (7): etnomedicina na região de Libolo e elogio da cidade de Luanda, com cerca de 20 mil habitantes no final da I República





Legenda: "Como se curam as pneumonias na região de Libol" 


Libol ou Libolo,  hoje  município da província do Cuanza Sul, que tem a sua sede na cidade e comuna do Calulo( ou Kalulo): nesta região de Libolo  existe a  "pedra escrita" que representa um símbolo da resistância, em 1917, à penetração da colonização portuguesa, e que ficou conhecida como a "revolta de Libolo".

Em relação a estes aspetos da etnomedicina (ou medicina popular),  angolana de há 100 anos atrás, atrevemo-nos a acrescentar (não sendo nós médicos) que, e pelo que a imagem sugere, se tratava já de uma forma muito empírica de ventosaterapia (usada em medicinas tradicionais como a chinesa, por exemplo): a utilização de "copos de vácuo" (neste caso, recipientes cónicos em barro fresco, parece-nos, ou talvez chifres de vaca) que ajudavam a aumentar a circulação sanguínea (LG)...


Capa da "Gazetas das Colónias, Ano II, nº 40, Lisboa, 25 deoutubro de 1926. Director: Veloso de Castro; editor: Joaquim Araújo; preço: série de 12 números: 20$00. Cortesia de Hemeroteca Digital de Lsoa  Câmara Municipal de Lisboa

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1.  Para os nossos "africanistas", como o nosso "colón" António Rosinha, mas também o Patrício Ribeiro, e outros leitores, aconselha-se a leitura neste número (o penúltimo da "Gazeta das Colónias", que irá encerrar com o nº 41, de 25 de novembro de 1926, já em plena Ditadura Militar, instaurada com o golpe militar de 28 de maio de 1926), de um artigo sobre Luanda, da autoria do maj inf  e africanista Veloso de Castro, que era o diretor da publicação, 


Fotografia panorâmica de Luanda, de há 100 anos: Legenda: "Loanda: panorama da cidade baixa, que é a parte comercial, e vista da bahia". Imagem da Secção Fotográfica do Exército, coleção de Veloso de Castro.  (Gazeta das Colónias, ano II, nº 40, Lisboa, 25 deoutubro de 1926, pp. 14.15

Veloso de  Castro, neste artigo sobre "As nossas gravuras" (sic), faz o elogio da localização e da benignidade do clima da cidade de Luanda (escrevia-se então "Loanda", capital da "Província de Angola", considerada como "a melhor fundação da colonização europeia na costa ocidental do continente Africano"(sic), formando com Lourenço Marques (na costa oriental) e Capetown (na ponta do sul) "a base triangular da colonização africana para baixo do equador".

Este e outros militares que atingiram o auge da sua carreira na República, eram defensores indefetíveis do império colonial, e dedicaram o melhor da sua vida à causa do Portugal ultramarino. 

Recorde-se que a cidade de Luanda foi fundada a 25 de Janeiro de 1576 pelo fidalgo e explorador português Paulo Dias de Novais, sob o nome de "São Paulo da Assunção de Loanda". (Sobre a história de Luanda, ver a entrada da Wikipedia.)

Segundo Veloso de Castro,  a cidade tinha então , no final da I República, cerca de 20 mil habitantes, e conhecia uma fase de expansão e modernização. Em próximo poste iremos publicar excertos do artigo.

Lê-se no sítio do Arquivo Histórico-Militar (AHM) que o coronel José Veloso de Castro "prestou serviço como militar durante cerca de quatro décadas em África, sobretudo em Angola, terminando a sua carreira como Major de Infantaria em 1924."

"Durante a sua passagem por Angola dedicou-se não só às operações militares, como também à fotografia, deixando-nos um valioso legado fotográfico onde são retratadas não só a fauna e a flora angolanas, como também a sociedade, cultura e elementos geográficos desse mesmo país. É ainda autor de livros técnicos militares e, também, de história militar do Ultramar."

A sua coleção fotográfica (1904-1914), doada ao AHM, é constituída por "1 álbum com 2355 positivos fotográficos e 7 caixas de negativos em vidro".
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24978: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (6): Moçambique: monumento aos heróis de Magul (8 de setembro de 1895)... Guiné: o rio Grande a que aportaram as caravelas portuguesas em 1446 não era o Casamança mas o Geba: nele foi observado o fenómeno do macaréu

Vd, primeiro poste da série > 15 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24958: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (1): Os "angolares", indígenas de São Tomé

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25048: O segredo de...(40): Patrício Ribeiro, 76 anos: Angola, Quifangondo, 1975: uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo


Patrício Ribeiro, ex-grumete fuzileiro, Angola, 1969/72


1. Afinal, todos temos pequenos/grande segredos da tropa, da guerra e da Guiné (e de outros lugares do planeta) que em vida ainda não partilhámos, ou só contámos a alguma ou outra pessoa das nossas relações mais íntimas: o pai, a esposa, o filho mais velho, o amigo do peito, o camarada de armas que ficou nosso amigo para sempre... Ou às vezes nem isso... 

Há coisas que decidimos não contar à família nem aos amigos do peito... Há coisas que nem às paredes se confessa, como diz a cohecida letra de fado. São coisas "muito nossas" que até preferimos, nalguns casos, levar connosco para o caixão... Todos temos esse direito. 

Outras há que, com o passar dos anos, achamos que podem entrar "no domínio público", sem consrangimento, sem mágoa, sem ferir ninguém... Pode até ser um forma de fazer o luto (em caso de perda de alguém ou de alguma coisa muito preciosa para nós)..

Já aqui publicámos, no blogue, cerca de quatro de dezenas de postes na série "O segredo de...". Em 20 anos, dá uma média de 2 por ano. Mas o "confessionário" continua de portas abertas... 

Já aqui o dissemos, a propósito de segredos partilhados por (e segundo a ordem cronológica, com alguns a partilharme mas do que um segredo):

  • Mário Dias, 
  • Santos Oliveira, 
  • Luís Faria (1948-2103),
  • Virgínio Briote, 
  • Amílcar Ventura, 
  • Joaquim Luís Mendes Gomes, 
  • António Medina,
  • Ovídio Moreira,
  • António Carvalho,
  • Sílvio Fagundes Abrantes,
  • Amadu Djaló (1940-2015),
  • Antóno Graça de Abreu,
  • Augusto Silva Santos,
  • Ricardo Almeida,
  • Fernando Gouveia,
  • Vasco Pires (1948-2016),
  • Cláudio Brito,
  • Ribeiro Agostinho,
  • Mário Gaspar,
  • Domingos Gonçalves,
  • João Crisóstomo,
  • Victor Garcia,
  • António Ramalho
  • Manuel Oliveira Pereira,
  • Alcídio Marinho (1940-1921),
  • João (Candeias da) Silva (1950-2022)
  • Dionísio Cunha, 
  • José Ferraz de Carvalho, 
  • Jorge Araújo,
  • Demburri Seidi/Cherno Baldé, 
  • António Branquinho (1947-2023)

Seria uma pena que estes e outros camaradas levassem  para a cova os pequenos/grandes segredos contaram no nosso "cofessionário"... São histórias fabulosas que humanizam a guerra, que engrandecem os seres humanos que as protagonizam, e que nos tocam, fundo... 

Claro que algunas são como abrur a caixinha de Pandora... (Foi o caso, por exemplo, do Amílcar Ventura que teve  comentários... agrestes).

Este, que hoje trazemos a público, já foi dito em comentário ao poste P25035 (*). Mas merece ser recuperado e publicado, na montra grande do nosso blogue, nesta série...

Sobre o Patrício Ribeiro, convém lembrar:  nascido em Águeda, em 1947, cresceu em Angola, em Nova Lisboa (hoje Huambo), onde casou, viveu e trabalhou; ali fez a tropa como fuzileiro (1969/72). 

Ficámos a saber que veio para Portugal na véspera da independência; mas deu-se mal com a sua condição de "retornado": "africanista", decidiu ir viver e trabalhar, em 1984, na Guiné-Bissau; empresário, fundou uma empresa ligada à energia; agora, aos  76 anos está cá e lá, dedicando-se ao neto e à sua agricultura em Águeda mas também dando uma mãozinha ao filho que lhe sucedeu nos negócios... Aqui, em Águeda, sente-me mais confortável para falar do seu passado, como foi o caso há dias (*).

É autor da série "Bom dia desde Bissau", é um histórico do nosso blogue, para onde entrou formalmente em 2/1/2006: é nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau; mais de 130 referências no blogue..

 
O segredo de...(39): Patrício Ribeiro, 76 anos: Angola, Quifangondo, 1975: uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo (**)

Assisti e ouvi perto a artilharia durante muitos dias, da batalha do Quifangondo.

Ia trabalhar todos os dias a poucos quilómetros do Cacuaco.

Todos os dias a caminho do trabalho, passava junto de diversos guerrilheiros mortos, que durante a noite ali eram abatidos e recolhidos, durante o dia, pela tropa Portuguesa para a morgue, que eu visitava quase diariamente, a fim de ver quem chegava, pois poderia ser um amigo.

Havia ex-tropa portuguesa de ambos os lados da batalha, alguns vieram mais tarde para Portugal, onde constituíram família.

Nos últimos dias do fim do mês de outubro de 1975, passavam por mim os carros blindados com cubanos para a linha da frente, que saíam dos navios às escondidas, ou não, da tropa portuguesa. A saída era pela linha do comboio, do porto de Luanda.

Até que no dia 30 de outubro de 1975, resolvi não morrer naquela estrada e naquela guerra, já que por vezes disparavam para todos os lados, até para o meu carro, quando diariamente lá passava e tinha que mostrar um cartão de filiado em qualquer movimento, o que eu não queria.

Esta foi uma das "minhas guerras" a que assisti ao vivo.




Angola > Luanda > Cacuaco > Quifangondo  (o Kifangondo) 

"Esta obra é de autoria do museu nacional de história Marco Histórico do Quifangondo, fotografada por Abraão Fernando Figueira, 01:02, 5 September 2015, numa exposição escolar realizada pela escola Flor viva. Mostra os heróis que lutaram para libertação nacional de Angola." Fonte (e legenda): Wikimedia Commons (imagem editada, com a devida vénia, pelo Blogue Luís Greaça & Camaradas da Guiné...)

(...) No local da batalha, uma colina com vista para o rio Bengo, foi construído o Memorial da Batalha de Quifangondo, como um tributo a todos aqueles que participaram na luta de libertação nacional. O memorial foi projectado pelo escultor Rui de Matos e inaugurado em 2004 pelo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos" (...) (Fonte: Wikipedia > Quifangondo)

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quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25035: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (14): servindo duas pátrias, Portugal e Angola...



Mapa de Angola. Adaptado: posição relatiuva de Luanda e Uige e 
das províncias de Cuanza Sul e Cuando-.Cubango. Cortesia de Wikipedia


Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13):  servindo duas pátrias, Portugal e Angola...

por Luís Graça (*)



Luanda, julho de 2013. Levantas-te às cinco e meia da manhã. É dia ou quase dia. Às seis em ponto,  o motorista de ambulâncias do hospital  já está pronto para te levar ao aeroporto, de regresso a Lisboa. É o teu motorista habitual, quando aqui vens, em serviço... É o teu motorista das partidas. Porque há um outro, o das chegadas.

Já o conheces há uns anos... Pertence ao ministério da saúde, destacado agora num dos hospitais da capital. E costumas trazer-lhe uma garrafa de vinho tinto português, comprada 
no "freeshop" do aeroporto de Lisboa.  Sabes que ele aprecia. Fez a tropa e a guerra no "tempo dos portugueses".

O teu motorista "caluanda" (não o queres identificar, nem a ele nem ao hospital onde trabalha, já que não lhe pediste autorização expressa para contar a sua história de vida)  "estava de férias", mas levantou-se prontamente para te conduzir, a tempo e horas, até ao aeroporto de Luanda. Tens a gentileza de não lhe perguntar o que é que um motorista de ambulâncias  faz, em Luanda,  quando está de "férias"...


Há um outro motorista, mais jovem, mas mora "longe", a norte de Luanda, a 20 km, em Viana (onde nunca fostes, apenas conheces os arredores, a sul, o Mussulo e a foz do Quanza). Sair de casa a essa hora é arriscado, devido à insegurança nos musseques. E os transportes públicos  são maus e morosos. Mesmo assim, no hospital, há gente (incluindo médicos) que sai de casa às 4h da manhã para vir trabalhar!... A vida é dura para os luandenses, os "caluandas",  que precisam de trabalhar. É dura, para quem tem que estudar, formar-se, especializar-se como os médicos... "Angola tinha  26 médicos (!)), no dia da independência",  disse-te um deles, o vigésimo  sexto... (que acreditava que o seu país tinha futuro, "tendo a maior parte ficado do lado do MPLA").

Esse outro motorista, mais jovem, que costuma ir buscar-te ao aeroporto, à noite, não é tão fiável: um dia, ficou à tua espera, devia estar cansado, a morrer de sono (e se calhar de fome),  adormeceu na viatura,  o avião atrasou-se... 

Enfim, deixou-te completamente "pendurado", sem transporte nem telemóvel: foi uma pequena aventura, chegar, à "guest house" onde costumas ficar alojado,  às 11 h da noite, com um jovem "taxista" de ocasião, de chinelos,  t-shirt e calções esfarrapados, com viatura sem portas, completamente "descaracterizada" e "canibalizada", sem matricula,  com o tabliê esventrado...  

Àquela hora da noite não descortinaste outra alternativa (ou não tiveste a lucidez de a procurar),  depois de respirares fundo e manteres o sangue frio, recusando-te a entrar em pânico...

Foi, seguramente, a viagem de "táxi" mais fantasmagórica da tua vida: custou-te 40 euros,  todo o dinheiro trocado que tinhas no bolso, nem sequer tinhas kwanzas ou dólares para pagar ao mais jovial, simpático e prestável "taxista da candonga", a quem confiaste a tua bolsa, o teu PC,  a tua semana de trabalho ( textos, exercícios,  "slides"...), a tua bagagem e porventura até a tua própria vida. Ficaste na dúvida (confessa!. ..)   se a viatura não teria acabado de ser roubada naquela noite... E estarias metido numa grande encrenca se a polícia vos apanhasse pelo caminho... Aos dois, notoriamente cúmplices, "numa boa", na galhofa...

Foram os dois todo o trajeto a conversar, amavelmente, como se fossem "velhos conhecidos" ou até amigos, sobre tropa, médicos, militares, música, jovens, o presente e o futuro de Angola...

Ele fizera tropa mas já não fora à guerra, a "segunda guerra da independência"... Puxaste dos teus galões, fizeste-te passar por médico e professor da faculdade de medicina de Lisboa, e para mais militar, falaste-lhe de alguns nomes de gente da "nomencltura" angolana que te gabavas de conhecer, o diretor do hospital militar, o diretor da clínica X, o reitor da universidade, sua excelência o ministro da saúde que tinha sido teu aluno, etc.... 

Acabou por ser uma relação cordial, até empática, e lá chegaste ao destino sem mais problemas. E o rapaz ganhou o dia ou a noite. "Bué de cumbú, patrão!", rspondeu-te ele, ao contar as notas de 5 e 10 euros, com visível boa disposição... (Moedas não quis aceitar, eram difíceis de trocar...)

Ainda não tinhas varrido da memória o "incidente", occorido uns anos antes, quando apanhaste um pouco, por tabela, a paranóia securitária da polícia local do tempo de guerra... 

Gostas, afinal,  de lembrar, quando o tema Angola vem à baila numa roda de amigos,  que ainda chegaste a andar  fugido de um polícia, armado de apito e de Kalash, que mandara parar a tua viatura... Só porque tu estavas com um máquina fotográfica digital (ingenuidade a tua!), na mão, no "lugar do morto", tu, um branco, ao lado do condutor, um negro, num jipe do ministério da saúde angolano, na tremenda confusão do trânsito, a caminho do Futungo de Belas... 

Desobedecendo à ordem de parar, o jipe não levou nenhuma rajada, mas tu sentiste um calafrio pela espinha acima... Claro que o polícia era decidamente um patriota (ao pensar que um diabo branco,  um bandido estrangeiro,  poderia andar por ali a fazer espionagem) mas o mais provável é que ele, mal fardado, mal pago e pior formado, apenas quisesse  ganhar uns trocos para o "mata-bicho"... Valeu-te o condutor, experiente, corajoso e afoito, o teu "anjo-da-guarda" nessa manhã: só parou na escola de enfermagem do Futungo de Belas, depois de uma condução de doidos por aquelas artérias esventradas de Luanda... 

Mas voltando ao teu motorista "caluanda",  em julho de 2013... É um homem afável,  mestiço, de Uíge (se a tua memória não te falha...),  que fica a nordeste,  a cerca de 350 km de capital...  Pelas tuas contas devia ter nascido em 1953.  Teria então 60 anos na altura...

É preciso atravessar Luanda, de um lado a outro, até chegar ao aeroporto... Nas horas de ponta, pode ser um inferno. Daí teres que te levantar às 6 da manhã... para estar com uma certa margem de segurança, a tempo e horas, no aeroporto... 

É outra aventura, mesmo com "passaporte especial" (para os VIP da cooperação como tu...), até poderes sentar-te no teu lugar do avião da TAP e, enfim, respirar fundo... E depois de teres sido passado a pente fino pela Alfândega, onde largas 100 dólares para a "gasosa" (e te roubam os CD de música popular angolana que transportavas na mala da roupa, comprados na "candoga": uma mescla de estilos, a kizomba, o semba, o kuduro, a rebita, etc. )...

Além disso, levas contigo, dez mil dólares, em maços de notas (algumas sebentas...), limite máximo legal... Num envelope com o logótipo do Ministério da Saúde, o MINSA... E o credo na boca:  não é dinheiro teu, é da tua instituição, e vai servir para pagar viagens e ajudas de custo dos próximos formadores... 

Enfim, uma forma expedita, um desenrascanço, à portuguesa e à angolana, para contornar a morosidade burocrática da transferência de dinheiro entre os dois países... É também um sinal da crise,  que já se nota no comércio de rua, nos agentes da antoridade (que se batem à "gasosa"), nas "quinguilas" (cambistas do mercado negro, que trazem os maços de notas no sutiã), nas "zungueiras" (as vendedeiras de comes & bebes)...

O teu "caluanda" mora(va) na ilha de Luanda, perto do centro aonde foste dar formação.  O trabalho de motorista de ambulâncias, diga-se de passagem, não é pêra doce: há uns largos anos atrás, talvez em finais da década de 1990, a sua ambulância fora metralhada num musseque dos arredores (ele disse-te o nome, que não fixaste, talvez Sambizanga, onde vivem cerca de 250 mil almas emparedadas ), quando um "grupo de bandidos" tentava assaltar a casa de um "fulano ricaço" (sic)... 


Os "bandidos, que não sabiam ler" (sic), confundiram o "tinonim" da ambulância com o carro da polícia...  Houve feridos graves, doentes baleados dentro da ambulância; mas, mesmo com os pneus furados, e o assento do motorista "crivado de balas", o teu herói  lá conseguiu safar-se, são e salvo... Na altura até foi louvado (pelo "nosso Mais Velho", em visita ao hospital)...

Revelou um extraordinário sangue frio e coragem, dois atributos essenciais para se poder sobreviver numa cidade como Luanda de 5 ou 6 milhões de habitantes onde só uma escassa elite, privilegiada,  vai tendo por enquanto vida segura e  decente. (Só a Norte, no concelho vizinho de Viana, devem viver mais de milhão e meio.)

Esse sangue frio e coragem vêm-lhe do tempo da guerra. É um duplo ex-combatente. Fez duas guerras, ao serviço de duas pátrias... que, aos seus olhos, se completam: "Nasci português, hei de morrer angolano"....Tem muitas histórias para (e por) contar. 

Rapidamente criaste com ele um laço de cumplicidade e  empatia, típicas dos ex-combatentes. 

De facto, nada como dois ex-combatentes encontrarem-se,  beberem um copo  e começarem a desatar os nós da memória .... Não foi preciso copo nenhum, ele era um homem simples, prestável, falador e afável... 

Resumindo: fizera a "guerra colonial" , do lado português, com "muita honra" (sic), por volta de 1972/74 ou até talvez 1973/75 (já não podes precisar). Era furriel miliciano. 

Serviu "a sua pátria de então" (sic), diz-te com naturalidade e sem qualquer subserviência nem complexo de culpa.  Sentia-se português,  tinha sangue transmontano do lado paterno, o trisavô, desterrado (como muitos outros primitivos colonos),  ainda conhecera e privara com o "Kimuezo", "o homem das barbas grandes", o lendário Zé do Telhado. (Falecido em 1875, está sepultado na aldeia de Xissa, Mucari, Malange; o seu túmulo ainda hoje é venerado pela gente local.)

Quando "os sul-africanos, os zairenses e outros bandidos" (sic) invadiram Angola, "sua terra natal", as FAPLA (Forças Armadas para a Libertação de Angola) convocaram-no para as suas fileiras. Foi então promovido ao posto de  1º tenente de infantaria, comandando cerca de 70 homens (se bem percebeste). Participou em várias batalhas. E lá ficou na tropa e na guerra até à desmobilização, em finais de 1980...  Como "já não sabia fazer mais nada", aos 37 anos deram-lhe uma ambulância para conduzir... Ganhava mal mas tinha um emprego.

Também se queixava, tal como os antigos combatentes portugueses,  de o Estado angolano os ter abandonado  à sua sorte, com "muitas centenas de milhares de camaradas deficientes, incapacitados"... (Curiosamente, deixaste de ver, como há 10 anos atrás, os "estropiados de guerra", atravessando as ruas sujas da cidade, como cangurus, aos saltos nas suas muletas de pau.)

Também esteve na província do Cuando Cubango. onde foi um dos bravos da batalha de Cuito Cuanavale, de trágica memória para todos os contendores de um lado e do outro, angolanos, cubanos, sul-africanos, e até conselheiros soviéticos (quando o muro de Berlim ainda estava, fisica e simbolicamente,  de pé)... Nessa altura  fazia a segurança ao hospital de campanha na retaguarda onde viu coisas que nunca contará aos filhos e netos: amputar pernas e braços a sangue frio, sem anestesia; fuzilamentos de "rebeldes da Unita";  atos de sodomia entre angolanos e cubanos, enterrados nas trincheiras lá nas "terras do fim do mundo"....

Mas a cena mais dramática da guerra que tera vivido, não foram tanto  os bombardeamentos maçiços  da artilharia, cavalaria e aviação dos sul-africanos no sul, foi sim uma emboscada às portas de Luanda (a cerca de 100 km, se bem percebeste), a um coluna de várias viaturas guarnecidas por um grupo de combate que ele comandava, composto por cerca de 30 homens. 

Tens dúvidas se foi na altura da batalha de Quifangondo (em 10/11/1975) nas imediações de Luanda,  ou se foi no âmbito da batalha do Ebo, mais longe, a sudeste... Em qualquer dos casos, o desfecho destas duas batalhas foi fundamental para reforçar a posição do MPLA e do seu braço armado, as FAPLA

Pela descrição da batalha do Ebo (no portal cubano EcuRed (que não pode todavia ser considerado uma fonte independente), inclinas-te mais para a primeira hipótese, a da emboscada em que caiu a coluna comandada pelo teu motorista, ter ocorrido no âmbito da batalha de Quifangondo, a escassa centena de quilómetros de Luanda, a nordeste.

Nessa altura as forças que apoiavam a FNLA, o Exército Nacional de Libertação de Ang0la (ELNA), já tinham tomado o Caxito, estando às portas de Luanda.  Eram constituídas pelos "comandos do coronel Santos e Castro" (sic), por forças do exército regular do Zaire, e por uma unidade de artilharia dos sul-africanos,  mais um grupo de mercenários, esclareceu-te o teu motorista. 

Sobre batalha de Quifangondo (em 10 de novembro de 1975), vd. aqui o depoimento do general António França 'Ndalu' (chefe do Estado-Maior da 9ª Brigada, uma unidade das FAPLA,   criada uns meses antes para "defender Luanda das investidas do inimigo contra a capital, nos dias que antecederam a Independência, no dia 11 de Novembro de 1975"). 

Já agora leia-se, com atenção, também o seguinte comentário de um anónimo (entre muitos outros, que entretanto surgiram no seguimento daquela entrevista):

"O que o General António dos Santos França, na altura Comandante N´Dalu, não mencionou, talvez por não lhe ter sido perguntado, foi a constituição da 9ª Brigada . Estavam incluídos nela os melhores guerrilheiros das então FAPLA, e principalmente militares angolanos desmobilizados das forças portuguesas, onde se incluiram também paraquedistas e comandos portugueses. 

Ouvi pessoalmente oficiais cubanos a elogiarem a preparação destes militares do contingente de Angola nas forças portugueses. Foi a 9ª Brigada e os cubanos quem destroçaram as forças da FNLA/Zairenses/sul-africanos a norte, e perseguiram os sul-africanos estacionados próximos de Porto Amboim até à fronteira, no Cunene. 

Paradoxal e infelizmente, a maioria dos militares da 9ª Brigada foi fuzilada dois anos depois, nos acontecimentos do [27] de Maio [de 1977]".

É muito possível que o teu motorista fosse um daqueles jovens, desmobilizados do exército português, que se ofereceram como voluntários para a 9ª brigada, ou foram recrutado à força...  (Sobre os trágicos acontecimentos de 27 de maio de 1977 tiveste o bom senso de não lhe fazer perguntas, era um assunto-tabu em Angola naquela época; mas recordas-te de um jovem economista, assessor do ministério da saúde te ter confidenciado, à meia-voz: "sabe, o meu pai saiu de casa na madrugada do dia 27 de maio, e nunca mais voltou") 

Tens de admitir também a  hipótese de o teu motorista ter participado na batalha do Ebo onde haveria de morrer o comandante cubano Raul Díaz-Argüelles (1936-1975), em 11 de dezembro de 1975 (um mês depois da proclamação da independência de Angola).  

Recorde-se que o Diaz-Argëlles também passou pelo teatro de operações da Guiné, em 1972, ao tempo da guerra colonial, tendo ajudado o PAIGC a planear a operação contra Guileje.

A batalha do Ebo, a sudeste de Luanda,
a par da batalha de Quifangondo, a nordeste de Luanda,  foi decisiva para suster o avanço das forças  anti-MPLA  que pretendiam impedir a proclamação da independência em Luanda pelo partido de Agostinho Neto.

É bom lembrar que, à revelia da potência colonizadora, Portugal, e do Acordo do Alvor (janeiro de 1975),  cada um dos três movimentos nacionalistas proclamou a independência de Angola em sítios e datas diferentes: a FNLA  no Uíge, a UNITA no Huambo e o MPLA em Luanda.

Não tiveste oportunidade, nas conversas esporádicas que mantiveste  com o teu  motorista (afinal , em escassas e fugidias duas vezes, em que o assunto veio à baila, no trajeto até ao aeroporto) de esclarecer este e outros pormenores importantes das suas histórias de  guerra... que ele sempre te contou, "sem filtros",  com a espantosa naturalidade e candura dos africanos...

Ias em geral com um ouvido atento à conversa com o condutor e um olho no vidro da janela do teu lado... Reconstituias a tua conversa com ele, já depois no avião de regresso a Lisboa, no teu "diário de bordo".... E podes estar a ser traído pela memória. Mas confias na boa fé do teu amigo angolano.

Essa emboscada (com  apoio de artilharia
) poderia ter sido  quando as forças sul-africanas,  que invadiram Angola,  chegaram até ao sul do Ebo, na província do Cuanza Sul, ameaçando Luanda. Os angolanos e os cubanos destruiram as pontes e sustiveram o avanço dos invasores justamente no Ebo (município a 300 km de Luanda).

Segundo o depoimento do teu motorista,  nessa emboscada, as viaturas foram todas destruídas, as FAPLA tiveram cerca de 2/3 de baixas mortais, incluindo 7 cubanos. 

Conversa puxa conversa, diz-te que "já não há bandidos na ilha de Luanda e no centro de Luanda". A polícia "limpou-os" (sic). A esta hora, 6 da manhã, há grupos de 3 e 4 brancos (presumivelmente estrangeiros, incluindo portugueses,  a viver e a trabalhar em Luanda) que andam a fazer "jogging" na marginal.  Com relativa descontração.  

As praias estão "limpas",  contrariamente ao que se via há uns anos atrás... A zona agora é "turística" (sic), as barracas dos pescadores desapareceram... Enfim, a cidade mudou, "para melhor", há obras por todo o lado... "Bandido é no musseque onde a polícia não entra" (sic). Também por delicadeza não abordas a questão dos "esquadrões da morte", de que ouviras falar.

Tinhas-lhe prometido trazer uma garrafa de vinho de Lisboa. Deixaste-lhe kwuanzas para beber um copo à tua  saúde e à condição de ambos como  antigos combatentes, homens da mesma geração, nascidos sob a mesma bandeira, falando a mesma língua...

Percebeste então  melhor porque é que os nossos amigos  angolanos, são pessoas que vivem com tanta intensidade o dia que passa e manifestam publicamente a sua felicidade, através da comida, da bebida, do sexo, da música, da dança. 

"Para ser feliz tem que ser aqui em Angola", diz um kudurista dos musseques de Luanda no filme angolano "I Love Kuduro", do realizador português Mário Patrocínio, (a cuja estreia, em Portugal, tu assististe, uns meses mais tarde, em novembro de 2013, no Cinema São Jorge, no âmbito do doclisboa'13)... 

Confessas, por outro lado, a tua grande ignorância em relação à história e à geografia de Angola, apesar de lá ires já desde 2003...  

Por exemplo, Cuando Cubango... É uma província situada no sudeste do país. Verificas que é limitada a norte pelas províncias do Bié e Moxico, a leste pela República da Zâmbia, a sul pela República da Namíbia e a oeste pelas províncias da  Huíla e do Cunene (onde a guerrilha da SWAPO tinha bases e campos de refugiados, e onde as tropas sul-africanas faziam "raides" punitivos, atravessando impunemente a fronteira). 

A capital da província é a cidade de Menongue e dista de Luanda mais de mil km e de Cuito menos de 350 km. Tem cerca de 140.000 habitantes e ocupa uma superfície duas vezes superior a Portugal...

É constituída pelos municípios de Calai, Cuangar, Cuchi, Cuito Cuanavale, Dirico, Mavinga, Menongue, Nancova e Rivungo. O clima é tropical no norte da província e semi-árido no sul. Esta região de Angola, "terras do fim do mundo",  é conhecida atualmente como "terras do progresso», devido ao seu grande potencial económico, praticamente por explorar.

Mas voltando à guerra, à chamada segunda guerra da independência em que participou também o teu motorista.... Durante muito tempo alguns municípios (como Mavinga, Dirico, Cuchi e Cuito Cuanavale) serviram como bases de apoio à guerrilha da UNITA, liderada por Jonas Savimbi, que só abandonou completamente estes territórios (a  "Jamba") em finais de 2001, aquando da última (e decisiva) ofensiva das forças armadas angolanas. 


É sabido que o movimento do Galo Negro recebeu apoio dos EUA e da África do Sul, na luta contra contra o MPLA, que por sua vez era apoiado pela União Soviética e Cuba. Estava-se  em plena guerra fria. Angola era uma peça importante no tabuleiro do xadrez da geopolítica mundial, sendo cobiçada pelas potências neocloniais pelas suas riquezas (o petróleo, os diamantes) mas também era fundamental para a sobrevivência do regime de supremacia branca na África do Sul...

batalha de Cuito Cuanavale terá sido o maior confronto militar da guerra civil angolana. Foi um batalha sangrenta e prolongada durante mais de 4 meses, entre 15 de novembro de 1987 e 23 de março de 1988.


Foi aqui , na província de Cuando Cubango , e mais concretamente no munícipio de Cuito Cuanavale, que as FAPLA, apoiadas pelos cubanos e com armamento soviético, se confrontaram com  as forças da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), apoiada pelo exército sul-africano.

Foi considerada a batalha mais longa travada no continente africano desde a Segunda Guerra Mundial. Nesta batalha de Cuito Cuanavale, foi posto em cheque o mito, aos olhos dos angolanos, da invencibilidade do exército "racista" da África do Sul, garantiu-te, com visivel orgulho e patriotismo, o teu motorista. 

Independentemente das duas partes terem clamado vitória, a África do Sul terá sido obrigada a reconhecer tacitamente senão a superioridade, pelo menos  a capacidade de resistência, resistência e coragen  demonstrada pelas FAPLA (e seus aliados cubanos) no campo de batalha. (Para os cubanos, Angola terá sido o seu Vietname, é bom não esquecê-lo...).

Isso explicará a posterior assinatura dos Acordos de Nova Iorque, ponto de partida para o fim de um conflito que afinal não era apenas uma guerra civil, nem um simples conflito regional. 

Como é sabido, a implementação da resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU vai levar à independência da Namíbia e apressar o fim do regime de segregação racial, que vigorava na África do Sul.

Se tu conseguires ainda voltar a Angola (o que já te parece cada vez menos provável) , esperas poder reencontrar, vivo e com saúde,  o teu amigo  motorista, que serviu duas pátrias, e  agora andará pelos os seus 70 anos... e se possível com a mesma sabedoria e alegria de viver do homem comum angolano. E continuar a tua conversa, agora à mesa d me uma  esplanada de um bar da ilha de Luanda com vista para o nosso comum oceano Atlântico....E, de preferência  com um bom copo de vinho  tinto português.  Há conversas, entre combatentes, que não acabam mais  (ou merecem ser prolongadas, melancolicamente, pela tarde dentro, aguardando o pôr-do-sol tropical)...

Lisboa, julho de 2013. Revisto, janeiro de 2024.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 7 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24926: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (13): O cruzeiro das nossas vidas