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segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22425: Notas de leitura (1368): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Começo com uma declaração de interesses quanto a Luís de Castro. Conheci-o pessoalmente em setembro de 2018, fora convidado a participar no programa intitulado "Sociedade Civil". Enquanto conversava com um antigo aluno da Escola Superior de Comunicação Social, Castro rodopiava pelo estúdio e apanhou o tema da conversa que eu travava com o antigo aluno, falava-se da Guiné. E mal iniciado o programa, num aparente desconcerto com a conversa prevista, Castro dispara-me perguntas sobre a Guiné, a guerra, a experiência da cooperação, a despedida dos antigos camaradas, em 2010, os livros, a omnipresença da Guiné. Tudo espontâneo, sem rede, conversa mais improvável não podia haver. E não escondemos como aquele território cava fundo no nosso coração. Li depois este trabalho, do melhor que há ao nível da reportagem. Impossível não partilhar convosco textos tão luminosos, aceita-se que é clara certidão da verdade que o repórter experimentou e passou a escrito.

Um abraço do
Mário


Repórter de guerra: Luís Castro três vezes nas convulsões da Guiné (2)

Beja Santos

Luís Castro é um jornalista de quem os outros profissionais não regateiam elogios: que é inspirador, sabe enfrentar os cenários mais difíceis, assumindo riscos, que tem a fibra dos grandes repórteres, que tem o salto de tigre sobre tudo quanto seja matéria de notícia ou de reportagem, por exemplo. Neste livro “Repórter de Guerra”, Oficina do Livro, 2007, onde o autor colige trabalhos que efetuou em Angola, Cabinda, Guiné-Bissau, Timor-Leste, Afeganistão e Iraque, escolheu-se, como é óbvio, o seu trabalho na Guiné, já ocorreu o período mais dramático da guerra civil, estamos agora no termo dessa guerra, em 1999. Aterra no Senegal onde tem a cabeça a prémio, passa ignorado pelos serviços de fiscalização e daqui parte para Bissau num bimotor. Chegou mesmo a tempo de apanhar o tiroteio do último ato do conflito político-militar: “Fiquei parado mesmo atrás de uma antiaérea que é rebocada por um camião e que vai ser usada para disparar sobre as linhas inimigas. Os dois canos estão voltados para mim, a não mais de dois palmos do outro lado do vidro. Há soldados que correm de um lado para o outro, tiros que não se sabe de onde vêm e rajadas disparadas sem nexo. É a confusão total.”. Nino Vieira já está na Embaixada Portuguesa. Luís Castro considera que a peça ficou fantástica, dá a visão dos dois lados. “Nas ruas, o povo festeja aquilo que chama a terceira independência e o pessoal da Junta Militar leva-nos a visitar os prisioneiros de guerra que estão dentro do aeroporto, na base aérea. Há desde ministros, membros do Governo, colaboradores de Nino, comandantes militares, oficiais superiores e cinco soldados. Amontoam-se vinte e tal em pouco mais de dez metros quadrados. Os que não têm espaço cá em baixo penduram-se nas grades das janelas. O cheiro é nauseabundo e os prisioneiros escondem a cara quando se abrem as portas das celas e nos vêm. Seguimos à procura do líder da Junta Militar, que, quando me vê, apressa o passo na minha direção, eu estendo-lhe a mão mas ele puxa-me e abraça-me durante vários segundos. Mais parece o abraço de um pai ao filho. ‘Você foi o primeiro jornalista a vir ter connosco quando começou a guerra e voltou a ser o primeiro agora que a guerra acabou’. É um homem feliz. Venceu. Nino Vieira acabara de assinar a rendição incondicional.”

Nos dias seguintes, o repórter dá conta do drama dos hospitais e da gravidade das minas. “No Hospital Simão Mendes vou encontrar pessoas com queimaduras gravíssimas, crianças mutiladas, mulheres baleadas ou perfuradas por estilhaços de bombas, homens com os membros gangrenados e gemidos de quem já não tem forças para gritar. Falta tudo. Visito a seguir um local de reabilitação para crianças amputadas e dedico uma das reportagens ao Nilton, um menino de sete anos. Há três meses, um estilhaço arrancou-lhe a perna abaixo do joelho. Hoje, o pai levou-o pela primeira vez ao centro. A prótese custar-lhe-á o equivalente a 190 euros. Não sabe como vai pagar. Ajudo-o com 35 euros. Quando a reportagem foi para o ar choveram dezenas de telefonemas na RTP de pessoas de Portugal a oferecer-se para lhe pagar a prótese. Aconselho os interessados a fazê-lo através da Embaixada em Bissau para que os donativos não se percam à chegada”. E lembra o terror que é a herança das minas deixadas pela guerra, quer sejam antipessoal ou anticarro: “Deixadas pelas duas partes envolvidas no conflito, há que desativá-las antes que causem mais mortos entre os civis. Decidimos acompanhar uma dessas equipas de desminagem dos homens da junta militar. Ao todo, garantem, já encontraram e recolheram mais de duas mil minas anteriormente colocadas no meio das tabancas”.

Em 2003, Luís Castro regressa à Guiné para presenciar em direto algo como uma trágica comédia, a destituição de Kumba Ialá, será mesmo convidado a assistir às reuniões que antecedem o golpe de Estado que retirou os plenos poderes ao homem do barrete vermelho. Ao aterrar em Bissalanca, o repórter apercebe-se que o golpe é praticamente conhecido por todos. “Só mesmo na Guiné é que isto podia acontecer. Até no Governo sabem. E a nossa chegada trouxe ainda mais as suspeitas quanto à proximidade do levantamento militar”. Luís Castro entrevista o general de quatro estrelas, Veríssimo Correia Seabra, o autor do golpe de Estado, o general, que foi o número dois de Ansumane Mané, entretanto assassinado, é acusado de desrespeito pela Constituição, abuso de poder, prisões arbitrárias e muito mais. Kumba iria ser destituído, podia ficar a viver tranquilamente no país ou sair. Kumba irá num táxi para o Quartel-general, será filmado em conversa amena com os autores do golpe, à noite perguntaram-lhe se queria ficar ali ou ir para casa, preferiu a segunda hipótese, e é nesse entretanto que ele conversa com um oficial, sabe que já não é Presidente, que houve um golpe de Estado, lança impropério, foi preciso metê-lo à força dentro de casa. Alguém comenta para o repórter: “Da próxima vez que cá vieres, tu chegas e os guineenses fogem de Bissau. Já se habituaram que quando apareces cá é porque vai haver caldeirada! Não te livras da fama.”

E assim termina a reportagem: “A 6 de outubro de 2004, militares com patentes inferiores a major cumpriram a ameaça e assassinaram o líder do golpe de 14 de setembro, o general Veríssimo Correia Seabra. Só não conseguiram eliminar todo o Estado-Maior porque os restantes se esconderam na Embaixada Portuguesa. Pelo meio ficaram acusações de desvio de dinheiro e corrupção generalizada. Ansumane e Veríssimo lideraram golpes de Estado e acabaram da mesma forma: com vários tiros na cabeça. Desta vez não fui avisado”.
Luís Castro (à direita) no Afeganistão
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22406: Notas de leitura (1367): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22406: Notas de leitura (1367): “Repórter de Guerra”, por Luís Castro; Oficina do Livro, 2007 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Este jornalista da RTP tem um nome altamente credenciado, na contracapa do seu livro recebe elogios de José Alberto Carvalho, Paulo Camacho, Fátima Campos Ferreira, Adelino Gomes, Judite de Sousa e Joaquim Furtado. Quem aprecia reportagens em áreas de conflito tem aqui um rico manancial, andará por Angola, Cabinda, Guiné-Bissau, Afeganistão e Iraque.
Luís Castro sente-se compensado: "Tive dois acidentes graves, problemas de saúde, estive preso por quatro vezes, expulsaram-me outras tantas, fugi com uma sentença de morte sob os ombros, proibiram-me a entrada em vários países, fui humilhado e agredido por quem menos esperava. Não me deram fortuna, apenas a possibilidade de estar onde aconteceu História."

Um abraço do
Mário


Repórter de guerra: Luís Castro três vezes nas convulsões da Guiné (1)

Beja Santos

Luís Castro explica muito bem a essência do livro “Repórter de Guerra”, Oficina do Livro, 2007, na nota introdutória: “Mandaram-me para um conflito esquecido no imenso Zaire; perdi-me na linha da frente em Angola; aprendi a linguagem do mato e descobri reféns em Cabinda; fugi das cidades em chamas e vasculheim montanhas em Timor; estive dentro da guerra e das traições na Guiné; fui à capital dos talibãs para sentir o cano de uma Kalashnikov; disfarcie-me nas tempestades do deserto iraquiao para compreender o povo do exército mais fraco (…) Enviei para Portugal mais de seiscentas reportagens e sempre com imagens dos nossos cameramen, exceto em duas ocasiões muito especiais. Mesmo que não fossem tão fortes, sempre eram as nossas imagens e a nossa reportagem. Fugi dos diretos nos telhados e fui ao encontro dos acontecimentos nas ruas e no mato. Passei os últimos cinco anos a rever os meus blocos de apontamentos, a ver e a catalogar todas as reportagens e diretos que fiz. Visionei mais de mil horas de imagens em bruto, transcrevi diálogos e consultas a memórias dos repórteres de imagem que me acompanharam em cada situação. O que irá ler é a verdade e tão-só. Pediram-me que enriquecesse a prosa. Recusei. Não escolhi palavras bonitas para embelezar o texto. O que aqui está aconteceu”.
Foto: Luís Castro, com a devida vénia

E na Guiné aconteceu três vezes. Estamos em junho de 1998, o repórter está no seu remanso e houve falar numa tentativa de golpe de Estado na Guiné-Bissau, não sabe quem é Ansumane Mané. Na RTP, recebe instruções, vai por Dacar, aqui chegado segue para Cabo Verde, a fragata Vasco da Gama está a caminho de Bissau e fará escala na cidade da Praia, vai acompanhado de Hélder Oliveira, considerado um dos melhores repórteres de imagem da RTP. A fragata Vasco da Gama avança para Bissau, depois de peripécias, recolhem refugiados. Entrar em Bissau é indesejável, estão lá a ocorrer bombardeamentos e tiroteio. Luís Castro desce até ao país, vem trabalhar. Passaram por algumas barreiras militares, encaminham-se para um braço de mar, vão à procura dos rebeldes. Dá-se o encontro com o major Manuel Melcíades, conversam, é a primeira entrevista dos revoltosos:
“ - Quais são as áreas que controlam?
- Todo o país. O Governo não tem tropa. Só soldados do Senegal, de Conacri e alguns franceses. Os nossos estão todos deste lado. Agora lutamos contra franceses, senegaleses e conacris.
- Vão avançar sobre Bissau?
- Não é difícil entrar em Bissau! Temos dez tanques blindados, daqueles com lagartas e canhão. Podemos entrar a qualquer hora. O problema é a população.
- Aceitam negociações?
- As negociações dependem deles!”


A reportagem sai em Portugal. Nino Vieira não gostou. Ficam acantonados em Quinhamel, na península de Bissau. Luís Castro quer chegar à fala com o Comando Supremo da Junta Militar. Melcíades não permite, mas mostra o passaporte de Ansumane Mané. A imagem será transmitida para todo o mundo através da Eurovisão. As conversas com os guerrilheiros são eloquentes. Diz um:
“- Sabes, fui guerrilheiro. Lutei e matei muitos portugueses, nem eu sei quantos. Agora sou velho e tenho a certeza que tu e eu somos irmãos. Acredita, queremos que vocês voltem rapidamente para a Guiné.
- É impossível!
A minha resposta saíra com um sorriso à mistura.
- Estás a rir da nossa miséria?
- Não, claro que não! Só te estou a dizer que o país é vosso.
- É! Pois é! Só que não o sabemos governar!”


O repórter não pára, volta ao lado dos rebeldes, Melcíades mostra-lhes soldados senegaleses mortos na linha da frente, um oficial superior fora abatido a tiro durante uma tentativa para furar um dos flancos da Junta Militar. Por vezes, são intercetados por senegaleses, escapam por um triz. Até que finalmente chegam a Ansumane Mané, será filmado o encontro de Ansumane Mané com Jaime Gama e Venâncio de Moura, da CPLP. Nino Vieira continua a não gostar do trabalho do repórter português. O embaixador português pede ao repórter para não vir até Bissau, correm todos os riscos. Luís Castro volta a filmar Ansumane Mané acompanhado, entre outros, de Veríssimo Seabra e Emílio Costa. Ansumane está indignado:
“Estive 37 anos ao lado de Nino Vieira. Conheço-o bem e sei do que ele é capaz. O Presidente não pode tratar o país como se fosse uma propriedade privada. Não tem consideração por ninguém.”

A equipa volta ao Vasco da Gama, onde ficam a saber que fora captada uma comunicação feita entre os senegaleses em que era dada ordem para “abater a equipa da RTP logo que fosse encontrada”. As reportagens de Luís de Castro enfureceram a concorrência. Emídio Rangel disse inverdades, o pedido de desculpas acabou por ser publicado cinco anos depois, a 10 de setembro de 2003 e no mesmo dia em que Luís de Castro voltava à Guiné para cobrir o fim da era de Nino.

A reportagem da Guiné-Bissau é acompanhada de imagens captadas por Hélder Oliveira mostrando a guerra, os encontros com Ansumane Mané, as tais imagens que correram o mundo e enervaram a concorrência.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22388: Notas de leitura (1366): “História da Unidade - Batalhão de Caçadores 2845", em verso, por Albino Silva (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18553: Notas de leitura (1060): “Integração Nacional na Guiné-Bissau desde a Independência”, por Christoph Kohl, no Caderno de Estudos Africanos do Centro de Estudos Africanos do ISCTE, n.º 20, Janeiro de 2011 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Não se pode deixar ter em atenção a argumentação expendida por este antropólogo social alemão: o nível da integração nacional é relativamente forte, apesar da diversidade étnica. Ao longo de décadas, constituíram-se cimentos para o sentimento nacional: o crioulo como língua veicular, as mandjuandades, a rejeição à fragmentação étnica, a expulsão dos invasores no conflito militar de 1998-1999, as festas carnavalescas. No entanto, apesar deste sentimento nacional, os guineenses sentem-se desafetados do Estado, vítimas dos políticos e há um termo crioulo que surge sempre quando se fala (e muitas vezes se fala) de pobreza, infelicidade e miséria: koitadesa.

Um abraço do
Mário


A integração nacional na Guiné-Bissau

Beja Santos

No Caderno de Estudos Africanos do Centro de Estudos Africanos do ISCTE, n.º 20, referente a Janeiro de 2011 e organizado pelo investigador Gerhard Seibert sob o título “Identidades, Percursos e Clivagens nos PALOP”, tem particular interesse para aqueles que estudam a Guiné o artigo de Christoph Kohl denominado “Integração Nacional na Guiné-Bissau desde a Independência”. Christoph Kohl é antropólogo social.

O que o autor dá como apurado é que na Guiné-Bissau o nível de integração nacional é relativamente forte, apesar da diversidade étnica. Este caso de integridade nacional baseia-se na ideologia e política do antigo movimento independentista e na prática do jovem Estado pós-colonial onde se advogou um modelo de unidade nacional da diversidade étnica. Mas também nesta pesquisa se apurou que os guineenses vitimizam a sua nação quando a confrontam com o Estado. Uma invasão estrangeira durante o conflito militar de 1998-1999 reforçou ainda mais a integração nacional. Nesse mesmo conflito apurou-se uma ingerência da diplomacia francesa que se colocou ao serviço de Nino Vieira, no fim do consulado deste as instalações diplomáticas francesas foram assaltadas e destruídas, houve mesmo que vir ao auxílio das tropas francesas presentes.

Após descrever os pontos mais relevantes da luta armada e do papel do PAIGC, o autor refere-se à era de Luís Cabral a que se sucede o consulado de Nino Vieira que a despeito do multipartidarismo em que já decorreram as eleições de 1994 manteve o autoritarismo político e fomentou lutas pelo poder na esfera político-militar. A despeito dos rótulos de “frágil”, “colapsado”, “fraco”, etc, existe uma forte consciência nacional em que o crioulo é um verdadeiro cimento.

Muitos estados africanos têm sido qualificados nos anos mais recentes por fracos, não-Estados, frágeis, mas apesar destas nomenclaturas, as respetivas nações têm sobrevivido. É importante separar analiticamente os conceitos de Estado e de nação. Mesmo se um Estado é apresentado como inteiramente disfuncional, ou seja, o seu funcionamento não corresponde ao clássico modelo europeu baseado na terminologia de Max Weber, o Estado continua a existir se é caracterizado por uma pronunciada identidade nacional, mesmo que haja uma fraca identificação da nação com o Estado – é o que se pode verificar em muitos países que vêm no Índice dos Estados Falhados.

Os ideólogos europeus estavam convencidos que havia uma incontestável congruência nas entidades políticas e nacionais. Acreditava-se que uma homogeneidade cultural e étnica constituía a nação-Estado. No estudo sobre a Guiné-Bissau, é patente haver posições da nação contra o Estado. Para se perceber esta tensão, é preciso ir mais atrás, às fundações da Nação. Em contraste com líderes como Touré, Nkrumah ou Machel, Cabral não supunha ser necessário erradicar as identidades étnicas para afirmar a nova identidade nacional. Cabral estava convencido que fora ultrapassada a era dos grupos étnicos, dizia abertamente que todos poderiam avançar juntos em unidade.

A nação-Estado pós-colonial foi constituída por um partido, o PAIGC. A transformação da sociedade pós-independente pautou-se por um severo controlo político, uma expansão da burocracia, um novo regime em que foram excluídos os apoiantes dos portugueses e eliminados os dissidentes. As instituições eram controladas pelo Estado, o tribalismo passou a ser silenciado, era assunto tabu. Muitos dos elementos da elite dirigente do PAIGC estavam influenciados pela ideia europeia do Estado-nação. A esta recetividade agregou-se o anti-imperialismo marxista, apresentava-se como uma atrativa ideologia que prometia a liberdade face à denominação colonial. Entretanto, os sentimentos nacionais foram crescendo à volta do crioulo, das mandjuandades e as diversões carnavalescas, é esta a tese do autor.

 Guineenses em manifestação, arvorando sempre a bandeira do país

O crioulo é linguagem veicular interétnica por excelência. Recorde-se que durante a luta armada a Rádio Libertação privilegiava o crioulo. Passo a passo, o crioulo transformou-se de uma frente linguística do meio condutor do projeto da nação-Estado.

Mandjuandades são instituições de assistência mútua, são espaços de sociabilidade; há mandjuandades cristãs, muçulmanas e multiétnicas.

Depois da independência, era a Juventude Africana Amílcar Cabral quem coordenava as festas do Carnaval, a partir de 1984 será a Direção-Geral da Cultura a liderar o acontecimento. O Carnaval veio a criar uma identidade comum.

O autor questiona as ameaças postas pela fragmentação étnica. O exemplo mais evidente é Kumba Ialá e a tentativa de balantização do regime. O antigo Presidente da República foi frequentemente acusado de manipular e explorar vínculos étnicos para ganhar apoios e votos. Nas eleições presidenciais de 2005, puseram frente a frente Nino Vieira e Malam Bacai Sanhá, Nino insinuou os perigos de uma absoluta islamização de poder caso Malam Bacai Sanhá ganhasse. Nino apresentava o rival como um Mandinga quando este era de etnia Beafada. Isto fazia parte de uma estratégia deliberada para desacreditar Sanhá aos olhos dos Fulas. Porém a convivência pacífica nos grupos étnicos não foi profundamente afetada.

Passando para o conceito de vitimização da nação, recorde-se que os guineenses continuam a sentir-se comprometidos com a sua nação apesar de se sentirem desafetados do Estado. Os guineenses dão de si próprios um retrato de comunidade solidária de vítimas. O termo crioulo koitadesa deriva dos termos portugueses pobreza, infelicidade e miséria. Os guineenses têm uma longa experiência de autoritarismo e uma mentalidade de dependência, o que faz com o cidadão veja a classe política como aquela que procura o auto-favorecimento onde os políticos são indiferentes aos interesses nacionais. Algo se modificou com o conflito político-militar de 1998-1999. Este conflito é o exemplo mais eloquente de que uma população heterogénea pode cerrar fileiras face à chegada de tropas estrangeiras, a população guineense acabou por os encarar como inimigos da Nação. Outro aspeto curioso deste conflito é que as fações lideradas por Nino Vieira e Ansumane Mané reclamavam representar em nome da nação. A fação de Nino insistia na legitimidade constitucional e nos compromissos de assistência militar mútua com o Senegal e a Guiné-Conacri. A Junta Militar reclamava estar a combater pelo bem-estar da nação e acusava Nino Vieira de corrupção e má governação isto a par das reivindicações para melhores condições para a tropa e para os veteranos combatentes. A maior parte da população apoiou a Junta Militar enquanto as tropas estrangeiras eram consideradas como invasoras e uma ameaça para a nação guineense.

A França procurou aproveitar-se para ganhar influência política e económica, havia já um longo historial da presença francesa na região, no Casamansa, rios Nuno e Cacine no século XIX. O Senegal e a Guiné Conacri tinham pretensões quanto à Guiné-Bissau, tudo acabou por favorecer o sentimento nacional guineense.

Por último, recorda o autor, convém não esquecer que a nação guineense se construiu depois da função do Estado independente. Em suma, a Guiné-Bissau viu primeiro construída a nação e continua problemática a construção do Estado.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18542: Notas de leitura (1059): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (31) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15683: (De)Caras (28): Rescaldo da Sessão evocativa do 20 de Janeiro de 1973: Colóquio “Quem mandou matar Amílcar Cabral?”, organização da Embaixada da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de hoje, 28 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos
Envio a notícia sobre a sessão evocativa do assassinato de Amílcar Cabral, por iniciativa da Embaixada da República da Guiné-Bissau

Um abraço do
Mário


Sessão evocativa do 20 de Janeiro de 1973: 
Colóquio “Quem mandou matar Amílcar Cabral?” 

Beja Santos


A Embaixada da República da Guiné-Bissau organizou no sábado 23 de Janeiro um colóquio subordinado ao título “Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?”, exatamente o título do livro escrito na década de 1990 pelo jornalista José Pedro Castanheira. Para além deste jornalista e escritor foram convidados Julião Soares Sousa e José Luís Hopffer Almada como comentadores e eu fui convidado como moderador. A sessão decorreu num dos auditórios da Universidade Lusófona(1).

José Pedro Castanheira caraterizou a sua investigação, no âmbito dos 20 anos do assassinato de Amílcar Cabral, enunciou as diligências e os contactos efetuados. Foi o primeiro investigador a ter acesso aos arquivos da PIDE. Observou que ainda não é absolutamente seguro saber quem mandou matar o líder do PAIGC, comentou que procurou entrevistar Joaquim Chissano, presente no tribunal internacional reunido em Conacri, o antigo dirigente da FRELIMO informou-o que este assunto será matéria de um dos seus volumes de memórias. Igualmente recebera a anuência de entrevista do professor Silva Cunha, não se concretizou, resta saber se é possível consultar a sua documentação pessoal que está depositada na Universidade Portucalense. Referiu-se às quatro hipóteses postas pelo complô: a exclusivamente interna; a da responsabilidade das autoridades da Guiné-Conacri, obviamente com a anuência de Sékou Turé, a hipótese de ingerência dos serviços secretos franceses e a operação montada pela PIDE, com recurso a descontentes do PAIGC. Concluiu que qualquer uma destas hipóteses continua em cima da mesa até se revelarem fontes conclusivas, ocorre dizer que todos estavam interessados neste desfecho.

Julião Soares Sousa referiu-se ao assassinato como um crime geneticamente interno. Há imensa neblina nos dias que precedem o assassinato, está presentemente a estudar a correspondência desse período de Amílcar Cabral, há por exemplo uma carta dele para Sékou Turé sobre recolha de fundos do PAIGC, algo enigmática, ao tempo o PAIGC recebia apoios que não justificavam uma campanha de recolha de fundos. Há outros documentos perturbadores que falam de tentativas de negociação sobre as quais ainda há provas pouco consistentes, para interpretar possíveis contactos entre Spínola e o PAIGC. Alpoim Calvão também procurou contactar altos dirigentes do PAIGC. Não são conhecidos quaisquer números sobre interrogados e participantes, considera que terão sido ouvidos em interrogatórios mais de 300 pessoas e condenados cerca de 30 participantes. Há outros elementos intrigantes para os quais é necessário obter resposta, por exemplo tinha sido constituída uma frente para a libertação da Guiné em Conacri, quer Sékou Turé quer Amílcar Cabral tinham informações concretas desta iniciativa. O que lhe ocorre dizer, para além do que está escrito no seu livro "Amílcar Cabral, Vida e Morte de um Revolucionário", continua a investigar os acontecimentos da época, informou que Agostinho Neto também fizera parte do tribunal internacional e analisa agora a documentação produzida pela delegação jugoslava. Na sua opinião, o assassinato é uma agregação de vontades, algumas delas dispersas, provocou uma resposta coesa do PAIGC que modificou os termos da guerra de guerrilhas, a partir dos acontecimentos de Maio, o PAIGC ficou dono e senhor das iniciativas militares introduzindo esquemas da guerra convencional para os quais as forças armadas na Guiné não tinham resposta e aceleravam a resposta das próprias forças armadas portuguesas, desencadeando o 25 de Abril e a resposta singular do MFA na Guiné.

José Hopffer Almada entendeu que é um outro ângulo da questão que continua a pedir um esclarecimento cabal: a unidade Guiné-Bissau-Cabo Verde e o próprio Movimento Reajustador, encabeçado por Nino Vieira, que se traduziu pela quebra sem apelo nem agravo dessa unidade, fulcro do sucesso da luta de libertação na Guiné.

Tal como estava previamente acordado, os elementos da mesa conversaram. Referi que há mais bibliografia significativa que fala do assassinato ou da sua interpretação, caso das obras de Leopoldo Amado, Tomás Medeiros, António Tomás e Daniel Santos. Não há um só documento nos arquivos da PIDE que permita aproximar uma diligência da polícia política no assassinato, os documentos que existem são informações de djilas que funcionavam quase como agentes duplos, e vêm referidos no livro de José Pedro Castanheira. No dia 21 de Janeiro de 1973, António Fragoso Allas enviou uma apreciação do assassinato, atribuiu a conhecidas discórdias entre cabo-verdianos e guineenses, o responsável da PIDE em Bissau só podia ter enviado esta apreciação por não estar envolvido. Mário Soares, na Cova da Moura, perguntou a Spínola, quando este o convidou para ser ministro dos Negócios Estrangeiros, qual o envolvimento direto ou indireto do general no assassinato de Amílcar Cabral, ao que o general respondeu que ninguém na Guiné, sob o seu mando, tinha interferido nas desinteligências internas do PAIGC, não existira qualquer plano para assassinar Cabral, aliás este seria o único interlocutor possível para negociações com o PAIGC. Castanheira lembrou que fora o único jornalista a entrevistar Ansumane Mané, no decurso da guerra civil, e que à pergunta sacramental de quem mandara matara Cabral, Ansumane reportara uma conversa havida com Nino, este estava profundamente comovido mas não descartara claramente a hipótese do seu envolvimento no complô. E, como se sabe, na última entrevista concedida Aristides Pereira ao jornalista José Vicente Lopes, o antigo presidente do PAIGC atribuía responsabilidade direta a Osvaldo Vieira mas insinuou que Nino Vieira não estava alheio ao complô.

Seguiu-se um debate vivacíssimo e após três horas de convívio o moderador referiu que se tinha começado a sessão entre a neblina e o nevoeiro e se concluía entre o nevoeiro e a neblina…
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Notas do editor

(1) Vd. poste de 20 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15642: Agenda cultural (458): Conferência, sábado, 23, às 16h, na Universidade Lusófona, Campo Grande, em Lisboa, sob o tema "Quem mandou matar Amílcar Cabral?: Da investigação à atualidade dos factos". Oradores: José Pedro Castanheira, jornalista; Julião de Sousa, historiador; José Luís Hoppfer de Almada, analista político; moderação: Mário Beja Santos; organização: Embaixada da República da Guiné-Bissau; apoio: RDP África

Último poste da série de 31 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15561: (De)Caras (27): As últimas perdas de 2015: a minha mãe, uma amiga do Fundão e o camarada António Vaz (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1971/74)

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15048: Notas de leitura (751): “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër (Respício Nuno e Eduíno Sanca), Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Creio que há no depoimento de Nhoma-Bitchofula Na Fafe alguns descontos a fazer, aspetos da narrativa serão excessivos ou até mirabolantes. Mas foi uma vida de peripécias, de fidelidades que acabaram em dissabores. É um homem de crenças, um Balanta orgulhoso do sangue e dos seus credos, e dos seus deuses. A escrita luso-guineense tem parágrafos luminosos, que nos dão conta que o português está a dilatar-se, a mudar de look e de natureza, neste caso na Guiné. E aproveito para lembrar que a primeira biografia de um ex-guerrilheiro do PAIGC registada na Guiné. Mais uma peça que a historiografia não pode descurar.

Um abraço do
Mário


Nhoma, um combatente em várias guerras da Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

Um ex-guerrilheiro do PAIGC, alguém que muito jovem, obstinadamente, quis combater ao lado do Kabi, entrega a história da sua vida a dois biógrafos. É um Balanta que se adorna de amuletos contra os maus-olhados. Lutou no sul até à independência e depois experimentou muitas guerras até ao assassinato de Nino. O que narra assombra e os biógrafos passam a limpo este extraordinário registo na língua luso-guineense, que não nos assombrará menos. É importante conhecer “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër, Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013.

Nhoma está em Guileje, vai de novo encontrar-se com Osvaldo Vieira. Osvaldo está furioso porque os guerrilheiros não conseguem tirar os tugas de Gadamael, oferece-lhe a missão de os combater, de os afugentar. Nhoma explica que nunca esteve em Gadamael: “Camarada Osvaldo, quando vens a Guileje tens de passar por outra margem, do lado de Sangonhá para poder chegar a Gadamael, mas eu nunca fui lá… Nem Sangonhá conheço direito”. Põe-se à frente dos guerrilheiros, incrédulo irá descobrir que os seus camaradas nunca ali tinham posto os pés. Vai com eles um conselheiro cubano. Metem-se pela mata, descobrem tropa portuguesa na praia, fazem fogo. E nada mais se fica a saber, assim se chega à independência, agora vemos Nhoma no Leste, a integrar o batalhão do comandante Paulo Malú. Depois esteve em Cabo Verde, mais adiante Buscardini (que será morto no 14 de Novembro de 1980) nomeia-o para adjunto de operações na polícia, será mais tarde inspetor-chefe da prisão da 2.ª Esquadra, em Bissau. É chamado por Nino que lhe confessa que está um plano em marcha para matar, a acusação maior é que ele defende os Balantas. Nhoma está atónito, há muitos anos que não ouvia falar em tribalismo. Em casa, reflete-se sobre esta conversa, recorda as diferentes ficções entre as alas na cúpula do partido. Temos depois, Nhoma adere ao golpe de 14 de Novembro. Nhoma, um ano depois, é nomeado pelo ministro do interior para ir controlar o Cacheu.

Seis anos depois do golpe de Estado, Nhoma é acusado de estar na tentativa do golpe de Estado de Paulo Correia, não demora muito tempo a perceber que se trata de uma maquinação reles, destituída de qualquer fundamento. E vê indefetíveis combatentes a serem torturados, a serem sujeitos às sevícias mais degradantes. Nhoma é condenado a sete anos de prisão e a prestar serviço social na ilha de Caraxe. Relata os sofrimentos que ele e os seus camaradas irão ali padecer. E em 1990 serão indultados, Nino anuncia a reconciliação, é nessa sessão que ele desabafa em voz alta e acusa o Kabi de ditador, desmonta a cabala dos Balantas quererem dar golpes contra o poder constituído, lembra-lhe as fidelidades do passado e grita-lhe: “Gostas de fabricar inimigos. Os Balantas protegeram-te e deram-te o nome de Kabi. A luta não pode ter gerado mortos. Dizem também que não sabemos ler, mas uma coisa é certa, a prioridade era estar na linha da frente e combater, cara-a-cara com os tugas. Não tenho mais nada a dizer”. E chegamos à guerra civil de 1998-1999. Temos aqui um parágrafo delicioso: “Nhoma parecia ter visto, em sonho, toiros negros com cabeça de kabaró, ruborizados, com as tranças de um escuro pardacento, dois chifres longos e afiados e enormes ráfias, também negras e vermelhas, caídas de cada lado, com uma espécie de garras de grifo, furiosas, correndo em sua direção”. Acordou e ouviu disparos de AK-47, depois disparos de bazuca. Viu a população em fuga, à varanda assistiu à explosão de uma granada bem perto de sua casa. Chegou-lhe a notícia de que Ansumane Mané capitaneava a revolta. Vai ao mercado, tranquilamente, e é detido. No interrogatório, esbofeteiam-no e espancam-no. É levado para marinha, metido numa prisão fétida, guardado por senegaleses. Arranja material para escavar um buraco, ele e vários presos políticos são bem-sucedidos. É encontrado pela tropa da Junta, e assim chega à base aérea e depois vai até Canchugo para fazer tratamentos. Irá encontrar os seus captores, é uma cena pungente. Estamos agora em Maio de 1999, pelo que se lê no seu relato, as tropas fiéis a Nino, os “aguentas” ou “anguentas”, são acusados de reatar a guerra. Nhoma é nesta altura diretor-geral adjunto do Ministério do Interior. Descreve: “Ao cair da noite, a frente comandada por Bubo Na Tchuto chegou à Chapa de Bissau. Antes do galo da madrugada, atingiram o mercado de Bandim. Ao espreitar o sol matinal, surpreendidas, as milícias anguentas receberam ordem para se renderem. Alguns desfaziam-se das fardas com medo das represálias. Começou a caça às bruxas. Houve execuções sumárias. Era urgente a Junta Militar assumir o controlo da situação para não haver um verdadeiro banho de sangue”. Nino refugia-se na Embaixada de Portugal. Nhoma murmura: “Cabral, aqui estamos de novo… Ainda não nos cansámos! Não parámos porque as instruções que nos deixaste para defender a nossa terra e o nosso povo não estão a ser cumpridas”.

Bissau ficou com as suas feridas, que vão demorar décadas a sarar. Entrámos no derradeiro capítulo. Nhoma fora promovido a tenente-coronel. Ansumane Mané revolta-se contra Kumba Yalá. Acabará morto perto de Quinhamel, na tabanca de Blom. Nhoma vai buscar Kumba e leva-o par o palácio presidencial. O sangue derramado não pára, Veríssimo Seabra será assassinado, um amigo dos dois, Tagme Na Waié, sucede-lhe. O Kabi vem do exílio. Tagme Na Waié jurara vingança a Nino Vieira. Tagme acusa Nhome de conspiração, Tagme rompe com Bubo Na Tchuto. Nhoma encontra-se com Nino e pede-lhe para não se candidatar à presidência, sabia-se que Nino tinha criado um partido, o PRID, exclusivamente para suporte da sua candidatura. Nhoma recrimina-o: “Lembra-te bem do que se passou em Conacri, depois da morte de Cabral. Que nome terá esse partido que vais criar? A tua fama, a tua história é no PAIGC. Volta para lá, mesmo como simples militante”. Os ódios estão à solta, e com ajustes de contas. Tagme morre numa explosão no Estado-Maior. No dia seguinte é a vez de Nino. Nhoma foi até à residência do Kabi, na rua Angola. Ao aproximar-se da casa viu gente a saquear os móveis. Encontrou o corpo do Kabi estendido no chão. Lá estavam as cartas, sobretudo do naipe de espadas. Nhoma chora, curva-se perante o chefe da guerra que muitos anos antes admirara. Por tudo quanto se passou na sua vida, Nhoma entendeu dar a sua contribuição contando o que viveu, como e com quem viveu, a sua alma anseia uma paz verdadeira para a Guiné-Bissau.
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Nota do editor

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segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15034: Notas de leitura (750): “Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër (Respício Nuno e Eduíno Sanca), Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
O que me cativou do principio ao fim neste livro foi a língua portuguesa. Frases como estas: “Desenhou-se-lhe um fulgor bravo no rosto” e também: “Outra questão que sazonalmente visita os nossos pensamentos” e, mais ainda: “Transpirava aquecido pelas notícias”.
É uma biografia onde cabe tudo, até pormenores de feitiço e cartomancia no assassinato de Nino: “Um molhe de cartas estava em cima da mesa e ainda por revelar. Voltou sete cartas, quatro delas eram naipes de espadas, uma de paus e duas de copas. Logo junto ao corpo encontrou duas, o nove de paus colado ao peito e o rei de copas no chão, perto da cabeça do defunto. Debaixo de duas cadeiras encostadas à parede havia mais duas cartas, a quina e o sete de espadas. O dez de espadas estava junto à catana. À entrada, no chão e coberto de sangue, jazia o quatro de espadas. Na parede salpicada de sangue estava colado o sete de copas”.
É um livro de assombro, há que ler com cuidado, a memória do biografado escorrega por vezes para a fantasia.

Um abraço do
Mário


Nhoma, um combatente em várias guerras da Guiné-Bissau (1)

Beja Santos

“Nhoma, uma trajetória de luta”, por Bnur-Batër (Respício Nuno e Eduíno Sanca), Edições Corubal, Guiné-Bissau, 2013, é um livro surpreendente, viciante, numa primeira leitura fica-se perplexo e por várias razões: a sinceridade do depoimento, aquela criança balanta que queria ir para a luta e que se formou e mantém os seus rituais animistas, de valor indiscutível; o lindo idioma luso-guineense em que os biógrafos contam a história da vida de Bitchofula Na Fafe, nada me tinha sido dado ler neste estuário de um português antigo, derivado do crioulo, elegante, vocábulos que se entrelaçam como ramos de floresta-galeria e nos embriaga pelo prazer da leitura; e a própria trajetória de um homem que tudo ofereceu, que se enredou em fidelidades, que conheceu a prisão e a abjeção, e que viveu nas antecâmaras a ditadura de Nino Vieira, é diante do seu cadáver que termina este exercício biográfico.

Os biógrafos explicam os seus intentos: “Os factos aqui evidenciados poderão, em certa medida, contribuir para a compreensão do que tem constituído o grão de areia na engrenagem para a consolidação da ideia de Estado: o confronto obstinado entre o presente e o passado recente e o seu contágio ao imaginário coletivo das gerações mais novas”. Bitchofula Na Fafe é uma criança quando adere, na região de Catió, à guerrilha, entrará em Guileje depois da retirada das tropas portuguesas, não esconde a profunda admiração pelo Kabi, Nino ou João Bernardo Vieira. Irá participar no golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980. Em 1986, é acusado e detido, alegadamente por estar envolvido na tentativa de um golpe de Estado capitaneado por Paulo Correia e Viriato Pã. Passou anos no cativeiro sem qualquer julgamento, descobriu à sua custa que a Guiné e os seus líderes tinham encetado um processo autofágico; durante a guerra civil Nhoma foi forçado a juntar-se à rebelião, por ter sido preso pelos fiéis a Nino, sem saber por que razão. Novamente preso, lidera uma fuga digna do cinema. Será um dos principais promotores da revolta contra Ansumane Mané, em defesa de Kumba Iyalá. Mas Nhoma tinha mais peripécias dramáticas para presenciar: a destituição do Presidente da República, os assassinatos de dois chefes de Estado-Maior General das Forças Armadas, o regresso de Nino e a sua execução. Vê desaparecer camaradas de trincheira e de muita conivência.

A descrição da infância obrigatoriamente que nos maravilha: “O filho macho de Tchambu cresceu em Kablol e atingiu a classe de idade de nghayé-gdanh (última fase antes de atingir a fase adulta). Parecia uma palmeira, era alto e magro. Usava tranças rentes e negras. Enfeitava os pulsos e os tornozelos com braceletes de plástico e fibras vegetais. Ao pescoço pendurava um tubo de borracha preto e fino. Tapava as nádegas com lopé. Aprendeu com os miúdos da sua idade a olhar para o céu, com muita reverência”. E mais adiante: “A tiracolo, penduravam um barkafon (espécie de taleiga que serve para transportar comida e outros utensílios) onde guardava comida. Nesse grupo de rapazes, haveria quem soprasse trovas típicas com longos chifres de boi e também quem se ocupasse de uma vara de cana de bambu comprida, totalmente amarrada com três fios de nylon, passando por cima da cabaça forrada com couro de gazela, chamada viola”. Nhoma sabe que há jovens que estão a preparar-se para a luta e que têm um chefe, Kabi. Teimosamente, Nhoma impõe-se, quer aderir à luta. Vão para Cubucaré. Em Kablol aparece um capitão, irá disparar indiscriminadamente sobre gente indefesa, viera com um homem encapuçado que conhecia os guerrilheiros e simpatizantes. Segundo Nhoma, morreram sete pessoas. O capitão terá cometido um equívoco, a gente morta não colaborava com a guerrilha. Segue-se um pormenor curioso: “Kablol era exemplar para as autoridades coloniais desde os tempos em que o prisioneiro de delito comum, Btakda NGugna, recusou evadir-se durante a libertação de Nino do calabouço de Catió. A confiança dos tugas foi quebrada com o assassinato do guarda-sipaio Yalá Na NFad, que tinha iniciado o arrolamento para o imposto. O chefe da tabanca de Kablol pediu dois rapazes para escoltarem Yalá a um outro chefe de tabanca. Ao atracarem na outra margem, foram intercetados por Nino que capturou Yalá e o liquidou, deixando o cadáver no meio da estrada, como represália por o ter denunciado aos tugas”. Nhoma descreve a partida dos jovens para a guerrilha, como recebeu ordens para regressar a Kablol e ajudar a família, regressou mas pouco tempo depois quis voltar para a mata. Irá conhecer Abel Djassi, nome de guerra de Amílcar Cabral. O encontro foi intempestivo. Temos aqui referências aos acampamentos do Sul, pena é que a omissão cronológica seja absoluta, não sabemos se estamos ainda em 1962 ou 1963, fala-se em Porto de Gã-Djola, no acampamento de Mafelé-Dangó, em Tchuguesinho e nos seus primeiros combates com as tropas portuguesas.

Abruptamente, chegamos a 1969, já existem armas antiaéreas de quatro canos, ZPU-4, e chega Osvaldo Vieira da barraca de Unal, nova conversa intempestiva. Nhoma recebe uma incumbência precisa, não se sabe em que data, mas ele diz aos seus biógrafos: “A prioridade do comando da luta era impedir o projeto dos tugas de alcatroar a estrada de Kufar até Catió, via Cabaceira. O projeto já estava em execução e haviam construído um troço considerável. Nhoma e outros entraram em ação para bloquear o projeto, tendo transformado em cinzas o aeródromo de Kufar e Kuduku Nalu. O ataque custou um bocado da gengiva a Nhoma, que a perdeu ao tentar afastar uma granada inimiga que explodiu, um estilhaço atingiu-o na boca”. Depois em Janeiro de 1973 aparece Pedro Pires a comunicar a morte de Amílcar Cabral. Virá a saber que o seu irmão Kintie Na Fafe fora executado, fora um erro, ao que parece por uma denúncia de Maria Turra. E depois recebe instruções de Nino para ir até Mejo. Diz aos seus biógrafos que capturaram um alferes que depois foi expedido para Kandjafra (que nós designamos por Kandiafara). E diz algo que a historiografia portuguesa irá certamente dizer que é fantasioso: “Os guerrilheiros conseguiram do alferes capturado informações decisivas que viriam a servir na execução do plano de ataque a Guileje (importa recordar que o preparador desta operação, Osvaldo Lopes da Silva, nunca fala em informações oriundas dos portugueses). Porém, este discutiu com Kabi apostando que a guerrilha não será capaz de conquistar aquela guarnição altamente fortificada. As atitudes do oficial português perante o sucesso da operação determinaram a guerrilha e reforçaram a estratégia de ataque”. Depois da retirada das tropas portuguesas, Nhoma foi designado para guardar Guileje. Diz que o alferes capturado não sobreviveu e que os guerrilheiros encontraram jantar ainda no lume (coisa impossível, os guerrilheiros esperaram vários dias para entrar em Guileje, encontraram escombros, abrigos e muita bebida, houve bebedeira até fartar…). Estamos em crer que Nhoma quis dar uns ares de cowboy aos biógrafos e excedeu-se na fantasia. É pena.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15026: Notas de leitura (749): "Kassumai", por David Campos, publicado pela Associação Chili com Carne, Dezembro de 2012 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14064: Notas de leitura (659): “Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal”, por Fafali Koudawo, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 2001 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2014:

Queridos amigos,
É sempre bom saborear um exercício de grande aplicação e de análise talentosa.
O doutor Fafali Koudawo é nome sonante na investigação guineense e devemos-lhe esta primorosa análise comparativa das primeiras eleições legislativas pluralistas em Cabo Verde, em 1991, e as que ocorreram em 1994, na Guiné. Nas primeiras, o PAICV perdeu-as, nas segundas, o PAIGC saiu vitorioso, obteve uma maioria absoluta no Parlamento.
Este minucioso estudo reflete dois percursos de liberalização política com dois desfechos radicalmente diferentes. E ponto curioso, podemos ver as raízes do mal que então, como hoje, a Guiné-Bissau enferma.

Um abraço do
Mário


Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal

Beja Santos

“Cabo Verde e Guiné-Bissau: Da democracia revolucionária à democracia liberal”, por Fafali Koudawo, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 2001, é um ensaio de leitura obrigatória para entender o que distinguiu as eleições ocorridas em 1991 em Cabo Verde das eleições guineenses de 1994. Fafali Koudawo, doutor em ciências políticas e diretor de pesquisa no INEP, dá-nos uma rigorosa e bem desenhada análise de dois percursos de liberalização política que tiveram desfechos radicalmente diferentes.

Primeiro, Cabo Verde e a abertura que pôs termo ao monolitismo. O PAICV começou muito cedo a mostrar os seus limites no contexto cabo-verdiano. Logo em 1979, a chamada “crise dos ministro trotskistas”, no ano seguinte, em Bissau, deu-se a rutura dos partidos chamados irmãos, e com ele o fim do projeto do Estado binacional. O PAICV nunca descurou a diáspora, foi-se adaptando aos diferentes contextos que enfrentava o país: a reforma agrária, a reforma da administração pública, a reforma do sistema económico, abrindo-se ao setor privado. Em janeiro de 1990, o primeiro-ministro Pedro Pires reconhece que havia uma evolução das mentalidades e vinha denunciar os aspetos, a seu ver negativos, de tais evoluções, sobretudo o egocentrismo. Extrai ensinamentos dos acontecimentos políticos da Europa de Leste, o PAICV decidira a abertura ao pluralismo político, curiosamente a posição mais conservadora veio dos jovens do partido, julgavam-se guardiães do templo da democracia nacional revolucionária. Tratava-se de um partido único que agia com realismo, não queria escapar a uma transição pacífica para o multipartidarismo, ao longo do ano foram aprovados os textos jurídicos que deram moldura à mudança de regime. Em janeiro de 1991, o Movimento para a Democracia, único partido da oposição legalizado, saiu vitorioso. Que explicação Fafali Koudawo veio a encontrar para esta evolução? A vontade de adaptação foi apoiada do topo, começou em Aristides Pereira. O PAICV confiava na liberalização para uma nova relação de forças sociais e confiava na fidelidade popular. Pedro Pires fazia o seguinte balanço: “Fizemos um percurso de pelo menos quinze anos. Desse percurso de quinze anos estão à vista os resultados. Resultados políticos, económicos e sociais. Nós pensamos que em Cabo Verde construímos coisas novas. Temos muito que perder se não fizermos as coisas de acordo com a lei e no quadro das instituições existentes no país”.
Um analista conceituado, José Vicente Lopes, escrevia ao tempo: “Quando se analisa, em última instância, o processo de construção, reformulação e por vezes destruição do Estado nos nossos cinco PALOP, conclui-se que Cabo Verde era, no início dos anos 90, o que não só conseguira preservar o que herdara, mas também fora capaz de acrescentar uma importante mais-valia ao património recebido da situação anterior, em termos de administração do Estado”. O PAICV não admitia o desgaste do poder, parecia insensível às manifestações da degradação do clima social durante a segunda metade dos anos 1980. Se bem que monolítico e paternalista, o PAICV possuía diálogo interno e capacidade para sanar esses mesmos conflitos. Para Fafali Koudawo havia uma causa mais longínqua para esta derrota, o facto do PAIGC se ter apoderado de Cabo Verde com um comportamento hegemónico, desconhecendo então as realidades de Cabo Verde, confrontando-se com a Igreja Católica, enfim, ingenuidades que deixaram sequelas e que levaram à fatura de 1991.

Segundo, a transição política na Guiné-Bissau é um enredo de equívocos ou pouco esclarecidos ou que deixaram rastos de rancor. Por detrás do Movimento Reajustador do 14 de novembro de 1980 estão lutas fratricidas entre a ala militar e a direção política do PAIGC; contradições entre guineenses e cabo-verdianos em relação ao projeto de Estado binacional; dificuldades nascidas da passagem da teoria do Estado revolucionária à prática administrativa num contexto mal preparado para tal experiência. Depois do 14 de novembro deu-se uma desagregação da herança do período de libertação, tornou-se claro que o PAIGC não se adaptava ao credo fundador: um Estado com dois países; uma economia estatizada eficiente; e uma democracia nacional revolucionária imbuída no sentimento das massas. Aos poucos tudo foi caindo no abandono. A viragem na política económica, timidamente, deu-se a partir de 1983, era só o reconhecimento de que o país estava numa crise económica profunda. Ademais, com o 14 de novembro, acendeu-se o poder pessoal a que alguém chamou o bonapartismo presidencial. O PAIGC fez tudo reactivamente para não perder o controlo de monolitismo mas o adensar da crise económica falou mais alto. E por etapas ziguezagueantes, ocorreu a transição. A carta dos 121, publicada em junho de 1991, para a pedir a democratização interna do PAIGC, acabou por exacerbar contradições no seio do partido, apareceu uma Comissão Multipartidária de Transição no ano seguinte e foi criada depois uma Comissão Nacional de Eleições. Mas surgiu areia na engrenagem, em 17 de março de 1993, morre o major Robalo de Pina, homem de confiança do presidente Nino Vieira, anos mais tarde, o antigo presidente Luís Cabral declarou numa entrevista à rádio Renascença que teria sido Nino Vieira quem abatera o major no gabinete presidencial, que dali saiu embrulhado num tapete. E teceram-se vários rumores acerca das razões desta execução. O acontecimento deu origem à prisão de dirigentes da oposição.

As primeiras eleições pluralistas tiveram lugar em julho e agosto de 1994. O PAIGC ganhou. O candidato presidencial Kumba Yala bem protestou: “No interior do país, o PAIGC aproveitou a miséria para distribuir géneros alimentares e materiais de construção, aliada a uma forte pressão dos militares e paramilitares”. Resultados ambíguos, tudo ficou na mesma até que soltou a tampa um conflito aparentemente anódino ou pouco relevante: o tráfico de armas no Casamansa e a destituição de Ansumane Mané. Levavam-se anos de uma questão mal resolvida dos antigos combatentes da guerra da libertação; tornara-se escandaloso o fosso entre uma categoria de antigos combatentes privilegiados próximos dos círculos do poder político e a grande maioria dos antigos combatentes proletarizados; anos perdidos numa contínua má governação, uma ineficiência crónica na utilização dos recursos, uma permanente opacidade na gestão dos bens públicos, etc., etc.

A guerra civil veio demonstrar o elevado sentido de respeito pela soberania, os guineenses pegaram em armas e puseram em fuga senegaleses e guineenses de Conacri. Mas a legitimidade do poder ficou profundamente abalada, Ansumane Mane parecia um novo candidato bonopartista e Kumba Yala revelou-se um populista que em pouco tempo descontentou tudo e todos.

Em jeito de síntese, o autor esmiuça com rigor e apuro as diferenças nestes dois processos de liberalização, deixa bem claro que houve dois contextos de transição com resultados dispares, faz uma leitura atenta do papel dos emigrantes, dos emergentes partidos oposicionistas e como houve um choque entre duas lógicas de poder e mesmo dois tipos de legitimidade: a legitimidade das armas e a legitimidade das urnas.

O ensaio incontornável que nenhum historiador poderá ignorar para o estudo daquele tempo… onde radicam os mesmos padecimentos de que continua a sofrer a Guiné-Bissau.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14050: Notas de leitura (658): “A Enfermeira Chinesa”, de Rui Coelho e Campos, Sítio do Livro, 2014 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13439: Notas de leitura (617): “Guiné-Bissau - Páginas de História Política, Rumos da Democracia", por F. Delfim da Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,
Fernando Delfim da Silva é nome proeminente na política guineense. Licenciou-se em Filosofia em Leningrado, esteve ligado ao sistema educativo e foi dirigente da juventude Amílcar Cabral.

Entrou na rampa ascendente em 1990, como diretor geral da Presidência do Conselho de Estado, foi depois secretário de Estado e várias vezes ministro; foi prisioneiro político em 1972/73 e em 1985/86.

Este seu livro é assumido como uma coletânea de memórias da sua experiência política, tem um aporte sobre o processo eleitoral e o modo de o emendar e uma análise aos partidos políticos então existentes (conjuntura de 2003).

Trata-se de um depoimento incontornável, estranhamente silenciado em análises posteriores de gente credenciada. Coisa que faz parte dos chamados silêncios africanos…

Um abraço do
Mário


Fernando Delfim da Silva:
Memórias e considerações de um político guineense (1)

Beja Santos

Desafortunadamente, os escritos oriundos de antigos combatentes do PAIGC e de políticos guineenses pós-independência são raros e nem sempre esclarecedores.

Devemos a Luís Cabral, depois da sua prisão, após o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, um depoimento de inegável importância sobre a vida e obra de Cabral, é uma crónica que não deixa equívocos sobre a articulação estreitíssima entre o líder e a sua obra; Aristides Pereira começou por ser comedido e até entediante sobre a história do PAIGC e o fim da unidade Guiné-Cabo Verde, no final da vida, numa longuíssima entrevista a José Vicente Lopes foi de uma franqueza inesperada; Bobo Keita, uma figura militar de segunda grandeza, aceitou ser entrevistado e trouxe dados pertinentes sobre o regime de Nino e lançou uma outra luz sobre o assassínio de Amílcar Cabral; Filinto Barros, um dos políticos mais experientes e íntegros do PAIGC, escreveu um romance primoroso sobre a condição dos ex-combatentes numa Guiné-Bissau já desalentada, Kikia Matcho, o seu derradeiro testemunho foi publicado sem ser revisto, trata-se de um texto intragável onde o antigo político acusa muita gente de gestão danosa sem explicar muito bem quais os corretivos que deviam ter sido aplicados.

E há outros depoimentos, até aos dias de hoje, basta recordar o que aqui se escreveu sobre os livros de considerações políticas atuais assinados por Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. O nome de Fernando Delfim da Silva e o seu livro “Guiné-Bissau, Páginas de história política, rumos da democracia”, Firquidja Editora, Bissau, 2003, não me podia deixar indiferente.

Convivi com Delfim da Silva em 1991, quando ele, pela noitinha, a caminho de casa, e depois de ter trabalhado nos serviços da Presidência da República, me dava boleia entre a Pensão Central e a Cicer, salvou-me muitas vezes de dar trambolhões na noite sem lua; em 2010, quando eu estava a ultimar “A Viagem do Tangomau”, acedeu várias vezes a conversar comigo sobre a história recente da Guiné-Bissau, registei os seus pontos de vista, estou certo que nos despedimos com respeito e consideração mútuos.

O livro do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros divide-se entre considerações de por vezes do grau íntimo sobre políticos guineenses e uma vasta apreciação sobre o processo eleitoral, isto em vésperas das eleições de 2004, após o afastamento compulsivo de Kumba Yalá da Presidência da República onde este, pouco antes da partida, dissolvera a Assembleia Nacional Popular. Por razões compreensíveis, não cabe nesta recensão dissecar as suas opiniões sobre um sistema eleitoral mais apropriado para a Guiné-Bissau, vamos ater-nos às considerações políticas.

Ele chama ao seu depoimento a história de uma geração, “uma história que ninguém sabe quando vai terminar, nem como vai terminar”. Geração vitoriosa, que levou a Guiné à independência, geração do 14 de novembro de 1980, que cindiu o PAIGC a que se seguiu o golpe da polícia política no chamado “caso 17 de outubro de 1985”, e depois a guerra civil de 1998-1999, com outros episódios pelo meio menos relevantes mas muitíssimo significativos de um poder autocrático que procriou um golpismo militar permanente.

É um livro de recordações, por vezes circulares, por vezes ordenadas na cronologia dos factos. Recorda as primeiras eleições legislativas e presidenciais livres, as de julho de 1994, acreditava-se então numa transição política de sucesso. Politicamente, sempre segundo Delfim da Silva, foram falhanços atrás de falhanços, daí ele considerar de primeiríssima importância a necessidade de se construir um modelo de maior justiça eleitoral, o livro termina por uma abordagem e descreve-os resumidamente, são apontamentos de consideração obrigatória para a historiografia política guineense.

Delfim da Silva afastara-se da política quando foi estudar filosofia na então Leninegrado. Em 1990, diz ter acreditado no processo de transição democrática e tornou-se num estreito colaborador de Nino Vieira. Acompanhou a revisão constitucional de maio de 1991 que revogou o artigo 4.º que consagrava o PAIGC como (única) “força política dirigente da sociedade e do Estado”, que tornou possível o aparecimento de legislação sobre os partidos, a liberdade de imprensa, o direito de reunião e manifestação e a liberdade sindical, entre outros.

Ninguém debateu nem ninguém escreveu, nem ninguém anteviu que a competição interpartidária podia vir a acarretar um populismo extremamente corrosivo no quadro de uma democracia parlamentar de fresca data. Parece ter havido uma confiança cega na transição democrática. O PAIGC vivia ferreamente atado aos princípios definidos por Cabral quanto ao partido-Estado, desde 1964. A omnipresença do PAIGC parecia um dogma, como escreveu Amílcar Cabral:

“Estamos organizados como um partido: por tabanca, por zona e por região. O Sul da Guiné é dirigido por um Comité Nacional das Regiões Libertadas do Sul, e o Norte é dirigido por um Comité Nacional das Regiões Libertadas do Norte. Isto constitui uma estrutura básica de Governo. De facto, as regiões libertadas têm já todos os elementos de um Estado – serviços administrativos, serviços de saúde, serviços de educação, forças armadas locais para a defesa dos ataques portugueses, tribunais e prisões. O problema imediato é alargar o nosso Estado até abarcar todo o país. A transição para a estrutura do Estado não será um problema”.

E assim aconteceu, o PAIGC instalou-se em Bissau, em outubro de 1974, e teve a ilusão da sua capilaridade por todo o território, planificou a economia, a direção política imaginou uma industrialização pujante, cercou-se de uma polícia política e instalou o esbirrismo, com os insucessos procuraram-se complôs irresponsáveis, caso dos comandos africanos; a latência da tensão entre os nacionais e os cabo-verdianos atingiu o clímax com uma nova proposta de revisão constitucional.

Nino coordenou o golpe, o poder militar superou o poder político, deu-se a cisão com os cabo-verdianos e a prisão de figuras importantíssimas da luta, guineenses de gema. Reforçou-se o poder autocrático, graças a militares como Ansumane Mané. Delfim da Silva recorda figuras que ele classifica como importantes, caso de Sanussi Cassamá que em julho de 1992 ascendeu a chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, nele se depositou esperança da reforma das Forças Armadas, institucionalizando-as em parâmetros modernos, adequados à tradição democrática. Sanussi Cassamá morreu de doença e sucedeu-lhe Ansumane Mané.

Estava lançada, com insidiosa violência, a questão militar que parecia resolvida desde o Congresso de Cassacá, em fevereiro de 1964. A questão militar entrou de enxurrada na vida política guineense a partir de 1980: o descontentamento dos antigos combatentes, a arrogância dos agentes da segurança do Estado, a clique militar à volta de Nino, uma burocracia de Estado montada à custa dos heróis indiscutíveis, fomentaram rivalidades e espírito de complô que irão desembocar na humilhação de Victor Saúde Maria, na paranóia de um “golpe militar Balanta” e no caso de Paulo Correia e de outros dirigentes, fuzilados em 1986.

(Continua)
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Nota do editor

Ultimo poste da série de 25 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13435: Notas de leitura (616): “Pluralismo Político na Guiné-Bissau", coordenação de Fafali Koudawao e Peter Karibe Mendy (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12782: Notas de leitura (568): "O Reencontro, Da Ponte Aérea à Cooperação", por General Gonçalves Ribeiro (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
Não vale a pena acrescentar mais pormenores sobre o recuo que constituiu o conflito político-militar, como o mesmo levou à destruição dos múltiplos ganhos adquiridos, na formação, na preparação de legislação, nas obras de engenharia civil e militar, no apetrechamento de lanchas para a vigilância das águas territoriais, entre outros domínios.
O registo do General Gonçalves Ribeiro vai até 2006, apelo a quem dispõe de elementos sobre a Cooperação Técnico-Militar até à atualidade que faça o favor de mos emprestar.

Um abraço do
Mário


A Cooperação Técnico-Militar e a Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

O livro “O Reecontro, Da Ponte Aérea à Cooperação”, do General Gonçalves Ribeiro (Editorial Inquérito, 2006) dá importante informação sobre o histórico da cooperação técnico-militar na Guiné-Bissau. Fez-se referência, no primeiro texto, à execução dos diferentes programas que ocorreram entre 1991 e 1998, data em que se desencadeou um conflito político-militar que deitou por terra parte importante dessa cooperação, como se referiu.

No auge dos combates, em 23 de Junho, é divulgado o programa da autodenominada Junta Militar para Consolidação da Democracia, Justiça e Paz. A vida dos cooperantes portugueses, militares e civis, era cada vez mais difícil. A Embaixada de Portugal estava superlotada, na residência da Cooperação Técnico-Militar iam aparecendo profissionais de saúde e empresários, à busca de abrigo. Em 11 de Junho, cerca de 2 mil refugiados e desalojados foram evacuados no “Ponta de Sagres” e cinco dias depois entrava em ação a fragata “Vasco da Gama”. A comunidade internacional buscava soluções para o conflito, logo no fim de Julho se concluía um memorando de entendimento com os representantes do Governo e da Junta, ali se falava de trégua imediata, cessação das hostilidades, abertura imediata de corredores humanitários e de negociações. O autor considera que este memorando foi o elemento decisivo para que a Junta passasse a ser reconhecida pela comunidade internacional. Sucedem-se as reuniões, a CPLP, a CEDEAO, a OUA, a UE e a ONU participam. As reuniões deslocam-se para a cidade da Praia em 25 de Agosto, assistem representante da CEDEAO e da CPLP. Os dias passam, há avanços e recuos, as condições de vida continuam a degradar-se sobretudo nas áreas da alimentação, saúde e energia.

Em 15 e 16 de Setembro teve lugar em Abidjan a segunda reunião, comparece a OUA, propõe-se uma missão conjunta de observação CEDEAO/CPLP, apoiada por uma força de interposição. No início de Outubro, o Ministro da Defesa da Guiné-Bissau convida o adido militar português, conversam longamente, Nino Vieira pede um maior empenhamento direito de Portugal. O embaixador português e o adido militar conversam com os dois contendores. Aqui e acolá há tricas, trocas de tiros, faíscas que parecem incontroláveis. Todos lutam pelo cessar-fogo, o problema é que há enormes preconceitos de um lado e do outro. A 23 de Outubro, a Junta Militar lançou um ultimato a Nino Vieira, dá-lhe 48 horas para o aceitar e caso contrário ameaçam com “o assalto final a Bissau”. Nova agitação da comunidade internacional, a tensão reduziu-se e a 29 de Outubro Nino Vieira e Ansumane Mané encontram-se em Banjul, a capital da Gâmbia e daqui seguiram para Abuja, capital da Nigéria. É aqui que se assina um acordo ratificado por outros Chefes de Estado, o cessar-fogo parece de pedra e cal, nomeia-se uma comissão executiva conjunta, mas a instabilidade prosseguiu, chegou a vez da Assembleia Nacional Popular retirar a confiança política a Nino Vieira.

Passado o susto, constituiu-se um Governo de Unidade Nacional, empossado em Fevereiro de 1999. A última gota do copo de água ocorreu em Maio, Nino Vieira não aceitava desarmar o Batalhão da Guarda ao Palácio Presidencial, a Junta Militar respondeu apoderando-se de armas e munições armazenadas em contentores à guarda da força de interposição, a seguir, reiniciaram-se violentos combates nas ruas de Bissau. Era uma inesperada ofensiva em que a Junta procurava ocupar o Palácio Presidencial. A Embaixada de Portugal recebeu um pedido de asilo político de Nino Vieira, a Junta estava vitoriosa, bandos desgovernados pilharam diferentes edifícios estatais, incluindo a Embaixada do Senegal e o Palácio Presidencial. O Centro Cultural Francês foi pilhado e incendiado, cerca de três dezenas de pessoas, com os diplomatas à frente, tiveram que procurar refúgio na Embaixada de Portugal.

A nova ordem, aos ziguezagues, impunha-se. Malam Bacai Sanhá sucedeu a Nino Vieira. Fizeram-se centenas de detenções, não houve execuções sumárias. Logo que se começou a trabalhar no novo programa de cooperação. Com urgência, seguiram fardamento, medicamentos e rações de combate; abriu-se uma nova linha de cursos. A instabilidade mudava agora de figura e de estilo. Ansumane Mané parecia querer plenos poderes, apurados os resultados das próximas eleições gerais, elementos preponderantes da Junta demarcaram-se das propostas do seu líder. Os efetivos militares estavam empolados, isto quando não havia dinheiro nem meios para satisfazer as necessidades mais prementes deste elevado efetivo da tropa. Em Maio de 2000, começava o braço de ferro entre Ansumane Mané, o Presidente da República e o Governo. Mas as grandes confrontações ocorreram em Novembro desse ano, o epílogo dramático teve lugar no dia 30. Tudo começou com a questão das promoções, Ansumane Mané isolou-se e a 30 de Novembro, na sequência de um confronto armado de contornos pouco esclarecidos, Ansumane Mané foi morto.

É escusado de dizer que a instabilidade nunca mais recuou. O novo presidente, Kumba Ialá, teve o condão de se desautorizar a ponto de ter sido metido num golpe palaciano. O General Veríssimo Seabra, antigo apoiante de Ansumane Mané e figura grada da Junta Militar, figura proeminente da hierarquia militar foi morto em Outubro de 2004. Nino Vieira regressou ao país para concorrer às eleições presidenciais de 2005, triunfou.

O relato do general Gonçalves Ribeiro acaba aqui. Não restam dúvidas que o período de arranque da cooperação decorreu num clima de grande entusiasmo, orientou-se para a formação de jovens militares, classificou-os em aptidões várias; foi uma cooperação que permitiu vigiar as águas territoriais e dissuadir os barcos pesqueiros predadores; a engenharia deixou obra militar e civil; o conflito político-militar obrigou a que se reiniciasse tudo a partir quase da estaca zero.

Valerá a pena juntar ao registo do General Gonçalves Ribeiro toda a cooperação existente entre 2006 e a atualidade, para lhe conhecer os novos contornos dentro deste período tão atribulado e imprevisível.
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12767: Notas de leitura (567): "O Reencontro, Da Ponte Aérea à Cooperação", por General Gonçalves Ribeiro (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12767: Notas de leitura (567): "O Reencontro, Da Ponte Aérea à Cooperação", por General Gonçalves Ribeiro (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2013:

Queridos amigos,
O general Gonçalves Ribeiro tem um currículo invejável na área da cooperação técnica-militar.
Esta recensão circunscreve-se ao balanço que ele faz quanto à Guiné, está datado mas é uma importante pista de trabalho. Ele elenca as diferentes iniciativas e não esconde a sua consternação quando a guerra civil de 1998-1999 deitou praticamente por terra 20 anos de cooperação, houve que recomeçar e todo o entusiasmo dos tempos primigénios em que havia compreensão para as dificuldades do novo Estado praticamente arrefeceu.
Leia-se devagar, este repositório deixa bem claro que se procurou fazer cooperação com a Guiné sem reservas e de mãos limpas.

Um abraço do
Mário


A Cooperação Técnico-Militar e a Guiné-Bissau - 1

Beja Santos

O livro chama-se “O Reencontro, Da Ponte Aérea à Cooperação” e o seu autor é o General Gonçalves Ribeiro (Editorial Inquérito, 2006).
Gonçalves Ribeiro foi Alto-Comissário para os Desalojados, Representante Militar Nacional nos SHAPE/NATO, Diretor do Departamento de Operações do Estado-Maior do Exército e Diretor-Geral da Direcção-Geral da Política de Defesa Nacional.
Segundo o autor, este livro foi escrito com intenção de resumir e divulgar matérias e factos que julga não deverem ficar esquecidos sob o pó das prateleiras ou simplesmente confinados à memória dos que neles participaram. É um registo da relações que ao longo da década de 90 se foram tecendo e consolidando entre Portugal e os PALOP através da cooperação militar. Este registo é precedido de uma referência aos eventos da Ponte Aérea e o que de mais relevante ocorreu, segundo o autor, no período pós-descolonização. A Guiné-Bissau é objeto de um relato circunstanciado que aqui se resume. Tem talvez importância o que o autor escreve na introdução: “Fatores vários, alguns surgidos na fase da pró-independência, colocaram a Guiné-Bissau na vanguarda da Cooperação Técnico-Militar. Mencionam-se, entre outros: o companheirismo e respeito mútuo que deixaram rasto em muitos dos militares de ambos os países, que lá conviveram na altura da descolonização; o acesso de grande número de jovens e quadros guineenses a cursos de formação militar em Portugal, durante a década de 80; o interesse e o gosto do Presidente Nino Vieira em aprofundar os laços de cooperação com Portugal, especialmente na área militar; as muitas carências com que se debatia o Novo Estado e as inúmeras dificuldades que afligiam o seu povo; a natureza das Forças Armas da Guiné-Bissau que, embora mal estruturadas e com recursos mínimos, dispunham de alguma capacidade marítima para além da componente terrestre”.

O primeiro Programa-Quadro foi aprovado em 1980, abrangeu, prioritariamente, projetos de interesse para a sociedade civil, da engenharia de construções à mecânica de viaturas e do sistema de comunicações à fiscalização das águas costeiras. E traça um diagnóstico da Guiné-Bissau: “País pobre, os recursos naturais escasseavam (e escasseiam); inexistiam receitas públicas para a atividade corrente da administração, aliás desorganizada e inconsistente; a economia não ia além dos patamares da subsistência; a ajuda externa colmatava em grande parte as reconhecidas carências financeiras do país; alimentava, no entanto e indesejavelmente, a corrupção; os habitantes, na sua esmagadora maioria, viviam um quotidiano de miséria”.

Iniciou-se um curso de construções e reparações e os cerca de 20 novos especialistas foram colocados em trabalhos de reabilitação do seu futuro quartel, em Brá. Iniciou-se a Residência da Cooperação Militar Portuguesa e um conjunto de cursos práticos de mecânicos, bate-chapas, pintores, etc. A Residência da Cooperação Militar foi inaugurada em 1992, está situada em Santa Luzia. Nos anos de 1993 e 1994 foram construídas duas lanchas de fiscalização rápidas, concebidas para operarem nos mares e no clima da região e a nível do Exército iniciou-se um novo projeto de restruturação, do redimensionamento e do normativo jurídico respetivo e simultaneamente aprovou-se um segundo Programa-Quadro, isto numa altura em que já sucediam cursos práticos de operadores de transmissões, mecânicos, eletricistas, construções e reparações, no Exército, e de Eletromecânica Naval, Mecânica Naval, Básico de Marinharia, na Marinha.

Procedeu-se à análise dos resultados deste segundo programa para fazer a ligação ao novo biénio: a legislação da Defesa e das Forças Armadas da Guiné-Bissau fora aprovado pelo Governo, iria ser submetida à Assembleia Nacional Popular, as duas lanchas de fiscalização tinham tido trabalhos de manutenção e pequenas reparações, prosseguiam os cursos de Engenharia Militar, etc., etc. Mas a atmosfera dava sinais ameaçadores, tensões nas Forças Armadas, diferendo entre os antigos combatentes e uma nova geração de oficiais e abruptamente Nino Vieira suspendeu Ansumane Mané nas funções de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, com base de denúncias do seu alegado envolvimento no contrabando de armas a favor dos rebeldes do Casamansa. A instabilidade agravou-se, Ansumane Mané fez uma exposição declinando toda a responsabilidade nos factos e imputando o tráfico de armas ao Ministro da Defesa, Samba Lamine Mané. Os Combatentes da Liberdade da Pátria escreveram um documento que alinhava pelo mesmo diapasão. Em termos formais, a cooperação prosseguia, era desejada pelos dirigentes da Guiné-Bissau, listaram-se novos cometimentos como o fornecimento de fardamento, medicamentos e material para dotar o posto de primeiros socorros da base naval, etc. Em 7 de Junho de 1998, rebenta o conflito, as forças fiéis a Ansumane Mané desencadeavam uma ação armada de que a causa próxima parece ter sido a indigitação do novo Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Nino Vieira fez um apelo de apoio militar a países vizinhos, correspondido, efetivos da Guiné-Conacri e do Senegal irão aparecer no teatro do conflito. Grande parte da população guineense considerou a medida intolerável, sentiram-se ocupados por forças estrangeiras, esse estado de espírito agravou-se com os desmandos perpetrados pelos senegaleses na cidade de Bissau.

As autoridades portuguesas estabeleceram um plano de evacuação com efetivos navais e aéreos. O autor observa: “De realçar que quer a distribuição da ajuda humanitária, quer a evacuação de cidadãos ao longo das povoações ribeirinhas, já controladas por rebeldes, foi feita em total sintonia com estes últimos, não se registando da sua parte qualquer sinal de hostilidade em relação a cidadãos portugueses”. O embaixador português, Henriques da Silva, dava conta da existência de 150 a 200 mil deslocados e desalojados na região envolvente da capital e de grandes movimentações de pessoas transportando os seus parcos haveres para Norte e Leste do país. A situação alimentar a higiénica, naturalmente, degradou-se, tudo se tornou catastrófico quando o impacto de uma granada de morteiro no Depósito Central de Medicamentos destruiu a quase totalidade do respetivo stock.

Continuaram a travar-se violentos combates e os rebeldes mantiveram-se firmes em Brá, tendo infligido severas perdas aos senegaleses; progressivamente, antigos militares e jovens militares vindos do interior juntaram-se aos rebeldes. Bissau e arredores tornaram-se num horrível campo de combate. O autor comenta: “Um dos trunfos maiores dos homens de Ansumane Mané era a precisão com que utilizavam as armas de tiro curvo, morteiros e obuses de artilharia. Os alvos escolhidos eram, por norma, concentrações de senegaleses ou os locais onde as suas forças se encontravam aboletadas na cidade de Bissau. Muitos edifícios foram destruídos e outros arrasados. Entre estes últimos, os quartéis de Engenharia e de Serviço de Material, em Brá, por azar situados na linha da frente, onde se travavam os combates mais violentos (…) Igualmente atingido foi o bairro inaugurado, em 1995, pelo Instituto de Cooperação Portuguesa. Constituído por alguns blocos, um deles de construção recente, com vinte apartamentos, servia de alojamento a professores, diplomatas, médicos, etc., em funções diversas, a maioria de cooperação. Em finais de Julho, princípios de Agosto, as tropas senegalesas instalaram posições de artilharia nas imediações do bairro. A resposta dos militares da Junta não tardou. Os bombardeamentos contra aquelas posições provocaram severos danos em dois dos blocos. Os muros de proteção do complexo ruíram em vários pontos. Por ali entrou uma multidão descontrolada que pilhou e saqueou a maioria dos apartamentos”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE FEVEREIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12751: Notas de leitura (566): A descolonização da Guiné: Depoimentos de protagonistas - Parte 4 de 4 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)


O filho mais velho do Cherno Baldé,  de seu nome Abduramane Santos Baldé,  "junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito, em Setembro de 2000. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964"


Foto (e legenda):  © Cherno Baldé (2010). Todos os os direitos reservados.



1. Texto, que vamos dividir em duas partes, da autoria do nosso querido amigo  Cherno Baldé (*), e que veio acompanhado da seguinte mensagem, com data de ontem:


Estimado amigo e irmão Luis Graça,



Juntamente envio mais um texto fazendo parte das minhas habituais crónicas ou memórias do passado. Mudando um pouco de cenário, desta vez, os acontecimentos retratados são mais recentes e centrados sobre as tribulações de uma pequena familia, melhor, do seu desajeitadio chefe, no inicio da guerra de Bissau em 1998. Propositadamente, passei por cima do periodo que vai dos tempos de estudante em Bafatá, depois Bissau e da passagem pela antiga URSS. Voltarei, mais tarde, a este periodo se houver interesse.

O presente texto foi por mim escrito em 2000, alguns meses antes de emigrar para Portugal onde participei na construção do novo Estádio de Alvalade Sec. XXI (2001/02), como servente de qualquer coisa, na verdade não tinha as qualidades requeridas mas contava com a (cunha) ajuda de uma familia Portuguesa com a qual mantiamos excelentes relações de amizade e estima. Os encarregados topavam logo com o meu ar intelectual e a falta de jeito. Mandaram-me embora por duas vezes e reentrei outras tantas. Ai reencontrei os meus primos Ucranianos, enfim, foi muito interessante e enriquecedor.


Apreciem o texto e vejam se tem interesse para divulgação.


Peço desculpa se alguma vez disse o que não devia nos meus comentários e diga ao meu amigo Torcato para guardar a sua G3 porque eu sou, simplesmente, um pequeno rafeiro amigo da malta do quartel.


Com os melhores cumprimentos,

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

PS: A foto  [, acima,] mostra o meu filho junto ao rio Geba na baixa de Bafatá, em viagem para Fajonquito. Teria eu, mais ou menos, a mesma idade quando fugimos de Samba-Gaya em 1964.



RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU/
(CONFLITO POLITICO MILITAR DE JUNHO DE 1998)

(Domingo) - Dia 7 de Junho de 1998– o rebentar do conflito


Na madrugada do dia 7 de Junho de 1998 (**), ainda na cama ouvimos, de longe, tiros de armas de guerra. Na manhã do mesmo dia, ouviram-se tiros de armas pesadas acompanhadas de rajadas de metralhadoras. Em casa, apercebemo-nos que se passava coisa séria para justificar tamanho tiroteio. Sentámo-nos a mesa para o pequeno-almoço. Aqueles tiros não nos incomodaram em nada, afinal já tínhamos vivido outros golpes, coisa banal, seriam escaramuças localizadas e algumas mortes mas depois tudo voltava a normalidade.

Pessoalmente, e sem estar informado de nada, já estava do lado dos revoltosos. Podia ser da idade ou simplesmente pela mania das revoluções. Fosse quem fosse, na minha opinião, achava que já era tempo de varrer o regime vigente para instaurar uma nova ordem, inverter a marcha que estava a afundar o país e aprofundar o fosso da desigualdade económica e social entre uma elite parasitária vivendo à custa do Estado e a maioria da população, cada vez mais paupérrima e despojada de recursos e de oportunidades.

Por volta das 8h00, o governo, através do seu ministro da defesa nacional, comunicou pela rádio que um grupo não identificado tinha assaltado o quartel-general (QG) mas que tinha sido rechaçado e que todos ficassem em casa até ordens ao contrário.
- É um golpe de estado, de certeza! - disse para a minha mulher, quase com satisfação.

Entretanto, pediam calma a população enquanto nos quartéis havia uma grande agitação. Todas as estradas de acesso ao centro da cidade estavam bloqueadas, havia confrontos em S. Luzia (QG), muita agitação nos aquartelamentos de Brá e na Base Aérea, onde tropas do governo tentavam desalojar os revoltosos ou vice-versa.

Seguiu-se uma acalmia de algumas horas e no início da tarde houve um ataque ao quartel de Brá com armas ligeiras, sem qualquer efeito especial, pois a situação mantinha-se na mesma, ou seja, de vez em quando ouviam-se tiros de armamento pesado seguido de um compasso de espera. As horas que se seguiram foram de uma grande curiosidade, toda a gente sabia tratar-se de um levantamento militar mas ninguém sabia nada sobre os cabecilhas da revolta.

2º dia > Segunda feira, dia 8 de Junho

A partir do segundo dia (8 de Junho) começaram a circular algumas informações sobre o levantamento. Agrupados a volta do antigo CEMGFA, Brigadeiro Brick-Brack, (por sinal, mais um voluntário, chefe de guerra, originário dos países vizinhos, na senda de Abdul Indjai e Ca), uma parte das tropas e antigos combatentes tinham.-se amotinado contra o regime. As autoridades continuavam a pedir calma e assegurar que tudo era uma questão de tempo até controlarem a situação. Houve várias tentativas de tomada de assalto ao aquartelamento de Brá mas a situação continuava tensa e incerta.

Com a intensificação dos confrontos fomos avisados pela parte governamental de que devíamos evacuar a zona onde habitávamos, temporariamente, senão arriscávamo-nos a ficar entre dois fogos e sermos alvo de bombardeamentos. Oh,  pá! Não, já não estava assim tão satisfeito com esta decisão que nos afastava das nossas casas. Era, de facto, o início do nosso calvário que só terminaria com o fim da guerra, um ano depois.

O meu irmão mais velho, convocou uma reunião de emergência para nos informar que os membros da nossa família, enquadrados por ele, deviam afastar-se um pouco, mais a leste nos confins do Bairro militar, eu deveria ficar para cuidar da casa. Não houve contestação e assim, sem preparação adequada, as mulheres pegando naquilo que podiam mais as crianças, rapidamente, seguiram para cima, a leste do Bairro, onde ficariam ao abrigo da artilharia que estava a visar a nossa zona.

Esta forma simplista e confiante de pensar que tudo se resolveria rapidamente revelou-se depois muito prejudicial, pois, o que se previa ser para algumas horas viria a durar mais de um ano, e passo a passo seriamos obrigados a seguir para mais longe, longe e longe, e finalmente seria o refúgio.

3º dia > Terça-feira, 9 de Junho
  
No terceiro dia (9 de Junho), o meu irmão comunicou-me a sua decisão de sair de Bissau e partir para Fajonquito, nossa aldeia natal, onde iria esperar pelo desfecho da guerra em que se tinha transformado o levantamento de alguns dissidentes do regime. Sem saber que decisão tomar, acompanhei o meu irmão e um grupo de pessoas que tinham decidido sair de Bissau. Mandei a minha esposa e filho juntar-se à sua irmã mais velha, Djenaba,  no Bairro de Ajuda, na esperança de que talvez aquilo terminava em breve. Eu fiquei em Brá, na nossa casa. Entretanto, comecei a pôr em marcha um dos princípios de Amílcar Cabral ou seja, esperar o melhor, preparar-se para o pior.

Com o dinheiro que tinha,,  fui comprar alguns mantimentos pois calculava que dentro em breve podia não haver nada para vender ou comprar. No mercado alguns cacifos estavam abertos, as pessoas estavam agrupadas à volta de aparelhos de rádio ouvindo as poucas informações que a RTP fornecia e comentavam os últimos acontecimentos que circulavam de boca em boca. Foi ai que ouvi alguém dizer que os amotinados estavam a receber reforços de outros aquartelamentos do interior e que muitos jovens estavam a aderir às fileiras dos revoltosos. A proporção que o problema estava a ganhar e a perspectiva de que o conflito poderia arrastar-se por muito tempo,  desanimou-me muito.

Voltei para casa, abri o rádio para acompanhar a RTP, única rádio em funcionamento, que tentava conseguir informações sobre as razões do motim e os nomes dos cabecilhas. Tornou-se evidente que a situação no terreno não era tão favorável aos governamentais como faziam crer pela rádio nacional. Passei a noite em claro pois, os tiros eram esporádicos mas repetitivos.

4º dia > Quarta-feira, 10 de Junho

Na manhã do quarto dia de conflito (10 de Junho), sai de casa, atravessei a estrada principal do Bairro militar, tendo reparado que a estrada estava bloqueada e vigiada por tropas governamentais e que não havia circulação de viaturas. Para chegar ao Bairro de Ajuda, onde se encontravam minha esposa e filho, a única maneira era atravessar a bolanha a pé, lá para os lados de “manel iagu”. Foi para onde segui. Estava absorto nos pensamentos que se afluíam a minha mente de forma desordenada.

Lembrei-me dos tempos de estudante em Kiev e, da tensão permanente em que vivíamos, atravessando as ruas, com medo da agressão dos jovens locais que não perdiam uma única oportunidade para nos maltratar física e verbalmente. Por várias vezes, tinha sido alvo de agressões violentas, não propriamente por racismo, penso eu, mas porque estavam naquela idade quando se sente a necessidade de assumir riscos e desafiar o status-quo. Pese embora a nossa precária situação, não dávamos o braço a torcer. Uma vez, traído pelo embaciamento dos meus óculos devido ao frio, tinha entrado, sem dar conta, no meio de um bando de jovens, alguns dos quais tinham o dobro do meu peso e mediam perto de dois metros de altura numa zona considerada perigosa para os estrangeiros.

De repente senti que alguém me segurava por trás, impedindo-me de avançar. Estava com medo, mas nem por isso vacilei, virei-me para enfrentar quem quer que fosse. Os homens presentes diziam: Matem o macaco preto!. As mulheres, sempre mais humanas, gritaram-me para que fugisse. Eram muitos, aguentei por algum tempo mas depois tive mesmo que fugir debaixo das pedradas e insultos daqueles jovens ainda na idade da inocência, desprovidos de sentimentos de piedade e de amor ao próximo. Na briga, tinha perdido os óculos, as compras e parte das minhas vestes. As costelas,  doridas, deixavam entrar o frio por todos os lados em pleno inverno russo. Consegui arrastar-me andrajoso, sob o olhar curioso dos transeuntes, até a residência dos estudantes. Não queria que os colegas soubessem, mas os sinais no corpo eram por demais evidentes, tinha levado uma sova a valer. Estávamos em 1990 e a União Soviética tinha entrado na sua fase irreversível de perestroika e nunca voltaria a ser a mesma dantes. O perigo espreitava de todos os cantos.

“Minha Rosa - Diminga” ou a luz brilhante de um horizonte inacessível.

No momento, também, estava com medo. Um medo indefinível e amplo que acariciava todo o meu corpo e apresentava-se no horizonte da minha vida que ainda agora começava a florir. A minha situação profissional e familiar era estável, podia-se mesmo dizer boa, em comparação com a grande maioria, tinha a família que ambicionava e era director numa instituição pública ligada à manutenção das rodovias, ganhando relativamente bem.

No caminho, ainda se ouvia o ribombar dos obuses a partir da base aérea. O ruído atravessava toda a cidade para se perder nas águas do rio Geba. E cada vez que isso acontecia, instintivamente, curvava-me todo para a frente como se quisesse evitar que algo invisível me cortasse ao meio. à minha frente seguia o vulto de uma mulher que, também, fazia a mesma ginástica rítmica. Durante a marcha, caíamos e levantávamo-nos juntos sem parar, ao ritmo dos disparos, ela a frente e eu atrás.

Apesar do medo e da urgência do momento, acabei por fixar o meu olhar nela de forma insistente. Havia qualquer coisa de invulgar na sua forma de andar. Sobretudo, tinha reparado no movimento ondulatório das suas ancas. Porque é que insistentemente o meu olhar vai para as nádegas das mulheres? Não sei, ninguém me ensinou, deve ser hereditário. Fixei o meu olhar nas nádegas. Havia uma harmonia incrível de movimentos que me embalava e me cativava, que iniciava nos seus pés bem firmes no chão e subia, subia até as tranças dos cabelos levemente amarrados por detrás da cabeça felina. Ela possuía um corpo bem consistente, cheio e flexível que combinava com a dança frenética de subidas e descidas ondulatórias das nádegas –“unata defata ko iarta beréberé!”1.

Era estranho, os habitantes de Bissau viviam sob o choque de uma brutal guerra de quartéis, por enquanto, e eu devia pensar em coisas sérias, ia encontrar-me com a minha família e devia pensar numa forma de os tirar de lá. O meu irmão já tinha saído e toda a cidade estava em fuga. Eu não, estava ali colado atrás de umas nádegas que não conhecia de lado algum mas que me atraíam como as flores atraem as abelhas.

Impávido e feliz por aquele momento divino de contemplação, já não andava, corria, corria atrás daquela figura que parecia uma luz brilhante no horizonte inacessível da minha vida povoada de cenários de guerras. Sim, uma luz como a lua cheia numa noite escura que brilha mas não ofusca a vista, visão celestial. Corria como um sonâmbulo com as mãos em concha estendidas para a frente, num gesto ridículo e egoísta de não deixar cair nenhuma gota daquele mel doce da minha alucinação.

 Julgo que caminhámos três km, ou foram sete? Não sei dizer. Aquele cenário não me era estranho de todo. Onde o teria visto ou vivido? Ah! Sim, foi no caminho de fuga entre Berécolon e a fronteira do Senegal, ainda criança na inesquecível noite do ataque dos eternos terroristas da nossa terra em 1964. Não, é o filme de Flora Gomes, Mortu Nega.. Estamos a caminhar com o grupo de guerrilheiros que vai reforçar a frente destroçada pelos bombardeamentos da aviação inimiga. Atravessamos a lala a correr, curvados para a frente e agora embrenhamo-nos na floresta. “Cuidado com as minas!”, é o Capitão Mamadú que, à frente da coluna, de silhueta imponente, nos ordena: “Coloquem os pés em cima das minhas pegadas, e deitem-se no chão ao menor ruído!”. Parece imune ao perigo que nos espreita do ar e da terra, este rapaz valente. Ainda nos avisa: “Vamos acelerar o passo e se ouvirem o roncar de um helicóptero, dispersem-se e coloquem-se debaixo do primeiro arbusto, se não houver arbustos, então transformem-se em baga-bagas dobrando o corpo em dois!”.
- Hé, badjuda, kuma ki´u nomi? – pergunta a mulher grande à miúda a minha frente.
- Amí tchoma Diminga, Diminga de Bithame. 

A velha, sorrindo insiste:
N´hundê ku-na bai ? 
N´na bai djubi nh´ome k´stá na frénti – responde esta.
                                          
É isso, é a Diminga que está a minha frente. Chegamos à travessia d´água. A menina pára e vira-se para mim olhando, pela primeira vez, e cruza-se com o vazio dos meus olhos de sonâmbulo, fixos nas suas ancas largas e apercebe-se, num relance, da enormidade do desejo que me aflige. Ou não se apercebe? Pega na minha mão para ajudar-me a atravessar a água lamacenta. Sem perder tempo, aproveito o momento e a mão estendida para abraçar o seu corpo inteiramente e adormecer feito criança.
- Já cheguei! - diz ela.

Não compreendo. Como pode ela chegar se eu ainda nem comecei a andar embalado no seu peito macio - pensei comigo.
- Já cheguei a minha casa, agora podes continuar o teu caminho! - repetiu ela.
 Aproveitando a abertura do seu sorriso, balbuciante, perguntei:
 - Kuma kí´ú nomi ?
- Nha nomi´i Rosa – respondeu, baixando o seu rosto para fugir do meu olhar prenhe de angústias. Sem delongas, virou-se e seguiu seu caminho bambaleando levemente aquelas nádegas da minha perdição. “Rosa, chamam-te Rosa minha preta formosa, e na tua negrura, teus dentes se mostram sorrindo, teu corpo baloiça, caminhas dançando, lasciva e ridente, vais cheia de vida, vais cheia de esperança, em teu corpo correndo a seiva da vida, tuas carnes gritando e teus lábios sorrindo” (2).

Esquecido do mundo e da guerra, fiquei especado no chão a olhar infinitamente como se aquela imagem que se perdia lá longe levava também consigo o fim da minha atribulada existência de combatente do nada num mundo em constante mutação e de fugas para a frente. Lutas de libertação e/ou de apropriação, as aldeias queimadas e os campos abandonados, o fardo das regras e religiões que chegaram com o mundo novo, tudo, temperado no inevitável processo de esvaziamento da alma, a globalização, o gesto ridículo do mimetismo cultural, golpes e contra golpes, programas de ajustamento, crises financeiras…

 Ela não disse se era de Bitháme. Será que isso interessa? Também não tinha perguntado. Cheguei ao Bairro d´Ajuda sem saber se tinha caminhado ou voado com as asas que a visão daquela Rosa-Diminga me tinha incorporado. Em casa da Djenaba, reinava uma calma aparente pois,  estando o marido fora,  ela sozinha estava desorientada. Fazia e desfazia bagagens sem saber o que levar e o que deixar. Disse-lhes que devíamos fazer o que toda a gente estava a fazer, ou seja, sair para fora da cidade. Pegar o mínimo essencial, isto é, uma garrafa de água em cada mão.
- Não! - disse-me prontamente . Vamos esperar até amanhã.

Mais tarde soube que afinal ela não se tinha decidido a sair porque os seus vizinhos ainda não o tinham feito. Voltei para casa. Os tiros tinham cessado. Àquela hora da noite, já não havia nenhum movimento nas ruas do Bairro militar e certamente as casas também encontravam-se vazias. A noite foi silenciosa, longa e tensa. Eu, a tentar dormir, os ratos a explorar regiões antes proibidas na casa deserta, lá fora as BM (“baevie machine” - que literalmente significa máquinas de guerra em russo) a cuspir fogo de Estaline.

5º dia > Quinta-feira, 11 de Junho

Na manhã do dia seguinte ainda continuaram os tiros dos obuses. Dirigi-me ao mercado. Ainda havia gente aglomerada em alguns pontos tentando encontrar alguma coisa para provisão da casa ou do caminho. Todavia, o cenário de vaivém tinha dado lugar a uma única e longa fila de saída para fora da cidade. Depois do falhanço, um dia antes, da tentativa encetada por uma comissão Ad-Hoc de algumas pessoas de boa vontade de fazer sentar as duas partes na mesa de negociações, ficou claro para toda a gente que o conflito iria durar, transformando-se em guerra civil. O Comandante em Chefe não admitia negociar com um grupo de bandidos. Os primeiros contingentes de tropas dos aliados do norte e do sul já estavam a desembarcar no porto. Era uma situação insustentável. O fluxo das pessoas a caminho do refúgio era cada vez maior.   

  (Continua)

Notas do autor:

(1) “Não pila, não cozinha mas come do melhor “– Uma elegia masculina dedicada ao balanco ondulatório das nádegas da mulher africana, na lingua Fula.

(2) Amilcar Cabral (1924-1973), antologia poética.

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Notas de L. G. :


(**) Trata-se de 7 de Junho de 1998 e não 1997, como por lapso escreveu o autor. Foi o início da longa e sangrenta guerra civil na Guiné-Bissau. Nesse dia de domingo, 7 de Junho de 1998, um grupo de militares, liderado formado pelo brigadeiro Ansumane Mané (antigo chefe do Estado-Maior) fez um golpe de Estado com vista à queda do presidente Nino Vieira. As tropas militares rebeldes entraram em confronto com as
forças presidenciais, que serão ajudadas pelo Senegal e pela Guiné-Conacri.

Este conflito provocar centenas de mortos e milhares de refugiados guineenses, não só em Bissau como noutras localidades, que se espalharam pelo interior e por diversos países (incluindo Portugal).

Haverá uma primeira tentativa de acordo nos dias 25 e 26 de Julho, altura em foi celebrado o "Memorando de Entendimento", um documento que, em 25 de Agosto, viria a dar lugar ao cessar-fogo. As delegações do Governo da Guiné-Bissau e a Junta Militar, de Ansumane Mané, concordam em fazer um trégua.  No entanto, as coisas iriam complicar-se... A guerra civil prolongar-se-ia por mais quase um ano, com lutas pela conquista do território e expulsão das tropas estrangeiras, aliadas de 'Nino' Vieira. A maior parte da Guiné-Bissau acaba por ficar sob o domínio das forças revoltosas. 'Nino' Vieira acaba por aceitar um cessar-fogo em 7 de Maio de 1999. um novo cessar-fogo em 7 de maio de 1999, Refugia.se na embaixada portuguesa durante um mês, seguindo depois para um exílio de seis anos de exílio em Portugal (na sua residência em Gaia, arredores do Porto).

Fonte: Adaptado de Nino Vieira. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-09-17].Disponível em http://www.infopedia.pt/$nino-vieira.