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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9232: O meu Natal no mato (36): Conversas com um homem de Deus (Artur Augusto Silva, Quebo, 1962)


Guiné-Bissau > Bissau > Capa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos. (Bissau, 2006; edição de autor).



1. Há seis anos atrás, em finais de 2005, o Pepito (nickname do Eng Agr Carlos Schwarz da Silva, que vive e trabalha em Bissau desde 1975, sendo um dos fundadores da AD - Acção para o Desenvolvimento, hoje com 20 anos de existência) entrou  para a nossa "tertúlia" (agora conhecida como "Tabanca Grande", a comunidade virtual dos "camaradas e amigos da Guiné"). Vim a conhecê-lo pessoalmente em Lisboa,  em fevereiro de 2006. Mas antes disso, em meados de dezembro de 2005, ele tivera a gentileza de me enviar um conto, inédito, da autoria do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), a que chamou "um conto de Natal", acompanhado da seguinte mensagem:


Caro Luís,

Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.



Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schulz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.

Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.

Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele) e por isso te envio como postal de Feliz Natal.

abraços

pepito



2.  Publicámos este conto, escrito em 1962, na I Série do nosso blogue, em poste de 16 de Dezembro de 2005 (*), ainda antes portanto de sair, em fevereiro de 2006, o livro O Cativeiro dos Bichos (onde vem inserido o conto de Natal), em edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz). Porque grande parte dos atuais leitores do nosso blogue não o conhece, voltamos a publicá-lo, agora na II Série, e com pequenas revisões.  Na antologia de contos de Artur Augusto Silva (ao todo, 25), este ficou com o título, possivelmente original, "Noite luarenta de Dezembro"...


Recorde-se, por outro lado, que o autor, jurista de formação, era também especialista em direito consuetudinário, tendo publicado vários livros sobre os "costumes e usos jurídicos" dos fulas (1958), dos felupes (1960) e dos mandingas (1969).  A amizade com o Cherno Rachide e a sua família já vi vinha de muito longe, e tem sido mantida e cultivada pelo Pepito (que é amigo do actual Califa de Quebo-Forreá, o Cherno Aliu Djaló).


3. Noite luarenta de Dezembro (**)
por Artur Augusto Silva [, foto à direita]


Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid, enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.

Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.


Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.


O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar. Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».


Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens.

Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão - retorquiu o tubabo - então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o Tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos. Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga. Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
- Irmão Tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?


Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens. Mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus. Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.

A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares… Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do Tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.

[Artur Augusto Silva, 1962]


In: SILVA, Artur Augusto - O cativeiro dos bichos. Bissau: 2006. pp. 187-189. [
Ed. lit Henrique Schwarz, João Schwarz e Carlos Schwarz; prefácio de Henrique Schwarz; impressão e acabamento, Novagráfica, Bissau, Fevereiro de 2006]
__________


Notas do editor:


(*) Vd. I Série > 16 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

(**) Ultimo poste da série > 16 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9214: O meu Natal no mato (35): Um Santa Claus na forma de um barquinho (José da Câmara)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9117: (In)citações (36): Para melhor compreendermos a África... (Artur Augusto Silva, 1963)



Cota: A7/1.3_013.002

Assunto: Província da Guiné, Conselho de Governo, Acta da Sessão de 7 de Julho de 1964 - n.º 2

Membros presentes: Presidente: Governador da Província, Brigadeiro Arnaldo Schulz;

Vogais Eleitos: Mário Lima Wahnon, Dr. Artur Augusto Silva, Joaquim Baticã Ferreira;

Vogais Natos: Secretário-Geral, Inspector Administrativo, James Pinto Bull, Comandante Militar, Brigadeiro, Gaspar Maria Chaves de Sá Carneiro, Delegado substituto do Procurador da República, Dr. Severino Gomes de Pina, Chefe dos Serviços de Fazenda e Contabilidade, Director de 2.ª classe interino, Tomaz Joaquim da Cunha Alves


Secretário: Manuel Trindade Rodrigues Lisboa


Termos de referência: Ordem do dia: projecto de D.L. sobre a entidade a quem competirá o controle da migração de nacionais e estrangeiros; projecto de D.L. aprovando o regulamento de publicidade radiodifundida; projecto de portaria para aprovação do 1.º orçamento suplementar ao ordinário para o ano económico de 1964 dos C.T.T.; projecto de portaria fixando normas, disciplinando o exercício de comércio nas diversas localidades da Província e alterando a Portaria n.º 971, de 1-2-958.


Data: 7.JUL.1964
Tipo de Documento: Actas
Fundo: DIP - Documentos INEP/A7 - Fundo do Gabinete do Governador
INEP / A7-Fundo Gabinete do Governador / 2-Cons. Legislativo e de Governo / Actas

Fonte: Fundação Mário Soares / INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Bissau) (Com a devida vénia...)




1.  Pequena homenagem no âmbito de um duplo aniversário: o de um homem (Carlos Schwarz da Silva - Pepito, para os amigos - que fará amanhã 62 anos de vida, vida de um lutador e de um sobrevivente) e  o da sua obra (AD - Acção para o Desenvolvimento, de que foi um dos co-fundadores  há 20 anos, e de que é o diretor executivo)...

Uma dupla reprodução: por um lado, uma cópia de um ata de uma sessão do Conselho do Governo da Província da Guiné, com data de 7/7/1964, presidida pelo Governador da Província, Brigadeiro Arnaldo Schulz, com a presença do Dr. Artur Augusto Silva, na sua qualidade de vogal eleito...

Desconhecíamos este dado biográfica, o lugar que o pai do Pepito chegou a ter no Conselho do Governo da Província, em 1964 (ao lado régulo manjaco, Joaquim Baticã Ferreira, e de Mário Lima Wahnon), antes de ser preso pela PIDE, em 1966, no aeroporto de Lisboa, e impedido de voltar à Guiné, à terra dos seus antepassados, que ele tanto amou ao ponto de lá ter morrido, em 1983.

Por outro, reprodução de mais um excerto, com a devida vénia do livrinho  Pequena viagem através de África, de Artur Augusto da Silva (1912-1983), pp. 15-18 (Originalmente, uma "conferência pronunciada em 1963 no Salão Nobre da Associação Comercial da Guiné, no 46º aniversário da sua fundação", publicado em Bissau, 2009; ed lit, Henrique Schwarz, João Schwarz e Carlos Schawarz). [Os destaques, palavras-chave e realce a cores, é da nossa responsabilidade] (LG)

(…) Para melhor compreendermos a África, torna-se necessário descrever, embora sumariamente, as diversas formas de organização social que a tradição ainda mantém para, em seguida, lançarmos um olhar ao que se está tentando levar a cabo.




Anarquia


O primeiro sistema social, aquele que mais fere a compreensão dos ocidentais, é a anarquia que vigora nalguns povos africanos.


Tomemos, por exemplo, os balantas. A sua organização social corresponde à definição etimológica de anarquia: ausência de governo.


O sistema vigora em todos os agregados africanos de pequenas dimensões — agrupamentos sociais lhes chamaríamos nós — tenham eles por base a família, a religião ou associações de carácter defensivo-ofensivo, como as classes de idade.


O primado das condições materiais é o fulcro da organização anárquica: não existe, nem é necessária, uma autoridade nem força, porque as disputas são reduzidas ao mínimo pela aceitação tácita dos costumes imemoriais.


Sanção: desprezo da comunidade, suicídio, doença e morte, banimento


A desobediência tem como sanção um elemento moral da mais alta transcendência: o desprezo da comunidade. O homem que as sofre, na maioria dos casos, só no suicídio encontra uma fuga para o terrível isolamento em que passa a viver.


Por vezes, pode juntar-se ao desprezo da comunidade uma outra sanção moral, de fundo religioso: a doença e a morte provocadas pelos espíritos dos antepassados que velam pela boa ordem do povo.


Só em caso de extraordinária gravidade é que a colectividade toma uma deliberação extrema: o banimento daquele que infringiu o costume instituído pelos antepassados.


O parentesco ou a ligação em classes de idade é o vínculo que une os homens.


Regulação do(s) conflito(s)


E as próprias lutas dentro da tribo, mais se assemelham a competições desportivas do que a guerras, porque nunca ultrapassam o aspecto desportivo. Veja-se como entre os felupes, por exemplo, quando duas tabancas entram em guerra, logo surge outra tabanca que vai apreciar a luta e não deixa que esta atinja grande crueldade. Quando os árbitros vêm que a contenda toma foros de crueldade, logo intervêm e apaziguam os beligerantes.


Este sistema anárquico não vive, como pretendiam os teorizadores  europeus do século passado, de um individualismo sublimado, mas de um comunitarismo onde o indivíduo não existe.


Entre estes grupos anárquicos, não existe nenhum chefe — os balantas e os felupes, por exemplo, não os têm — e o único comando ou regra de vida é o costume legado pelos antepassados.


Poder-me-ão dizer que entre os felupes existe um chefe, «o Aiu». Mais uma observação precipitada daqueles que querem generalizar as nossas instituições a todos os povos.


O Aiu é um chefe que não comanda, nem é obedecido. Limita-se a revelar o costume. Mas porque o costume tem base mística, o Aiu é também o grande revelador.


O poder das crenças religiosas, uma liberdade ampla, uma vida comunitária sólida e uma igualdade de fortuna, mantêm a paz social e a felicidade do povo.


Entre os felupes, há uma palavra comum para designar LIBERDADE, PAZ, FELICIDADE: «kasumeie».


Como acontecia na Roma antiga, tudo o que perturbe a ordem, é considerado um sacrilégio. E sacrilégios são a ambição, a riqueza, a vaidade…


Do regulado ao império


O regime de regulados é outra forma de organização tradicional africana, ainda em vigor, e floresce normalmente nas regiões de estepe ou de savana.


Aí, a necessidade da defesa num ambiente aberto às razias ou algaras, obrigou as famílias a reunirem-se em volta de um chefe simultaneamente político e religioso.


Aliás o binómio temporal-sacral das nossas sociedades é completamente desconhecido em África. Quem detêm o poder temporal, guarda também o poder religioso.


Por vezes, esta poeira de pequenos regulados aglutina-se e surgem os impérios que a história africana regista: do Gana, do Mali, dos Zulus, etc. etc…


As dificuldades da comunicação cedo vêm quebrar a unidade e de novo se volta ao sistema dos regulados.


Quem conhece a história da Europa medieval, facilmente compreenderá este fenómeno. (…)

_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 29 de Novembro de 2011 >  Guiné 63/74 - P9114: (In)citações (35): Museu Memória de Guiledje, em que a história é o conjunto das histórias de todos (Pepito)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8793: (In)citações (35): Mamadú Baldé, amigo do meu pai, deveria ser natural do Futa Djalon, Guiné-Conacri (Pepito)

1. Mensagem do nosso amigo Pepito, de ontem, às 20h13, em resposta a um pedido meu para esclarecer a identidade de Mamadú Baldé (*):


Amigo Luís
Gostei muito de reler o poema do meu pai, que decidiste colocar no nosso blogue (*).
 

Não me recordo de ter ouvido o meu pai falar de Mamadú Baldé, mas creio que ele o terá conhecido na Guiné-Conacri, nos confins do Futa Djalon, zona de que ele me falava apaixonadamente como sendo das que mais gostou. (**)

Sempre foi um sonho meu (re)visitar Mamou, Dalabá e Labé, povoações deste país vizinho, para poder deliciar-me com o que ele me contava frequentemente. Penso fazê-lo com um amigo e com o irmão da Isabel que virá cá propositadamente em Janeiro do próximo ano.

Sendo que, no dizer do poeta 
...O sol parou o seu caminho,
espreitou para Labé,
viu Mamadú morto...
 
Creio que Mamadú Baldé seja da Guiné-Conacri [, que acedeu à independência em 1958].
 

abraço
pepito
_______________


Notas do editor: 

domingo, 18 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8789: Blogpoesia (160): Na morte de Mamadú Baldé, descendente do régulo Monjur: E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu (Artur Augusto da Silva)

 1. Do poeta Artur Augusto da Silva (1912-1983), que foi casado com a decana da nossa Tabanca Grande, Clara Schwarz  da Silva (n. 1915) e é pai do nosso amigo Pepito (n. 1949), nunca é de mais divulgar os seus sublimes poemas sobre a Guiné que conhecemos... Desta vez fomos recuperar um texto em prosa, cuja última frase deu origem ao título da coletânea de poemas, recolhidos pela sua viúva e publicados, a título póstumo, em 1997 [, 14 anos depois da sua morte,], pelo Centro Cultural Português em Bissau. 

Não sabemos quem era exatamente a figura, Mamadú Baldé, aqui homenageada pelo poeta aquando da sua morte... O nome é vulgar, mas tudo indica ter sido um importante dignitário muçulmano da Guiné, um homem bom e sábio, tal como o Tcherno Rachid [ou Cherno Rachide] de quem Artur Augusto da Silva também era particular amigo e admirador... Talvez o Pepito nos possa dizer algo mais sobre esse Mamadú Baldé...  

A levar à letra o poema (que não está datado), Mamadú Baldé era descendente do famoso régulo do Gabu, Monjur, aliado dos portugueses no tempo do Cap Teixeira Pinto (1912-1915), e que é citado por Artur Augusto da Silva no seu livro Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas da Guiné Portuguesa (1958). Por sua vez, Jorge Velez Caroço escreveu, em 1948, uma biografia sobre Monjur (Monjur : o Gabú e a sua história. Bissau : Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948, Vd. foto da capa à esquerda). 

Espero, por outro lado, que ele, Pepito, e a sua mãe me perdoem a ousadia de ter convertido, para formato poético, o texto original, em prosa. Respeitei ao máximo a oralidade do texto. (LG)



Morreu o homem

Ao meu amigo Mamadú Baldé

Mamadú Baldé,
filho de Salifo,
filho de Indjai,
filho de Tchamo,
filho de Monjur,
filho de Mutari,
cuja linhagem se perde há mais de dois mil anos
nas terras do Egito,
e de quem os antepassados remotos viram Moisés e Maomé
e com eles conversaram sobre o tempo e as colheitas.
Mamadú Baldé morreu.
Mamadú Baldé, o sábio que falava com Alá
e era bom
e era justo,
morreu.
Cavaleiros e tambores  levaram a notícia a toda a parte:
subiram as encostas do Futa-Djalon
e desceram para o mar.
Percorreram, o Sudão até Cao e Tombucutú
e desceram o lado  Tchade.
E toda a terra dos fulas repetiu:
morreu Mamadú Baldé.
O sol parou o seu caminho,
espreitou para Labé,
viu Mamadú morto,
e continuou.
A lua parou também o seu caminho,
espreitou e continuou.
Os rios que nascem no teto do mundo,
pararam na sua corrida para o mar
e prosseguiram.
E o poeta pegou num pedaço de papel 
e escreveu:
Morreu o Homem.

In: Artur Augusto da Silva -  E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu:  Poemas.
Bissau, Instituto Camões - Centro Cultural Português. 1997. p.21 [Vd. recensão feita ao livro pelo nosso camarada Beja Santos, no poste P8093, de 13 de Abril de 2011]


[Fixação de texto / Revisão em conformidade com o Novo Acordo Ortográfico: L.G.]


2. Comentário de Felismina Costa [, foto atual, à esquerda,] sobre o poema Terra Negra, do supracitado autor,  publicado em 10 do corrente, sob o poste P8761, e que muito sensibilizou a nossa amiga Clara Schwarz, ao ponto de telefonar expressamente ao editor do blogue para manifestar o seu agradecimento:

(...) Eu já tinha lido e referido outro poema de Artur Augusto da Silva, mas, achei este extraordinário. É lindo! intemporal!
 
Os sentimentos, são intemporais! Manifestam-se em todas as eras naqueles que são capazes de os sentir e expressar: Quanto ignoramos do que de bom e mau sente o nosso semelhante?

Por isso fico tão feliz, quando descubro no poeta, no escritor, a expressão do sentimento grandioso como é o da fraternidade. 

A Dra. Clara Schwarz, foi sem dúvida uma mulher feliz, e, deve continuar a sentir-se assim. Quem ama desta forma a terra onde nasce e os seus irmãos, ama o mundo inteiro, tudo o que o rodeia, e é capaz de compreender e ser tolerante perante a intolerância alheia, porque sabe que nem todos são dotados dessa capacidade. Por isso, é preciso mostrar a diferença entre o amor e o ódio. Entre o construir e o destruir.

Sinto-me tão feliz, quando leio a paz, a alegria, a compreensão, a amizade, sentimentos que constroem, que enaltecem o ser humano, que o tornam grande, valoroso!

Através deste Blogue, tenho conhecido valores humanos extraordinários, de homens do meu tempo que, vivendo uma guerra longa e sem sentido, saíram dela, saudosos dos lugares que pisaram, da sua beleza, das gentes com quem confraternizaram... e até do próprio 'inimigo'.

Bem-hajam, todos os homens de boa-vontade! Felismina Costa (...)


_____________

 Nota do editor:

Último poste desta série > 2 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8727: Blogpoesia (159): O Mar que nos levou (Juvenal Amado)

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8632: (In)citações (32): Como nasce, vive e morre o homem africano (Artur Augusto Silva, Bissau, 1963)

 1. Excerto reproduzido, com a devida vénia do livro Pequena viagem através de África, de Artur Augusto da Silva (1912-1983), pp. 18-21 (Originalmente, uma "conferência pronunciaad em 1963  no Salão Nobre da Associação Comercial da Guiné, no 46º aniversário da sua fundação", publicado em Bissau, 2009; ed lit, Henrique Schwarz, João Schwarz e Carlos Schawarz).
 
(…) Para que se possa fazer uma ideia aproximada de como vivem os africanos, em sistema tribal, tomaremos por exemplo um homem e segui-lo-emos desde o nascimento até a morte. Como variantes mais ou menos acentuadas, conforme a tribo, é a seguinte a sua história.

Nascimento

Nasceu a criança: torna-se necessário afastar do seu caminho os espíritos maus e evitar que eles a venham buscar, agarrando-a pelos cabelos. A primeira cerimónia que se realiza é a do corte dos cabelos. Os maometanos costumam rapar quase toda a cabeça, deixando uma mecha pequena pela qual Alá possa agarrar o recém-nascido e levá-lo para o céu, na hipótese de uma doença fatal.

Amamentação

Até aos dois anos e meio, três anos, as crianças são amamentadas pelas mães, pois a dificuldade de encontrar alimentação adequada obriga a prolongar o período de lactação. Até esse período a criança vive quase todo o tempo escarranchada nas costas maternas segura por um pano amarrado na frente. Aí dorme e aí é amamentada, pois as mães, repuxando os seios, passam-nos por baixo das axilas, de forma a atingir a boca da criança. Só à noite, quando a mãe vai dormir, é que a tira da posição em que estava, para a deitar a seu lado.

Outros alimentos

Com a criança escarranchada, a mãe cozinha, lava a roupa, tece, lavra os campos, colhe os frutos, dança, caminha longas jornadas, come e conversa.

Cerca dos dois anos, já a crianças começa comendo do que os adultos comem: arroz ou milho, inhame, batata-doce, frutos silvestres, amendoim torrado ou pilado, folhas de certas árvores, peixe verde ou seco, carne e leite azedo, acompanhado de óleo de palma ou outro qualquer molho.

Mezinhas

A comida é mal preparada e demasiadamente indigesta para estômagos fracos: a criança adoece e, então, experimentam-se as mezinhas dadas pelo curandeiro ou as que a prática aconselha. Se piora, intervém o feiticeiro com os seus sortilégios.

A mortalidade infantil é enorme, mas a nossa criança escapou. Passou o primeiro grau de selecção e já oferece certas garantias de vitalidade. Cedo a criança começa a embrenhar-se no mato com os seus companheiros, a subir às árvores e a ajudar os pais na lavoura ou na guarda do gado.
Fanado, ritual de passagem

Até à circuncisão [, fanado,] é considerado "menino"; não conversa com os homens nem pode casar-se ou ter relações sexuais. Depois dessa cerimónia já se integra no grupo das pessoas sérias. Se é balanta, por exemplo, deixa de furtar.

Debaixo do poilão

À tarde, nas horas de maior calor, costumam reunir as pessoas de respeito à sombra de uma grande árvore, a maior árvore da povoação ou suas imediações [, em geral, um poilão]; aí conversam sobre todos os assuntos: colheitas, chuvas, gados, casamentos, notícias palpitantes, contribuições, serviços nas estradas, etc., etc…

Casamento

Só depois do nosso homem ter ido à circuncisão pode tomar parte nessas conversas. Está na idade de procuar ganhar dinheiro suficiente para se casar. Ou a família o ajuda, se tem posses e o pai vê que pode dispensar aquele trabalhador, ou ele terá de ir ganhar a vida em qualquer ofício.

Casado, constrói uma casa [, morança], sendo agora raro que vá viver para casa do pai. Realizado o casamento, temos o nosso homem armado em chefe de família, não completamente independente porque tem para com o pai obrigações que se prolongam até à morte deste.

Economia familiar

Cultiva o campo para sua subsistência e para vender os produtos. Compra gado, primeiro caprino e suíno, depois vacum. Cria galinhas ou patos para comer mas, mais frequentemente, para vender.

Homem grande


Vai envelhecendo e, com o avançar da idade, recebe maiores provas de respeito e consideração por parte de todos. Envelheceu, é um "homem grande", de autoridade e conselho, ouvido com respeito em todos os assuntos que se prendem com a tribo ou com a sua tabanca. Rodeado de filhos e mulheres. Tem agora muito gado e algum dinheiro metido numa lata ou garrafão, para evitar a destruição pelos bichos.

A morte e o morrer: o choro

Porém um dia adoece o nosso homem: são convocados os feiticeiros e os curandeiros (normalmente estas duas profissões liberais andam associadas) e estes decretam: está velho, vai morrer.

São chamados os parentes, os filhos que vivem longe e, rodeado por todos, morre como qualquer mortal. Inicia-se a cerimónia do choro que se prolonga por muitos dias, numa orgia infernal. Abatem-se dezenas e às vezes centenas de cabeças de gado das manadas do defunto.

Os não maometanos bebem quantidades enormes de vinho [de palma] ou aguardente [de cana]; o celeiro do defunto, onde está arrecadado o arroz ou o milho, é esvaziado para alimentar centenas de bocas. Dança-se e canta-se e ninguém descansa um minuto sequer enquanto o choro decorre.

O nosso homem baixou à terra; puseram-lhe pedras ou paus em cima. Cobriram-no de terra, enquanto o seu espírito se libertou do corpo, aquele espírito que eles vêm em sonhos e os aconselha ou repreende, os protege ou persegue.

Viveu!! (...)

Artur Augusto da Silva

[ Revisão / fixação de texto / título e subtítulos: L.G. ]

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de Maio de 2011
> Guiné 63/74 - P8283: (In)citações (33): Humberto, é hora de sofreres, uma vez mais, mas é hora também de olhares em frente e pensares que a tua Teresa há-de gostar, no além, se existe, que não esmoreças (Paulo Salgado)

domingo, 1 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8191: As Nossas Mães (12): Sorriso português, de Artur Augusto da Silva (1912-1983)

1. Em homenagem a todas as mães, de todos os homens e mulheres, do mundo  lusófono, em geral, e à Mulher Grande da nossa Tabanca Grande, que é a Clara Schwarz, 96 anos, em particular (vendo nela também todas as nossas mães):


SORRISO PORTUGUÊS


A Ribeiro Couto
Gentil homem do Brasil




Lanço os olhos para o Norte
e vejo Lisboa, a mais pequena cidade do mundo,
porque cabe inteira no meu coração;
lanço os olhos para o Sul
e vejo as terras de Angola,
tão grandes, que meu coração teve de crescer
para que elas nele pudessem caber;
lanço os olhos para o Ocidente
e vejo o Mundo - Novo - Brasileiro,
tão vasto, que só Deus nos altos céus,
o pode ver;
lanço os olhos para o Oriente
e vejo a grande babel de Macau
nascer das águas como uma flor de lótus.


E por todas essas terras que meus olhos vêem,
por todos os oceanos que as banham,
por todos os sóis que as cobrem,
vejo pairar o doce sorriso português
— O terno sorriso de minha mãe...


Artur Augusto da Silva 


In: Artur Augusto da Silva -  E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu:  Poemas.


Bissau, Instituto Camões: Centro Culturtal Português.


1997. p.29


(Com a devida vénia...)

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8093: Notas de leitura (228): Poemas, de Artur Augusto da Silva (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2011:

Queridos amigos,

Era indispensável registar no nosso roteiro cultural luso-guineense o advogado Artur Augusto da Silva que conheci, aí pelos 20 anos, na leitura de uma monografia sobre o artista modernista António Soares, de quem tenho um belo desenho dos anos 30.

 Curiosamente, Artur Augusto da Silva também escreveu sobre Jorge Barradas, outra das minhas devoções modernistas. Esta edição de Bissau, a que aqui se faz referência, comporta uma fieira de pérolas onde se enlaçam a língua portuguesa e diferentes exaltações guineenses. É só comprovar.

Agora, vou resumir o que sobre a Guiné-Bissau escreveu Pedro Rosa Mendes numa edição especial da Visão “África 30 anos depois”.

Um abraço do
Mário


Artur Augusto (da Silva), poeta luso-guineense

Beja Santos

Artur Augusto da Silva (1912-1983), nasceu na Ilha Brava (Cabo Verde) e passou a sua infância e adolescência entre Portugal e a Guiné. Após ter concluído o curso de Direito, em Lisboa, partiu para Angola, onde permaneceu alguns anos, entre o final dos anos 30 e início dos anos 40, tendo-se radicado na Guiné no final dessa década nas letras, como consta da sua bibliografia, escreveu poesia, romance e ensaio, sobretudo monografias de artistas portugueses. Frequentou em Lisboa os meios intelectuais do modernismo e conviveu com figuras da música da pintura e da literatura como Luís de Freitas Branco, Eduardo Malta e António Botto. Por exemplo Luís Dourdill é autor da capa do seu romance A Grande Aventura (1941).

Na Guiné, manteve-se extremamente activo, tendo participado na fundação do colégio-liceu de Bissau e Centro de Estudos da Guiné Portuguesa onde publicou alguns trabalhos ainda hoje não superados sobre usos e costumes de Fulas, Felupes e Mandingas. Entrou em litígio com as autoridades por ser defensor de várias dezenas de guineenses acusados de sedição e, em 1966, proibido de regressar à Guiné. Regressou a Bissau depois da independência do país e foi juiz no Supremo Tribunal de Justiça e professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau.

“E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu poemas” é uma edição póstuma que ficou a cargo do Centro Cultural Português na Guiné-Bissau (Dezembro de 1997), e o levantamento poético ficou a cargo de Carlos Schwartz da Silva (Pepito), seu filho e nosso confrade no blogue.




Artur Augusto da Silva e Clara Schwarz a subir o Chiado (fotografia do blogue)


É autor de poemas solares, das reminiscências da infância, dos valores telúricos, neles circulam o sangue da lusofonia em toda a sua plenitude, a luxuriante vertigem das paisagens tropicais, a exaltação etnográfica e etnológica. Nenhum poeta luso-guineense é tão caprichoso no uso da língua portuguesa, nela vazando, por formas glorificadas, as gentes e a natureza guineense.

É uma escassa colectânea de poemas, fazem ressaltar um ânimo maravilhoso e maravilhado, terá sido um homem de bonomia, de solicitude, um adaptador da língua e da cultura portuguesa aos valores de uma Pátria emergente. Basta ver o arranque do seu poema “Morreu o Homem”, dedicado a um amigo de nome Mamadu Baldé:

“Mamadu Baldé, filho de Salifo, filho de Indjai, filho de Tchamo, filho de Monjur, filho de Mutari, cuja linhagem se perde há mais de dois mil anos nas terras do Egipto e de quem os antepassados remotos viram Moisés e Maomé e com eles conversaram sobre o tempo e as colheitas”.

É uma toada quase bíblica, porque Mamadu Baldé deverá orgulhar-se da genealogia, da linhagem e da estirpe, tudo se perde nos fins da história e no despontar do vigor cultural africano. Depois canta a terra negra da sua infância onde brincou com os seus irmãos negros, com eles nadou no rio, saboreou o caju, a papaia e o mango e recorda o poilão de Santa Luzia que vomitava fogo quando a santa queria orações. Recolhe-se e faz um apelo à terra verde e vermelha da Guiné: “só te peço que todas as noites/ deixes baixar sobre meu coração/ o silêncio que cura os males da alma/ e que quando os dias nascerem húmidos e tenros/ como o barro das tuas bolanhas,/ deixes o meu corpo/ receber esse afago matinal/ que foi o meu primeiro baptismo/ e te peço seja a minha absolvição”.

Poesia de encanto e regalo para os olhos, água fresca para os sentimentos, nela convergem elementos vegetais, odores, fauna e flora, mistérios do animismo, danças e batuques, o fogo das queimadas, o barro das bolanhas e, inevitavelmente, a impressão que provoca o tornado, os seus céus eléctricos e as suas trombas de água. É poesia de um homem reconciliado, dialogante, observador e atento aos mistérios. Sobretudo, é uma poesia que espalha simplicidade e gratificação, cujo exemplo mais eloquente é o poema

Benditas

Bendita seja, minha mãe,
que me ensinaste a amar
as crianças e os velhos,
os pecadores arrependidos
e os pobre e os perseguidos
Bendita sejas!

Bendita sejas, minha mãe
que me ensinaste a desprezar
os ricos e os mandarins
e a odiar,
a odiar,
a odiar,
os verdugos e os carrascos.
Bendita sejas!

Bendita sejas, minha mãe,
que com o teu dedo irreal,
ainda me apontas
os caminhos do Bem e do Mal.
Bendita sejas!

Bendita sejas, minha mãe,
por teres enchido minha alma
de paz e tranquilidade
e de me teres ensinado a ser pequeno entre os humildes
e sobretudo entre os poderosos.
Bendita sejas!

Bendita sejas, minha mãe!
que me ensinaste a ser
de todos os valores clássicos
e a cimentar os valores clássicos,
como se tudo estivesse para refazer.
Bendita sejas!

Bendita sejas tu, que me fizeste aleitar
por uma ama negra,
para que eu bebesse a sabedoria
desse povo admirável
e compreendesse os seus segredos.

Bendita sejas, minha ama,
que me ensinaste a ser corajoso
e a não temer o perigo.

Bendita sejas tu, que eras serena
como uma noite de primavera,
boa como uma palavra de perdão,
grande como um pensamento fecundo.

Benditas sejais vós!!

O leitor interessado tem acesso à sua antologia poética no site:
http://www.triplov.com/guinea_bissau/artur_augusto_silva/index.htm
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8081: Notas de leitura (227): A Guiné-Bissau e os sabores da lusofonia (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6815: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (2): A elite guineense, nos anos 50



Lisboa > c. 1947 > Subindo o Chiado, Artur Augusto da Silva e Clara Schwarz da Silva... Futuros pais do nosso muito querido Pepito (Carlos Schwarz da Silva).

Artur Silva,  nascido em Cabo Verde, em 1912, viveu os primeiros anos em Farim, na Guiné, e depois em Lisboa onde se licenciou em Direito e conheceu Clara (n. em Lisboa, em 1915). Teve uma vida intelectual intensa enquanto estudante, frequentando as tertúlias literárias da Baixa. Ainda conheceu Fernando Pessoa (que morreu em Novembro de 1935), e privou com intelectuais com o poeta António Botto, o romancista Ferreira de Castro, o músico Luís Freitas Branco, o pintor Eduardo Malta. Esteve de 1939 a 1941 em Angola, como secretário do Governador Geral; de regresso a Portugal exerceu advocacia em Lisboa, Alcobaça e Porto de Mós)..Em 1949, o casal partiria para a Guiné, onde o Artur foi, até 1966, advogado, notário e até substituto do Delegado do Procurador da República. Morreu em Bissau, em 1983.

Por sua vez, Clara Schwarz, de pais judeus (o pai polaco e a mãe russa), licença em letras, e diplomado em volino pelo Conservatório de Música de Lisboa, foi uma notável pedagoga, tendo sido professora, no Liceu Honófrio Barreto, em Bissau, de alguns dos futuros dirigentes e quadros do PAIGC. Membro do nosso blogue, faz em Fevereiro passado a bonita idade de... 95 anos!

Fotos: © Mikael Levin (com a devina vénia...)




Excerto do documento policopiado, "Memórias de Carlos Domingos Gomes"... (ª1 Parte, p.5).


Continuação da publicação das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

O texto, que foi entregue em Março de 2008, em Bissau, pelo próprio autor,está dividido em duas partes, com numeração autónoma: 1ª parte (9 pp.): Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, Galardoado com a Medalha de Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Luta de Libertação Nacional. Guiledje, Simpósium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008; a II parte (17 pp): Simpósium Internacional, História da Mobilização da Luta da Libertação Nacional: Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai.

No poste anterior, vamos encontrá-lo em Bolama, em1951, como encarregado de uma empresa francesa, a SCOA, a mesma onde trabalharia, até 1956, Elisée Turpin, um dos históricos do PAIGC. Em Bolama, convive de muito perto com Aristides Pereira, outro histórico do PAIGC.




Na pág. 5, Parte I, o autor refere o nome de diversas personalidades que, ainda antes da chegada de Amílcar Cabral, foram influentes na vida pública, social, cívica e cultural, da cidade de Bissau, devendo ser tidas em conta no estudo da génese do nacionalismo guineense... Entre esses nomes (vd. recorte acima, ponto 13), o autor cita os dos pais do nosso amigo Pepito, o Dr. Artur Augusto Silva [, 1912-1983, ] "advogado, defensor dos arguidos políticos", e a Dra. Clara Schwarz da Silva, "esposa do Dr. Artur Silva, mãe dos estudantes", professora do Liceu Honório Barreto, e hoje membro da nossa Tabanca Grande, com a notável idade de... 95 anos, feitos em Fevereiro passado!

O autor justifica a menção destes e doutros nomes influentes, nestes termos: "Antes de se falar do camarada Amílcar Cabral [, que regressa à Guiné, em 1952, vinte anos depois de ter partido para Cabo Verde, terra de seus pais], surgiu o movimento da Associação Recreativa, Cultural e Desportiva, que encobria motivos políticos. Daí que tem de se falar das seguintes, não do movimento, que desempenharam um papel importante na viragem histórica dos pacíficos filhos da Guiné-Bissau" (p. 5, 1ª parte)... Foram homens (e mulheres) que, nas suas diferentes actividades, públicas e profissionais, "souberam incutir discretamente nos guineenses [...] a voz da revolta"...

Não sei exactamente a que associação Cadogo Pai se refere. Sabemos que, na 1ª metade da década de 1950, Amílcar Cabral  tinha redigido os estatutos de um clube recreativo, desportivo e cultural, aberto a todos os guineenses,, independentemenmte da sua condição . Ao que parece, os estatutos foram "chumbados" pelas as autoridades portugueses, sob o pretexto de que a maioria dos signatários não era portadora de bilhete de identidade. Em 1955, o governador Melo e Alvim obriga Cabral a deixar a Guiné, embora lhe permita voltar uma vez por ano, por razões familiares.

Cadogo Pai refere-s à importância que tiveram, no despertar da consciência nacionalista dos guineenses, os "torneios de futebol" que se realizavam nos países limítrofes (Senegal, Gânbia, Guiné-Conacri). "Apareciam médicos, advogados, jornalistas"... Os guineenses olhavam para a sua terra e apercebiam-se do atraso em que se vivia...

Foi no imediato após-guerra, sob o consulado de Sarmento Rodrigues, que Bissau conhece um certo progresso...Surgem "os primeiros agrupamentos sociais da elite guineense, o Club Cila, o Ciem [...], depois o agrupamento desportivo, recreativo e cutural"... Tudo isto "antes de Amílcar Cabral" (p. 6, 1ª Parte).

Apareceram também clubes de futebol como o Sport Lisboa e Benfica. "por iniciativa de alguns nomes conhecidos da sociedade portuguesa, Gama das Construções [Gama] Lda,  Pimenta do Cadastro, Casqueiro, etc." e o Sporting Club de Bissau, "sob a égide de Eugénio Paralta, irmão Zé Paralta, Chico Correia"... 

A UDIB já existia, diz-nos Cadogo Pai. No entanto, o desenvolvimento do futebol, "trouxe mais um bafo de rivalidades, olhando a situação dos jogadores cabo-verdianos , importados pelo Benfica, que, para os atrair,  os adeptos bem colocados, tinham que lhes oferecere bons empreegos. Bons rapazes, no fundo, Antero, os sinais [?] Tcheca, Marcelino Ferreira (Tchalino), etc." (1ª Parte, p. 6).

[ Revisão / fixação  de texto/ excertos / digitalizações / título: L.G.]

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Nota de L.G.:

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6303: Historiografia da presença portuguesa em África (35): 100 presos políticos guineenses enviados em 1962 para o Campo de Chão-Bom, Tarrafal, Ilha de Santiago, Cabo Verde (Luís Graça)

































Lisboa > IndieLisboa'10 > 7º  Festival Internacional de Cinema Independente > Culturgest > 23 de Abril de 2010 >  Sessão de estreia do filme Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta, de Diana Andringa (2009)  >  Não se trata de fotogramas mas de imagens obtidas por máquina fotográfica durante a exibição do filme (com a devida vénia à realizadora  a quem não pedi expressamenete autorização...), e editadas por mim  > (*)

As três últimas fotos são de sobreviventes guineenses, que são entrevistados no filme e cujos nomes, lamentavelmente, não consegui fixar. Apreciei a descontracção, a naturalidade, a capacidade de memória, a coragem, a dignidade  e a emoção com que estes homens evocaram esses duros tempos de exílio e de prisão. Um deles  (o da última foto) confessou, inclusivamente, que por três vezes abriu a sua própria cova, lá na Guiné, e por três vezes foi salvo, talvez graças à sua juventude... 

Julgo que muitos deles não teriam qualquer ligação ao PAIGC, criado em 1956,  e que a partir de 3 de Agosto de 1961 passa à chamada acção directa - sabotagens, corte de vias de comunicação, etc- , antecipando a luta armada, iniciada oficialmente em 23 de Janeiro de 1963. Este período, de 1961 a 1963, de forte repressão por parte da PIDE (que não teria no território mais de 30 agentes metropoliitanos), é mal conhecido de todos nós, e está pouco documentado no nosso blogue...  Tal como é pouco conhecido o papel do Exército na "luta contra a subversão", neste período.

Já aqui evocámos, em tempos, a figura do advogado e escritor Artur Augusto Silva (1912-1983), casado com a nossa amiga Clara Schwarz e pai do nosso amigo Pepito, e que se destacou nesta época na defesa de presos políticos guineenses:

"Cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos 'ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial'; mais concretamente, 'foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações';

Fotos: Luís Graça (2010)


Por Portaria nº 18539, de 17 de Junho de 1961, assinada pelo então Ministro do Ultramar,  Adriano Moreira, foi reaberto o antigo campo de Tarrafal (que funcionou entre 1936 e 1954), agora designado Campo de Trabalho de Chão Bom, na Ilha de Santiago, Cabo Verde, originalmente destinado aos presos políticos de Angola.

Trinta e dois portugueses - incluindo Bento Gonçalves (1902-1942), secretário-geral do PCP, entre 1929 e 1942- , dois angolanos e  dois guineenses perderam ali a vida. Outros morreram já depois de libertados, mas ainda em consequência das condições infra-humanos em que ali viveram. "Famílias houve que, sem nada saberem o destino dos presos, os deram como mortos e chegaram a celebrar cerimónias fúnebres".

Os últimos detidos (angolanos e cabo-verdianos) foram libertados apenas em 1 de Maio de 1974.... Trinta cinco anos, e a convite do presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires, os sobreviventes  reencontraram-se no âmbito de um Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal. Durante a realização do Simpósio, a cineasta Diana Andringa entrevistou mais de 3 dezenas desses sobreviventes, incluindo o português Edmundo Pedro, um dos que foram estrear o Tarrafal, em 1936. Mas a realizadora preferiu concentrar-se na 2ª parte da história  menos conhecida ou menos falada, deste campo de concentração  (**).

O documentário, com duração de hora e meia, foi feita basicamente com estas três dezenas de entrevistas, feitas no interior do antigo campo, e inclusive nas antigas celas.

Em 4 de Setembro de 1962 chegou uma leva de 100 presos políticos da Guiné, que se juntaram aos 107 angolanos que já lá estavam (mas alojados em alas separadas). Em 1964 saíram cerca de 60 guineenses, sendo os restantes libertos no tempo de Spínola, em 30 de Julho de 1969, no âmbito da política "Por uma Guiné Melhor". Recorde-se que. ao todo, Spínola mandou libertar 92 presos políticos, incluindo um histórico do PAIGC, Rafael Barbosa  (1926-2007), detido na colónia penal da Ilha das Galinhas, nos Bijagós.

Dos 238 presos angolanos, guineenses e cabo-verdianos que estiveram no Tarrafal, na 2ª fase (1961-1973), apenas menos de um quarto (cerca de 50) estão ainda hoje vivos. No 1º período (1936-1954) , o número de presos foi de cerca de 340, todos eles portugueses, opositores ao regime de Salazar, literalmente desterrados, presos arbitrariamente, sem direito a defesa nem a cuidados de saúde...

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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 21 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6204: Agenda cultural (72): Documentário, de Diana Andringa, Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta, no IndieLisboa '10, na Culturgest, a 23 (Grande Auditório, 21h30) e 25 (Pequeno Auditório, 18h30)

(**) Vd.,  no blogue  Caminhos da Memória, o texto de um comunicação de José Augusto Rocha     feita em 29/10/2008, no Colóquio Internacional «Tarrafal: uma prisão, dois continentes» > 29 de Outubro de 2009 > Tarrafal – 29 de Outubro de 1936. O autor, um conhecido advogado, defensor de presos políticos antes do 25 de Abril,  foi Alf Mil da CCAÇ 557 (Cachil, Bafatá, Bissau, 1963/65).