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domingo, 12 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14868: Memória dos lugares (304): Rio Grande de Buba, calmo e soberbo, de água salgada, que nasce no mar ao largo de Bolama e acaba em Buba (Francisco Baptista)

Rio Grande de Buba
Com a devida vénia a Biodiversity

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 1 de Julho de 2015:

O Rio Grande Buba é um rio largo, calmo soberbo. Este grande rio de água salgada nasce no mar, ao largo de Bolama e acaba em Buba.

Só alguns dias depois de estar em Buba me apercebi da estranheza desse rio que de manhã estava cheio quase até ao limite do cais e à noite recuava as suas águas como quem vai dormir para longe, essa situação ia-se alterando, conforme as marés.

Sobretudo na maré-cheia, o Rio Grande de Buba, formava um grande espelho de água em toda a extensão que eu conseguia visionar em que se reflectiam as margens de Buba e as margens da floresta próxima ao longo de todo o rio.

Adorava ver os por-do-sois magníficos da Guiné, que pintavam todo o horizonte em redor, de tons vermelhos e cor-de-rosa, reflectidos nas águas calmas do Grande Buba.

Parece que o sol, o rio e as florestas da Guiné se erguiam num quadro enorme e maravilhoso para nos seduzir. Tenho saudades de tanta beleza. Gostava de ser poeta para a cantar, gostava de ser pintor para captar todos os tons que não sei descrever.


Tendo ido para Buba em rendição individual, nunca tive oportunidade de percorrer o rio de LDG. Porém um dia estava em Buba uma LDP, pedi ao capitão e fui nela até Bolama. Fui eu e a tripulação que eram 4 ou 5 marinheiros. A viagem demorou algumas horas, talvez cinco, verifiquei que o rio sendo largo em toda a sua extensão, tem ainda muitos braços, tal como um deus indiano. Tem alguns braços tão largos como o principal braço de mar a que se chama rio.

Empada, que tinha uma companhia, pertencente nesse tempo, tal como a minha companhia, ao comando de Aldeia Formosa, talvez a duas horas ou pouco mais de Buba, por rio, situava-se num desses braços, não muito longe do curso principal. Um dia, porque a avioneta que me transportava para Buba, vinda de Bissau, começou a perder óleo, o piloto aterrou em Empada por precaução. Por rádio expliquei a situação ao meu capitão e ele pediu aos fuzileiros do destacamento de Buba que patrulhavam o rio que me dessem boleia.

Sei que partimos já quase noite e não longe de Empada encontramos dois africanos num barquito, e por uma curta conversa eles deduziram que andariam à pesca. Prosseguimos viagem, com a noite a ficar muito escura e chuvosa tão escura que os fuzileiros perderam-se e foram dar a um braço largo do rio, onde tivemos que esperar pela manhã para reencontrarmos o caminho certo. Se foi assim ou se o sonhei, já passaram mais de 40 anos, nada garanto, se estou enganado peço desculpa aos fuzos, onde tive grandes amigos.

Na viagem que antes me tinha levado a Bissau, já tinha tido uma visão aérea de todo o rio, pois o piloto aviador, Pombo, que era um grande piloto, famoso em Buba e noutras terras, pela sua destreza na pilotagem, encaminhou a avioneta em voo baixo pelo curso do rio Grande Buba. À distancia de todos estes anos agradeço-lhe esta atenção que eu não me lembro de lhe ter pedido. Na verdade o rio percorrido de cima a pouca altitude ainda se torna mais belo do que a navegar, pois vê-se melhor a paisagem envolvente, e os seus braços.

O comandante Pombo diz-me o meu amigo Zamith Passos, que já morreu. Paz à sua alma, oxalá tenha voado mais alto.

No rio Grande Buba tivemos dois acidentes graves. Num deles morreu um camarada nosso e ficaram dois bastante feridos. No outro ficou ferido outro camarada também com bastante gravidade. Sobre estes acidentes já falei noutros postes pelo que não me vou repetir.

Éramos novos, culpas nossas, das armas e do meio e os rios tão belos nas suas margens e nos seus caudais, mas sempre à procura dos jovens incautos, como os deuses antigos que saciavam a sua ânsia de poder ou a sua loucura com o sacrifício de jovens.

Rio Grande Buba que não é tão falado, neste blogue, como outros rios da Guiné talvez porque nas suas margens só existia o quartel de Buba e um pouco afastado, já num dos seus ramais, o de Empada.

Rio Buba, Rio Grande de Buba, Rio Grande de Bolola , ou Rio Grande, como lhe chamaram os portugueses dos descobrimentos (nomes retirados da internete).

Ironia do destino, hoje, antes de remeter este texto ao amigo e camarada Carlos Vinhal, fui com uns amigos almoçar a casa dum produtor de vinho amigo, da margem norte do rio Douro. Da colina sobranceira ao rio onde estávamos, avistávamos um troço esplêndido do caudal do rio e das margens escarpadas e trabalhadas em socalcos sobre tudo do lado norte. Do lado sul sobressaía sobretudo a serra das Meadas, perto de Lamego, onde muitos dos nossos camaradas dos rangeres e dos comandos tiveram instrução.

Assamos carapaus frescos, comprados na praia de Angeiras, e febras de porco com bom vinho da casa e passamos uma tarde divertida em cantorias, com uma concertina do amigo da casa e canções um pouco brejeiras do Rui, um grande cantador.

Cada qual, de acordo com os gostos e a sensibilidade, deliciou-se, com a paisagem do Douro, a cintilar ao sol, no vale, e a paisagem de vinhas em socalco ou de monte de ambos os lados.

O rio Grande de Buba que eu conheci , não era como o Douro. Fiz tantas viagens de comboio pela linha do Douro. Conheço tão bem as suas curvas, as suas margens, os seus afluentes, os seus montes, o seu clima, as gentes que viajavam nos comboios da sua linha na minha adolescência.

O Rio da minha terra não é o Rio Grande Buba, não é o Rio Douro, o rio da minha terra é o Rio Sabor.

Rio Sabor
Com a devida vénia a Miguel Elói

Rios diferentes, de acordo com o seu caudal, as margens que os comprimem ou libertam e as gentes que os condicionam

Gosto muito do Rio Sabor e do Rio Douro mas a minha alma africana que marcou a minha vida para sempre, pelo calor e pelo cheiro da terra da Guiné, recordar-me-á sempre o meu amor e a minha saudade por esse Rio Grande de Buba.

Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14843: Memória dos lugares (301): Regulado, rio e tabanca de Caboiana (ou Coboiana ?) no Cacheu, em outubro de 1964 ( António Bastos, ex-1.º cabo do Pel Caç Ind 953, Cacheu, Farim, Canjambari, Jumbembem, 1964/66)

quarta-feira, 18 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14381: Brunhoso há 50 anos (2): As Autoridades - Continuação (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 10 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), mandou-nos o segundo episódio de Brunhoso há 50 anos:


Brunhoso há 50 anos

 2 - As Autoridades (Continuação)

Tanto o padre como a professora, não sendo autoridades civis, tinham um poder inegável sobre a formação e o comportamento espiritual e cívico da população. Por esses motivos eram muito respeitados e temidos pela população.

A professora, natural da aldeia, pertencia a uma das famílias mais ricas da terra. Família muito religiosa que ajudava muito o padre, de quem até me parece que seriam parentes, no arranjo da igreja e nas cerimonias religiosas. Cultivavam um distanciamento conveniente e higiénico com a generalidade da população, sobretudo com os mais humildes.

Por caridade cristã, penso eu, davam algumas esmolas aos mais pobres e também reprimendas à mistura. Eram honestos e rigorosos no cumprimento das suas obrigações para com os outros, mesmo quando mais tarde, com a crise provocada pela emigração dos anos sessenta, alguns foram forçados a vender muitos bens.

Com a educação familiar que recebeu e com a formação que lhe deu o antigo regime, a professora tinha que ser autoritária, até um pouco despótica. Era boa professora no sentido do esforço e do trabalho a que não se poupava mas usava todos os meios de coação física, desde palmatoadas, bofetadas, puxões de orelhas e vara.

Os antigos alunos dela, da minha idade, mais velhos e outros mais novos, depois de tantos anos passados, dividem-se no seu julgamento, alguns ainda não esqueceram os maus tratos excessivos e o orgulho pelo cargo que desempenhava e pela família donde provinha, outros agradecem-lhe o esforço feito, apesar dos castigos severos.

O padre Zé merece um tratamento com nome, pois a sua fama perdurará mais do que a dos outros, pela sua bondade, pelo trato cordial que tinha com todos, pelas dádivas desinteressadas que diariamente fazia, pelas famosas zangas que tinha por vezes com o seu rebanho que se queria desviar dos caminhos de Deus.
Sendo filho de famílias ricas de uma aldeia próxima, com bastantes bens também em Brunhoso, manteve o pagamento da côngrua, segundo afirmava, apenas para que o povo não perdesse esse hábito, quando ele fosse substituído por morte ou outro motivo. Todos os ofícios religiosos, batizados, casamentos, funerais etc. eram grátis. Os mais desfavorecidos não pagavam a côngrua indo para ele um ou dos dias à apanha da amêndoa ou da azeitona para a terra dele, que distaria da nossa aldeia cerca de oito quilómetros.

Todos os anos iam também os lavradores com carros de vacas e outros trabalhadores, buscar lenha a essa aldeia para o seu aquecimento e da casa durante o ano. Recordo-me que estas tarefas entusiasmavam muito os meus conterrâneos porque o padre Zé, além de ser muito jovial, também os tratava bem, com vinho à farta, presunto, queijo e outros petiscos. Fumava muito e tinha o hábito de oferecer cigarros a uns e a outros, fumadores ou não fumadores. Os responsos que recebia nas missas por alma dos mortos distribuía-os pelos rapazes que o fossem a ajudar na celebração. Eu fui muitas vezes na esperança, nunca defraudada, de receber um escudo ou dois. Tínhamos que aprender todo aquele latinório e ajudá-lo com as galhetas e a campainha.

Não havia escola para isso, íamos aprendendo com a prática, por vezes era uma confusão terrível mas o padre, com a paciência dele, lá nos ia ensinando. Do latim que lhe ouvíamos e do que lhe tínhamos de lhe responder nada compreendíamos mas o importante era chegar ao fim da missa e que houvesse muitos responsos.

Vivia numa casa grande que à escala da dimensão da freguesia e descontando exageros de vária ordem, eu comparo com o Vaticano. Quando passava à porta da casa, parecia-me que havia sempre gente perto, gente a entrar e a sair, principalmente mulheres. Tinha uma governanta e uma criada efectivas, duas ou três vizinhas e uma sobrinha da governanta que muitas vezes iam lá a ajudar. Calculo o amor e desvelo dessas senhoras, tanto a lavar como a engomar os fatos do padre Zé, as calças, o casaco, a camisa, a roupa interior, mas sobretudo a cuidar-lhe dos paramentos, numa atitude quase devota, a casula, a túnica, a estola, a dalmática, a mitra, a batina, a alva.

Durante alguns anos viveu lá também um rapaz, filho duma mulher muito pobre, que ele recolheu, ainda muito novo que tinha hábitos de muita liberdade e alguma vadiagem. Não se entendiam mal, viveu lá até à idade adulta, com todo o conforto em alojamento e alimentação, a ouvir os bons conselhos do padre Zé, que nunca conseguiu alterar-lhe o gosto pela liberdade. Não sei se era por viver junto do padre mas lembro-me que lhe deram a alcunha de "Vigário". Em adulto, saiu da aldeia para outra terra do distrito e tornou-se um homem responsável e mais calmo.

Brunhoso tinha dois oragos, S. Leão e S. Lourenço, nesse tempo a aldeia guardava feriados nos seus dias, o padre dizia a missa e não havia outras cerimonias ou festividades. O grande dia da festa anual era dedicado a Santa Bárbara, que não era padroeira nem tinha direito a dia de feriado. Santa padroeira dos artilheiros e mineiros, os lavradores procuravam também junto dela defender-se das desgraças provocadas pelas tempestades, raios e trovões.

 Brunhoso - S. Lourenço

Brunhoso - Festa a Santa Bárbara 2007

Fotos: Com a devida vénia a Brunhoso - Mogadouro

De uns anos para os outros eram nomeados os mordomos que se iriam encarregar da organização das festividades. Todos os anos havia grandes zangas entre os mordomos e o padre Zé pois ele nunca queria admitir que houvesse arraial. Bem, ele arraial só com música até podia tolerar, não admitia é que ao som da música andassem rapazes e raparigas, homens e mulheres agarrados a dançar. Houve sempre este braço de ferro entre o padre e mordomos, mas embora todos lhe tivessem muito respeito e amizade, o povo, em tempos de tantas proibições, nunca quis privar os rapazes e raparigas de poderem expressar algum afecto e calor naquele abraço bailado ao som da música, que era a maior proximidade consentida entre solteiros.

Entre a sabedoria antiga das mulheres e dos homens e o puritanismo da Igreja, o Povo de Brunhoso impunha a sua vontade. O padre Zé perdia esse braço de ferro mas no ano seguinte ia tentar novamente impor a lei da Igreja, pois ele era casmurro. Voltava a perder, não se consegue impedir a corrente do rio, não se podem conter as forças da natureza.

Havia outra grande festa sobre a qual não se pronunciava, era o Entrudo, essa festa pagã tão antiga, que os homens do seu rebanho pareciam afastar-se, para passar a adorar outros deuses antigos e pagãos, mais permissivos como Dionísio e Baco, deuses loucos que não tinham as boas maneiras, nem a justiça severa, nem a promessa de salvação do Deus que ele sempre lhes procurava revelar.

Era um dia em que o padre Zé rezava para que eles voltassem de almas manchadas, mas dispostas ao arrependimento e a lavar-se no perdão que a Santa Madre Igreja garantia aos pecadores.

Nas mulheres ele confiava, como na sua mãe, que ficara tão contente quando ele foi padre, o sentimento das suas paroquianas era o mesmo da sua amada mãe, como não amar mais um homem que está tão próximo de Deus, que até pode falar com Ele. Elas não duvidavam dele, elas não queriam os deuses antigos, loucos, devassos, com todos os defeitos dos seus homens, que não lhes garantiam uma vida melhor no fim das suas vidas. O seu Deus tinha que ser o mesmo do padre Zé, o filho duma mulher, Maria, que ela criou com amor, como elas criaram os seus. As mulheres gostam de um Deus Filho, pois os filhos delas são todos deuses que elas adoram.

Já os homens, nesse tempo, não mostravam ter muita fé. Cumpriam os rituais mínimos por tradição, para não desagradar à comunidade e a um Deus desconhecido, porque não sabiam o que havia para além da morte e não lhes agradava que houvesse o silêncio e o nada. Havia ainda outra razão de carácter politico e social que os obrigava a ter alguma pratica religiosa, pelo menos ir à missa ao domingo. É que nesse tempo, todo o que fugia dessa pratica era considerado comunista, e isso era pior do que ser apelidado de ladrão ou desordeiro.

A propaganda anticomunista mais acérrima foi feita pela Igreja no tempo das cruzadas de Fátima como reação às barbaridades que os comunistas cometeram contra a Igreja quando tomaram o poder na Rússia. O antigo regime serviu-se dela para meter todos os opositores no mesmo saco e apelidá-los de comunistas pois a história dos males que tinham causado à Igreja ainda era recente. Era eu ainda menino e crente, por obediência familiar e escolar, recordo-me das novenas de Maio, à Nossa Senhora de Fátima, em que todos rezávamos pela conversão da Rússia. Quem conduzia estas cruzadas apostólicas era a professora primária, mais atenta, sensível e sintonizada com o regime e com o sofrimento da "Igreja do Silêncio", para lá das "cortinas de ferro".

Portugal, um pais tão religioso e católico, que alguns Papas proclamaram de Nação Fidelíssima, com tantas devotas e santas mulheres, somente tem uma santa, nascida e criada no país que se chama Beatriz da Silva.
Homens haverá meia dúzia ou pouco mais. Ou é Deus que não é justo ou os seus representantes no Vaticano. O padre Zé não foi um deus, foi um santo, podia ser canonizado se Portugal fosse um país mais rico e próximo do Vaticano.

Mas meus amigos e camaradas. para tudo são precisas ajudas dos vários poderes, mesmo para ser santo!
Um abraço todos!
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 Nota do editor

Último poste da série de 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14342: Brunhoso há 50 anos (1): As Autoridades (Francisco Baptista)

terça-feira, 10 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14342: Brunhoso há 50 anos (1): As Autoridades (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Vista parcial de Brunhoso - O olmo da esquerda era o do ninho da cegonha, debaixo do qual os ciganos, nos meses de verão se instalavam noite e dia.


1. Em mensagem de 2 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos a sua freguesia de Brunhoso de há 50 anos:


Brunhoso há 50 anos

1 - As Autoridades

Havia o presidente da junta cuja escolha recaía sobre um homem dentre o número restrito das famílias mais ricas.
O regedor, representante da autoridade policial, sendo um cargo com menor prestigio social era escolhido entre os homens das famílias de lavradores remediados.

Tanto o presidente da junta como o regedor eram nomeados pelo presidente da Câmara escolhendo os mais idóneos e respeitados entre estas duas camadas da população.
O regime com esta distribuição de cargos procurava contentar uns e outros, respeitando a hierarquia social e económica.

Em abono da verdade os cargos de um e outro mais pareciam honoríficos pois pouco mais faziam do que afixar às portas da igreja ou noutros locais públicos editais e posturas camarárias, tinham uma autonomia quase nula face ao poder camarário e central. Não recebiam qualquer vencimento, nem tinham direito a qualquer mordomia pelo desempenho do cargo.

Já eu era um rapaz praticamente quando foi construída a escola primária, penso pelo ministério da educação, antes as aulas eram dadas na residência paroquial, pois o padre tinha casa própria e dispensou-a. Alguns anos depois foi fornecida eletricidade, o dia da inauguração teve direito a foguetes e banda de música, perdi a festa pois não estive presente.

As ruas, que em tempos foram construídas com pedra à maneira da calçada romana, estavam muito deterioradas com falta de pedra e no inverno algumas transformavam-se num lamaçal.

O presidente da câmara, muitos anos também deputado da União Nacional, herdou do pai a riqueza e o cargo, grande proprietário, um dos maiores do concelho, com muitos bens ao luar, em várias freguesias sendo uma delas Brunhoso. Hoje, como ontem, o poder político é pertença do poder económico e financeiro, diretamente ou através de serventuários bem pagos para isso.
Era um homem muito poupado, morava numa freguesia a cerca de 7 kms do concelho e levava todos o dias o almoço de casa para não o ter que pagar mais caro no restaurante, nas contas da Câmara, que geria, era igualmente poupado não dispensando dinheiro para o arranjo tão necessário das ruas das freguesias do concelho. Não era urgente, afinal as pessoas e os animais passavam sem ficar presos no atoleiro!

Constava-se que o município emprestava dinheiro, a juros baixos, à Câmara do Porto. Formado em direito, era um homem muito conservador, honesto e trabalhador, cumpria o horário de trabalho como qualquer funcionário. O meu pai gostava muito dele, tinham a mesma idade e fizeram a tropa juntos algum tempo, havia muita consideração entre eles.

Dentro dos condicionalismos familiares e do regime em que foi criado, sem ter um rasgo de visão e inteligência que ultrapassasse essas margens estreitas, foi um bom homem, e que eu saiba não foi importunado por ninguém na mudança de regime apesar dos cargos políticos que tinha ocupado.

O regedor, sendo a autoridade policial durante a minha vida em Brunhoso, somente uma vez o vi atuar nessa qualidade, só ele, sem a companhia dos cabos de ordem, o "Vermelho" e o "Verdinho", cunhados entre eles e dizia-se serem os trabalhadores mais valentes da terra. Por sua vez o regedor tinha fama de ser um campeão do lançamento da relha e do ferro, no concelho e nos concelhos limítrofes.
Eram três homens fortes e altos, como havia poucos na aldeia, com uma boa estrutura óssea, que infundiriam temor e respeito, caso tivessem que intervir os três nalguma desordem. Não sei se isso algum vez aconteceu. Da sua força e valentia ficou a lenda.

 Residência Paroquial onde esteve instalada a Escola Primária até cerca de 1960

Fotos: © Francisco Baptista

Brunhoso era uma terra pacifica, as pessoas iam gerindo alguns pequenos conflitos que iam surgindo sem a intervenção de terceiros. Ouvi falar, era eu muito novo não me apercebi, que foi chamado a intervir num conflito onde houve um ferido muito grave.

O conflito que eu recordo e ao qual sei que ele foi chamado com insistência porque pareceu a alguns habitantes que poderia haver perigo de morte, aconteceu num dia de Carnaval.

O dia de Carnaval na aldeia era o dia da grande borga, da grande descontracção, da grande bebedeira, alguém que me foi muito próximo, o meu pai não, que era abstémio, disse-me um dia, penso que com algum exagero, o seguinte:
- Chico, há alguns anos eu bebia um garrafão de vinho por dia e era isso que me dava força para trabalhar a terra, no Entrudo bebia dois garrafões e à noite transportava os borrachos às costas para casa deles.

Nesse ano, teria eu 16 ou 17, ao cair da noite, os que continuaram a pé pelas ruas, após as festas diurnas, eram todos alegres foliões. Tão excessivos no consumo de álcool em épocas festivas só conheci os bávaros num Carnaval em Munique. Em Munique, cerveja ou vinho quente com aguardentes ou especiarias, em Brunhoso, vinho, in illo tempore, hoje de tudo, cerveja e até água ardente.
Nesse estado de espírito alegre e divertido, com alguns copos a rodar de mão em mão, estavam muitos no Balcão, uma praça pequena, como a aldeia, comparada com Munique, uma grande cidade europeia, equivaleria à Marianplatz, em ponto pequeno e sem a estátua de Maria, mas era a praça central. Surgiram alguns "estrangeiros" que tinham estado a comer e a beber em casas da aldeia, portugueses naturais ou próximos de terras grandes e longínquas, a trabalhar em Mogadouro, que a alguns da terra fizeram perguntas que eles acharam provocadoras e de quem quer gozar com os pobres e ignorantes. Eles estavam na melhor da disposição para lhes dar comida e vinho, mas essas palavras caíram-lhes como rastilho já a arder em pólvora pronta explodir. O grande provocador, o que pronunciou as palavras que incendiaram os presentes, foi agarrado, maltratado, esbofeteado, pontapeado e por fim arrastado por uma rua contígua cheia de pedras e lama.

Quando chegou o regedor, os maus-tratos terminaram e os estranhos foram enviados de automóvel para Mogadouro. Sei que o homem maltratado, que afinal foi só um, esteve um mês no hospital, ainda pensou pôr uma acção em tribunal mas desistiu talvez por não encontrar testemunhas.

As relações entre estas duas autoridades, presidente da junta e regedor, eram corretas, sem serem cordiais ou amistosas, nunca soube qual a razão apesar de conhecer bastante bem um e o outro.
Aparentemente parecia também que não davam especial importância aos cargos e que procuravam fugir das raras cerimonias oficiais.

Parecia-me igualmente que eram indiferentes ao regime, sem terem ideias politicas para lá da defesa da propriedade, da família e da religião, aceitavam esse regime como qualquer outro que aceitasse essas premissas. Noutro contexto, e sem querer fazer uma comparação ipsis verbis, lembrei-me da forma como os homens grandes das tabancas da Guiné recebiam os cumprimentos das autoridades militares. Afinal a sociedade deles tinha resistido a revoluções várias e a regimes diferentes. Não imaginavam que o fim dessa sociedade estava próximo.

Havia duas outras autoridades de quem pensava falar o padre e a professora, fica para outra altura, pois a conversa já vai longa, como não gosto de abusar da paciência de alguém que me queira ler, vou remeter este texto ao amigo e camarada Carlos Vinhal e ele e o grande camarada Luís Graça que decidam se é publicável ou não.

Não sem razão escrevia ontem o amigo Helder Valério, por outras palavras, que estes quadros bucólicos, que pinto mal ou bem, repetiam-se muito com várias cambiantes e matizes por essas aldeias de Portugal inteiro.

Na verdade ao escrever estas estórias para muitos de vós, que já as conheceis no todo ou em parte, devia estar a escrever para os meus netos, desculpai, estou à espera que eles cresçam para me ouvirem com mais atenção. Entretanto vou relembrando aos mais esquecidos ou distraídos, ou aos que nasceram na cidade grande e tenham curiosidade de saber como se vivia à mais de 50 anos nas aldeias, muitas vezes a poucos quilómetros dessa cidade.

A todos um grande abraço
Francisco Baptista

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Guiné 63/74 - P14048: Conto de Natal (19): Uma viagem a outros Natais (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 17 de Dezembro de 2014:

Este texto não será ainda a estória dessas viagens de lazer, de prazer, relaxamento, pelos vales, planícies, montanhas, florestas, muitas vezes refletidos em grandes lagos ou grandes rios onde espelham o seu encanto e a beleza.

Terá sido nessas viagens e passeios pela natureza onde as paisagens que nos encantam se duplicam nas águas límpidas e transparentes, onde Narciso se apaixonou pela sua própria imagem.
Não será também a estória das viagens pelas maravilhas construídas pelas mãos hábeis de tantos artífices e artistas que povoam as cidades da terra.
Pela mente todos os dias viajamos, de corpo e alma de vez em quando.

Hoje a minha viagem de menino leva-me à igreja de Brunhoso.
Próximo do local onde assistia com a família masculina (as mulheres ficavam separadas, atrás dos homens, talvez para não haver lugar a troca de olhares sensuais e pecaminosos) a todas as cerimónias religiosas, havia um altar, com um Menino Jesus, quase todo nu, somente com um pano a tapar-lhe o sexo.

Dentre todos os santos que povoavam os altares da igreja sempre achei muita graça a esse menino, pois parecia-me mais humano do que todos os outros santos adultos que, por vezes muito bem vestidos e enfatuados duma forma antiga, pareciam olhar mais para o alto do que para as pessoas.

Esse menino parecia um outro como eu quando ainda o era, e que estaria disposto a brincar comigo e com os da minha idade. Na Missa do Galo, no Natal, esse menino descia do seu pedestal e o padre dava a beijar os pés dele a toda a gente. Hoje raramente vou à missa mas confesso camaradas que ainda sinto muita ternura por esse menino de barro.

Brunhoso, nesse tempo, tinha poucas árvores de fruta e as laranjeiras não cresciam lá, queimadas pelas geadas, em minha casa como na maioria apreciávamos muito a fruta, que não sendo de colheita própria, raramente se comprava. O meu pai que eu julgava muito sovina, depois da Missa do Galo, todos os anos invariavelmente, comprava o grande cesto de fruta que era leiloado pelos rapazes no adro da igreja, que continha sobretudo laranjas.

Para mim e os meus irmãos era quase um milagre do Menino Jesus, saber que esse grande cabaz de laranjas ia para nossa casa.
Muito obrigado pai por tantos milagres.

Portugal > Bragança > Mogadouro > Brunhoso > Terra com história, património e gente de carácter. Foto de Aníbal Gonçalves, grande divulgador da sua região, em particular o nordeste transmontano. Professor, alia a fotografia ao geocaching.  É natural de Bragança, vive em Vila Flor. Tem página no Facebook. Cortesia da sua  página dedicada a Brunhoso.

Os meus Natais na Guiné foram dias como os outros, no quartel ou no mato, tanto em Buba em 1970 como em Mansabá em 1971. Que me recorde, não houve bacalhau nem rabanadas nem outro petisco da quadra natalícia.

Porque eu sempre associei o Natal ao frio e por vezes à neve, deixei passar o Natal sem nostalgia, porque estava enfeitiçado pelo calor e pelo cheiro quente da terra africana e nesse tempo nunca imaginei um Menino Jesus negro.
Na Guiné vivi em terras de muçulmanos e por outro lado andava desinteressado de manifestações religiosas de qualquer crença.

" Decididamente é difícil pensar que não é Natal", como diz o nosso poeta e comandante Luís Graça.

Este texto que evoca o Natal, dedico-o a ele pela dedicação e trabalho que diariamente desenvolve pela manutenção e vitalidade do blogue, ao meu camarada de Mansabá e quase vizinho actual, Carlos Vinhal igualmente um grande obreiro e sacrificado do blogue.

Os outros camaradas que me desculpem mas vou dedicá-lo também a outros dois camaradas:
Ao camarada Jorge Picado, mais velho e sereno do que eu, que também esteve em Mansabá, e que aprendi a apreciar por conhecimento pessoal e pela bonomia que transmite nas palavras que escreve.
Ao amigo José Luís Fernandes, pela autenticidade, humanidade e profundidade de tudo o que já escreveu no blogue e pela ausência já tão longa, com que nos penaliza e que espero não se prolongue muito mais.

A todos os camaradas desejo um Bom Natal e um Bom Ano.
A todos um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12504: Conto de Natal (18): "Uma Luz de Natal no alto do Monte", por Adriano Miranda Lima - Cor Inf Ref

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13848: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (6): Uma consulta no HM 241 interpretada como um abandono do pelotão que comandava

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 25 de Outubro de 2014, com mais uma memória de Buba:


Memórias da CCAÇ 2616

6 - Uma consulta no HM 241 interpretada como um abandono do pelotão que comandava

Camaradas e amigos

Após a reforma li muitos livros para me reconciliar com um velho prazer que tinha descurado bastante tempo. Ler é melhor do que escrever pois a leitura enriquece o espírito enquanto a escrita... o acto de escrever é em si uma tarefa empolgante como desafio como paixão mas depois de concluído, o seu resultado deixa de entusiasmar o autor.

O acto de escrever será parecido com outros actos que praticamos com muita euforia, com muita adrenalina enquanto os praticamos e depois nos deixa na boca um sabor amargo a fim de festa e a desengano. Quantos escritores já não ouvimos dizer que não mais releram o livro que tinham escrito. Os grandes escritores naturalmente pensam num público, tal como os cantores, pintores e outros artistas mas julgo que escrevem também porque têm a cabeça cheia de palavras e essa foi a forma que encontraram para se libertarem do seu excesso.

Acabei de ler há poucos dias o livro "Das Trincheiras com Saudade" da Isabel Pestana Marques.
O livro descreve a vida quotidiana dos militares portugueses na 1.ª Guerra Mundial. Está muito bem escrito com grande preocupação de objectividade e com muito trabalho de pesquisa da autora.

Neste tempo em que os nossos políticos, a reboque dos políticos europeus, segundo opinião do camarada Luís Graça, e ele costuma estar bem informado, resolveram relembrar esses pobres camaradas das trincheiras, tão maltratados pela República, mal vestidos, mal armados, mal alimentados, mesmo se por suspeita foi encomenda deles, não deixa de ser um bom livro sobre o tema, segundo a minha opinião que não é de um critico de literatura e muito menos de livros histórico-militares.

Entre muitos assuntos recordo de falar em problemas entre soldados e graduados, já que as diferenças de regalias e tratamento eram chocantes, ainda por cima se se pensar que o regime político desse tempo se proclamava defensor das virtudes republicanas.
Conta nomeadamente como através de cunhas de vários tipos, familiares, amigos, médicos, etc. muitos graduados, sobretudo oficiais, fugiam à frente de combate. Muitos passavam longas férias em Portugal e outros havia que regressavam por qualquer doença e não mais voltavam.
A par disso havia companhias inteiras que por falta de rotação chegavam a passar mais de um ano na linha da frente das trincheiras, muitas vezes à chuva, à neve a ter que suportar temperaturas inclementes sem roupa nem alimentação adequada.

Tudo isso provocava sentimentos de grande revolta, chegando a haver algumas vezes sublevações de companhias inteiras e até de batalhões. Ainda é cedo para se escrever a história da guerra do ultramar e de retratar conflitos semelhantes que lá se terão gerado. Este blogue também não é o sitio próprio para se falar desse assunto. A organização militar já é em si uma pirâmide em que os postos ou escalões inferiores têm que obedecer, sem discussão, sempre aos superiores.
Os exércitos foram concebidos como máquinas de guerra, normalmente alheios a regras democráticas pela sua própria finalidade. Quarenta anos de ditadura e obediência cega à autoridade devem também ter contribuído bastante para retirar à maioria dos portugueses a vontade de praticar actos de indisciplina e rebeldia.

Num convívio recente da CCaç 2616, muitos anos já anos passados e com outra liberdade e abertura de espírito, foi interessante ouvir o que uns e outros tinham a dizer sobre o comportamento e a personalidade de cada um nessa época. Procurei falar bastante com os camaradas do meu pelotão e criar um ambiente descontraído que pudesse dar lugar a críticas da personalidade de cada um, nesse tempo. Gostaram do desafio e disseram-me que ficaram surpreendidos porque eles recordavam-se de mim como um tipo mais fechado, menos comunicativo.

Nesse ambiente de cordial e descontraído houve um soldado, o mais falador, que me disse o seguinte: "Passados poucas dias daquela emboscada na Bolanha dos Passarinhos, o alferes foi quinze dias para Bissau, alguém do pelotão se queixou várias vezes que nos tinha abandonado nesses tempos difíceis em que chegámos a ter três emboscadas no mesmo dia".

Eu fui a Bissau a uma consulta já marcada antes dessa emboscada em que comandava o pelotão, sem prever que as condições de guerra se iriam agravar. Quando regressei de Bissau soube que a companhia tinha passado por um período difícil, mas não me recordo de ouvir dizer que o meu pelotão tivesse tido três emboscadas no mesmo dia. Esse camarada que me terá criticado pela minha ausência, além de ser muito competente, era muito frontal e não me lembro de alguma vez me pôr essa questão. Também esteve no convívio mas não lhe cheguei a falar nisso.

Por outro lado, o camarada que me contou isto acredito que não foi por má fé ou por querer fazer intriga. Tanto por um como pelo outro tenho e sempre grande estima e consideração.
Nada disto é importante e grave, interessante é analisar aquilo que à distância de mais de 40 anos recordamos de muitas formas diferentes, mais vivas, já esquecidas, mais apagadas, mais fantasiadas.

Reconheço também que eu pela proximidade com o alferes médico tive a possibilidade de ir passar 15 dias a Bissau e a maior parte dos camaradas não a tinham. De resto garanto-vos que passei toda a minha comissão no mato, em Buba ou em Mansabá.

Um abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13064: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (5): Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13486: Os nossos seres, saberes e lazeres (72): Nas noites de Agosto recordando a minha aldeia (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Texto do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviado em mensagem com data de 7 de Agosto de 2014:

Árvores estranhas, onde todos os seus ramos se erguem na vertical, como que a rezar a um deus desconhecido. Mais altas, outro andar, acima do prédio de 5 andares, perto do qual foram plantadas, num pequeno espaço ajardinado no topo sul. Sentado na varanda da minha casa, na procura de algum ar noturno mais fresco, observo a dança suave que a aragem marítima, o mar está a um quilómetro, provoca nos dois ramos centrais, tão iguais que parecem gémeos, que o vento vai unindo e separando. As árvores são duas, bastante próximas, com a mesma altura, com os mesmos dois ramos fortes que se formam do tronco principal que se divide, a dois metros de altura depois de emergir do solo.

Noite quente que aquece o corpo e relaxa o cérebro e dispersa o pensamento e a memória. Estas árvores, que à frente e atrás rodeiam o prédio onde moro, árvores que não conheço, tal como as da maioria da cidade e das quais ninguém me sabe dizer um nome. Dão tanta sombra e tanta vida à cidade mas a maioria são tratadas como coisas de cimento e tijolo sem o nome que todos os seres vivos que nascem, crescem, vivem e morrem, têm e merecem..

 Brunhoso - Foto: Brunhoso Mogadouto, com a devida vénia

Na pequena aldeia onde nasci e onde me criaram, todas as árvores, arbustos, animais, pessoas, montes, vales, planícies, campos de cultivo, florestas, plantações, tudo tinha nome e à medida que íamos crescendo, íamo-nos familiarizando com esses nomes.

Aprendíamos a conhecer todo esse mundo que nos rodeava e éramos também, desde cedo, conhecidos por todos.

Há muitos anos, sendo eu já adulto, a viver na cidade grande, uma amiga da cidade, disse-me que gostaria de ter uma aldeia como eu. Talvez essa amiga se tenha apercebido do aconchego que nos dá uma aldeia onde há uma tão grande comunhão entre a natureza e os seus habitantes, onde todos se conhecem, se respeitam e onde a maioria se trata por tu.

Das grandes penas que trouxe e conservo da minha passagem por terras da Guiné é não ter conhecido melhor os seus povos e as suas árvores. Neste mês quente de Agosto em que parece que a solidão e o passado nos assombram mais, parece-me sentir ecoar pelos montes da minha aldeia e das próximas o som do Tango dos Barbudos, que transmitido do alto daqueles altifalantes parecidos grandes funis, abria sempre os arraiais das festas populares.

Tango que abre com rajadas de metralhadora que causam arrepios, alertam para o perigo mas também despertam o instinto guerreiro que existe mais adormecido ou desperto em todo o homem.

Mais tarde já com alguns conhecimentos de música clássica imaginei esses montes a repercutir os sons da Abertura 1812 de Tchaikovsky, a ecoar por montes e vales as badaladas dos sinos de Moscovo, o hino da marselhesa e os canhões do exército de Napoleão.



Imaginava eu que seria uma música mais adequada à beleza e à imponência dos montes onde fui criado. Os meus olhos foram educados na visão desses montes altos, baixos. arredondadados, aguçados e vales mais largos ou mais profundos, nessa paisagem tão agitada que parece um mar ondulado. O resto do mundo que vim conhecer foi sempre no confronto com aquele pequeno mundo que a mim sempre me pareceu tão grande. Teve já alguns grandes escritores que o souberam retratar. Nunca teve um grande poeta que o soubesse cantar, nem nunca teve um grande pintor que lhe soubesse transmitir a forma e o caracter que a minha sensibilidade artistica exige, sem que a saiba exprimir. Não sou poeta, não sou pintor, mas reconheceria esse poema e essa pintura se alguém soubesse reproduzir o que eu sinto.

Um grande abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13223: Os nossos seres, saberes e lazeres (71): O Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes visitou o Comando da Zona Marítima do Norte, instalado em Leça da Palmeira (Carlos Vinhal)

domingo, 6 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13369: O(s) comandante(s) de batalhão que eu conheci (1): Mário Pinto (Buba, Aldeia Formosa, Mampatá, 1969/71), Luís Graça (Bambadinca, 1969/71), Jorge Teixeira (Portojo) (Catió, 1968/70), Francisco Baptista (Buba e Mansabá, 1970/72)

1. Comentários ao poste  P13368 (*)


(i) Mário Pinto

 [ex-fur mil at art da CART 2519 - "Os Morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71]

O Ten Coronel Agostinho Ferreira, é dos poucos oficiais superiores a quem tiro o meu quico, pois não se remetia ao seu gabinete a dar ordens mas sim acompanhava os militares em todas as operações do seu sector e conhecia a sua ZO  pessoalmente como poucos a conheciam. 

Tive a honra de o acompanhar na Op Novo Rumo,  ao sul da Guiné,  onde pude apreciar a sua destreza de comando,.

O metro e oito,  como era conhecido,  era um homem muito grande e respeitado pelas tropas sob o seu comando, estou convicto que,  se mais houvesse oficiais da sua estirpe, o rumo dos acontecimentos por todos conhecido teria outro desfecho.

(ii) Luís Graça 

[editor, ex.-fur mil armas pesadas inf, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71]

Meu caro Mário, eu costumo dizer o mesmo em relação ao único oficial superior que saiu "uma vez" (!),  comigo no mato, o ten cor inf Polidoro Monteiro, comandante "imposto" por Spínola ao BART 2917, ainda  no decurso dos primeirso meses de comissão, em finais de 1970  ou princípios de 1971, se não erro,

E eu conheci dois batalhões (BCAÇ 2852 e BART 2917)...

Mas não gostaria de generalizar,  como tu generalizas... A nossa experiência foi muito limitada, eu conheci um ou dois setores na zona keste (L1, L2...), não mais. Há camaradas que nem isso, conheceram apenas o seu subsetor onde estiveram em quadrícula...

Entendo o teu elogio ao então ten cor Agostinho Ferreira, que de resto é partilhado por mais camaradas nossos...  Também partilho do teu ceticismo em relação à nossa "elite militar", mas não faço juízos de valor... A minha experiência é limitada e não gostaria de ser injusto em relação à generalidade dos nossos comandantes, operacionais ou não...

A guerra arrastou-se por demasiado tempo (1961/74) e, em boa verdade, havia pouco entusiasmo em morrer pela Pátria no ultramar...

Muitos destes homens já morreram ou estão na fase terminal das suas vidas... É verdade que nem todos mereceram o nosso respeito e admiração... Mas a guerra acabou há 40... E nós falamos, hoje, sobretudo de nós, das "cenas" em que fomos atores ou protagonistas... É verdade, é raro, no nosso blogue haver um elogio rasgado, sincero, a um comandante de batalhão... Porquê ?

Por outro lado, justa ou injustamente, Spínola será recordado, no meu tempo (1969/71) por ser um comandante "justiceiro" e até "populista", aparentemente implacável para com os seus subordinados, nomeadamente os oficiais superiores, tenentes coroneis e majores, que ele considerava laxistas, incompetentes, que mal tratavam os seus homens ou não se preocupavam com o seu bem-estar, que eram operacionalmente inaptos, etc.

Em que medida isto afectou o "moral" das tropas ? Ou subverteu a disciplina militar ? 

Acho que podemos abrir um nova série:  o que eu proponho é que se fale, aqui, dos comandantes de batalhão que cada um de nós conheceu no TO da Guiné, mal ou bem...

Ora aqui está um bom tema de dissertação e discussão... Já não falo do Com-chefe (Schulz, Spínola, Bettencourt Rodrigues)... Esse, era como um deus, ncessariamente longe e distante. Mas o "comandante de batalhão", esse, pelo menos viajou connosco no mesmo navio, esteve no mesmo setor (nem sempre) e uma vez ou outra visitou-nos (no nosso subsetor)...

Camaradas, procurando ser justos e objetivos, que lembranças têm do vosso "tenente coronel" ? Ainda se lembram, ao menos, do nome dele ? Nalguns casos, deu-nos um louvor ou uma "porrada"..
Vamos falar do conhecemos, não do que ouvimos dizer... Toda (ou quase toda) a gente teve um batalhão ou este adiada a um batalhão,,, Deixemos agora o Spínola em paz, lá no Olimpo dos guerreiros bem como o interminável debate sobre a guerra ganha/guerra perdida... Se puderem mandem fotos dos vossos comandantes, melhor ainda...


(iii) Jorge Teixeira (Portojo)

[ex-fur mil do Pelotão de Canhões
S/R 2054, Catió, 1968/70]

Dois pontos sobre os comentários do Luís: Quantos de nós conheceram oficiais superiores ? Mesmo os que foram incluindos em Batalhãos, provavelmente conheceream o seu comandante  apenas nas despedidas.

Pessoalmente, com o meu pelotão, estive adido às CCS de dois Batalhões, o 1913 e o 2865. A minha opinião sobre os dois comandantes está resumida em uma ou outra publicação no blogue. (Há um segundo comandante no 2865, e a minha opinião sobre ele também está referida. Infelizmente, já faleceu. Podem ler a sua biografia nor portal Ultramar Terraweb,.

Mas nada que tenha a ver com operacionalidade. Nunca tive acesso a "segredos". As minhas opiniões são sobre a parte humana. E,  tanto quanto me pareceu, e hoje ainda mantenho, ambos eram dominados pelos segundos comandantyes. Por várias razões.

O segundo ponto, tem a ver com o Spínola. Na realidade era comum ouvir-se na caserna, "faço queixa ao Spínola". Não sei se algum, alguma vez, o fez.

Pessoalmente assisti a uma cena degradante e patética do Senhor General, precisamente com o Senhor Comandante (o primeiro, Belo de Carvalho) do 2865, que lhe valeu um castigo. Era uma pessoa muito querida entre o pessoal. Sei que chegou a Comandante da EPA que exercia aquando do 25 de Abril.
Pelo comunicado dos militares "revolucionários" da EPA, que pode ser lido em 25 de Abril - Base de Dados Históricos, parece que o estigma da Guiné lhe ficou sempre preso no corpo.

O mito Spínola, para mim, nunca existiu. Nunca gostei dele como pessoa nem como militar. Muito menos como político.

Como seria a Guiné sem ele ? Não faço ideia nenhuma.

Como me comentou o Luís em tempos, oficiais de Cavalaria nunca gostaram de outras armas. Não terão sido estas as palavras, mas não ando longe.



[ex-alf mil inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72)]

Dos meus 17 meses em Buba na CCaç 2616, pertencente ao BCAÇ 2892, comandado pelo Tenente Coronel Agostinho Ferreira, recordo sobretudo as boas referências de todos os camaradas em relação às relações cordiais e ao tratamento correto que tinha com todos. 

Era também falado por ser um comandante que algumas vezes saia com os seus homens e por ser um bom estratega militar. Eu poucas vezes estive com ele, talvez duas vezes em Aldeia Formosa e não sei se alguma vez em Buba, pois não me lembro se deslocar lá. Mas sei que era um homem admirado e estimado por todo o batalhão e pelas companhias independentes que estavam sob o seu comando. 

Eu estou mais de acordo com o Luís Graça, do que com o Mário Pinto, acho que por muito bons que fossem os chefes militares, a guerra estava perdida no plano político internacional, pois tinhamos a ONU contra nós e grandes países do leste e ocidente a ajudar os movimentos de libertação.

Pela recordação que tenho do Tenente-Coronel Agostinho Ferreira, sendo um militar que não virava as costas ao perigo, não se dava ares de guerreiro como o major de operações Pezarat Correia, ou o próprio General Spinola, o homem do monóculo e do pingalim. Tenho duvidas se ele acreditaria numa vitória militar.
Foi um bom homem. Paz à sua alma!

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Nota do editor:

(*) 6 de juho de 2014 > Guiné 63/74 - P13368: Recordando o BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71) comandado pelo ten cor Agostinho Ferreira, o "metro e oit" (Luís Nascimento, Viseu)

Guiné 63/74 - P13368: Recordando o BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71) comandado pelo ten cor Agostinho Ferreira, o "metro e oito" (Luís Nascimento, Viseu)



Interessante composição do nosso camarada Luís Nascimento, tendo por base o galhardete do BCAÇ 2879. Um "recuerdo", diz ele.

Foto: © Luís Nascimento (2014). Todos os direitos reservados


1. Mensagem de Luís Nascimento, ex-1º cabo cripto da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71), que vive em Viseu, e é nosso grã-tabanqueiro:


Data: 10 de Maio de 2014 às 19:29
Assunto: Recuerdos

Amigo Luis Graça,

Junto envio um galhardete do Batalhão de Caçadores 2879, comandado pelo Tenente Coronel [Manuel] Agostinho Ferreira (o "metro e oito") (*), e cujas as companhias 2547, 2548 e 2549 estiveram em Cuntima do Norte, Jumbémbém e  Nema, respetivamente, e a CCS  em Farim. A CCAÇ 2549 era comandanda pelo cap inf Vasco Lourenço.

Em Canjambari, estva a minha companhia, a CCaç 2533, adida ao BCAÇ 2879.  Era comandada pelo Capitão Sidónio Ribeiro da Silva.

Abraço,

Luis Nascimento





Ten cor inf Manuel Agostinho Ferreira (*), comandante do BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71) e do BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1969/71), popularmente conhecido como o "metro e oito". Faleceu em 2003, com o posto de  major general. Foto de Mário Pinto.

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Nota do editor:

(*) vd. poste de 18 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10399: As Nossas Tropas - Quem foi quem (10): Ten Cor Manuel Agostinho Ferreira, o "metro e oito", comandante do BCAÇ 2879 (Farim, 1969/71) e BCAÇ 2892 (Aldeia Formosa, 1969/71) (Paulo Santiago / Carlos Silva / Manuel Amaro)

(...) Distinto oficial, inteligente e corajoso, que, sendo comandante de batalhão, não se poupava a esforços nem a sacrifícios, assim como não hesitava em participar nas operações, a fim de poder apreciar in loco a justeza dos factores de planeamento, quantas vezes abstractos, que os manuais forneciam.

Esta postura do nosso comandante que, por um lado, era altamente louvável, por outro incutia na rapaziada uma confiança que fazia ultrapassar o medo que porventura existisse. Tal atitude granjeou-lhe da nossa parte uma grande simpatia e admiração que ainda hoje se faz sentir e há-de perdurar ao longo dos tempos até ao último sobrevivente do Batalhão. expressão de tal sentimento resulta bem claro nos almoços de confraternização do Batalhão" (...) (Carlos Silva)

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13331: Blogoterapia (252): Fui no dia 14 a Monte Real encontrar-me com jovens de antigamente (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 18 de Junho de 2014:

Nesse tempo, em 1970, 71 além da CCaç 2616, a que pertenci, havia também um destacamento de fuzileiros africanos, enquadrado por graduados europeus, uma secção de morteiros, um pelotão de artilheiros que manobravam os obuses 14 e uma secção de administração militar. Já passaram mais de quarenta anos.
Buba, situada no terminus do rio Grande Buba tinha um cais onde encostavam periodicamente (mensalmente, pelo menos) as LDG com munições e mantimentos para o batalhão com comando em Aldeia Formosa e para as populações que viviam junto dos quartéis.

Além dos "residentes" havia portanto muitos que se movimentavam por lá como acontece em todas as terras onde há portos. Convivi com muitos deles, no geral afáveis e simpáticos, todos diferentes, porque não há dois homens iguais, todos tínhamos sonhos que disfarçávamos em bravatas e cervejas.
Havia projetos, vidas adiadas, mães, pais, irmãos, esposas, noivas, namoradas, tanta gente a sofrer dum lado da terra e do outro. Tudo isso calava fundo na alma de cada um mas todos escondíamos essas "pieguices", como jovens guerreiros corajosos que mesmo não o sendo, procuram aparentá-lo pois não se deve dar o flanco ao inimigo nem à morte.

Foto: © José Teixeira

Nas minhas breves passagens por Bissau cruzei-me com muitos camaradas das origens mais variadas da Guiné, território que sendo pequeno me parecia tão grande. Farim, Batafá, Canquelifá, Guidaje, Catió, Pirada, Gadamael, Mansabá, Olossato e muitas outras terras com nomes estranhos e sonantes que desconhecia.

Ouvia estórias de ataques, minas, emboscadas, falava-se brevemente de alguns mortos ou feridos graves para ninguém se comover demasiado pois as lágrimas podem amolecer a coragem dos homens. Ao ouvir essas estórias parecia-me que Aldeia Formosa, Nhala, Mampatá, Buba e Empada eram paraísos de paz.
Em abono da verdade tenho que confessar que Buba só experimentou algumas minas e recontros no mato na fase final da companhia depois destas estórias. Nessa fase Mampatá sofreu uma emboscada terrível e Empada a pior de todas. Eu como todos os camaradas do batalhão fiquei muito abalado com essas mortes mas hoje não me compete a mim falar desses acontecimentos, por respeito a todos os seus intervenientes pois não os saberia relatar corretamente.

Falavam de balantas, papéis, manjacos, brames, felupes, cassangas e outros, tantas etnias, muitas mais do que as doze tribos de Israel. Eu na área do meu batalhão só conhecia fulas, perdão havia uma pequena família de balantas em Buba.

Monte Real, 14 de Junho de 2014 > IX Encontro da Tabanca Grande > Fátima Anjos, Francisco Baptista e Hélder V. Sousa.

Foto: Luís Graça

Fui no dia 14 a Monte Real encontrar-me com esses jovens de antigamente, hoje somos todos homens feitos que já passámos o meio da encosta na descida para o Hades, o rio da morte e do esquecimento.

Somos os mesmos e somos diferentes, temos rugas, cabelos brancos, carecas, temos barriga, temos a ferrugem dos tempos inclementes da África e da Europa, talvez mais cínicos mas à procura da inocência da juventude.
Perdemos o ar sonhador doutros tempos. Queremos acreditar nos sentimentos mais nobres e por isso nos juntamos uns com os outros à procura desses jovens generosos e sonhadores desses tempos, em terras da Guiné.

Talvez nos juntemos também para podermos contar as estórias que nunca contamos a quem não esteve lá ou para contarmos as estórias que os outros nunca quiseram ouvir para não terem que prestar tributo e homenagem aos heróis que nunca fomos.

O grande poder, o poder que liberta, reside na anarquia que traz a lucidez que liberta os homens de preconceitos e amarras, para poderem voar e navegar nas estradas amplas da vida, como irmãos, como amigos, como camaradas.
Não sei se fui eu, Cristo, Maomé ou Buda, mas gosto da frase mesmo sabendo que a Anarquia como governo é uma " Utopia".

Como a maioria eu durmo, sonho, acordo e sonho, como diz o poeta o sonho comanda a vida. Eu direi que os sonhos dos artistas nas suas várias expressões, literárias, poéticas, musicais, plásticas e outras, embelezam a vida e dão-nos a ilusão da eternidade.
Pelo sonho vamos....

A todos os camaradas um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12888: Blogoterapia (251): O programa com um vírus que não consigo apagar, remover ou formatar (José Colaço)

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13207: IX Encontro Nacional da Tabanca Grande (10): Inscrevo-me para reviver um pouco da amizade, embora os camaradas, em Monte Real não sejam aqueles com quem convivi, sei que estão irmanados no mesmo sentimento (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 28 de Maio de 2014:

Há cerca de um ano ou pouco mais descobri o blogue do Luís Graça tendo como um dos seus colaboradores o Carlos Vinhal, que pelo resumo da sua resenha histórica tinha estado em Mansabá, alguns meses comigo.

Eu que depois de muitos anos de esquecimento propositado tinha abandonado a Guiné, resolvi voltar para lá as minhas atenções pois já era tempo de estabelecer a concórdia e a paz com esse passado turbulento. Não me lembrava já do amigo Carlos Vinhal, mas agora depois de meses de contacto e inclusivé de um encontro pessoal, estou a recordá-lo bem.

O Carlos Vinhal foi aquele furriel miliciano, que me atendeu na secretaria , quando me apresentei na Cart 2732 e quando foi fazer o levantamento de uma mina anti-carro, que o meu pelotão descobriu, na estrada, entre Mansabá e Farim sempre com profissionalismo, correção, sem excessos efusivos. Ainda hoje assim se conserva.

O Carlos Vinhal fala e escreve bem quando precisa mas sendo um individuo activo gosta mais de fazer do que de palrar.
Todos sabemos reconhecer o trabalho imenso, de correção, de arranjo fotográfico e editorial que tem feito neste blogue e o Comandante Luis Graça, que é também um grande trabalhador, devia dar-lhe a mais alta condecoração.

O meu espirito que se dispersa e vagueia, leva-me ás águas do Grande Buba, rio grande, rio que não sei se o era, porque nascia no mar e não na terra, rio salgado como a maior parte dos rios da Guiné. Rio grande, rio largo, que cheguei a navegar numa viagem até Bolama, rio tal como um deus indiano, cheio de grandes braços em toda a sua extensão.
Um mar com margens alargadas, que dá repouso aos olhos e às almas, mas que querendo parecer um mar, não deixa de ser um rio, com margens mais largas.

Em Passau, onde fui com a minha mulher, levados pela nossa Ana, que já nos mostrou, ou só ela ou com o Christian, o marido e com os nossos netos, o Daniel a Camila quase todos os montes, lagos e rios da Baviera, cidade que fica na confluência de três rios, que se unem quando passam, o Danúbio, o Inn e o Ilz, veio-me à memória o Grande Buba.

O rio que se forma depois das águas desses três rios se unirem, depois de Passau é imponente, a sua observação quase corta a respiração.
O rio Grande Buba que eu conheci, era um rio menos largo, sem os Alpes bávaros por pano de fundo, mas também era um rio soberbo.

Mansabá foi o relaxe, o repouso, a boa convivência para onde me mandaram, depois de 17 meses de pequenas guerras, de alguns conflitos e grandes amizades que dentro e fora do quartel, fui fazendo em Buba com os camaradas da minha CCaç 2616, do Batalhão 2892 que fazia muitas colunas de reabastecimento e ao sabor das marés com os camaradas do Destacamento de Fuzileiros.

Cícero, grande politico e escritor romano que nasceu no último século antes de Cristo, escreveu um tratado acerca da amizade que nunca algum escritor ou filósofo escreveu. Muitos escritores e filósofos escreveram sobre o amor, por vezes um sentimento calmo que cultivado no meio familiar se confunde com a amizade, e outras vezes pode ser violento e tumultuoso como a paixão quando resulta da atracção entre os sexos.

Sobre amizade, esse sentimento calmo, benéfico, altruísta, que confesso nunca soube cultivar muito bem, como transmontano a quem basta a palavra e a hospitalidade mas que tal como o amor também requer tolerância e compromissos, aprendi muito nas margens do Grande Buba e em Mansabá perto das floresta do Morés.

Para reviver um pouco dela, embora os camaradas, em Monte Real não sejam os mesmos, sei que estão irmanados no mesmo sentimento. Podem ser melhores ou piores, tanto faz, mas os que aparecem normalmente são sempre os que apreciam mais o convívio e o calor da amizade.

Hoje na Tabanca Pequena de Matosinhos conheci pessoalmente o Jorge Picado que já tinha conhecido e cumprimentado no nosso blogue, gostei da sua simpatia e bonomia e com ele senti-me mais próximo de todos, dos jovens de outrora e dos avós do presente.

Pelos antigos e pelos actuais, eu duma forma, pouco formal mas que o amigo Carlos Vinhal entende, peço-lhe que aceite, desta forma um pouco panfletária a minha inscrição e a da minha mulher no almoço da Tabanca Grande no dia 14 de Junho.
Dormida também. 

Este texto é também um desafio ao meu primo Francisco Magalhães, com quem tive sempre um relação de grande amizade, que foi alferes na Guiné e que por vezes espreita o nosso blogue.

O meu nome já o sabes, a minha companheira é a Fátima Anjos.
Em Monte Real quero levantar a minha taça e fazer um brinde à amizade e à camaradagem!

Um abraço a todos os camaradas
Francisco Baptista


2. Comentário do editor

Caro Francisco
Poucos minutos antes de abri esta tua mensagem, posso prová-lo, tinha enviado uma resposta ao sogro de um nosso camarada, apenas identificado por "cabo pequenino", que pertenceu, imagina, ao 2.º Pelotão da tua 2616. Procura camaradas e saber se há Convívios regulares da sua (tua) Companhia.

Falei-lhe de ti, e disse-lhe que caso se lembrasse do Alferes Francisco Baptista lhe enviaria o seu (teu) contacto.
Já agora se te lembrares de um militar conhecido por "cabo pequenino", dá-me um toque.

Então o nosso Capitão Picado esteve em Matosinhos? Bom sinal porque é sinónimo de que está bem.

Finalmente, uma palavra para a tua inscrição no nosso IX Convívio. Que surpresa agradável.
Aposto que vais gostar. És, se bem me lembro, o 5.º elemento da CART 2732 que já participou nos nossos Encontros. Além de mim e do Cap Mil Jorge Picado, já participaram o Inácio Silva, que era Apontador de Metralhadora, mais tarde impedido na Secretaria do COP 6, e o Malhão Gonçalves que pertencendo às Transmissões desempenhava as funções de electricista a tempo inteiro.

Vou já tratar da tua inscrição. Se a todo o tempo o teu primo quiser participar, também o receberemos com amizade. As inscrições costumam fechar 3 dias antes do dia do Convívio para que nada falhe no serviço que o Hotel se propõe fornecer, normalmente de excelente qualidade.
 Abraço
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de quarta-feira, 28 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13203: IX Encontro Nacional da Tabanca Grande (9): Um exemplo a aplaudir e a seguir: Jorge Pinto, "régulo" de Fulacunda, traz mais dois camaradas com ele, até Monte Real, no dia 14 de junho: José Miguel Lobo e António Rebelo, da 3ª CCART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74)

terça-feira, 29 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13064: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (5): Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 16 de Abril de 2014, com mais uma memória de Buba:


Memórias da CCAÇ 2616

5 - Pequenas estórias de medo, pesadelo e apanhados do clima

O malogrado alferes Queiroz que eu fui substituir na CCaç 2616, em Buba, morreu ao pisar uma mina anti-pessoal, num campo minado nosso que penso terá já sido deixado pela Companhia anterior.

Uma das primeiras saídas que tive para o mato foi em direcção a esse campo minado que distaria 5 ou 6 quilómetros do quartel. Foi toda a Companhia e o objectivo já não sei se seria localizá-lo melhor ou fazer a sua desminagem. Ao chegar lá, à beira do carreiro, não muito longe de mim, rebentou uma mina, olhei e vi um soldado milícia com o pé desfeito e a sangrar abundantemente da perna. Comecei a sentir-me agoniado e mal-disposto, devo ter ficado branco como cal. Tentei controlar-me de forma a não denunciar a minha susceptibilidade. Consegui esse controlo com alguma dificuldade talvez também porque as atenções estavam concentradas no ferido. Teria sido um desastre em frente ao pelotão que ainda mal me conhecia e com toda a Companhia presente se o periquito desmaiasse. Não desmaiei mas apanhei um susto enorme. Os meus amigos já imaginaram se eu desmaiava, enfim seria o fim duma brilhante carreira militar!

Infelizmente houve outras situações em que houve derramamento de sangue mas passei a reagir com a naturalidade própria de quem se encontra numa situação de guerra.

Meses passados, só o pelotão perto da Bolanha dos Passarinhos a tentar tapar um corredor da guerrilha, com origem na Guiné-Conacry, por sinal desativado havia muitos meses na área de Buba, instalados debaixo de muitas árvores que nos resguardavam do sol e do calor, caiu-nos uma trovoada terrível em cima.
Não sei se era uma ou se seriam três ou quatro simultâneas, mais parecia um ataque aéreo com aviões a jato e bombardeiros a despejar água a jorros e bombas em cima de nós. A minha experiência de guardador de vacas ainda com terra idade na aldeia, muitas vezes só, por lameiros no planalto ou regadas nos vales, foi-me aconselhando a não ter medos inúteis das trovoadas fortes da primavera apesar do muito barulho dos trovões e da violência dos raios e coriscos, pois não havia conhecimento na terra, e nas próximas, de ter havido mortos ou feridos graves por causa desses fenómenos atmosféricos.

O meu optimismo tanto por cá como em terras da Guiné apoiei-o sempre na lei das probabilidades. Segundo esse calculo era muito mais provável regressar vivo da Guiné do que o contrário. Hipótese, diga-se de passagem, bastante egoísta, talvez ditada pelo instinto de sobrevivência.

Os outros camaradas do pelotão, pelo que recordo, seriam mais de áreas urbanas portanto com menos experiência de trovoadas em campo aberto que não oferecia proteção. Para todos era a pior situação dum combatente, porque face ao perigo imaginado ou real, não podíamos ter qualquer reação de defesa.

Confesso que nunca vi tanto medo no pelotão, vi alguns homens a rezar, coisa rara entre jovens da nossa idade.No terramoto de Janeiro de 69, estava em Mafra na recruta e também vi muitos camaradas a rezar. Passado um bom bocado a trovoada passou e respirámos fundo.

O alferes Meireles veio de Nhala com o pelotão reforçar a Companhia de Buba durante algum tempo e ficou alojado no meu quarto. Por temperamento era um camarada bastante discreto, pouco falador, por vezes até com o semblante carregado como quem pede que não o incomodem. Apesar disso não deixava de ser bom camarada e simpático à maneira dele.

As nossas camas que colocadas em paralelo, distariam 1 metro ou 1,5. Certa noite acordo com o Meireles aos gritos aflitivos de "cobra, cobra!" e sem ter tempo de o acalmar sinto-o voar da cama dele e cair na minha como se o seu corpo tivesse molas.

Depois acabou por acordar e acalmar do pesadelo e voltou para a cama dele e pouco depois retomamos o sono interrompido. Passado algum tempo, em dia de coluna, na época das chuvas, com muitos camaradas a precisar de alojamento, deitaram-se 3 ou 4 no chão do nosso quarto. Deitamo-nos um pouco mais tarde como era normal quando havia camaradas doutros quartéis pois ficávamos sempre algum tempo a confraternizar e a beber umas cervejas no bar.

Quando já estávamos ferrados no sono começa o Meireles a gritar e eu todo ensonado e aborrecido por me ter acordado virei-me para ele e disse:
- Oh Meireles lá vens tu outra vez com as cobras!

Bem os outros camaradas que já tinham acordado também com os seus gritos aflitivos reagiram com gargalhadas ao meu comentário. Pesadelo chato para o Meireles, acordar rabugento para mim, mas gravei também para sempre essas gargalhadas de boa disposição.

Buba, Maio de 1969 - Entrada principal da povoação e do aquartelamento 

Foto: © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados

Depois do Meireles veio de Aldeia Formosa o Rocha com o pelotão reforçar a Companhia. Ficou igualmente alojado no meu quarto, já não sei se era eu que me dava bem com todo o pessoal do Batalhão ou se o meu quarto era a modos que um albergue espanhol.

Diferente do Meireles, era mais sociável, tal como eu transmontano, eu do meio rural ele do meio urbano da cidade de Vila Real. Tal como com o Meireles já tínhamos uma boa relação de amizade das suas idas frequentes a Buba nas colunas de reabastecimento.

Ele sendo do tempo do Batalhão, tinha mais sete meses do que eu de Guiné e talvez por isso mostrava estar um pouco afectado psicologicamente. Dizia que estava apanhado pelo clima. Tirem-me daqui! - gritava ele muitas vezes. Havia outros gritos, alguns apenas sons tipo bramidos de feras.
Noites havia que ficava bastante nervoso e como os nervos dele mexiam com os meus, por vezes tínhamos discussões chatas que provinham de tudo ou de nada. Essas discussões e zangas durariam cerca de meia hora, pois ao passar esse prazo resolvíamos ir os dois ao bar beber uma cerveja e brindar à amizade. Este ritual repetia-se sempre e nós nunca tivemos uma zanga mais prolongada do que essa meia hora de nervos e terapia.

Depois da Guiné não voltei mais a ver o Rocha. Gostaria de voltar a beber uma cerveja com ele, bem como com o Meireles que também perdi de vista.
Pensando bem acho que o Meireles agora será abstémio .

Um grande abraço a todos os camaradas.
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12874: Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71) (Francisco Baptista) (4): O respeito pela morte

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12967: Estórias avulsas (78): O meu amigo cigano Zé Beiroto (Francisco Baptista)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 7 de Abril de 2014:

Estava em Buba há pouco tempo quando recebi um aerograma do Zé Beiroto, o filho mais velho da Raquel cigana, onde me comunicava que tal como eu se encontrava em comissão na Guiné e pedia se eu lhe poderia arranjar um bom lugar para passar melhor o tempo por lá. Respondi-lhe que como amigo dele, desejava-lhe uma boa estadia mas que nada poderia fazer para a melhorar pois eu pouco mandava e não tinha amigos influentes.

O Zé, mais velho 3 anos do que eu, teria ido como refratário para a tropa, situação muito comum aos da sua etnia.
Não sabia ler nem escrever, portanto o aerograma terá sido escrito por um camarada a seu pedido. Não sei como terá conseguido o meu SPM. Na altura isso não me preocupou muito. Hoje penso que terá sido através da mãe dele, a Raquel cigana.

A Raquel era uma mulher robusta e larga, que pedinchava pelas portas mais do que todas as ciganas. Tanto entre adultos como entre jovens ela despertava pouca simpatia.
A Raquel parecia daquelas pessoas que não se conformando com a sua má sorte têm inveja e quase ódio às pessoas melhor instaladas na vida. Fosse porque deixasse transparecer isso ou por tanto a verem a pedir de porta em porta,  a garotada mandava-lhe ditos pouco agradáveis a uma distância conveniente para não serem agredidos. Este era o mais conhecido: "Quem me dera uma canhona morta para lhe tirar a pele comia-lhe a chicha toda e dava-lhe os ossos à Raquel".

Ia muitas vezes pedir à minha casa uma esmolinha, por amor de Deus. Recordo-me de pedir muitas vezes azeite para temperar o fiolho. A minha mãe, contra a vontade de alguns de casa, dava-lhe sempre alguma coisa. Tal uma como a outra tinham muitos filhos e isso devia mexer com a sua bondade e o seu instinto maternal.

Vista parcial de Brunhoso
Com a devida vénia a http://www.bragancanet.pt/brunhoso/

Nesse tempo Brunhoso era uma aldeia densamente povoada com muitos habitantes por casas de habitação. A acrescer a isso havia ainda muitos ciganos que não tendo residência fixa, passavam a maior parte do ano na aldeia em instalações improvisadas. Essas instalações eram alguns palheiros ou curraladas no inverno, que os lavradores lhes cediam. Já no verão preferiam instalar-se ao ar livre, no Pereiro, um terreno baldio perto do povo, com muitos olmos debaixo dos quais se abrigavam à noite e de dia nas horas de mais calor.
O olmo grande, onde a cegonha tinha o ninho, talvez o maior olmo da terra, dava abrigo a várias famílias. 

Nesse tempo os ciganos pelo seu modo de vida preguiçoso, a sua pedinchice e alguns roubos sobretudo nas hortas, eram expulsos, por vezes mesmo escorraçados da maior parte das aldeias. Em Brunhoso eles eram aceites e por isso muitos consideravam-na como sua. Havia outras aldeias, raras, onde eles se instalavam provisoriamente pois como povo errante não gostavam de estar sempre no mesmo sitio.
Há uma tendência entre muitos homens de abusarem do seu sentido critico para julgar os seus semelhantes. Entre os meus conterrâneos esse sentido critico devia estar muito esbatido ou então era o seu sentido de humanidade que era muito grande para aceitarem não só os seus iguais mas também os "outros", os que tinham hábitos e tradições tão diferentes que por vezes chocavam com as suas.

O povo de Brunhoso embora ordeiro e trabalhador devia sentir uma certa atração pela liberdade e despreocupação com que aquele povo de maltrapilhos vagabundeava pelo mundo vivendo ao ritmo da natureza mais selvagem, segundo o aconchego que as estações do ano podiam dar, de preferência mais perto dela e das estrelas, colhendo as plantas e frutos selvagens que a natureza dava tais como o fiolho, comendo os animais. vacas, ovelhas, porcos etc. que morriam de doença aos aldeões (não ciganos), procurando também a ajuda da população mais caridosa.

Esse tempo de muito trabalho, muita fome, muita gente, muitas festas, feiras e ciganadas em trânsito, era também o tempo da jovem mulher mais esbelta e donairosa, muitas léguas em redor, essa cigana, a mais bela da caravana, que só a evocação do seu nome alimentava sonhos eróticos nos lavradores do nordeste transmontano e sonhos de pesadelo nas suas mulheres. Dela dizia-se que já teria provocado a falência de várias casas de lavradores. Conheci, fui muito amigo dum camarada nosso, soldado noutro TO que depois de ter regressado dessa África longínqua se gabava de ter gozado dos seus favores.
Acho que depois 28 meses de sacrifício, de canseiras e de sustos merecia essa recompensa.

Ciganos
Coma devida vénia ao Blogue A Defesa de Faro

Os marinheiros de Vasco da Gama também tiveram como doce recompensa dessa longa e tormentosa viagem à Índia as ninfas da Ilha dos Amores, tal como nos conta Luís de Camões nos Lusíadas:

Que famintos beijos na floresta, 
E que mimoso choro que soava! 
Que afagos tão suaves, que ira honesta, 
Que em risinhos alegres se tornava 
O que mais passam na manhã e na sesta, 
Que Vénus com prazeres inflamava, 
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo; 
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo 

"Os Lusíadas" 
Canto nono 

Meu grande amigo, a vida é tão curta. como sabemos, cheia de sacrifícios e tristezas é bom que também proporcione por vezes algum prazer.
Seria mais velha que eu quatro ou seis anos. Vi-a algumas vezes e admirei-a pelo seu porte altivo, elegância e beleza . Eu e o Zé sempre fomos amigos talvez tenhamos herdado essa amizade das nossas mães.

Contrariamente aos da sua etnia, mostrava ser bastante ambicioso, trabalhando um pouco mais do que os outros e sendo também mais activo noutras actividades noturnas ou clandestinas. Casou com uma aldeã, contra a tradição do seu povo e penso que ao fazer o registo do casamento foi "apanhado" para cumprir o serviço militar.
Os casamentos entre ciganos eram muito festejados mas não tinham cerimonia civil nem religiosa. Nesse tempo, segundo constava, entre os aldeões, eram realizados pelo método do chapéu ao ar. Se o chapéu caísse com a copa para cima, os noivos ficavam casados, se caísse com copa para baixo ficavam também. Na realidade não havia chapéu, nem cerimónia, havia somente festa maior ou menor, conforme a comida disponível.

Já perto do final da minha comissão e estando já eu na CART 2732 em Mansabá, apareceu-me lá o Zé da Raquel que estava de passagem, para me cumprimentar. Ainda hoje não sei muito bem como conseguiu oportunidade para estar comigo e como sabia sempre onde eu me encontrava. Enfim instinto de andarilho e cigano.

De 1969 a 1973 estivemos na Guiné seis naturais de Brunhoso em comissão. Que eu saiba e recorde não houve outros, nem antes nem depois.  O José Beiroto, ou Zé da Raquel, soldado; o Joaquim Fermento, furriel da CCAÇ 3327, em Bachile e Teixeira Pinto; o Francisco Magalhães, meu primo, alferes da mesma companhia; eu, Francisco Magalhães Baptista para usar também o apelido Magalhães que muito prezo e pelo qual sou primo do outro Francisco já que tínhamos o mesmo avô, também Francisco e logicamente Magalhães; o António Francisco Beiroto, soldado e o José dos Santos Carvalho, soldado.

Com o meu primo e com o Joaquim Fermento cruzei-me uma vez em Bissau, talvez quando eles chegaram à Guiné e eu ia para a CART 2732 em Mansabá, depois da CCAÇ 2616 ter regressado em fim de comissão. O António e o José eram primos do José Beiroto, filhos do António Francisco Gordo, mais conhecido pelo Mudo Cigano, que aos baldões pela terra, morreu recentemente com 98 anos. A mãe chamava-se Isaura dos Anjos Beiroto. O pai embora cigano era muito trabalhador. O casal tinha muitas bocas para alimentar, criaram 13 filhos, e ele sendo mudo não podia dedicar-se ao negócio dos ciganos de compra e venda de burros, cavalos e mulas. Nesse negócio eles eram peritos, conseguindo enganar frequentemente os compradores, vendendo burro velho por burro novo.

A mãe deles era uma mulher humilde e resignada que eu recordo de andar a pedir esmolas pelas portas, quase sempre grávida. O Zé Beiroto morreu de doença há cerca de 30 anos. Paz à sua alma!

Com o desenvolvimento da Espanha no pós-franquismo, os ciganos emigraram a maior parte para lá. Os olmos do Pereiro, e de toda a aldeia, morreram através duma doença que os ventos trouxeram da Europa alguns anos após a sua debandada. Quando morrem os ciganos, muitos familiares trazem os corpos para Portugal para serem sepultados no cemitério de Brunhoso. É a melhor homenagem que podem prestar a essa terra de mulheres e homens ilustres, pobres e ricos que deixaram essa grande herança de solidariedade e tolerância aos seus filhos.

P.S.
Se algum camarada conheceu o José Beiroto ou os primos na Guiné, gostaria que me desse informações sobre as suas vidas por lá.

Um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12945: Estórias avulsas (77): A história do dia seguinte! (João Alberto Coelho)