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sexta-feira, 12 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21068: Fauna e flora (12): José Carvalho, Barão do K3: "leopardo" (Panthera pardus) e não "onça" (Panthera onca) ou "jaguar", que só existe no "Novo Mundo"? ...Mas na Guiné-Bissau sempre ouvimos falar em "onças", até há emissões de selos...


Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (BráBironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72) > "Um felídeo, que tropeçou numa das armadilhas NT, nas imediações do destacamento" [de Bironque ou Madina Fula]. Foto do álbum do alf mil  José Carvalho. 

Foto (e legenda): © José Carvalho (2020) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do editor Luís Graça ao poste P21057 (*):

Belíssimas fotos, ótimas legendas... Prometo ler com toda a atenção... Mas, para já, destaco o enorme interesse documental deste álbum... Obrigado, grande Barão do K3!...

Em Bironque e Madina Fula parece que apanhaste o tempo seco... Sei o que é o terrível pó vermelho, das colunas logísticas, que fiz de Bambadinca ao Saltinho, via Mansambo e Xitole... Mas também para o Xime, antes da nova estrada alcatroada (que já não conheci)...

E também posso avaliar o que é viver em "Bu...rakos" como estes... E muito pior era o tempo das chuvas...

Quanto à foto nº 7, que me chamou particular atenção: tu que és médico veterinário, diz-que que felídeo é esse... É um belíssimo e portentoso animal que teve o azar de cair nas vossas armadilhas...

Para mim é um leopardo (Panthera pardus), e não uma "onça" (Panthera onca) ou "jaguar", que só existe no "Novo Mundo"... Mas na Guiné-Bissau sempre ouvi falar em "onças", até há emissões de selos... Está na lista vermelha  das espécies ameaçadas. A atual situação é "vulnerável", mas na Guiné-Bissau devem restar muitos poucos casais, devido à guerra, à desflorestação, à caça furtiva e à pressão humana (**)

Um abraço afetuoso do
Luís
___________


(**) Último poste da série > 17 de janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3751: Fauna & flora (11): O babuíno da Guiné ou... cabrito pé de rocha (Vitor Junqueira)

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21067: Álbum fotográfico de José Carvalho (1): A CCAÇ 2753 (1970/72) e os Destacamentos Provisórios

1. Mensagem do nosso camarada José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72), com data de 1 de Junho de 2020:

Caros Editores,
Cumprindo a intenção manifestada, quando da minha inscrição na TG,[1] de enviar umas fotografias, aqui vai uma resumida descrição da vida da CCAÇ 2753, nos Destacamentos Provisórios, de apoio à construção da estrada Mansabá – Farim, acompanhada de fotografias.
É quase um atrevimento descrever o que no seu notável estilo de escrita, já foi abordado pelo nosso amigo Vítor Junqueira, mas deixo a quem de direito, decidir da sua divulgação.
Ao Carlos Vinhal, que conheceu estes cenários, as minhas saudações e agradecimento também pelo trabalho desenvolvido, na sua envolvência da Tabanca Grande.

Ao vosso dispor, para todos um abraço do,
José Carvalho


A CCAÇ 2753 (1970-1972) e os Destacamentos Provisórios

A CCAÇ 2753 formada no BI 17, Angra do Heroísmo, constituída maioritariamente por açorianos, com representantes da totalidade das Ilhas, partiu em Maio de 1970, para Lisboa.

Sediada no Regimento de Infantaria 1 - Amadora, em 25 de Maio, onde acontece a concentração de todo efectivo inicial da Companhia. Fazendo parte daquela unidade, foi incorporada nos seus efectivos, nas cerimónias do 10 de Junho, no Terreiro do Paço.

A 15 de Junho inicia-se o IAO, na zona de Caneças, alcançando um grupo da companhia, folgadamente o primeiro lugar no campeonato de tiro de combate, da escola de recrutas de 1970, da Região Militar de Lisboa.

No final de Junho a companhia fica a aguardar embarque, na 9.ª Bateria do 3.º Grupo Misto da RAAF no Pragal, o que aconteceu no dia 8 de Agosto, a bordo do N/T Carvalho Araújo.

A companhia chega a Bissau a 17 de Agosto, depois de uma agradável escala em Cabo Verde.

Os primeiros dois dias a ração de combate e dormidas em camas metálicas sem colchões. A recepção foi fraca, mas longe se adivinhava, o que viria mais tarde…

Colocada depois no COMBIS, com excelentes instalações, foi dada à companhia a missão de patrulhamento terrestre, fluvial e ainda rusgas de modo a evitar infiltrações do IN na Ilha de Bissau.

Depois de cerca de três meses de bonança, adivinhava-se a tormenta…

No dia 30 de Novembro um primeiro pelotão da Companhia, deixa a região de Bissau e conhece uma nova realidade, chegando ao Bironque, o primeiro dos dois Destacamentos que iríamos conhecer.[2]

A 7 de Dezembro, o Comandante da Companhia, Cap Mil Art João da Rocha Cupido, assume o comando daquele Destacamento Temporário, que em meados de Dezembro, aloja os operacionais da CCAÇ 2753 e ainda alguns elementos sapadores - BCAÇ 2885 e dum ESQ MORT 81, após a retirada da CCAÇ 17.

Estrada Mansabá-Farim - O troço entre o Bironque e o K3 foi asfaltado no tempo da CART 2732 e da CCAÇ 2753. Localização dos destacamentos de Bironque e Madina Fula e, na margem esquerda do rio de Farim (Cacheu), em frente a Farim, o aquartelamento do K3 (Saliquinhedim)
© Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné - Carta da Província da Guiné, 1:500.000

Os efectivos militares presentes, tinham como missão, montar a segurança dos trabalhadores (centenas) e as máquinas envolvidos na construção da nova estrada Mansabá – Farim.

A reabertura desta rodovia, constituía um importante óbice à movimentação estratégica do IN na área do Morés, aonde concentrou um importante contingente de combatentes, calculado na época, em 4 a 6 bigrupos e ainda outros efectivos representativos nas áreas de Canjaja, Biribão, Queré e Maqué.

Foto 1 - Bironque - A “enfermaria”, algumas tendas, uma máquina no abrigo e uma das barracas cobertas por vegetação

Foto 2 - Bironque – Espaldão do morteiro 81 e tenda

Foto 3 - Bironque – Telheiro cozinha e os bidões das lavagens

Foto 4 - Bironque – Messe de oficiais depois de uma flagelação, em que o fogareiro a petróleo, do Alf Mil Junqueira, que no momento cozinhava uma galinha “turra”, explodiu.

Decorrido cerca de mês e meio, o Destacamento do Bironque, foi abandonado e os efectivos militares, ocuparam o novo destacamento de Madina Fula, situado a cerca de 5 Km a norte.

O segundo local nada de novo ou de mais confortável proporcionou, pois o modelo era o mesmo, com a agravante de ser mais afastado de Mansabá e por consequência pior nas situações de necessidade de auxílio.

Estes destacamentos tinham uma área de cerca de um hectare, de forma quadrilátera, localizados em zona pré-desmatada, contíguos à nova via e delimitados por barreiras de terra deslocada e acumulada na periferia. Esta terra era retirada de vários pontos do interior, resultante da abertura de valas de grandes dimensões, destinados a proporcionar estacionamentos/abrigo às máquinas pesadas, envolvidas na construção da estrada.

As barreiras tinham uma altura de dois a três metros e a sua crista teria cerca de dois metros de largura, onde eram escavados covas para protecção das tropas, postos de sentinela e colocação de armas pesadas. Nesta crista, estavam também colocados vários holofotes, que permitiam iluminar as imediações do destacamento, numa distância de cerca de 50 metros.

No interior deste espaço, além dos referidos buracos destinados às máquinas, situados na zona central, a periferia era segmentada por barreiras de terra com cerca de 1,5 m de altura, com área reduzida, onde eram colocadas, as tendas cónicas de lona com capacidade de alojamento para vários homens e um número apreciável de pequenas barracas feitas de ramos e folhagem de árvores.

Existia um gerador, que fornecia energia para a iluminação periférica, para um telheiro apelidado de cozinha, para uma roulotte “enfermaria” e mais uma dezena de lâmpadas espalhadas, entre as quais para as “messes” dos sargentos e oficiais.

Havia um espaldão para o morteiro 81, sendo as munições colocadas em bidões colocados na horizontal e cobertos de terra.

Na entrada do destacamento havia uns cavalos de frisa, não havendo qualquer vedação de arame farpado. Recordo-me que em alguns locais, foram colocadas armadilhas, em que caíram alguns animais selvagens. O abastecimento de água era feito diariamente a partir de Mansabá em pequenos atrelados-cisternas destinado à precária higiene das tropas, reduzida confecção de alimentos, lavagem de roupa, panelas, pratos, etc. Havia uns bidões colocados em cima de uma armação de paus e que debitavam uns borrifos, para o duche!

A lavagem dos utensílios de cozinha era feita segundo as mais exigentes normas de higiene. Existiam cinco meios bidões, com água, numerados de 1 a 5, começando a imersão das louças sujas no bidão 1 e depois sucessivamente nos restantes até sair do bidão 5, em perfeitas condições de adequada utilização…

Cada militar dispunha de um colchão pneumático, com esvaziamento automático ao fim de poucas horas. Muitos dormiam nos buracos, na crista das barreiras, envoltos em panos de tenda e com a G3, colada ao corpo.

A alimentação disponibilizada era ração de combate, intervalada, com cavala de conserva com batata cozida ou esparguete, dia sim, dia sim! Havia quem descobrisse umas iguarias selvagens e variasse um pouco a dieta. No tocante a líquidos menos mau… coca-cola, cerveja, vinho, whisky!

Vivíamos sempre em coabitação com um pó vermelho, principalmente durante o período de trabalho na estrada, que até o esparguete no prato, ficava enriquecido com este “ketchup”, se não deglutido rapidamente.

Em relação às condições de vida da CCAÇ 2753 durante estes três meses, talvez houvesse igual, até talvez pior, mas para muito mau bastava!

O relacionamento com o IN era verdadeiramente íntimo, pois raro terá sido o dia ou noite que por flagelações, emboscadas, minas, não houvesse “festa”.

Foto 5 - Madina Fula

Foto 6 - Madina Fula ao fim de um dia de trabalhos, coluna dos trabalhadores regressando a Mansabá, com segurança de helicóptero (ponto minúsculo no horizonte)

Foto 7 - Um felídeo, que tropeçou numa das armadilhas NT, nas imediações do destacamento

Foto 8 - Trabalhos na abertura da estrada

Foto 9 - Damas… só as do tabuleiro de jogos improvisado numa barrica pintada. Eu e o Vítor Junqueira no Bironque, dias antes do Natal de 1970

No início de Março deixámos Madina Fula, que foi aterrado e substituímos a 27.ª Companhia de Comandos, nas instalações “muitas estrelas” do K3, que até eram visíveis do interior das casernas… mas mesmo assim foi um dia inesquecível, julgo que para toda a companhia.
____________

Notas do editor

[1] - Vd. poste de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20900: Tabanca Grande (493): José Carvalho, natural do Bombarral, com amigos na Lourinhã, ex-alf mil inf, CCAÇ 2753, "Os Barões do K3" (Bissau, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim / K3 e Mansába, 1970/72): senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar n.º 807

[2] - Vd. poste de 10 DE ABRIL DE 2009 > Guiné 63/74 - P4168: Os Bu...rakos em que vivemos (4): Acampamentos de apoio à construção da estrada Mansabá/Farim (César Dias)

sábado, 25 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20900: Tabanca Grande (493): José Carvalho, natural do Bombarral, com amigos na Lourinhã, ex-alf mil inf, CCAÇ 2753, "Os Barões do K3" (Bissau, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim / K3 e Mansába, 1970/72): senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar n.º 807


O alf mil inf José Carvalho, CCAÇ 2753, Os Barões do K3,  (Bissau, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim / K3 e Mansába,  1970/72)
 

O médico veterinário José Carvalho, natural do Bombarral, com amigos na Lourinhã; novo membro da Tabanca Grande com o nº 807. . Fotos (e legendas): © José Carvalho  (2029). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de José Pimentel de Carvalho, médico veterinário e novo membro da Tabanca Grande, que passa a sentar-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 807:

Data: 14/04, 18:40 (há 10 dias)

Assunto: Inscrição como membro da Tabanca Grande

Boa tarde Luís Graça,

Depois de há bastante tempo visitar regularmente o blogue, que considero ser uma obra notória e importante para a história recente de Portugal, por isso felicito os seus obreiros, neste período de confinamento, em que até consigo ter tempo…, concretizo a decisão de apresentar a minha inscrição para membro da Tabanca Grande.

Sou oriundo do concelho do Bombarral, vizinho da Lourinhã, em cujo concelho iniciei a minha actividade profissional, na industria avícola, quando a mesma começava a ser uma das principais actividades económicas da região.

Teremos até amigos comuns, um dos quais que recordo com saudade, o Álvaro Carvalho, condiscípulo no Liceu de Leiria, nos anos sessenta, ambos com o mesmo encarregado de educação local, e irmão do meu colega e amigo homónimo José Carvalho.

Nasci em 1948, no Bombarral, José Júlio Faria Pimentel de Carvalho, fui incorporado no Exército Português em Julho de 1969, na EPI Mafra, passei pelo BI 17, Angra do Heroísmo, onde se formou a CCaç  2753, "Barões do K3",  e chegámos à Guiné em Agosto de 1970. 

A companhia finalizou a comissão em Junho de 1972 e eu com a incumbência da comissão liquidatária, em inicio de Agosto.  

Fui Alf Mil Inf tendo passado, entre 1970 e 1972 por Bissau, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim / K3 e Mansabá.

Junto-me a mais dois ”Barões”, que são membros veteranos da Tabanca Grande, o grande Amigo Vítor Junqueira, com quem ultimamente tenho convivido nos almoços da Tabanca do Centro,  e o Francisco Godinho.

Profissionalmente desenvolvi a minha actividade de Médico Veterinário, predominantemente na área da avicultura e na industria farmacêutica (saúde animal).

Em ficheiro anexo envio as duas fotografias requeridas, uma de 1972, outra desta semana e proponho no futuro enviar outras da Guiné, que porventura os distintos editores, avaliarão do interesse ou não da sua publicação.

Termino felicitando e agradecendo o notável esforço de todos Tertulianos, que ao longo destes anos, têm contribuído para o enorme sucesso do blogue.

Um abraço do
José Pimentel de Carvalho


2. Comentário do editor LG:

Caro José Carvalho: os amigos dos meus amigos meus amigos são... Além disso, como camaradas que fomos, tratamo-nos por tu, o que esbate logo eventuais distâncias... Seguramente que já nos encontrámos por aqui, na Lourinhã, e, como soi dizer-se nestas circunstâncias, "a tua cara não me é estranha"... 

E começas logo por citar dois grandes amigos de infância, o Álvaro Carvalho, médico psiquiatra (Lourinhã,  1948 - Lisboa,  2018) (e meu colega de escola primária, um amigo de toda a vida: tem aqui, neste blogue, pelo menos 3 referências, textos meus de apreço, saudade e homenagem) e o José Andrade de Carvalho, seu mano, também médico veterinário como tu. Em suma, sempre fui amigo da família, incluindo a Hermínia.

Quanto ao Vitor Junqueira, há muito que nos honra com a sua presença na Tabanca Grande, organizou o nosso II Encontro Nacional, em Pombal, em 2007, Tem cerca de 7 dezenas de referências no nosso blogue e dele já publicámos algumas das nossas melhores histórias. Há uns anos a esta parte deixou de ser tão assíduo, o que é humanamente compreensível: andamos para aqui a blogar desde 2004...

O Francisco Godinho ainda há pouco tempo o encontrei na Casa do Alentejo. Também nos honra com a sua presença, contando com quase 3 dezenas de referências no nosso blogue.

Naturalmente, não precisas de cartas de recomendação: estás aqui de pleno direito, como ex-combatente no TO da Guiné,  e já te sentei no lugar n.º 807, à sombra do nosso secular, mágico, protetor e fraterno poilão... Como sabes, não havia tabanca sem poilões, e a nossa tem um muito grande, justamente para poder caber, sob a sua frondosa copa, todos os nossos camaradas... (e alguns amigos/as, que, não tendo sido militares, têm uma relação especial com a Guiné).

É caso, de  resto, para dizer que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. E, no teu caso, não preciso de lembrar que a nossa Tabanca é Grande, justamente porque nela cabemos todos nós, com tudo aquilo que nos une e até com aquilo que nos pode separar. E uma vez, que não há mais nenhum José Carvalho, ficas com o nome por que  foste batizado e és conhecido, e que passa, a partir de agora, a figurar na nossa lista alfabética, de A a Z, na coluna estática do lado esquerdo do blogue. (Se preferires, podes ficar como José Pimentel de Carvalho, como és conhecido profissionalmente.)

Sendo tu já um leitor de longa data do nosso blogue, sabes quais são as nossas regras editoriais e o nosso "modus faciendi": textos e fotos para publicação mandas, como fizeste agora, para um dos editores. Tratamos depois do resto.

És naturalmente bem vindo e seguramente recebido de braços abertos por todos/as. Não tenho, assim de cor, a certeza de ter algum bombarralense como grã-tabanqueiro... Conheço o Patuleia, mas ele foi combatente em Angola, embora tenha cá bons amigos e camaradas, como o António Marques, da  minha CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71): estiveram muito juntos, no Hospital Militar Principal, em recuperação, em 1971/72.

Desculpa só agora responder-te: poderia desculpar-me com a situação atual criada pela pandemia de COBID-19 e  com  o "teletrabalho" (, que, de resto,  já existe há muito entre nós,  editores, em boa verdade desde o início do blogue, em 23/4/2004)... Mas não, precisava apenas de ter uma horinha para te dar bom andamento ao teu pedido e apresentar-te aos demais camaradas e amigos.

Vejo, por outro lado, que somos também da saúde pública, e portanto com mais afinidades, para além da Guiné e dos nossos comuns amigos da Lourinhã.  Estás apresentado, desejo-te boa saúde e longa vida, e aguardo as tuas próximas histórias.

A tua CCAÇ 2753 tem 27 referências no nosso blogue. Vão aumentar, seguramente, com a tua partilha de memórias (e afetos).
Luís Graça

PS - O nosso coeditor Carlos Vinhal é teu contemporâneo, esteve  em Mansabá,  entre abril de 1970 e março de 1972. Foi Fur Mil At Art, com a especialidade de minas e armadilhas da CART 2732.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17971: (De) Caras (99): Saia uma sandocha de "cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira, ex-alf mil, CCAÇ 2753, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim / K3, Mansabá, 1970/72; médico reformado, Pombal)

1. Já não temos notícias, desde 23 de setembro de 2011, há seis anos (!), do nosso camarada Vítor Junqueira (ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá, 1970/72), hoje médico, reformado, e a viver em Pombal.  Foi o organizador do II Encontro Nacional da Tabanca Grande, em 2007, em Pombal.


Ele tem 64 referências no nosso blogue e escreveu alguns dos nossos melhores postes...  Em 30 de novembro de 2010 disse-nos, numa nota deixada na caixa de comentários (*) que estava bem de saúde e "conectado"... Sabemos pelo seu gosto pelas viagens, ou não fora ele, noutras vidas, oficial da marinha mercante. É seguramente um  daqueles nossos camaradas que já deu várias vezes a volta ao mundo...

Lembrei-me dele e, sem pedir-lhe licença, vou republicar aqui um dos textos mais saborosos que ele nos deixou e que os nosso "periquitos" (os membros da Tabanca Grande entrados nos anos mais recebtes) têm também o direito (e a obrigação) de conhecer...

Já na altura, considerei a história da sandocha de "cabrito pé de rocha, manga di sabe" como  uma daquelas histórias dos nossos encontros e desencontros com aqueles povos amigos e hospitaleiros da Guiné, que um dia teria de figurar na antologia do nosso blogue!...  (Ele não me chegou a mandar, e ainda bem, a receita do "cabrito pé de rocha, manga di sabe"). (**)


2. Cabrito pé de rocha, manga di sabe

por Vítor Junqueira


Quando a minha Companhia [, a CCAÇ 2753,] aterrou em Bissau, após uns dez dias de viagem no velho N/M T/T (era mais ou menos esta a sigla para navio motor  de transporte de tropas) Carvalho Araújo (#), fomos acolhidos no cais do Pidjiguiti por malta que eu não conhecia de lado nenhum, que soltava uns piu-piu esquisitos cuja razão de ser não entendia. 

Soube ali que eram os choferes, velhinhos, das camionetas que nos haveriam de conduzir ao destino. As viaturas, alinhadas em coluna ao longo do cais, estavam a ser carregadas enquanto as entidades superiores tratavam da papelada. Até ao desembaraço da Companhia, e enquanto carrega, não carrega, os piu-piu acossavam-nos de todos os lados. Comecei a ficar enervado e com apetite!

Naquela zona portuária, que se poderia chamar marginal da Amura, existiam umas tabernas semelhantes às que poderíamos encontrar em qualquer lugar do Portugal de então: um garrafão de cinco litros ou um ramo de louro pendurado na frontaria, e uma tabuleta com os dizeres "casa de pasto, vinhos e petiscos".

Seriam para aí umas quatro da tarde quando entrei numa delas. Pela primeira vez na vida dirigi-me a alguém de outra... etnia. A situação era nova para mim e um pouco estranha. Meio tonhó, perguntei num português escorreito e pausado a uma negra, com estatura de bisonte, que se encontrava sentada num mocho do lado de dentro do balcão:
– Boa tarde, minha senhora, tem alguma coisa de que possa fazer uma sandes?
– Tem. Tem sim. Olha, tem cabrito pé de rocha, tem...
– Cabrito?
– Sim, cabrito, é muito bom. Ainda está quente.

Virou-me as costas e dirigiu-se para um canto da baiúca de onde regressou com um pequeno tacho de barro na mão contendo uns pedacitos de carne guisada, com bom aspecto e um cheiro capaz de fazer um morto babar-se. Perguntou-me o que queria beber e falou-me em coisas estranhas, Fanta, Coca-qualquer-coisa... Pedi uma laranjada.

Ali fiquei encostado ao balcão a vê-la rasgar a carcaça e nela acomodar o conduto. Ia magicando com os meus botões o quanto as aparência iludem. Aquela mulher enorme era um monstro de simpatia, nos gestos, no brilho do olhar, na doçura da voz. Acho que começou ali a minha paixão pela Guiné. Serviu-me com delicadeza numa pequena mesa de pinho, carunchosa e coxa, que só se mantinha de pé porque estava encostada à parede.

Comi. E que bem me soube. Ao fim de tantos dias a comer a lambeta de bordo, que nem era má, mas à qual o balanço do navio retirava todo o requinte, aquele petisco caiu-me que nem ginjas. Paguei em escudos, recebi o troco em pesos e saí animado com a perspectiva das vindouras patuscadas de cabrito pé de rocha que já se perfilavam no meu horizonte de expedicionário. Fosse parar aonde quer que fosse, não faltaria caça daquela, pois se até na cidade se encontrava ao dispor... Aquele cabrito era mesmo delicioso. E o apelido pé de rocha? Devia estar relacionado com o habitat do animal. Altas montanhas com os picos cobertos de neve, pensei eu. O Kilimanjaro devia ficar ali perto, provavelmente.

Juntei-me ao resto da guerra, a quem dei conta das minhas descobertas e lá vou com a tropa toda, sob um altíssimo astral, direito ao AGRBIS (eu sabia lá o que isso era!). À nossa espera estava um hangar, sem portas, sem janelas, sem luz e com milhões de mosquitos, gordos e ferozes. Nos oito dias seguintes dormimos em cima dos ferros das camas porque colchões também não havia para distribuir. E quanto à bianda, ração de combate ao almoço, ração de combate ao jantar. Sobremesa, sempre à base de mancarra que umas garotas apareceram por ali a vender dentro de uns penicos que transportavam à cabeça.

O problema maior era a água. Na altura grassava uma epidemia de cólera no território pelo que nos aconselharam a beber só água engarrafada. Resultado, ao terceiro dia estava não só falido, como via as dívidas a acumularem-se. É que a única água engarrafada disponível que havia era a Perrier, usada no tratamento do whisky, que eu comprava a oitenta mil réis cada garrafa, no bar dos oficiais do Depósito de Adidos que ficava ao lado. Escusado será dizer que, por essa razão ou outra qualquer, houve caganeiras monumentais.

E eis que recebo guia de marcha para ir comandar os destacamentos de Safim e João Landim.

Força instalada, faço o reconhecimento da zona e concluo que no que respeita a infra-estruturas de apoio como tasca, restaurante, animação (batuque e bajudas), posso considerar-me um homem de sorte. Tenho ao dispor um fundo de maneio e o seu parente, o inevitável saco azul. Agora sim, tinha qualidade de vida. Permitíamo-nos comer quase à la carte. Além disso, por ali não se ouviam tiros. Perfeito...

É neste contexto que, estando um dia a bater uma galharda sesta, sou acordado subitamente por um militar que me vem perguntar se pode ir lá fora dar um tiro com a G3...
– A quem? – perguntei.
– Não sei bem de que se trata – diz ele – É um gajo da população que está ali à porta de armas a pedir que vá alguém à tabanca abater uma peça de caça.
– Alto e pára o baile – disse eu, meio desconfiado. – Quem lá vai sou eu.

Visto os calções num ápice, enfio os chinelos, pego na canhota que tinha dependurada à cabeceira da cama e, todo nervoso, antecipando um presunto de gazela para o tacho, dirijo-me ao cavalo de frisa que servia de porta de armas.

Lá estava o homem. Pareceu-me inofensivo. Pediu-me que o seguisse, enquanto, num crioulo que eu já começava a entender, me explicava que se tratava de um cabrito pé de rocha que andava por ali a vaguear. Nisto aponta para o cocuruto de uma árvore e diz:
– Pessoal, olha ali. Por favor mata ele...

Fiz um único disparo. Aos meus pés caiu um bruto babuíno (macaco-cão) que devia pesar para aí uns trinta quilos. 

Dispensei a minha quota-parte da caçada! (##)

Vítor Junqueira (***)

[Revisão / fixação de texto: LG]
________________

Notas do autor:

(#) Esta foi a última viagem do Carvalho Araújo. De Lisboa para Bissau, navegou notavelmente adornado a estibordo. No regresso, ouvi dizer que chegou pelo seu pé a Cabo Verde, tendo sido depois rebocado até ao seu destino final.

(##) Voltei a comer cabrito pé de rocha, muitos meses depois e, desconhecendo a ementa, numa acção de Psico. Outra delícia! Um dia destes mando a receita.
________________

Notas do editor:

(*) 30 de novembro de  2010 > Guiné 63/74 - P7363: Que é feito de ti, camarada ? (1): Prakistou, diz o Vitor Junqueira, mas não desconectado

(...) Pois, meus caros, eu prakistou, mais ou menos bom de corpo, de cabeça, dirão vocês e, não é verdade que ande por aí, meio perdido, meio desconectado. Estou convosco todos os dias, normalmente mais do que uma vez por dia! Aprecio a matéria dada, revejo-me nalguma prosa e, tacanho que sou, apenas pressinto na verve a corda lírica, vibrante e fácil, dom de apenas alguns tertulianos. (...)

(**) Vd. poste de 11 de novembro de  2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): "Cabrito pé de rocha, manga di sabe" (Vitor Junqueira)

(***) Último poste da série > 24 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17901: (De)Caras (99): o comandante do BCAV 2868 (Bula, 1969/70), o ten cor cav Carlos José Machado Alves Morgado, mais o com-chefe António Spínola, em Pete, em 9/11/1970 (Victor Garcia, ex-1º cabo at cav, CCAV 2639, Binar, Bula e Capunga, 1969/71)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4996: Controvérsias (35): O caso do Amílcar Ventura... Resistência ou colaboracionismo ? (Vitor Junqueira)

1. Texto do Vitor Junqueira (*), com data de 17 do corrente (Aqui, na foto à esquerda, a receber das mãos de outro senador do nosso blogue, o A. Marques Lopes, em 2007, no nosso II Encontro Nacional, em Pombal, mais de trinta anos depois, a condecoração que não lhe chegou a ser oficialmente dada em 10 de Junho de 1974, por causa das partidas da História):

Amigos Luís Graça e Carlos Vinhal,

O Texto que se segue está pronto há uns dias. Pela falta de oportunidade, estive numa de manda-não-manda até que hoje constatei que, embora de forma indirecta, se voltava ao tema. Decidi-me e agora é convosco. Se houver necessidade de poda, força! Peço a vossa atenção para os itálicos que agora, também na qualidade de editor (**), sei que não passam para o blog!

Um especial abraço para vocês,
VJ



2. Colaboracionismo (***)
por Vitor Junqueiro


Pessoal amigo, desta e doutras guerras, bloggers militantes, gente de sentimentos e coração ao pé da boca... e na ponta dos dedos.

Cheguei há pouco da Pérola do Atlântico que não visitava havia já duas legislaturas – é a nova medida do tempo na região – e nesta volta, em que esquadrinhei montes e vales, concluí: O Homem é um génio! Não sei quem pagou ou vai pagar. Algum do nosso, certamente já escorregou, mas o que vi deixou-me de boca aberta e acreditem que com a minha idade, uma pessoa já não se deixa deslumbrar facilmente. Rendo-me, e apesar da minha simpatia pela bola com o A lá dentro, até estava capaz de lhe oferecer uma cruzita se soubesse que ele se adaptava ao clima do Contnente.

Boca aberta, nem sempre significa iminência de disparate. Assim o espero, ao meter a colherada numa polémica que tem assanhado ânimos e desencadeado fúrias literárias e à qual, por uma questão de princípio, não poderia ficar alheio.

Uma pessoa vira as costas e é no que dá. Palavras desembainhadas, G3 na rua, (e as bazucas?), pelotões de fuzilamento! Parece que os camaradas não ficaram fartos. (****)

Como quem não quer a coisa, lá veio o patrão tentar meter ordem na caserna (post 4953, excitação 45). E não é que o homem escreve bem e explica-se ainda melhor!? Nunca entenderei porque é que dizem aquilo das pessoas da Lourinhã! (*****) Eu até gostava de encontrar um pintelhinho que desse para aquecer (ainda mais…) o debate, já que é disso que o meu povo gosta. Mas não, aquilo vai ao encontro da minha própria visão sobre a matéria e portanto, o Luís disse e está dito. E no entanto...

Eu gosto muito de contos da carochinha. Até já escrevi alguns que passaram no blog. Mas por natureza, prefiro os do Lobo Mau. Gosto especialmente daquela cena em que o dentuças pergunta ao capuchinho o que faz abaixada à beira do rio.
- Então não vê que estou a lavar a minha c…, senhor lobo?
Ao que o malino responde confuso:
- Ai porra, agora é que chegaste para mim. Eu não conheço essa versão da história …!

Neste palco, têm sido contadas muitas histórias, com maior ou menor brilho consoante a arte do narrador. Algumas deixam-me tão confuso como o pobre lobo. Como esta tanga do gasoil, que pura e simplesmente nunca aconteceu por flagrante impossibilidade material. Ou se calhar o meu cerbo está a ficar cansadito, com diz a minha paciente D. Joaquina!

De facto, já tinha lido uma resma de comentários ao post do Vasco da Gama, e atendendo à qualidade dos comentadores, nem deveria atrever-me a abrir o bico. Pois atrevo, e ainda por cima para dizer, “basta de porrada no ceguinho, chiça!”.

Brincadeira e ironias à parte, até nem seria má ideia abrir um canal novo para falar dessa questão tabu chamada colaboracionismo. No caso de Angola e Moçambique, parece não restarem muitas dúvidas de que existiram ajudas que podem configurar efectiva colaboração com o IN. Cantineiros isolados no mato, missões religiosas, empresas do ramo agro-industrial (madeireiras), possivelmente transportadores, colaboraram. Com dinheiro, géneros, informações, oferecendo guarida, tratando feridos etc. Uns, tê-lo-ão feito por convicção. Outros, assertivamente, compraram o sossego pagando um tributo.

Até aqui, não há qualquer novidade. Quem esteve atento ao recente trabalho do Joaquim Furtado sobre a Guerra de África, teve oportunidade de ouvir contados na primeira pessoa, relatos de antigos colaboradores. E na Guiné, o que é que se sabe para além dos casos conhecidos de deserção para o lado do PAIGC e algumas bem urdidas fugas de informação?

Durante a minha comissão, ouvia-se dizer que aqui ou acolá actuariam agentes infiltrados do IN, outros comiam dos dois lados e alguns até tinham nome. Ao meu conhecimento nunca chegou qualquer confirmação. Põe-se então a questão de avaliar, quem o quiser fazer, se as cervejolas, os cigarritos e tantas, mas tantas outras tentativas de chegar à fala com a guerrilha da respectiva ZA [, Zona de Acção], através da oferta de roncos, consubstanciam alguma forma de colaboracionismo. Não, segundo o meu critério. Eu próprio, em determinada altura, dactilografei uma carta mais ou menos nestes termos:

"Caros camaradas do PAIGC, sabemos que a guerra nos proíbe de sermos amigos. No entanto, nada nos impede de fazer um intervalo na missão que nos foi atribuída de nos liquidarmos mutuamente. Por isso, aguardo que me façam saber se estão dispostos a participar numa futebolada com a nossa malta e com a garantia de total segurança para o vosso regresso etc. e tal, despedidas e assinatura".


A cartinha foi deixada num trilho muito batido, andou por lá meses e reapareceu espetada num galho com uma alfarroba por perto. O caso teve como testemunhas, o ex-capitão Cupido, oficiais e sargentos da CCaç 2753. (Se necessário envio lista com endereços e números de telefone).

Uma curta história, da qual nada se pode concluir quanto às diferentes formas que o colaboracionismo pode assumir, esta não terá sido uma delas. A mim, importa-me sobretudo frisar que se tivesse aparecido alguém para uns toques na bola, nem num pêlo lhes teríamos tocado! No dia seguinte, se os céus me facilitassem tal desígnio, ter-lhes-ia limpo o sebo com a maior das satisfações. No mato, de canhota na mão.

Agora, que me responda quem sabe: quantas guarnições isoladas e sem qualquer hipótese de defesa, não se aguentaram mercê de um fechar de olhos a certos intercâmbios que se operavam nas suas redondezas? E quantas destas, não foram poupadas pelo facto de o próprio IN ter interesse na sua permanência em determinadas áreas? Que parte da nossa logística foi parar às mãos do PAIGC?

Em qualquer destas situações, nada houve que possa confundir-se com actos de colaboracionismo formal ou informal. Falta-lhes um elemento caracterizador, o desejo ou a vontade de ver o IN consagrar-se militarmente vitorioso.

E porque é que somos como somos, na Guiné, nos Balcãs ou em Timor? Desconheço, mas tenho uma ideia! Esta é a maneira de ser do soldado português desde há séculos, espírito prático, adaptável, filho de um povo de brandos costumes que colonizou continentes com a Bíblia numa mão e a espada na outra. Se for preciso, matamos o nosso irmão mas não o odiamos.

Quem passou pela experiência de caçar algum elemento da guerrilha à unha ou assistiu à sua entrega voluntária, sabe do que estou a falar. Não desconheço Wiriamu ou as façanhas de um tal alferes R. em Angola ou certas formas de destruir o inimigo na Guiné, que a maioria de nós, ex-combatentes, jamais aprovaria. Mas esses casos foram a excepção que confirma a regra. Acho eu, ou estarei tótó de todo?

Retomando o caso do nosso camarada que disse o que disse a propósito do bidonzito de gasoil, estou convencido de que ele não é ceguinho e também não será tonto nem mentiroso. A sua inteligência até lhe permitiu entender que neste palco onde todos têm podido dizer o que lhes vai na alma, parece e sublinho o parece, existir uma matriz ideológica prevalecente, que sempre se manifestou contra a guerra. A decisão de defender pelas armas o que pelos vistos, não muitos, consideravam territórios portugueses do ultramar, tem sido aqui profusamente criticada.

Não raras vezes, essas críticas têm-se feito acompanhar de considerações enaltecendo a razão histórica e a superioridade moral da luta do PAIGC contra as forças de ocupação – nós! Foram publicadas dezenas (centenas?) de páginas glorificando as acções do IN ou pelo menos gabando-lhe tanto a estratégia como a astúcia. Defendeu-se até à exaustão a versão da derrota militar das FA portuguesas, implicando nesse desfecho a ineficiência do dispositivo militar, a impreparação dos comandos, a desmotivação generalizada das tropas que não reconheciam ao regime legitimidade para envolver o país numa guerra injusta, assassina e contra os ventos da história, etc., etc., etc.

Foi tal a torrente de documentação carreada para o debate – citações de personalidades de indiscutível peso na política nacional e internacional de então, textos retirados de diversos livros e outras publicações, documentos, transcrições de discursos, reportagens e entrevistas –, que eu próprio, embora continue a afirmar que o retrato não condiz minimamente com a paisagem no espaço e no tempo em que lá estive, só por uma unha negra não fiquei também (con)vencido … quanto ao vencimento dessa tese!

O que eu acho, e estou-me nas tintas se o mundo inteiro se está cagando para aquilo que eu acho, é que o camarada Amílcar, a quem envio um abraço de solidariedade tertuliana, apenas terá querido ir ao encontro do que julgava ser “politicamente correcto”. Alinhar com essa corrente de pensamento supostamente dominante no seio da Tabanca, exigiria algum tipo de ritual, uma espécie de prova de fogo sem a qual o nosso iniciado acha que não apresenta as necessárias credenciais para ser admitido pelo grupo dos mais vanguardistas. E vai daí, como não desertou, não passou informações ao IN nem sabotou coisa alguma, resolveu oferecer-lhes um bidon de combustível, que era o que tinha à mão. Se bem que, ajudar materialmente o outro lado até pode ter justificação, em caso de catástrofe humanitária, por exemplo. O que nunca poderia ser o caso.

Na sua (minha) perspectiva, dar uma mãozinha à rapaziada da outra banda, teria apenas o significado de estar muito avançado para o seu tempo, ter o sentido da premonição e antecipar que daí a pouco … dá cá um abraço pá, e agora somos todos camaradas e amigos.

Ora uma coisa é a análise que podemos fazer deste conturbado período da história e das nossas vidas no plano político-filosófico, se assim o quisermos. Questão bem diferente é a da coesão do sistema baseada no pragmatismo das relações entre indivíduos, nas lealdades de sangue ou de grupo, na sobrevivência da matilha, onde qualquer traição se paga caro. E nem toda a gente possui as armas para fazer essa destrinça, se me faço entender, limitando-se a ensaiar o salto teórico para o outro lado da barreira e esperar ser aceite. E foi o que aconteceu, tratou-se apenas um ensaio e nada mais.

Naturalmente, não quis nem teria competência para desmontar um processo mental complexo, ainda para mais, desconhecendo o substrato psicológico do visado. O que sei, e disso tenho obrigação, é que em determinadas circunstâncias, a nossa cachimónia prega-nos partidas, levando-nos a acreditar em quimeras.

Se esta é uma forma simplista de desvalorizar uma história que a ter fundamento, seria um acto muito grave só comparável à prática de espionagem a favor do inimigo, não deixa também de ser um apelo à razoabilidade e um lembrete acerca do perigo dos julgamentos serôdios.

E aqui volto à velha questão da legitimidade para aferir comportamentos passados correlacionados com matérias acerca das quais, a sociedade portuguesa continua tão profundamente dividida.

Quanto aos reparos, foram no mínimo oportunos, se não mesmo pedagógicos! Vão certamente ter o mérito de arrefecer certas derivas para a confabulação. A seriedade do Blog deve ser um valor para nós que o fazemos, e para os milhares que lá vão beber a informação de que necessitam. Assumir a possibilidade de a qualquer momento se ser confrontado com a crítica severa ou o contraditório, é um excelente estímulo para cultivar a objectividade, penso eu de que. Relativamente à explicação do Luís, achei-a fundamental para que todos percebam que determinadas matérias (textos), pela sua forma ou conteúdo, necessitam mesmo de nota prévia e da perguntinha à Fernando Mendes: Fica assim mesmo ou quer pensar melhor?

E agora venha a porrada!

Paletes de abraços,

V. Junqueira

PS (não é esse!)- Falei em histórias da carochinha e do lobo mau. Quis dizer que as aprecio imenso, mas de vez em quando necessitamos de um prato de substância capaz de provocar uma certa agitação das águas. Tenho reparado que são publicadas páginas e páginas de muito interesse, sem dúvida, mas que não suscitam uma singela observação. Já quando o tema é fracturante – está na moda, o fracturante! – logo aparecem os comentadores de serviço e os outros. Por isso, faço um apelo à querida cambada para que não se fique pelo comentarizito de postagem directa. Simples e curto, não é, malandragem?

[ Revisão / fixação de texto / bold a cor: L.G.]


2. Nota de L.G. enviada ao autor, no dia seguinte

Muy preciosa... a prosa. Fica a aboborar. Talvez saia mais logo ou sábado... Tenho tido pouco tempo esta semana, estou em júris de selecção de candidatos aos nossos cursos...

Vitor, fazes sempre muita falta cá na caserna... Dás pica e sabes temperar as tuas intervenções com um sentido de humor, muito especial, que eu aprecio de sobremaneira...

Só não concordo contigo quando dás a entender que há um main stream , uma corrente de fundo, na Tabanca Grande, pró-PAIGC... A maior parte dos textos que publicámos sobre o PAIGC até são de fontes nossas... Outros são documentos com interesse historiográfico (PAIGC Actualités, por ex.)... Pessoalmente gostaria de triangular a informação, como fazem os historiadores... Infelizmente são raros os depoimentos do outro lado... Ficaram de me arranjar histórias de vida de guerrilheiros... Espero um dia poder também inseri-las aqui, para serem objecto de análise crítica da nossa parte... como foi a história (mal contada, também concordo...) do Amílcar Ventura (Ele prometeu responder dentro de dias a algumas críticas, não fugiu...).

Aquele abraço. Luís

3. Resposta do Vitor:

Luís,

A tua apreciação sobre o meu trabalho é que é preciosa para mim. Estimulante e encorajadora.

Permite-me desfazer um equívoco de que serei, eventualmente, o primeiro responsável. No blog existe de facto um main stream anti-guerra e não pró-PAIGC. Uma coisa não tem forçosamente que ver com a outra. De outra forma o que é que eu estaria a fazer no seio desta tertúlia? Se ando por aqui, é porque me sinto confortável e muito bem acompanhado!

Abraço,
VJ

__________

Notas de L.G.:

(*) Vitor Junqueira, ex-alferes miliciano da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), médico, residente em Pombal, membro da nossa Tabanca Grande, organizador do nosso II Encontro Nacional (Pombal, 2007).

(**) Referência ao seu blogue pessoal, "Kurt" - Amizade, Viagens, Aventura e muito mais!... ("O Blog onde se ligam amigos e companheiros de viagem para 'curtir' o que a vida tem de melhor. Porque só temos uma, há que aproveitá-la!"). Um blogue andarilho...onde também colabora o nosso Paulo Santiago, de Águeda.

(***) O colaboracionismo dos guineenses (que estiveram do nosso lado), foi já aqui - no Blogue, I Série - objecto de debate... vd. postes de:

27 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (6) (João Parreira)

26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCC: O colaboracionismo sempre teve uma paga ( 5) (Carlos Vinhal)

26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCIX: O colaboracionismo sempre teve uma paga (4) (Pepito)

26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCVIII: O colaboracionismo sempre teve uma paga (3): Paulo Raposo

26 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCVI: O colaboracionismo sempre teve uma paga (2) (Zé Teixeirq)

25 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXCV: O colaboracionismo sempre teve uma paga (1) (A. Marques Lopes)

(...) Notas de L.G.:

(...) Colaboracionismo: Actividade, comportamento, atitude ou interesse de colaboracionista, ou seja, de pessoa que colabora com ou apoia o inimigo que ocupa, total ou parcialmente, o território do seu país (Dicionário Houaiss da Lígua Portuguesa, 2002).

O termo fancês collaborationniste surgiu em 1940, na sequência da ocupação da França pelo exército alemão e a constituição do Governo de Vichy, presidido pelo Marechal Pétain (1851-1951), o herói de Verdun na I Guerra Mundial. Depois da libertação, Pétain foi condenado à morte por alta traição, sentença comutada em prisão perpétua. Houve outros governos colaboracionistas durante a II Guerra Mundial: Bélgica, Holanda, Noruega (com o famigerado Vidkun Quisling, abertamente favorável aos nazis), Croácia, Hungria bem como noutras partes da Europa de Leste...

Ao colaboracismo contrapõe-se a resistência: por exemplo, a resistência francesa, La Résistance (1940-1944) à ocupação nazi e ao regime de Vichy... Em Portugal, também se fala de Oposição ou Resistência à Ditadura (leia-se: Ditadura Militar, instaurada em 28 de Maio de 1926 e depois, a partir de 1933, Estado Novo, deposto em 25 de Abril de 1974).

(****) Vd. postes de:

15 de Setembro de 2009 >Guiné 63/74 - P4953: (Ex)citações (45): Resposta ao Mário Fitas: Luís, deixa sair de vez em quando as G3...(Luís Graça)


11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4939: Banalidades do Mondego (Vasco da Gama) (IV): A minha guerra foi outra, camarada Amílcar Ventura


11 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4936: O segredo de... (6): Amílcar Ventura: a bomba de gasóleo do PAIGC em Bajocunda...

(****) Sobre este tópico, vd. A HISTÓRIA DA LOBA (excerto, com a devida vénia, de Papagovas > Página pessoal de Fernando Silva)

“Pensas que sou da Lourinhã???”

Eis uma expressão por muitos sobejamente conhecida, e que significa: “Julgas que sou estúpido?”, mas a maioria desconhece a sua origem.

No seu livro "A Extremadura Portuguesa”, Alberto Pimentel escreveu o seguinte:

"O Diccionario ’Popular, de Pinheiro Chagas, remata o seu ligeiro artigo sobre a Lourinhã, dizendo : 'Não sabemos qual a origem do proloquio vulgar, que faz com que se diga de um homem lorpa e que tudo ignora: Parece que veio da Lourinhã.' Este proloquio tem ainda outras modalidades, taes como : – E’ da Lourinhã! – Não se faça da Lourinhã! todas ellas batendo no mesmo sentido. E’ provavel que alguma anecdota explique a procedencia do proloquio, como synthese da boçalidade do camponez da Lourinhã. Ignoramol-a. Mas o que sabemos é que o povo d’este concelho conserva uma rudeza primitiva e aquella ignorancia tradicional que os saloios herdaram dos seus antepassados. Assim nos affirmam pessoas que de perto o conhecem."

Na década de 1930, Dona Amélia do Perdigão tinha, na sua quinta, um corpulento animalejo de raça canina que metia respeito e mantinha à distância quem ousasse aproximar-se do palacete ou do trem onde se fazia transportar.

Um dia o animal desapareceu da Quinta do Perdigão e a partir daí, deu muito que falar na região devido ás muitas histórias que sobre ele foram inventadas.

Uns chamavam-lhe LOBA, outros RAPOSA, e que esta devorava animais com as suas garras, dizimava rebanhos, coelhos, galinhas, matava vitelos, e havia quem dissesse que, no Vale Côvo (Conselho do Bombarral), chegou a matar um burro.

Formaram-se grupos populares, Milícias e até chegaram reforços Militares de Lisboa, com o intuito de abaterem a Loba. Chegou-se mesmo a pensar em evacuar a Vila, tal era o pânico da população.

Quando finalmente o animal foi abatido, verificou-se tratar-se “apenas” de uma cadela assustada e esfomeada.

Daí surgir a expressão: 'Pensas que sou da Lourinhã???', devido a este infeliz incidente. (...)".

Felizmente, meu caro Vitor, a minha terra deixou há 25 anos de ser a Terra da Loba, para se tornar a Capital dos Dinossauros... No Oeste estremenho, há outras terras que continuam a ser objecto de troça (ou até de insulto), por causa de anedotas históricas como esta... É o caso de Peniche ("Amigos de Peniche"...), de Rio Maior ("O Leão de Rio Maior")... Tu próprio fazes questão de sublinhar que és de Pombal, ou vives em Pombal (e não do Pombal, no Pombal)... Preciosismos literários ? De modo algum... É como os alentejanos de Cuba: não se vai a Cuba, vai-se à Cuba... Cada terra e cada povo tem a sua idiossincrasia... e as suas susceptibilidades...

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4789: (Ex)citações (36): As minhas lágrimas há muito secaram (Vítor Junqueira)

1. Mensagem de Vítor Junqueira (*), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões, (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, com data de 5 de Agosto de 2009:

Amigo Carlos,
Em anexo segue mais uma das minhas reflexões vespertinas, que sujeito ao teu veridicto.
Um abraço (especial) do,
VJ


2. Comentário ao Poste 4773 do J. Mexia Alves

Meu prezado amigo e camarada Mexia Alves:

A nossa relação vem de há pouco. Tenho pena, pois sinto que estaria mais rico se o fado da vida que tu escreves e cantas tão bem, nos tivesse proporcionado a convivialidade… que não tivemos!

Tenho a mania de que consigo percepcionar a aura que envolve a alma humana. A tua, espelha a imagem de um homem frontal, íntegro e sensível. Só por isso, e também porque falas um dialecto da nossa língua que, pelos vistos, poucos entendem, aqui estou eu a deixar um comentário ao teu post 4773 (**).

Dizes tu, Joaquim, que choras lágrimas de indignação e revolta, quando em certas circunstâncias, a tua consciência te atira à cara, o destino que nós portugueses, (i) responsavelmente, reservámos àqueles que foram dos nossos mais nobres, valentes e leais concidadãos. E muitos são-no ainda, pois embora trazendo no bolso um BI que indica outra nacionalidade, o coração continua português. Entre esses anónimos portugueses de alma, estarão antigos soldados teus, amigos que te protegiam e que protegeste, conforme escreves.

Não me foi dada a honra, como a ti, de comandar naturais daquele território. Mas tive a sorte de, em inúmeras ocasiões, os saber a meu lado empenhados no mesmo combate. Dominava-me então o sentimento de que em grande medida e graças a eles, a minha vida e segurança estavam em boas mãos. Hoje, como há quase quarenta anos, são credores do meu respeito e gratidão.

Por isso mesmo quero dizer-te, Joaquim, sem lágrimas porque as minhas há muito secaram quando com elas reguei a semente da raiva, que partilho a tua revolta quanto à indiferença com que colectiva e institucionalmente tratámos estas pessoas. E suas famílias.

Ainda não há muito tempo, acompanhei comovido através da televisão, a forma como a nação guineense se organizou para receber a visita de uma delegação nacional de alto nível. Nas manifestações populares de boas-vindas (merecemo-las?), muito povo. E no meio desse povo, alguns velhos soldados de caderneta militar na mão, delida e amarelada, mas a meus olhos com a força de um estandarte de guerra, tentavam aproximar-se das autoridades portuguesas com um único desejo: que os reconhecessem como antigos combatentes que dedicaram uma boa parte das suas vidas à nossa pátria e às suas FA, a quem juraram fidelidade. Como seria de esperar, a reacção foi mais uma vez, uma profunda e ostensiva indiferença. Pergunto-me se teria sido assim tão difícil estender a mão àquele punhado de homens, quando é público e notório que se distribuem euros e honrarias por tantos que se limitaram a fazer currículo mamando na teta da república.

Enquanto os que alimentaram a porca com o seu sangue, foram contemplados com o manto do opróbrio e a condenação mais ou menos sumária e explícita de que tiveram o que mereciam. Conforme já li, algures.

Para a grande maioria, é demasiado tarde, já não existe auxílio ou reparação possíveis. Por isso, e quanto àqueles que Deus já levou ou Lhe foram remetidos à força de bala, abandonados à sua sorte e alvos de vinganças cruéis e desnecessárias, peço ao Criador que os compense pela injustiça e indignidade com que Portugal os tratou. Para nós (todos), a penitência da eterna vergonha.

E não me venham os teóricos das guerras militarmente perdidas, das retiradas gloriosas, das descolonizações exemplares, justificar o injustificável. Conheço-lhes a cartilha. A dos tiques disto e daquilo, dos primarismos antidemocráticos, dos salazarismos bafientos ou das mentalidade neocolonialistas, entre as muitas tags que constam do seu repertório. Aqui trata-se apenas de dignidade, justiça e honra. Quando uma sociedade vira as costas a estes valores e assobia para o lado perante reivindicações como as destes nossos antigos camaradas, será que a prazo, vai ter pernas para ir a algum lado?

Um abraço do,
V. Junqueira

OBS: Negrito da responsabilidade do Editor
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4643: Blogoterapia (113): Saudades do blogue dos primeiros tempos, em que tudo se contava na primeira pessoa (Vítor Junqueira)

(**) Vd. poste de 3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4773: Blogoterapia (119): Ainda choro e me revolto por todas as nossas mentiras... (Joaquim Mexia Alves, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)

Vd. último poste da série de 14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4684: (Ex)citações (35): Milicianos ou do Quadro Permanente, todos fomos combatentes (Paulo Santiago)

domingo, 5 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4643: Blogoterapia (113): Saudades do blogue dos primeiros tempos, em que tudo se contava na primeira pessoa (Vítor Junqueira)

1. Mensagem de Vítor Junqueira, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 - Os Barões, (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), com data de 4 de Julho de 2009:

Carlos, olha o que deu uma noite de insónia!

Agora vou dormir.
Até logo.
VJ


Estimado Carlos Vinhal,
Para ti, aquele abraço que não pude dar-te em Monte Real.

Vai fazendo tempo que me mantenho sossegadito no meu cantinho. Têm aparecido tantos camaradas, com tanto para contar, que as minhas cantigas para além de não adormecerem ninguém, ficam a milhas da profundidade e até da beleza de algumas reflexões expendidas ultimamente no Blog, que continuo a seguir com toda a atenção.

Além disso, o Luís Graça ao nomear-me “Senador”, criou-me uma tremenda responsabilidade. Por um lado, retirou-me a prerrogativa de dizer calinadas, para o que sinto uma natural propensão. Mas por outro, se quis apontar-me como modelo de pessoa assisada, então mostrou que não é assim tão bom psicólogo! Porém, meu caro Vinhal, contigo sinto-me a jogar em casa.

As nossas Companhias eram irmãs. Respirámos o mesmo ar, calcorreamos os mesmos trilhos, descansámos à mesma sombra. Porventura até bebemos água da mesma bolanha. Falar-te dos meus estados de alma, nem necessita de cogitação prévia, porque eu sei que tu sabes aquilo que eu sei.

Hoje, porém, sinto-me um homem novo, liberto. Depois de, já lá vão uns tempos, ter visto na televisão um deputado a mandar outro pr’ó caralho em plena AR, ao mesmo tempo que prometia ir-lhe aos cornos “lá fora”, ontem, numa espécie de remake de baixo custo, vi um ministro a fazer uns cornitos mefistofélicos a um senhor deputado. Isto depois de uma conversa em que se ilustraram as baixezas de uns e de outros, sendo também consensual entre os tribunos que pelo menos alguns eram mentirosos.

Assim sendo, como sou humano e tenho emoções, dos usos e os costumes deste Blog alegremente abusarei e, desde já, requeiro o direito de me arrepender como fez o tal ministro.

Por falar em Blog, o nosso está um must. Pelo número de visitas e de páginas consultadas, podemos aferir da sua popularidade. Aqui bebem mestrandos, Doutorandos, autodidactas, jornalistas e simples internautas. Ainda que o core se centre na guerra da Guiné, a vastidão dos temas vai do segredo do tempero do cabrito que serviu de repasto no convívio dos camaradas da CCaç tal (e preço, porque o carcanhol está curto!) até às elucubrações de cariz sociológico acerca do posicionamento das populações nativas sob o domínio colonial e sua adesão às teses da libertação.

Navegando, ficamos a conhecer tão bem a táctica, a estratégia e os meios do IN, como se nas reuniões do seu Estado-Maior tivéssemos participado. Sim, porque o IN parece que tinha uma táctica, uma estratégia e uma determinação que, segundo alguns, mingavam nas hostes portuguesas. E com esses requisitos obteve brilhantes vitórias sobre as forças de ocupação, exaustivamente explanadas em dezenas e dezenas de páginas deste Blog que, muito justamente glorificam a superior inteligência e bravura dos soldados do IN e seus chefes. Propaganda, dirão alguns.

Mas o Blog também fala de nós. Apresenta por exemplo listas imensas (e inúteis) com nome, número mecanográfico e posto de paletes maralhal que passou pelo CTI da Guiné, fala dos feridos, dos mortos e dos burakos (?) onde vivos viveram enterrados, da alimentação para porcos, dos levantamentos de rancho, da falta de lençóis, da incompetência dos comandantes, de actos de insubordinação dos comandados, da revolta, da angústia e do medo dos soldados portugueses, mobilizados para uma guerra injusta e que não compreendiam, do desespero das famílias e do arrojo daqueles que, em vésperas de embarque, davam ao slaide.

Ficamos a conhecer camaradas que juraram a si próprios nunca disparar um tiro e, galhardamente, se aventuravam pelo mato adentro deixando a canhota pendurada no ferro do beliche, enquanto outros mataram porque sim. Mais recentemente, (post 4634) ouvimos falar do estoicismo do pessoal escalado para operações que nunca passaram do papel, de pessoal desmotivado e psicologicamente destroçado (não confundir com bandos!) que nunca ou raramente saiu dos abrigos, de SITREP’s falsos em que se reportavam acções de patrulhamento e combate que nunca existiram, da suprema humilhação infligida por um reles inimigo que tem o desplante de vir cagar junto ao nosso arame farpado, da mortificação do ego quando palavras como retirar, recuar, abandonar, entram na rotina.

Mas só agora, porque alguém neste Blog ousou abrir-nos os olhos e os ouvidos é que ficámos a saber que situações destas existiram, porque enquanto lá estivemos nunca tal ouvíramos dizer, não é verdade!?

Também tivemos oportunidade de conhecer uma extensa, desapaixonada e ideologicamente isenta filmografia que veio esclarecer aquilo que para os não iniciados parece um quebra cabeças, ou seja, como conseguiu o IN, que pelos melhores números nunca terá ultrapassado os três mil operacionais, pôr em cheque – para não dizer que derrotou militarmente –, uma força armada com o triplo dos seus efectivos, implantada no terreno, com uma capacidade logística incomparavelmente superior já que dominava as principais vias de comunicação incluindo as fluviais, dispondo ainda de meios pesados como artilharia, auto-metralhadoras, aviação e força naval.

Tenho ainda que fazer uma breve referência a alguma bibliografia reproduzida ou publicitada no Blog: Vasta, profunda e sem quaisquer objectivos comerciais, evidentemente. Acho que já só falto eu a dar ao manifesto a minha produção literária. Não tenho palheta para tanto e como tenho dúvidas sobre a firmeza do meu carácter, correria o risco de me transformar a mim próprio em mais um herói ou relatar factos de acordo com alguma inconfessa conveniência. Nessa não caio eu! Porque se a História é sempre escrita pelos vencedores, também é certo que a verdade é como o azeite, mais tarde ou mais cedo, acaba por vir ao cimo.

Ah, quantas saudades do Blog dos primeiros tempos! Tudo se contava na primeira pessoa. Era tão simples, directo e autêntico.

Camaradas, desculpem lá qualquer coisinha.

Para toda a tertúlia, caso o bitate mereça publicação, segue um forte abraço deste que já não tem muito para dar.

Vitor Junqueira

Fotografia do aquartelamento do K3. Por aqui permaneceu a CCAÇ 2753 do Alf Mil Vítor Junqueira durante boa parte da sua comissão.

Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.


Mansabá, local e quartel onde a CCAÇ 2753 do Alf Mil Vítor Junqueira substituiu a CART 2732 do Fur Mil Carlos Vinhal.

Foto: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.



2. Comentário de CV:

Caro Vítor, que bom ouvir-te de novo.
Tínha-me passado ao lado, desculpa a ignorância, a tua promoção a Senador. Se o Luís assim o entendeu, e sabemos como ele sabe avaliar as pessoas, estou inteiramente de acordo.

Dizes que a tua prosa, cantigas como chamas, não adormece ninguém. Pois não, como se pode ficar indiferente à qualidade da tua escrita? Pena que de vez em quando entres em hibernação e deixes de aparecer. Sabes que tens os teus fãs, entre os quais me incluo eu.

Voltando ao título de Senador, não há dúvida que exerces o cargo com alta competência, ou não vinhas junto de nós expôr as tuas oportunas críticas, daquelas que gostamos de ler, porque não ofendem, sendo antes o pensar de alguém com honestidade intelectual, como reconhecemos em ti.

Na verdade calcorreámos as mesmas picadas, refugiámo-nos atrás das mesmas árvores, emboscámos nos mesmos locais e sofremos igualmente pelas desventuras de cada uma das nossas Companhias e dos nossos camaradas. O que de mau acontecia numa Companhia era motivo de preocupação para a outra. Não eram ambas compostas, na sua maioria, por valentes ilhéus? Fomos vizinhos, primeiro, e locatários do mesmo aquartelamento, no fim. Não nos conhecemos então, mas temos a certeza de que faríamos, um pelo outro, na hora, o impossível.

Não comento os teus comentários, mas deixo-os aqui à consideração de quem nos lê.

Esperando que não nos voltes a privar de ti, tanto tempo como fizeste desta vez, deixo-te um abraço em nome dos editores em particular e da tertúlia, em geral.

O teu camarada e amigo desde as terras do Óio
Carlos Vinhal
__________

Notas de CV:

(*) vd. postes de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1224: Histórias de Vitor Junqueira (5): Não ao politicamente correcto

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1403: Histórias de Vitor Junqueira (6): A açoriana CCAÇ 2753: uma família, uma unidade feita à medida

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação

6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1567: Histórias de Vitor Junqueira (8): Operação Larga Agora, na região do Tancroal, com a CCAÇ 2753

11 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3438: Histórias de Vitor Junqueira: (9): O Líbio e o alferes gazeteiro


17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3464: Histórias de Vitor Junqueira (10): Santa Paz

Vd. último poste da série de 2 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4624: Blogoterapia (112): Saudades de outra idade (Juvenal Amado)

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4168: Os Bu...rakos em que vivemos (4): Acampamentos de apoio à construção da estrada Mansabá/Farim (César Dias)

1. Mensagem de César Dias, ex-Fur Mil Sap da CCS do BCAÇ 2885, Mansoa, 1969/71, com data de 6 de Abril de 2004:

Carlos,
Como estás no comando da Tabanca, e porque este bu...rako te é familiar, se vires de interesse, podes publicar.

César Dias


Destacamento do Bironque

Foi neste buraco que vários bandos se esconderam, CART 2732, CCAÇ 2753, Pel Sap do BCAÇ 2885 e outros que nos revezaram, daqui partiam e voltavam dia e noite, para levar a bom termo a estrada Mansabá - (K3)Farim, apesar das minas, das flagelações etc. Mas não me espantaria nada se aparecesse um Sr. General a dizer que como parque de campismo até não estava mal.

Foi mais um desabafo
Um abraço para todos

César Dias
BCAÇ2885

Fotos promocionais do Parque de Campismo de Bironque






Boa estrada de acesso, feito à custa de muito sangue, suor e lágrimas, porque as minas não pouparam civis e militares e as emboscadas eram o pão nosso de cada dia.

Fotos: © César Dias e Carlos Vinhal (2009). Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4153: Os Bu... rakos em que vivemos (3): Acampamentos de apoio à construção da estrada T.Pinto/Cacheu (Jorge Picado/José Câmara)

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3608: Histórias de Vitor Junqueira (12): O Saco Azul

1. Mensagem de Vitor Junqueira, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 - Os Barões, (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), enviada no dia 11 de Dezembro de 2008, com mais uma das suas histórias, esta integrada nos arranjinhos que se faziam nas nossas Unidades, para haver sempre umas massas de reserva para o que desse e viesse, vulgo saco azul.

Amigos editores, Aleluia! O blog está como eu gosto. Menos erudição e mais histórias com gente lá dentro. Como o Natal do comandante Picado ou o segredo do José Colaço, que acabei de ler. Em tempos, disse ao Luís Graça que mais interessante do que a escrita em si, é, através dela, podermos conhecer o dono da mão que escreve. Esta é a minha onda, reafirmo-me nela através de mais um conto que conta uma cena verdadeira. Com um retrato. A todos os camaradas e amigos, obrigado por gostarem das minhas histórias. Aos que não apreciam, as minhas desculpas.


O Saco Azul

O senhor Manuel Carroça, é um sortudo. Entradote na idade, é proprietário, gerente e assistente de vendas num espaço comercial típico do Portugal da nossa meninice; uma tasca com secção de mercearia. O freguês vai à cata por exemplo, de um quilo – ratado – de prego de solho ou de um fedorento maço de tripa seca para a patroa fazer os chouriços e na volta, bota abaixo um penalty – com gola – do bom tintol da região. Como ainda não foi visitado pela ASAE, mantém-se no seu posto atrás do balcão, até ao dia em que lhe selem a porta. Tem vários problemas de saúde, incomodam-no principalmente as queixas de natureza reumatismal. A propósito, diz ele com a cara mais séria deste mundo, e com toda a propriedade, acrescento eu:

- Ó dótor, eu dos pés ainda tal, tal. Agora das mãos, sou um ladrão!

Quem pensa que foi a simpática presidente de uma ainda mais simpática autarquia do Norte que inventou e deu a conhecer ao mundo essa engenhosa criação que dá pelo nome de saco azul, está enganado. Para os ex-combatentes do ultramar, essa entidade é-lhes familiar, apesar de a maioria nunca lhe ter visto o forro! Para os que não sabem, tratava-se de uma espécie de fundo de maneio clandestino e como tal não escriturado, que servia para suportar contas de pequena ou média importância, despesas não elegíveis ou de difícil justificação.
Quem ficasse na liquidatária, liquidava o saco, sendo o respectivo inventário e processo de partilha top secret, como mandava a ética. Afirmam as más línguas que houve quem, através liquidação do saco, se tenha abotoado com umas massas e assim nasceu a atoarda dos apartamentos nas avenidas novas, tantos quantas as comissões.

Ao contrário do ti Manel Carroça, fui sempre saudável e jeitoso de mãos. Em criança, desmontava e reconstruía, geralmente com grande economia de peças, qualquer apetrecho em que pousasse a vista. Aos 11 anos confeccionei a partir de uma lâmina Nacet, a primeira gazua para a ignição do carro lá de casa. Como a sorte nem sempre protege os audazes, foi nessa idade e na qualidade de condutor que tive o primeiro acidente de viação de que resultou um ferido ligeiro, uma cabeça rachada. Apanhei-lhe o gosto. Qualquer chave comum, amorosa e pacientemente desbastada à lima, um apalpa-folgas e até os plebeus clips e corta unhas me permitiam materializar o sonho de montar tudo o que roncasse e bebesse gasolina. Por puro divertimento, fui-me aperfeiçoando. As viaturas de vizinhos e familiares pernoitavam onde acabava a gasosa, mas também podiam aparecer estacionadas sobre os relvados de jardins públicos ou encavalitadas em degraus de igreja.

Aos 17, já me encontrava num escalão mais especializado e competitivo, o das motos. Pilotando uma dessas máquinas, tive outro acidente que me podia ter custado a viola. Safei-me com uma tíbia e peróneo feitos num oito. Fui superiormente tratado pelo senhor Manuel Coelho de Porto de Mós, na altura o melhor endireita da região e, em dois meses, pude voltar ao activo com notável enriquecimento da minha colecção de automóveis escaqueirados. Até que, um encontro imediato de primeiro grau com o homem vestido de preto, no Tribunal Judicial de Ansião, pôs termo a uma promissora carreira. E ainda há quem diga que a juventude de hoje está perdida!

Como as outras, a CCaç 2753 era uma companhia séria, de gente séria, com uma administração acima de qualquer suspeita. Tirando o caso da trombadinha que o Sant’Amaro deu no baú onde o Santa Maria guardava os dólares remetidos pela família da América para o tabaquito, nunca dei conta de que alguém deitasse a unha ao do alheio. Foi por isso que, com surpresa, tomei conhecimento da presença no K3 de um senhor major vindo de Bissau para uma espécie de auditoria às contas da Unidade.

À porta da secretaria, detecto sinais de embaraço. Mãos nos bolsos, cigarro nos lábios à Bogart, o Leanito parece inquieto. E tem razões para isso. Lá dentro, está em jogo a sua reputação de militar impoluto. O Ribeiro mais o Marques, saem a voar baixinho e assim como quem não quer a coisa, vão até ao bar. Sozinho a enfrentar a fera, fica o Mexia. Senhor de uma barriguita cuja bitola já na altura não lhe permitia ver o coiso, transpira que nem um suíno, salvo seja. De cu para o ar e nariz enfiado nas gavetas da mobília, remexe a tralha. Sentado à secretária, entre o divertido e o furibundo, o major tem o ar de quem não acredita no que está a acontecer... o segredo do cofre levou tal sumiço que ninguém o encontra.

Vitor, eis o teu momento de glória, diz-me uma vozita ao ouvido. Agarra-o rapaz, porque esta merda de guerra pode não te oferecer outro. Decido avançar.

- O meu Major dá-me licença?
- ???
- Se me permitisse, gostaria de tentar abrir o cofre.
- Ah, faça favor.

O cofre, um matacão preto em ferro, deve pesar meia tonelada, seguramente. É do tipo monobloco com chave, tranca accionada por um volante central e fechadura secundária comandada por seis roletes alfabéticos. Isto vai ser canja!
Encosto-lhe o ouvido. Acaricio os roletes enquanto lhes observo as folgas e escorrências de óleo, assim como os movimentos quase imperceptíveis determinados pela pressão da tranca. Em menos de cinco minutos, o sistema rende-se. O major, excitadíssimo, salta como perdigueiro em cima da caça. Era vê-lo a farejar caixas, envelopes, papelada.

Inchado que nem um peru, afivelo uma expressão de fingida modéstia e peço autorização para me retirar. Preparado para receber o aplauso e agradecimento da multidão, muito justamente devidos a quem deu provas de tamanha expertise. Porém, oh mundo ingrato, sinto-me fuzilado pelo olhar reprovador do Leão que, do alto do seu metro e sessenta e cinco, resmunga entre dentes:

- O meu Alferes arranjou-a bonita, arranjou. Olhe, depois não se esqueça de dizer que a comida não presta.

Dizendo isto, saca a mão do bolso e vira-me a palma: R…S…T…
De braço dado com o major, lá se foram até Bissau os oito contitos do saco azul.

Nota: Personagens e glossário, pela ordem em que aparecem no texto:

Carroça – é a alcunha pela qual o senhor Manuel é mais conhecido.
Ratado – roubado no peso.
Com gola – mal cheio. Também se diz com fita.
Penalty – copo de 2,5 dl de vinho
Apalpa-folgas – instrumento semelhante a um canivete suíço com várias lâminas de aço, muito finas. Serve para ajustar a folga das válvulas na cabeça dos motores.
Manuel Coelho – o nome e morada são verdadeiros, assim como o facto de ter sido ele quem me tratou. Se tivesse ido para o hospital, o mais certo seria ter ficado coxo para o resto da vida.
Ansião – concelho do distrito de Leiria a que pertencia a minha freguesia, Chão de Couce. O julgamento deu-se em 1966. Estava relacionado com um passeio numa moto emprestada. Fui julgado à revelia (ai não…) e absolvido!!! E ainda há quem não acredite na justiça.
Sant’Amaro – por razões óbvias, o nome do santo não é este. O rapaz ganhou a alcunha porque logo no segundo dia de recruta, alegando o cumprimento imperioso e urgente de uma promessa ao tal santo, fez um peditório junto dos camaradas cujo produto gastou em vinho, cerveja e cavacos (marisco açoriano). Andou grosso durante uma semana. Após o saque irregular, não se conteve e viajou até Farim onde adquiriu alguns bens na casa Libanesa. A operação policial posta em campo descobriu rapidamente o rato através dos sinais exteriores de riqueza. Teve uma rebanhada de filhos, quase todos a residirem na América, aos quais se juntou recentemente depois de uma vida como pescador em Vila Franca do Campo.
Santa Maria – alcunha verdadeira do soldado Alves por ser natural daquela ilha, único aliás, na Companhia. Era um garnisé, asmático, incapaz de dar dois passos sem ficar com os bofes à boca. Contudo, fumava dois maços de tabaco por dia. Só por milagre é que ainda poderá estar vivo.
Bogart – Humphrey Bogart
Leanito – 1º Sargento Leão. Alentejano de Portalegre, andaria pelos cinquenta anos. Bom homem, faleceu há mais de duas décadas.
Ribeiro – 2º Sargento do QP. Fino que nem um rato, chegou a Chefe. Vive Lordelo do Campo, próximo de Vila Real.
Marques – amanuense, de Rio Maior.
Mexia – 2º Sargento do QP, alentejano de Vila Boím. Um gajo porreiro. Vi-o pela última vez há cerca de quatro ou cinco anos. Devido ao excesso de peso (200kg?), andava a ser seguido numa consulta de endocrinologia em Santa Maria.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3585: Histórias de Vitor Junqueira (11): Um conto (triste) de Natal

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3585: Histórias de Vitor Junqueira (11): Um conto (triste) de Natal

1. Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira, ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2753 - Os Barões, (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72), com data de 5 de Dezembro de 2008:

Prezados amigos, camaradas e visitantes;
Caros editores,

Para o vosso sapatão, aqui vai mais uma das minhas histórias. Não sei se devido à quadra que estamos a atravessar, ou porque os velhos se tornam sentimentalões, não consegui fugir ao tema (Natal) nem às minhas memórias. Esta, está tão fresca que me interrogo se os factos narrados ocorreram há quase quatro décadas ou na passada semana. Chamo-lhe conto, mas dado que mexe com acontecimentos reais, construí-a segundo uma estrutura aparentada com a da narrativa. Acho eu, porque não sou muito entendido nessa área. Por isso usei e abusei do modo presente.
Desde já, obrigado pela atenção que quiserem dispensar ao meu escrito e Boas Festas.


Um conto (triste) de Natal

Ao meio dia, o sol impiedoso dos trópicos é avaro quanto a sombras. Como se fossem agulhas, os seus raios trespassam-nos a pele que se defende produzindo rios de suor. Toma-se a chuveirada da ordem e logo a camisette fica uma sopa. Sob uma atmosfera quase irrespirável devido ao calor e humidade sufocantes, homens e animais disputam qualquer nesga de frescura. Aos meus pés passa um lagarto em passo de corrida. Pára subitamente, parecendo hesitar quanto ao rumo. Três flexões rápidas, azimute a uma frondosa mangueira e aí vai ele tronco acima, fugindo à torreira. O desconforto rouba-nos o alento, corrói o moral. Entediado, mantenho uma conversa de chacha com um camarada das transmissões enquanto aguardo a chamada para o almoço.

A parada é um belo largo de terra batida, atravessado no sentido norte-sul pela estrada Farim-Mansabá. Do lado direito de quem sobe, situa-se um abarracamento esquálido coberto a chapas de zinco ferrugento, semi-arrancadas dos cibes e mais esburacadas do que um passe-vite. Alberga uma cozinha onde no meio da maior badalhoquice se enjorcam os mimos do cardápio: Do primeiro ao último de cada mês, batata cozida com cavala de conserva, tripas de vaca holandesa com feijão e gorgulhos e, em dias de cerimónia, estilhaços com esparguete. Contíguos, ficam um chiqueiro que serve de refeitório, a caserna das praças e o paiol. Tenho andado a pensar numas obras de fundo, vou falar nisso à rapaziada(*).
À esquerda, situa-se a única edificação digna desse nome. Trata-se de uma construção rectangular, semienterrada no solo, com paredes erigidas em adobe. Construída perpendicularmente à estrada, apresenta do lado norte um alpendre corrido sob o qual se encontram as entradas para a secretaria, catacumba das transmissões e criptografia, suite do capitão e camarata dos alferes. No topo Oeste, as instalações sanitárias para uso exclusivo da hierarquia. O tecto, dotado de um reforço à base de robustos troncos de palmeira sobre os quais assenta uma camada de cerca de 30cm de material inerte, confere uma razoável protecção aos locatários. Nas traseiras, igualmente protegidas das canhoadas do IN por uma fileira de bidons cheios de terra, fica o espaldão do oitenta e um. Lá mais atrás, a cantina e o furo que abastece a tropa com água potável, tendo ao lado um palanque que suporta o depósito sob o qual se encontra o balde de crivo dos banhos gerais. Este é também um local de derriço, onde certos camaradas(**) se deixaram surpreender pela calada da noite a brincar ao jogo quem apanha o sabonete? Em frente, o mastro da bandeira e no mesmo enfiamento, um campo de volley que tive a honra de construir com os ensinamentos colhidos na universidade de Champigny-sur-Marne. Ao fundo, junto ao arame farpado e de costas para a tabanca, fica a messe de sargentos e oficiais, casino, discoteca e local de eventos.



Aquartelamento do K3. Aqui permaneceu a CCAÇ 2753 do Alf Mil Vitor Junqueira, durante boa parte da sua comissão.

Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.


São 12h30. Manuel dos Santos, o corneteiro/despenseiro faz-me sinal para avançar.
Esta manhã fui à caça, estreei uma Winchester. Numa pedreira aqui perto, abati quatro tchócas. Nunca percebi porque é que os nativos se recusam a consumir estas aves, muito semelhantes à perdiz europeia. Vamos lá a ver como é que está o petisco que o Manel confeccionou. Como não chega para todos, ficou reservado para o dente do maior e alferes, os outros terão de contentar-se com o cheiro.

Na secretaria, depois da feijoada do almoço, faz-se por fazer qualquer coisa. Um Primeiro, dois Segundos e o seu escriba, torcem e retorcem números para que dêem certo, retocam ofícios para que pareçam fidedignos, batem-se valentemente em duelos de bocejos.
Abanco numa das cadeiras de balouço situados sob o alpendre. Do meu posto de relax, escuto o zumbido da ventoinha do quarto dos alferes, ligada no máximo, convidando-me para a real soneca da tarde. Felizmente, há certos dias nesta puta de guerra em que não se faz raspas!

Quatro e meia, o calor é muito. A esta hora, ainda assa canas na rua, e à sombra também! Desperto, meio obnubilado começo a fazer planos para a tarde: Banhoca, uma coca fresquinha e duas kingalhadas até à hora de jantar.
No meu campo de visão, passa um pronto. Como um zombie, braços caídos, olhar distante, passadas lentas, vai arrastando, as botas no pó revolvido pelas rodas das viaturas. Aparentemente sem destino nem propósito, faz-me lembrar um jagudi pairando sobre o seu território de caça. E de morte. À esquina do bloco, faz meia volta à esquerda e desaparece nas traseiras. Mal este se eclipsa, logo outro lhe segue a peugada, numa espécie de dança que se há-de prolongar até à hora das lavadeiras.

As rotinas desta companhia, são idênticas às de qualquer outra: Vigilância e defesa das instalações, acções de patrulhamento dentro da respectiva ZA, protecção às populações nos seus afazeres na bolanha. Organiza colunas de reabastecimento civil e militar, executa pequenos trabalhos de limpeza e manutenção, faz recolha de lenhas etc. Sem periodicidade determinada, tanto pode acontecer duas vezes na mesma semana como a espaços de quinze dias, há um serviço cuja ordem de acção emana directamente da Rep Oper. Esse, é a doer. Por norma, com uma antecedência de dois ou três dias, aí pelo meio da tarde, transmissões e criptografia entram em acção. Encafuados no seu cubículo, recebem e decifram uma sequência interminável de pi-pi-pis que desperta a curiosidade irresistível do pessoal. Querem dar fé do que lá vem, eis a razão do rodopio à volta do edifício do Comando.

São dez da noite. Na messe, reina uma falsa descontracção, uma indiferença aparente. No rosto tenso dos furriéis, leio sinais de compreensível ansiedade. Falei com eles antes de jantar, já sabem ao que vamos. Recomendação do costume: O segredo é a alma do negócio. Como se isso fosse possível! O pessoal há-de ser acordado à última da hora. Os que forem à cama. Faço uma retirada estratégica. Trancado nos meus aposentos, miro e remiro cartas e planos até os olhos me doerem. Também eu estou ansioso, não me sinto apavorado mas receio não conseguir descansar a ponta de um corno. Já passa das duas. Terei ainda tempo para um sono povoado de pesadelos?

Contrariando as Népes, a cantina mantém-se aberta noite fora. A malta afoga as borboletas do estômago com chá da Escócia. O Neves tem-no lá e do bom, importado directamente para as FA. Uma suecada, quiçá uma lerpazinha e umas cigarradas ajudam a queimar as horas. Hão-de implicar uns com os outros, contar piadas sem graça e soltar coriscadas à moda açoriana. Mais para a frente, talvez façam uma patuscada com o espólio da caça ao tesouro; dois especialistas surripiaram uma lata com cinco quilos de chouriço em azeite da arrecadação do vagomestre Prates(***). Na hora do embarque estarão tensos como o aço, prontos para o que der e vier.

Os filhos são como os dedos da mão, temos cinco e nenhum é igual. Por estranho que pareça, tenho para com estes rapazes que são praticamente da minha idade, uma relação de grande afectividade. Não será propriamente uma ligação do tipo pai-filhos, mas anda lá perto. Sinto-me responsável por eles, gosto deles. Foram-me entregues pelas famílias, ensinei-lhes tudo o que aprendi em Mafra, acompanhei-os nesta viagem a África, acalmei-lhes angústias e incertezas, escondi-lhes os meus medos para que o não tivessem, prometi levá-los de volta. Como os filhos, são todos diferentes. O tempo, a convivência e os apertos, vão revelando o que de melhor ou menos bom existe em cada um deles.

Picaroto, vinte anos, matulão, dispara o morteirete em andamento como quem dedilha uma viola. O Dutra é um tipo especial. O traço dominante da sua personalidade talvez seja a bonomia, parece um Buda menino. Tão humilde e educado, não há outro. Sempre disponível, a sua presença transmite confiança ao grupo.
Não é o mesmo, ultimamente. Anda triste, meio introvertido contrariamente à sua natureza. Consome-o a lembrança do pai falecido nos Estados Unidos, vítima de acidente de viação. Recebeu a trágica notícia em Madina Fula, quando preparávamos a festa de Natal do ano passado. Penso que tem saudades da restante família, emigrada na América, à qual deseja juntar-se tão depressa passe à peluda.

Alta madrugada, dois porradões na porta fazem-me saltar na tarimba.

- O que é, caralho? Pergunto, estremunhado.

- Meu alferes, temos um problema. Tem de vir ali à cantina, responde-me o furriel Tavares.

Pela hora e pelo inusitado da intimação, o coração dá-me um baque. Penso numa desordem com fartum de pancadaria, um acidente qualquer. De um pulo, ponho-me a pé e, enquanto caminho, o furriel pinta-me a cena.

O quadro é dramático. No chão de cimento, jaz inerte o corpo do Dutra. À sua volta, em lágrimas, os camaradas contemplam-no com olhar incrédulo. Peço-lhes que se retirem. Por uns instantes ficámos a sós. Ajeito-lhe as mãos sobre o peito. Tranquilo, parece sorrir. Acho que o ouço dizer: - Não se incomodem comigo, eu estou bem.

Despeço-me com uma prece silenciosa e rogo-lhe que mantenha o seu posto no nosso GC. Encontrado um local com um mínimo de dignidade onde depor o corpo do nosso malogrado amigo, aí o deixamos, amortalhado num simples lençol. Na volta, cuidaremos dele, como merece.

São 05h50, está a clarear e já se ouve o roncar dos hélis. Um a um, os Alouettes pousam, recebendo um contingente de cinco homens cada. Descolam rapidamente e, progredindo em fila indiana, conduzem-nos a destino pouco seguro. Lá no céu, encomendamo-nos à Senhora do bom regresso. É meu privilégio seguir na primeira leva. Agora é só dar gás às máquinas!

O Dutra não fumava nem bebia. Como os outros, foi até à cantina para não sentir o passar do tempo. Aí, encontrou o seu amigo Araújo, micaelense da Ribeirinha, atirador de LGF. Bom rapaz, um tanto rezingão, mete uns copos em vésperas de saída. Entabulam dois dedos de conversa. Como o camarada se mantivesse murcho, o Araújo desata a provocá-lo. Na paródia, empunha a Walter que usa para defesa pessoal. Em jeito de saque à cow-boy, o cão fica preso na banda do dólmen, recua mas não o suficiente para ficar no trinco. No instante seguinte, o Dutra cai, desamparado, com o coração trespassado por uma bala de 9mm. Não teve tempo nem forças para um ai.

Foi há trinta e sete anos.

Obs: Do ponto de vista disciplinar e criminal, o Araújo safou-se. O processo foi conduzido de modo a não lhe tolher a vida. Foi sancionado pela própria consciência, pela mágoa e certamente pelo remorso. Pagou caro (ainda estará a pagar?) por uma estúpida brincadeira. Emigrou para o Canadá.

(*) As obras foram efectivamente realizadas! Cozinha e refeitório, construídos de raiz com blocos fabricados pelo nosso pessoal, e coberturas requalificadas, como agora é uso dizer-se. Durante a fase de execução, tivemos uma visita do General Spínola.

(**) Um desses homens acabou por falecer muito jovem. Suspeito que terá sido uma das primeiras vítimas do VIH registadas no nosso país.

(***) O furriel Prates, chaparrão de gema, era um deixa andar. Passava umas semanadas em Bissau e regressava de mãos a abanar.
- Meu capitão, não chegou qualquer reabastecimento da metrópole, era o seu rebatido argumento. Nem uma simples folhinha de alface! Atraía raivas, mas nunca quinou. Tive notícia de que faleceu pouco depois da passagem à disponibilidade. Paz à sua alma.
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Vd. poste de 17 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3464: Histórias de Vitor Junqueira (10): Santa Paz