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domingo, 13 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22996: Os nossos médicos (92): Nunca na vida te deixarei sozinho (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico, CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


1 - Em mensagem de 12 de Fevereiro de 2022, o nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68) enviou-nos este seu conto:


NUNCA NA VIDA TE DEIXAREI SOZINHO

Nunca na vida te deixarei sozinho, disse a Isabel ao seu marido Joãozinho, na véspera de meter outro homem na sua cama.

A Isabel não andou na Faculdade, para assim falar tão bem nas traseiras do sentimento, mas foi criada de servir em Bissau, o que, numa aldeia do mato, era um curso superior. Isabel era uma mulher muito bonita, daquelas que são sempre futuro, ainda que a pele se engelhe. As suas formas afeiçoavam-se aos olhos, mais despindo a existência do que o corpo. Uma espécie de mulher à flor da pele, bem calculada por dentro. Mulheres paridas de si mesmas, sem vida nos outros. Mulheres de além-desejo, voo de ave caminhando fora dos passos. Isabel, o torvelinho das tonturas do Joãozinho.

Joãozinho, servente da messe, sabia a mulher que tinha e todo se babava quando a gente dizia que ela era mais linda que surucucu empinada, mais pura que fruto de cajú. Todo ele era uma viagem por dentro da Isabel, adivinhando-lhe o mundo no contar das coisas. Manhã levantada era sol de todo o dia, noite deitada era sonho que não morria.

Um dia…

Encontrava-me eu frente à palhota da Isabel, limpando com uma compressa embebida em permanganato de potássio, as feridas do dorso das vacas, verdadeiros buracos abertos pelos estilhaços das granadas e pelos pássaros pica-sangue, impiedoso tormento dos animais, quando ouvi atrás de mim uma voz de asas, leve de tempo, onde não havia destino, medida por lonjuras de sonho.
- Sr. Doutor, Sr. Doutor.

Do peito me nasceu um soluço que só anos mais tarde se escapou.
- Olá Isabel, que bela surpresa!
- Doutor, tenho galinha que consegui arranjar e vou fazer frango à cafreal para Doutor e nosso Capitão.
- Isabel, tu és um anjo, e nosso capitão, todo católico, vai pensar que é dádiva do céu, quando eu lhe contar.

Todos somos fingimento quando o sangue não se entorna no desaconchego da solidão. O provisório serve o regresso da alma, o fogo de outros calores invade os olhos através de janelas que há muito se não abriam. O capitão não mediu a fome nem a galinha, esqueceu a comunhão do Padre Gama, sonhou o despir da Isabel até à nudez pecaminosa e espetou os olhos no cair da noite.

Ao cair da noite, lá fomos os dois à palhota da Isabel, enquanto o Joãozinho lavava a loiça na messe. A Isabel estava no último acto da confecção do delicioso cafreal da tabanca. Primeiramente refogado, apenas em sumo de limão e piripiri, depois grelhado na brasa e em seguida frito com cebola.

Notei que os olhos do capitão se cruzavam constantemente com os meus, não na galinha mas nas ancas da Isabel. Seguiam a luz sensual do petromax, que penetrava abusivamente na malha de tule até às roupas que vinham de dentro. Senhora de reflexos e de encontros, Isabel não prestava menos atenção à sedução do que à galinha.
- Doutor, nosso Capitão, tenho gira-disco e morna, mim dançar para doutor e nosso capitão.

Não nos empenhámos em perceber como é que uma pequena caixa e um disco de madeira giravam música. O esvoaçar do tule era o centro do mundo, o arder da fogueira de todo o nosso frio. Toda a força daquele colo maternal, toda a ternura da silhueta envolta em cabelos penosamente desfrisados durante longos anos, toda a firmeza das carnes subtis, todo o trigo desse abrigo adormecido, toda a tempestade recolhida nesse pedaço de noite tombaram sobre nós quando a Isabel iniciou o strip-tease.

Não me lembro do sabor da galinha. Recordo apenas uma espécie de vento fustigando as entranhas, reduzindo-me a um calção e uma camisa, ardendo dentro de mim com sabor a cinza.
Olhámos um para o outro, sorrimos, assumindo o que sempre estivera assumido, antes de darmos ao espírito a momentânea liberdade de um passeio pelo sonho que morre ao pé dos coqueiros.

Aconteceu nessa noite ou na noite seguinte. O Joãozinho entrou em casa e deu com alguém a fugir da cama da Isabel. Pobre do Joãozinho, sofreu mais com a sova que deu na mulher do que com a traição. Sofreu mais pelo avesso do que ela dissera na véspera, nunca na vida te deixarei sozinho, do que em todas as noites que passara enterrado na bolanha à espera de turra. Doeu muito mais do que picada de escorpião.

Isabel apresentou queixa no Chefe de Posto. Argumentava e provava com as equimoses dificilmente visíveis na sua pele de negra. Dolorosas como as equimoses em pele de branca. Afastara bondades de Joãozinho, denegrindo sua violência, grande de mais para coisa de momento. Não ser vontade de ela mas força de imaginação que vem de dentro. Destino de todo fogo que acende rápido.

Foi constituído o tribunal. Perante o Chefe de Posto, Capitão e eu, compareceram queixosa e réu. O Joãozinho estava disposto a perdoar, a despeito de um sonoro desabafo, bengala de toda a sua alma, letra de toda a sua filosofia, resguardo de toda a sua defesa.
- Boca de ela ser boca de mim, olho de ela ser olho de eu ver, dor de ela corpo de mim qui dói, vida de ela valer morte de mim, mim ca pude pensar que Zabel durme cum gajo na cama de mim, dibaxo di memo tecto… inda si foi sinhô dôtô ou nosso capeton…!

(Conto rigorosamente verdadeiro. Mas nem dotô nem capeton estiveram na cama de Zabel).

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21878: Os nossos médicos (91): recordando o sentido do humor do nosso saudoso J. Pardete Ferreira (1941-2021), ex-alf mil médico (CAOP, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1969/71)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22812: (De)Caras (184): Sene Sané, régulo de Pachisse, com capital em Canquelifá, tenente de 2ª linha, vogal do Conselho Legislativo, falecido em 1969


Sené Sané, régulo de Canquelifá, eleito pelas autoridades tradicionais para o Conselho Legislativa da Província Portuguesa da Guiné. Sané Sané, régulo de Canquelifá, Tenente de 2ª linha, pertencia *a nobreza mandinga, sendo descendente do último rei do império do Gabu (morto na batalha de Cansalá, em 1867). Publicada em "O Arauto", diário da Guiné, edição de 14 de junho de 1964.

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do do livro de fotografia "Buruntuma: algum dia serás grande, Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016).] (*): o fotógrafo, em 1961, ao lado do então régulo Sené Sané, que era tenente de 2ª linha. junto ao marco fronteiriço ("República Portuguesa: Província da Guiné"), na fronteira com a República da Guiné. Cortesia do autor-

O autor, Jorge Ferreira, ex-alf mil da 3ª CCAÇ (Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63), é membro da nossa Tabanca Grande, é um fotógrafo amador com mais de meio século de experiência, tem um página pessoal no Facebook, além de um sítio de fotografia, Jorge da Silva Ferreira; as suas fotos de Buruntuma inserem-se na categoria da etnofotografia.


1. O PAIGC teve vários militantes (e guerrilheiros), de apelido Sané, provavelmente aparentados com o Sené Sané (**), um dos mais poderosos régulos da Guiné, na época colonial, ao ponto de ter sido eleito para o Conselho Legislativo da Província (criado pela Portaria n.º 19921, Diário do Governo n n.º 150/1963, série I. 

Os outros dois eleitos foram o régulo de Badora, Mamadu Bonco Sanhã, e o régulo de Cachungo, Joaquim Baticã Ferreira, fuzilados pelo PAIGC a seguir à independência. O Conselho começou a funcionar em 1964 sob o "consulado" de Schulz. Sené Sané teve "a sorte" de morrer... em 1969. Mas a sua cabeça devia estar... "a prémio", a par do Bonco Sanhá e do Baticã Ferreira.  Para o PAIGC, era "um dos cães dos colonialistas". (***)

Ironia da história, o actual régulo de Pachisse (vd. carta de Canquelifá 1957, escala 1/50 mil) que abrange as aréas de Canquelifa, Camajaba e Buruntuma, é o José Bacar Sané, um dos filhos do velho régulo Sene Sané (imformação confirmada pelo Cherno Baldé e pelo Patrício Ribeiro).(*)

Em 27/11/2019, o Patrício Ribeiro escreveu-nos (*): 

"Falámos com filho mais velho, do antigo régulo Sene Sané, José Bacar Sané, telemóvel nº 00254...119, morador em Canquelifa, é o actual régulo de Canquelifa e Buruntuma, já com alguma idade. (Foi antigo militar português do grupo de Marcelino do Mata).

"Nomeou o seu irmão mais novo, Mama Sané ( telemovel nº 00 245...330), residente em Buruntuma, seu representante do seu regulado em Buruntuma."

E a propósito o Chermo Baldé comentou no poste P20384 (*):

(...) "Como se costuma dizer, pode-se facilmente conquistar um território pela violência, mas é extremamente difícil continuar a governar as pessoas na base na mentira e na propaganda. Começaram, logo após a independência, por destituir todos os Régulos e Regulados (quando não eram fuzilados) e nomeado seus Comitês de tabancas. Com o tempo constataram que nada funcionava como queriam e a população não reconhecia as autoridades impostas de cima para baixo. Com o golpe de estado de Nino Vieira, voltaram a reconhecer as antigas chefias da época colonial para melhor controlar e manipular as populações."

E esclarece o nosso colaborador permanente, que vieve em Bissau: "O Regulado que tutela a cidade de Pitche chama-se Manna e tem a sua sede em Dara, localidade a cerca de 15/17 Km de Gabu cidade na estrada para Pitche. Este Regulado confina com o de Chanha a sul e o Paquessi a Nordeste/Leste."

O nosso editor LG,  por sua vez,comentou:

"Era voz concorrente que os elementos do grupo "Os Vingadores", comandados por Marcelino da Mata, teriam sido todos fuzilados, a seguir à Independência, com uma ou duas exceções (a começar pelo Marcelino, oportunamente refugiado em Portugal)...

"Se o José Bacar Sané, filho do antigo régulo Sene Saná, da época colonial (e amigo do Jorge Ferreira), foi um antigo militar português, e esteve integrado no grupo de Marcelino do Mata, "Os Vingadores" (de acordo com a informação do Patrício Ribeiro), e está vivo, mora em Canquelifa, e é hoje o atual régulo de Canquelifá / Buruntuma... bom, só temos que nos congratular com esse facto... Espero que seja um sinal, sincero e irreversível, da reconciliação dos guineenses que outrora foram 'inimigos', combatendo uns sob a bandeira do PAIGC e outros sob o estandarte do exército português, naquilo que foi não apenas uma 'guerra pela independência' ou de "libertação' mas também uma 'guerra civil' "


Guiné > Região de Gabu > Canquelifá > s/d  > O régulo Sene  Sané, tenente de 2ª linha, com uma das filhas, e um militar português. Alguém é capaz de identificar este camarada e a subunidade a que pertencia? - Pergunta a Lucinda Aranha. O régulo morreu em 1969.

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Carta de Canquelifá (1957) > Escala 1/50 mil > Pormenor > Posição relativa de Canquelifá, capital do regulado de Pachisse.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


2. Reproduz-se  a seguir um documento, do Arquivo Amílcar Cabral, datado de Kundara, República da Guiné,  16 de janeiro de 1962, e onde é patente o temor que o régulo Sene Sané inspirava em Canquelifá: 

Em carta, datilografada a Amílcar Cabral, José Ferreira Crato faz o balanço das informações obtidas na sua sequência da sua viagem de  reconhecimento da região fronteiriça. Ele e o  seu companheiro, Alphouseni [Sané], natural do regulado de Pachisse,  não conseguiram transpor a fronteira e chegar ao coração da região de Gabu, como pretendiam, e conforme missão que lhes fora confiada pelo Secretário Geral do PAIGC. Todavia, terão recolhido informação relevante sobre Canquefilá.  Na povoação fronteiriça da Guiné-Conacri, que o remetente  não identifica, chama-lhe apenas "a última tabanca dos pajadincas", haveria já muitos "simpatisantes" do PAIGC... Repare-se, estamos o início do ano de 1962...

Pode ler-se: "Encontrámos muitos simpatisantes do nosso partido, porque quase todos os pajincas ali residentes são de Canquelifá, que fugiram por causa do régulo Sené Sané (sic)"... 

E arremata: "Eu não garanto, mas pelos vistos havemos de vencer o Sené Sané, sem dificuldades como muitos julgam".





Citação:
(s.d.), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37630 (2021-12-15)

Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares |  Pasta: 04604.038.014 | Assunto: Informa que já se encontra em Koundara. Missão na fronteira com Alfosseine. Dificuldades na tabanca dos Pajadincas. Can-Quelifá. Declarações da população local. Régulo Sene Sané. | Remetente: José Ferreira Crato, Koundara | Destinatário: Secretário Geral do PAIGC [Amílcar Cabral] | Data: s.d. | Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (...)  |  Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.

  [Reproduzido com a devida vénia...]  

3. Comentário do Cherno Baldé, acabado de chegar,  ao poste P22808 (**)

A acentuação em alguns nomes não está correcta, assim escreve-se Sene e não Sené (nome próprio das etnias mandinga e fula); escreve-se também Alage e não Alagé (titulo honorifico de quem fez a peregrinaçao a cidade "santa" de Meca, transfigurado para nome próprio nos grupos muçulmanos).

O caso da família dos Sané, régulos de Pachisse com capital em Canquelifa e descendentes directos de Djanké Waly, o último rei de Gabu ou Kaabu, ilustra o facto de que, na realidade, nunca houve uma guerra entre fulas e mandingas, como sempre se propalou durante o regime colonial, pois se isso fosse o caso os Sané de Paqhisse (Canquelifa) não seriam régulos após a derrota dos mandingas. 

A história da África Ocidental está repleta de casos de guerras pelo poder em que os derrotados eram sempre obrigados a se submeter ao grupo maoritário de entre os vencedores e o surgimento de novas alianças estratégicas, facto que muitas vezes levava a mudanças radicais entre os vencidos, inclusive o abandono da sua língua e parte de práticas culturais e adopção de uma outra lingua, usos e costumes.

Neste caso concreto, os Sané de Canquelifa, para continuarem a fazer parte do poder foram obrigados a se converter a favor da língua fula, grupo maioritário e mais forte dentro do grupo que conquistou o poder, de tal maneira que as últimas gerações, vivendo no meio de uma maioria fula, já nao falavam a lingua mandinga e muitos nem se consideravam mandingas. 

Quem diz mandingas, diz também padjadincas, saracolés, landumas, bajaras, jacancas etc; da mesma forma que os fulas durante todo o periodo de mais de 6 séculos que estiveram sob o dominio mandinga de Mali, primeiro e Gabu, mais tarde, foram obrigados a falar a língua do dominador, apesar da resistência passiva em curso.

Era esta a realidade no terreno e em espaços humanos ainda em construção e em constantes mutações sócio-politicas e territoriais. Todavia, os novos acontecimentos no território após a independência (1974) tiveram o efeito e a tendência inversa ao curso dos anos anteriores, obrigando a novas situações e novos posicionamentos de adaptação ao novo contexto político e social.
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Notas  do editor:


(**) Vd. postes de: 


15 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22808: Fotos à procura de... uma legenda (157): Os quatro membros da comitiva guineense (a saber Sené Sané, Sampulo Embaló, Duarte Embaló e Alagé Baldé, amigos do meu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres,) às Comemorações do V Centenário da morte do Infante D. Henrique, agosto de 1960 (Lucinda Aranha, escritora) - II ( e última) Parte

(***) Último poste da série > 24 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22748: (De)Caras (183): Revivendo e partilhando (João Crisóstomo, Nova Iorque, de Visita a Portugal)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22808: Fotos à procura de... uma legenda (157): Os quatro membros da comitiva guineense (a saber Sene Sané, Sampulo Embaló, Duarte Embaló e Alagé Baldé, amigos do meu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres,) às Comemorações do V Centenário da morte do Infante D. Henrique, agosto de 1960 (Lucinda Aranha, escritora) - II ( e última) Parte


Foto nº 8 > Guiné > Região de Gabu > Canquelifá > O poderoso régulo Sene Sané, tenente de 2ª linha, aliado dos portugueses, inimigo mortal do PAIGC...Vogal do Conselho Legislativo da província. Morreu em 1969.



Foto nº 9 > Guiné > Região de Gabu > Canquelifá >  s/d > O régulo Sene Sané, tenente de 2ª linha,  com um das filhas, e um militar português.



Foto nº 10 > Guiné > Região de Gabu > Canquelifá >  s/d > Um dos cavalos brancos do régulo Sene Sané, tenente de 2ª linha, e o seu tratador.



Foto nº 11 > Guiné > Região de Gabu > Canquelifá >  s/d > Verso da foto nº 10, em português corretísismo, ecom uma boa caligrafia: "Oferta para (as) meninas: Esta fotografia é do meu cavalo e o seu tratador. Tem prsentemente 7 anos e custou 11.000$00. É uma oferta aliada ao interesse que os metropoliatanos tem ao gado 'cavalar' africano. Do amigo Sene Sané, régulo e tenente."


Fotos (e legendas): © Lucinda Aranha (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da mensagem anterior de Lucinda Aranha (*)



Lucinda Aranha, foto à esquerda: (i) escritora, filha do Manuel Joaquim dos Prazeres, o homem do cinema ambulante no nosso tempo, na Guiné, (ii) professora de história, nio ensino secundário, reformada; (iii( autora de uma biografia ficcionada do pai, a que chamou "romance": "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim", Alcochete, Alfarroba, 2018, 165 pp.; (iv) autora também dos livros "Melhor do que Cão é ser Cavaleiro" (Colibri, 2009) e "No Reino das Orelhas de Burro" (Colilibri, 2012), este último recheado de histórias e memórias dos tempos em que o seu pai viveu, em Cabo Verde e na Guiné, desde os anos 30 até 1972; (v) tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue; (vi) é membro da nossa Tabanca Grande desde 15/4/2014; (vii) tem página no Facebook, Lucinda Aranha - Andanças na Escrita; e (viii) vive em Santa Cruz, Torres Vedras.


(...) Devo dizer que foi com imenso espanto e agrado que, tardiamente, vim a saber que com as minhas irmãs fui coproprietária de um cavalo oferecido por Sené Sané. 

Foi-me confirmado por Helena Sané que o sogro só possuía cavalos brancos e que a oferta foi genuína, apesar de o meu pai nunca nos ter falado no assunto. Como traria ele o cavalo e o que faríamos nós com o dito? Está bem de ver...

Quanto aos outros três membros da comitiva guineense cujos nomes já referi (*), sei apenas que eram de Piche, pequena cidade da região do Gabú, onde o meu pai dava cinema a caminho de Kankelefá. Lembro-me de um deles ter dito que era padre e das abluções antes dos almoços. Segundo me explicaram, e penso que correctamente, usavam cinto de alferes e um deles uma "medalha" que o identica como religioso.

Nota final - Quero agradecer a Vital Sauane, amigo da família de Sané, as informações que me prestou, além de me ter posto em contacto com Helena Sané e família . Agradeço também a Carlos Freitas


2. Comentário do editor LG, em mensagem de 8/12/2021, 21:18 


Lucinda, fico muito sensibilizado com o teu gesto, ao quereres partilhar com a Tabanca Grande estas "recordações de família"... Já sabíamos, mas esta "história" vem confirmar quanto o teu pai era estimado, acarinhado e amado pelas gentes da Guiné. Claro, ele era também um homem generoso e um "africanista" de coração... Estas fotos (e legendas) vão enriquecer o nosso património memorialístico...  

Já agora ficas a saber que o cavalinho branco, oferecido às meninas (adquirido em 1953 por 11 contos) valeria, a preços de hoje, mais de 5300 euros (segundo o conversor do INE, Atualização de Valores com Base no IPC - Índice de Preços ao Consumidor, entre anos: 1953-2020)...

(...) Passei há dias por Santa Cruz, lembrei-me de vocês, mas ia com amigos do Norte...

Vamos partindo mantenhas natalícias... Um chicoração, Luís 

3. Nova mensagem da Lucinda Aranha, 11/12/201, 10h55

Bom dia Luís. Recordei-me de um facto "anedótico " mas que podes aproveitar se o entenderes. Além de comovente , mostra bem como as memórias são relativas,  dependendo muitas vezes de um acaso.

Enviei à Helena Sané as fotografias do genro. Numa delas ele está junto a uma cadeirinha com uma menina a falar com um militar (Foto nº 9). Essa menina era uma das suas filhas. A Helena enviou-a a uma sobrinha que desconhecia esta fotografia da mãe entretanto falecida. Ficou extremamente comovida ao ver a mãe ainda bebé.

Agora é de vez, Lucinda

PS- Vou-me encontrar com o Tony Tcheka que me disse ter novidades. Há um lote de fotos completamente diferente que penso será muito interessante se conseguir contextualizá-las. Logo se verá.

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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22806: Fotos à procura de... uma legenda (156): Os quatro membros da comitiva guineense (a saber Sene Sané, Sampulo Embaló, Duarte Embaló e Alagé Baldé, amigos do meu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres,) às Comemorações do V Centenário da morte do Infante D. Henrique, agosto de 1960 (Lucinda Aranha, escritora) - Parte I


Foto nº 1  > Sane Sané, régulo de Canquelifá, tenente de 2ª linha, descendente do último rei do império do Gabu (morto na batalha de Cansalá, em 1867), em traje cerimonioso. (Vd. foto dele com o nosso camarada Jorge Ferreira, em 1961, junto ao marco fronteiriço em Buruntuma).

Segundo o nosso calaborador permanente, Cherno Baldé, em mensagem de 27/11/2019, "o actual régulo de Paquessi ou Pakessi que abrange as aréas de Canquelifa, Camajaba e Buruntuma, é o Bacar Sané, um dos filhos do velho régulo dos anos 60."

Por sua vez, o Patrício Ribeiro informou-nos, na mesma data, que o José Bacar Sané, telemóvel nº 00254...119, morador em Canquelifa, é o actual régulo de Canquelifa e Buruntuma, já com alguma idade. (Foi antigo militar português do grupo de Marcelino do Mata)."

 
Foto nº 2 > Lisboa > Agosto de 1960 > Os quatro membros da comitiva guineense, a saber Sene Sané (, aqui trajado à europeia), Sampulo Embaló, Duarte Embaló e Alage Baldé ( este último,  padre muçulmano), à varanda da casa do Manuel Joaquim dos Prazeres (que foi o fotógrafo). O religioso  é o segundo a contar da esquerda, portador de um amuleto. O último, com cinto de 
fivela, seria um alferes de 2ª linha,  um dos Embaló. Segundo imformação do Patrício Ribeiro com data de 27/11/2019, atualmente "o Regulado de Piche é desempenhado pelo marido de Djana Embaló, residente em Dara. Em Piche, não há nenhum régulo."

A grafia correta do reliogos deve ser Alage (El-Hadj) Baldé ou Embaló. (Recorde-se que Alage ou El Hadj é um título honorífico reservado ao crente muçulmano que, em vida, consegue ter a felicidade de fazer, com sucesso, pelo menos uma peregrinação anual, Hajj, a Meca).

 
Foto nº 3 > Agosto de 1960 > Os nosos convidados à porta da casa... O dignitário religioso, é o primeiro da esquerda; o Sene Sané é o terceiro.


Foto nº 4 >Agosto de 1960 > Almoço dos quatro guineenses em casa do Manuel Joaquim dos Prazeres. Eram seus convidados, mas o pai da Lucinda Aranha não os acompanhou nas cerimónias. 



Foto nº 5 > Os quatro membros da comitiva guineense, com dois brancos que não sabemos identificar (podiam ser acompanhantes) junto às instalações da antiga Exposição do Mundo Português de 1940, que entretanto foram demolidas. As Comemorações do V Centenário da Morte do Infante Dom Henrique realizaram-se em Lagos e em Sagres, em 6, 7 e 8 de agosto de 1960, com desfile naval e a  presença dos chefes de Estado de Portugal e do Brasil. Mas realizaram-se outras cerimónias noutros pontos do país.  A Lucianda Aranha que já era aluna do liceu, em 1960, não se lembra se os convidados do seu pai deslocaram-se a Sagres e a Lagos.


Foto nº 6 > Guiné > Região de Gabu > Piche > 1969 > Os outros três membros da comitiva guineense em "trajes tradicionais", Sampulo Embaló, Alage Baldé e Duarte Embaló e  (, não sei se por esta ordem). 

Eram de Piche, pequena cidade da região do Gabú, onde o meu pai dava cinema a caminho de Canquelifá. Lembro-me de um deles ter dito que era padre e das abluções antes dos almoços. Segundo me explicaram, e penso que correctamente, usavam cinto de alferes  (Foto nº 5) e um deles uma "medalha" que o identica como religioso.



Foto nº 7 > Guiné > Região de Gabu > Piche > 1969 > Legenda no verso da foto nº 6: "Meu caro amigo Manoel Joaquim Prazeres, mando-te esta foto, a fim de lhe cervir (sic) como recordação. Sou eu, Sampulo Embaló e o Alage Baldé e Duarte Embaló. Piche, 11-12-969"


Fotos (e legendas): © Lucinda Aranha (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Lucinda Aranha, 7 de setembro de 2021:

Lucinda Aranha, foto à esquerda: (i) escritora, filha do Manuel Joaquim dos Prazeres, o homem do cinema ambulante no nosso tempo, na Guiné, (ii) autora de uma biografia ficcionada do pai, a que chamou "romance": "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim", Alcochete, Alfarroba, 2018, 165 pp.; (iii) autora também dos livros "Melhor que Cão é ser Cavaleiro" (Colibri, 2009) e "No Reino das Orelhas de Burro" ( Colilibri, 2012), este último recheado de histórias e memórias dos tempos em que o seu pai viveu, em Cabo Verde e na Guiné, desde os anos 30 até 1972; (iv) tem cerca de 3 dezenas de referências no nosso blogue; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 15/4/2014;  (vi)  tem página no Facebook, Lucinda Aranha - Andanças na Escrita.

Bom dia, Luís e Carlos.

Espero que tudo esteja bem convosco e família. Aproveito ter de escrever para cumprimentar também o Carlos de quem há muito não tenho notícias.

Luís, infelizmente gravei mal o número de telemóvel da Lena
 [Carvalho], minha amiga de infância que vive nas Caldas, e perdi ainda o cartão dela. 

Acontece que com a morte da minha irmã Ju encontrei uma série de fotografias que estavam perdidas. A Lena está em várias delas e gostava de falar com ela a propósito. 

Encontrei também fotografias de África que me parecem muito interessantes, penso que algumas dizem respeito a sessões cinematográficas e outras de uns certos Sené Sané, Sampulo Embaló, Duarte Embaló e Alagé Embaló, algumas com uma "carta" no verso.

Enfim, acho um material interessante, vou pesquisar junto de amigos e conto com vocês os dois para me ajudarem porque penso que não ficariam mal no nosso Blogue.

Desculpem estar sempre a aborrecê-los. Beijos e saudades. Lucinda

2. Nova mensagem de Lucinda  Aranha

Data - Quarta, 8/12/2021, 19:22 
Assunto - Comemorações do quinto centenário da morte do infante D. Henrique

Boa tarde, Luís. Espero que estejas melhor dos teus achaques ósseos.

Como já te disse, encontrei umas fotos que penso podem interessar ao Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 

Envio-te só uma parte; há outras que penso serem de uma sessão de cinema mas ainda tenho muitas dúvidas. Se vires que não interessam tudo bem.


Comemorações henriquinas de 1960

Em Agosto de 1960, o Estado Novo comemorou os cinco séculos passados sobre a morte do Infante D. Henrique que a política nacionalista da ditadura guindou a figura primeira dos Descobrimentos portugueses. 

Esta tese é muito contestada por diversos historiadores, nomeadamente por Vitorino Magalhães Godinho que viu o infante como o émulo da expansão pela força das armas ao serviço dos interesses da nobreza.

1960 marca o início da ascendência dos países africanos recém-descolonizados na ONU. Um ano mais tarde, o Conselho de Segurança vota favoravelmente uma resolução condenando a política colonial portuguesa. Portugal enfrentava também ameaças na Índia e em Angola, que rapidamente se estendem a Moçambique e à Guiné-Bissau, onde crescem os movimentos autonomistas.

De nada valeu a Salazar o expediente de 1951, quando extinguiu o conceito de Império dando às Colónias o estatuto de Províncias Ultramarinas, integrando-as no território nacional. Nada fez parar o desejo de emancipação dos povos das Províncias Ultramarinas; a guerra pela independência a que a ditadura chamava guerra terrorista era imparável.

Também de nada lhe valeram outras comemorações que visavam criar a unidade, aproveitando-se datas com heróis insensados pelo regime.

Este pequeno texto procura contextualizar de forma sucinta as fotografias que se seguem pertencentes ao arquivo do meu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres, de cuja existência tinha conhecimento, mas cujo paradeiro era desconhecido.

Por um acaso, fiquei de posse destas fontes históricas que retratam acontecimentos do quotidiano relacionadas com as comemorações em causa.

Durante estas comemorações, recebemos, em visita social, em nossa casa, por diversas ocasiões, quatro membros da comitiva guineense, a saber Sene Sané, Sampulo Embaló, Duarte Embaló e Alage Baldé (Fotos nºs 1,2,3,,4,5,6 e 7)

Dos quatro, o de maior hierarquia era Sene Sané (Foto nº 1), régulo de Canquelifá, mandinga, descendente de Mana Djanque Vali, rei do Império do Gabú, que englobava uma parte do Senegal e a Gâmbia até ao nordeste da Guiné-Bissau. Morreu na batalha de Cansalá, 1867, vencido pelos Fulas de Gabu e do Futa Djalon vindos da Guiné Conacri. Assim acabou o reinado dos Mandingas que foram islamizados.

Quanto aos outros três membros da comitiva guineense cujos nomes já referi (Fotos nºs 2, 3 e 6), sei apenas que eram de Piche, pequena cidade da região do Gabú, onde o meu pai dava cinema a caminho de Canquelifá. Lembro-me de um deles ter dito que era padre e das abluções antes dos almoços. Segundo me explicaram, e penso que correctamente, usavam cinto de alferes e um deles uma "medalha" que o identica como religioso (Foto nº 2) 

A importância do Sene Sané  fica clara no título de Régulo, Tenente de 2ª linha, tendo inclusive sido eleito, em 1963, pelas autoridades das regedorias como um dos três vogais representantes das várias etnias ao Conselho Legislativo a funcionar na Província Ultramarina da Guiné, criado pela Portaria n.º 19921, D.G. n.º 150/1963, série I.
 [Os outros dois foram o régulo de Badora, Mamadu Bonco Sanhã, e o régulo de Cachungo, Joaquim Baticã Ferreira, fuzilados pelo PAIGC a seguir à independência. LG ]

O dito Conselho reuniu pela primeira vez, em 1964, já sob a presidência de Arnaldo Schulz. Uma outra medida destinada a manter a integridade de todo o império, o que fica muito claro num artigo de O Arauto ( Ano XXII, nº 5338, 14 de junho de 1964, pp 62/63) intitulado "A política da não-discriminação...." Seguem-se alguns excertos do artigo:






Fonte:  Guiné, Bissau, "O Arauto", Ano XXII, nº 5338, 14 de junho de 1964,  pp 62/63 (Excertos)



Sobre o Sene Sané,  é de referir que morreu em 1969, um ano após o final do seu mandato no Conselho Legislativo.

Quero salientar, de entre os restantos vogais,   António Augusto Esteves e James Pinto Bull por terem sido amigos de família e com as respectivas famílias habitués de nossa casa. O primeiro foi padrinho de casamento de três das minhas irmãs; a mulher e os filhos do segundo viveram, por diversas vezes, quando vinham à metrópole na nossa casa ,em Lisboa, tendo também as nossas famílias convivido numa vivenda da Parede, em férias de verão.







Fotos (com legendas): Extraídas de O Arauto, 14 de junho de 1964

(Continua) 
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Nota do editor:

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22642: Memória dos lugares (428): Dunane, destacamento de Canquelifá, região de Gabu

Foto nº 1


Foto nº 2

Guiné > Região de Gabu >Canquelifá > Dunane > CART 1689 (1967/69) > 1968  > "Hotel Dunane" (Foto nº 1) e  "Aeroporto Internaci0nal de Canquelifá" (Foto nº 2)... Ou o humor de caserna no seu melhor...

"Dunane era um destacamento sob a responsabilidade da Companhia instalada em Canquelifá. Estávamos em 1968. A CART 1689/BART 1913 (Fá,  Catió,  Cabedu,  Gandembel e Canquelifá, 1967/69) em final de comissão, foi transferida para Canquelifá, deixando um pelotão aquartelado em Dunane. Em poucos dias deu para entender que estavam a gozar o merecido descanso do guerreiro. Não havia suspeita de guerra, os serviços eram poucos e o tempo ia-se gastando da melhor forma."  

Fotos (e legenda): © José Ferreira da Silva (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. Muita malta terá passado por Dunane (e alguns terão lá estado "destacados" ou "desterrados"), mas poucoos, ao que parece, trouxeram fotos do lugarejo, agora "ressuscitado" com a republicação da série  "Diário de Guerra" do açoriano Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que foi alf mil da CCAÇ 800 (Contuboel e Dunane, 1965/67).

Dos que mais se "divertiram" com a sua estadia em Canquelifá e Dunane, foi o nosso Zé Ferreira, grande mestre do humor de caserna. As três histórias que ele nos conta desse tempo e lugar são  uma "delícia"... E ele garante-nos que são mesmo verdadeiras... Não precisava de o dizer: de facto, todas as histórias de guerra são verdadeiras, mesmo com o traço grosso da caricatura ou o ácido corrosivo do humor negro. Por isso até soldados básicos "badalhocos", havia alferes "malucos" e generais "de luneta e opereta", na nossa "Guinesinha" (como lhe chamava, com ternura patriótica, a nossa inefável Cilinha)...

Temos, em todo o caso, uma escassa dúzia de referências a Dunane, destacamento de Canquelifá, a meio caminho entre Piche e Canquelifá.

Daí acharmos útil recuperar os comentários ao poste P22634 (**)

(i) Manuel Luís Lomba:

Um reparo , a propósito de Dunane. A tropa não foi a incendiária daquelas (e outras) tabancas no Gabu, foi o PAIGC e o seu comandante Vitorino Costa, tirocinado em Pequim, nas quais praticou atrocidades e recrutou pela força dezenas de homens para a "reeducação" e guerra no sul.

Amílcar Cabral decidira-se pelo terrorismo no Leste, o resultado foi o seu contrário, serviu para fortalecer a oposição dos Fulas, os recrutados desertaram todos, substituiu-o pelo comandante Domingos Ramos, nosso ex-camarada, colocou-o em Quinara, no sul, morrerá no assalto à tabanca de S. João, em combate com a CCaç 153, deplorável foi o acto de passear o seu cadáver pelas tabancas de Quinara.

(ii) Valdemar Queiroz:

Como estive por aquelas paragens, estou sempre à espera de ler neste, quase tele, "Diário de Guerra", de Cristóvão de Aguiar, pormenores / descrições mais concretas sobre as localidades / tabancas Contuboel, Nova Lamego, Piche mas não aparecem, como de Dunane,  essas descrições.

Passei por várias vezes por Dunane nos finais de 1969 e era exatamente assim como nos descreve Cristóvão de Aguiar. A tabanca / quartel ficava colada à berma da estrada (a meio caminho, entre Piche-e Canquelifá), com um cavalo-de-frisa de porta d'armas a abrigos à prova de bombardeamento. 

Contavam-nos que se defendiam como nos filmes de western contra os índios. Recordo-me de uma das vezes ter sido o meu Pelotão ir de Canquelifá ao Xime (!!!) fazer a segurança a uma coluna de reabastecimento para Piche, Dunane e Canquelifá, e no regresso ao passarmos por Dunane:  eles protestarem com a chegada dos "frescos" por 15 dias antes (Natal) terem sofrido de grandes caganeiras devido ao camarão fresco do reabastecimento.

Também foi perto de Dunane que a minha CART 11 teve a primeira baixa, o  sold. Santoné Colubali, e ferimento grave do 1º.cabo trmas Custódio Marques, devido a minas na estrada para Canquelifá.

Sabia que Dunane não tinha população civil, mas não sabia ter sido uma tabanca de balantas (?) no leste, em terra de fulas e pajadincas, e que tinham sido expulsos pela tropa, mas o nosso Luís Lomba, qual Larousse nestas coisas, diz terem sido escolhidos em Pequim para serem reeducados, provavelmente comiam com as mãos, e servirem de educadinhos no sul.

(iii) Tabanca Grande Luís Graça:

Da "má fama" o então capitão de infantaria José Curto, o carrasco de Vitorino Costa, não se livrou. Provavelmente ainda hoje, na região de Quínara,o seu nome (pelo terror que inspirava) é recordado pelos mais velhos. Pelo menos, era assim em 2008...quando eu lá estive, na Guiné-Bissau, e visitei a região de Tombali. Deve ser caso único, de entre os "tugas", tirando o nome de Spínola e poucos mais...

Continuamos a saber pouco de Dunane, se era originalmente uma tabanca fula, mandinga, pajadinca ou até balanta. Talvez o Cherno Baldé nos possa elucidar. De qualquer modo, estou grato pelos contributos do Valdemar de Queiroz (que conheceu a região) e do Manuel Luís Lomba, a par do Cristóvão de Aguiar e do Zé Ferreira...

No subsector, o L1 (Bambadinca), que me calhou em sorte, havia, isso, sim, tabancas balantas, junto ao rio Geba e ao Corubal, que forma riscadas do mapa... Infelizmente, a sua história é aqui pouco falada, tirando talvez o caso de Samba Silate.
 
(iv) José Ferreira da Silva:

Para melhor caracterizar a minha estadia no chamado "Hotel Dunane", naqueles tempos difíceis, lembro os meus textos da série Memórias Nos d Minha Guerra:



 "O Alferes Maluco".

As histórias são verdadeiras.

2. É igualmente oportuno reler o poste P16661,  da autoria do Cherno Baldé, de que se reproduzem aqui alguns excertos (***):

(...) Canquelifá: Poucas terras fazem jus ao seu nome como esta terra guineense situada no seu extremo nordeste.

Em língua mandinga “Canquelefá” significa campo de batalha e de morte:

Can = campo/acampamento;
quele = batalha/guerra;
fá = morte/matança.

Não sei de quem era o acampamento, quem matou e/ou quem morreu, poderia até ser uma simples bravata dos Soninques animistas para assustar os invasores fulas ou os vizinhos Padjadincas do Bajar, ou outro grupo qualquer que se aproximava dos seus domínios, também eles conquistados em épocas passadas.

Território de transição histórica entre o norte da região sudanesa do Sahel [, Sara,] e a zona da floresta húmida confinada à costa do Atlântico, esta região de Pachisse, Pakessi ou Paquisse com capital em Canquelifá foi, durante muito tempo e em diferentes épocas campo de batalha dos exércitos que invadiram o território da actual Guiné-Bissau e ponto de passagem entre o Senegal e o reino de Futa-Djalon.

Não admira por isso a (des)unidade étnica que se verifica na população local, dividida entre os temerários Camará, os argutos Djaló e os pacientes Sané, resultado da mais diversa mistura e uma autêntica babel linguística a começar pelos antiquíssimos Banhuns, Pajadinca, Cocoli até aos Fulas nas suas diferentes declinações, passando pela bonita, eloquente e musical língua Mandinga ou mandinkan.

Ao contrário de Ziguinchor, típica terra luso-tropical com cordão umbilical fortemente ligado à cultura e a tradição das praças guineenses, Canquelifá poderia passar para qualquer dos territórios vizinhos e não se notaria nenhuma diferença.

Após as constantes disputas entre os reinos vizinhos (Futa-Djalon com Alfa Iaia Jaló, Mussa Molo o rei de Firdu) e a cobiça das potências europeias presentes na zona, a delimitação franco-portuguesa de 1903 acabaria por incorporar o Pachisse na Guiné portuguesa, com a eliminação dos incómodos concorrentes locais que eram Mussa Molo e Alfa Iaia.(...) (****)
  ____________


sábado, 16 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22634: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte VII: Contuboel e Dunane (entre Piche e Canquelifá) (Out - dez 1965)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Carta de Piche (1957) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de PIche, a meio da estrada entre Piche e Canquelifá, como rio Caium a sudeste.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Piche > Dunane >  Temos uma dúzia de referências a Dunane, um lugar perdido no Leste, um dos muitos Bu...rakos da nossa geografia de guerra,. E este topónimo remete ora para  o Cristóvão de Aguiar (CCAÇ 800, 1965/67) ora para o Zé Ferreira  da Silva (CART 1689/BART 1913, 1967/69), dois dos nossos escritores de talento. A diferença entre eles é que o Zé Ferreira, um "assumido bandalho", tem carradas de humor, que é coisa que falta (va) nos escritos do açoriano. 
 E foi ele, o Zé  Ferreira, quem celebrizou, na guerra da Guiné, o nome de Dunane, com o Bife à Dunane, criado por um cozinheiro madeirense, o "Senhor Badalhoco" (, texto que já faz parte do... Plano Nacional de Leitura).(*)

Foto (e legenda): © José Ferreira da Silva (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra", do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada dia 5, aos 81 anos (**). 

Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote (,a partir da parte VI, Carlos Vinhal).

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue, fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (***)


Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)

Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar

(Continuação)

Contuboel, 12 de Outubro de 1965

O meu Grupo de Combate vai dentro em breve para o destacamento de Dunane, quartel de campanha rodeado de arame farpado, sem qualquer tabanca (a que aí existia foi incendiada pelas nossas tropas, e a população que não morreu, fugiu para outros chãos) - fica então Dunane entre Piche e Can­quelifá, onde existem duas companhias, uma em cada uma dessas localidades, que por aquelas bandas a guerra é mesmo a doer. 

Vamos então render um outro Grupo de Combate, o do João Cortesão Casimiro, da nossa companhia, que, por estes dias mais próximos, conclui um mês de estada naquele que é considerado um dos piores desta­camentos daquela zona, sem as mínimas condições para se viver como gente: água bi­chenta, instalações em abrigos feitos de bidões de gasolina cheios de pedregulhos, o tecto coberto de troncos e por um oleado, e tudo isto rodeado de mata e de silêncio e guerrilheiros. 

Esta zona militar abrange, além das unidades já mencionadas, Nova La­mego, Bruntuma e Madina do Boé, onde, aí, nem se atre­vem as nossas tropas a meter o nariz fora dos abrigos de cimento armado, recebendo os ví­veres e o correio através de helicóptero, que lança os sacos das alturas e desapega-se logo para lugar mais se­guro... 

Em Dunane não há população, só meia dúzia de milícias indígenas. Com cerca de trinta homens, ao fim de pouco tempo não há solidão que re­sista. Só é preciso é que não falte vinho nem correio, porque assim o soldado acomoda-se com mais facili­dade...


Contuboel, 15 de Outubro de 1965

Recebi um rádio do comandante do batalhão acantonado em Bafatá, ao qual pertencemos, anunciando a rendição do pelotão de Dunane para o dia 18. Temos de sair às primeiras horas da manhã. E vinham também várias instruções sobre o mate­rial a levar, não esquecendo os sacos de areia nas cabi­nas dos Unimogs por causa de surpresas de­sagradáveis, que vamos atravessar zonas perigosas e algumas quase terra-de-ninguém, além das rações de combate para a via­gem, que deve demorar as suas quatro horas, com paragem em Nova Lamego e Pi­che... 

Reuni os homens do meu pelotão e transmiti-lhes todas as ordens que achei con­venientes quando à nossa futura partida (só não lhes revelei nem o dia nem a hora), or­dens que são para se cumprir à risca, sem a mínima discussão. E avisei-os que come­cem, desde já, a preparar os seus sacos de campanha, porque nunca se sabia quando largávamos para Dunane, a fim de render os nossos camaradas.

Dunane, 19 de Outubro de 1965

Após uma viagem atribulada e cansativa, chegá­mos por fim ao nosso destino. E eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma forna­lha de fúria e uma fome antiga não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. 

Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrado silêncio da noite. 

Eis-me aqui, tentando pescar estrelas no poço aberto do firmamento. Eis-me aqui, indefeso e nu, interrogando não sei que morto que vive numa parte de mim... Em frente de mim, nu e com o frio de todos os pólos, interrogo-me como se fosse réu e juiz ao mesmo tempo. E as palavras que ouço vêm da minha voz antiga, saída do mais fundo de mim, carregada de pedras e de car­dos, que grita e se contorce, morre e ressuscita, e continuo, indefeso e nu, aqui em frente de mim...


Dunane, 21 de Outubro de 1965

CRISTAIS DE DOR

Cristais de dor na noite tenebrosa,
Ferindo o silêncio duro e magnético;
Nenhum gesto de luz, leve, carinhosa,
Calando na noite o grito profético.

Em bandos descem pássaros estranhos,
Trazem recados no bico agoirento;
Muito ao longe nos currais os rebanhos
Tremem e choram lágrimas de vento.

Nas palhotas sem luz sonhos vencidos,
Crianças sem estrelas nos olhos caídos,
E pão de tristeza em bocas de fome.

Silêncio, dor, tristeza, solidão,
Tudo o que tem quem vive nesta prisão,
E um número no lugar do próprio nome.



Dunane, 3 de Novembro de 1965

MORTOS-VIVOS

Somos os mortos-vivos duma geração
Tran­cada nos aposentos do medo.
Se ousamos outra voz no coro duma canção,
Dão-nos nova alma e este degredo.

Se puderes olha em frente de olhos repousados,
Ar­reda o medo da mente ferida.
E teus dias serão plenos, serenados
E a vida será um salmo de vida...



Dunane, 6 de Novembro de 1965

ANSIEDADE

Conto os dias pelos dedos
Um a um sem fa­lhar.
Triste de quem tem segredos
E não tem a quem contar...

Parti triste e triste estou
Longe de ti nesta terra,
Onde o Sol se apagou
Sob negras nuvens de guerra.

Se a dor que no peito sinto
Tivesse boca e contasse
Tudo o que peno (não minto)
Talvez ninguém acreditasse...



Dunane, 10 de Novembro de 1965

PRIMEIRA CANÇÃO DO MAR

A minha voz vem do mar,
Meus cabelos de espuma são,
É no cais que vou cantar
As penas do cora­ção.

As coitas do coração
Ai, coimas de amargura.
Diz-me lá tu, ó canção,
Que é da velha ternura
Do mar da minha infância
E porquê vida tão dura,
Este viver sempre em ânsia?

Tatuaram-me no braço
Uma âncora de esperança...
Ai, e no peito um cansaço
Já do tempo de criança...

O mar embalou meu berço
- Velha canção de embalar
E assim rimei meu verso
Com a triste voz do mar.

O mar indicou-me o mundo
Nas rotas das caravelas...
Foram-se os sonhos ao fundo,
Rotas ficaram as velas.


Dunane, 15 de Novembro de 1965

SEGUNDA CANÇÃO DO MAR

Nas ondas do mar salgado
Escrevi o meu destino
Assim tracei o meu fado
Desde o tempo de me­nino.

Fez-se o mar meu amigo
Desde os tempos de outra idade:
- Quando não está comigo,
Chora triste de saudade...

Tantas vezes boiei morto
Na crista das ondas bravas,
Mesmo à vista dum porto
Onde, amor, me esperavas...


Dunane, 18 de Novembro de 1965

UM BARCO NA NOITE

Na noite subversiva havia um barco
Anco­rado no cais.
O céu era o reflexo de um charco
E de outras sombras mais

Súbito acordou uma luz
Nos olhos adormecidos...
Uma candeia que conduz
A vitória aos vencidos.

Todo o Universo se encheu de asas
E de itinerários...
Trancámos as portas de nossas casas
Nós, os revolucionários...

Tudo por fim rolou na lem­brança
Na noite subversiva
O barco ancorado partia para França
E nós ali à deriva...

Só nos ficou o sonho e a esperança,
E o barco ancorado partiu para França...


Dunane, 23 de Novembro de 1965

Estou com o meu pelotão há mais de um mês neste destacamento de Piche. Antiga tabanca balanta, destruída pelas nossas tropas há já al­gum tempo, é agora um aquartelamento destinado a um pelotão das nossas tropas e a uma secção de milícias indígenas. 

Estamos em solidão absoluta e com falta de víve­res. À noite, entretém-se o pes­soal com o espectáculo deslum­brante dos incêndios das tabancas atacadas pelos guerrilheiros e cujas chamas se vêem ao longe lam­bendo o horizonte cir­cular que deste cabeço onde se situa o aquartelamento se abarca. Nem dentro do perímetro do arame far­pado se pode an­dar à von­tade.

Contuboel, 1 de Dezembro de 1965

Chegou o novo capitão para comandar a com­panhia. O primeiro, o que foi ferido na tal operação simulada, com o intui­to de trei­nar os homens para a dureza da guerra, nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima. In­formou-me há dias o nosso primeiro Mota que ele tinha sido transferido para uma re­parti­ção do Quar­tel General, em Bissau, após ter estado em prolongada con­vales­cença na metrópole. O guarda-costas, esse, foi para a Alemanha para lhe porem uma prótese nos cotos das pernas. Nesta vida da tropa são tão efémeros os senti­mentos.

Contuboel, 25 de Dezembro de 1965

OUTRO TEMPO

Tempo loiro, maduro,
Nas mãos o Universo.
Sentia-me seguro
Como a rima num verso...

Depois veio o frio
Das noites de Inverno.
E pensava (agora sorrio)
Nas penas do inferno.

- Já rezaste, rica cara?
Perguntava uma velha tia.
Dizia que já terminara
E tinha a alma em dia...



(Continua)

___________

Notas do editor:

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21947: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (11): "O Mendes" e "A independência"


1. E assim damos por finda a publicação desta série de memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74) enviadas ao nosso Blogue no dia 29 de Janeiro de 2021:


30 - O MENDES

Era o furriel miliciano enfermeiro da nossa Companhia. Mais do que um camarada, mais do que um camarigo (camarada e amigo) era um camarigueiro (camarada, amigo e companheiro).

A sua ambição civil era estudar medicina mas, circunstâncias da vida, obrigaram-no a adiar o sonho que, todavia, manteve sempre.

Tirada a especialidade foi colocado em Tomar e veio connosco para a Guiné.

A sua competência, calma e humanismo no tratamento dos doentes, civis ou militares, era excecional e, ser tratado pelo Mendes, era cura rápida e certa.

Homem afável, falava baixo e sempre com muita seriedade, sem nunca perder a calma, em particular com os seus subordinados a quem tratava como iguais e que muito o respeitavam.

Já na vida civil, encontrámo-nos casualmente duas ou três vezes e falava-me sempre na possibilidade de se organizar um convívio para rever a rapaziada de que ele tinha saudades. Levou esse convívio 30 longos anos a acontecer e, entretanto, o Mendes tinha-nos deixado.

Lá, onde estiver, saberá com certeza a estima e gratidão que todos nós lhe temos.


********************

31 - A INDEPENDÊNCIA

Após o 25 de abril, foram estabelecidos acordos com o PAIGC para a transferência dos poderes territoriais.

Em Bissau, antes da independência, só pontualmente se via pessoal do PAIGC, nomeadamente à noite no edifício dos CTT.

As coisas foram sendo feitas gradualmente e com grande descrição até à independência da Guiné-Bissau que, creio, se processou a 10 de setembro de 1974.

Regressei à Metrópole, evacuado, no dia 5 de setembro de 1974 e a minha companhia no dia seguinte.

Nos meses que passei em Bissau, depois do 25 de abril e antes do regresso, assisti a várias manifestações da população, a propósito de tudo e de mais alguma coisa, que normalmente decorriam sob um manto de preocupação ou tristeza o que colidia com o que devia ser a alegria de um povo acabado de ser libertado.

As pessoas acomodavam-se de pé, em camionetas de caixa aberta, deslocando-se em marcha lenta, e recitavam uma ladainha qualquer que não entendia, estando ausente aquela alegria espontânea própria do povo africano, mais parecendo um velório.

Na minha opinião, este comportamento indiciava a consciência de que o caminho da liberdade tinha muitos perigos e incertezas, em particular para aqueles que viviam nas cidades e que de alguma forma beneficiavam com a estadia dos militares portugueses na Guiné, assegurando com alguma facilidade a sua subsistência e a da família, objetivo prioritário em qualquer sociedade.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21937: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (10): "A evacuação" e "A vida no Hospital Militar de Bissau"