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sexta-feira, 14 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22199: Memória dos lugares (421): O Café Ronda (que também era pensão... e "casa de câmbio"), e outras "espeluncas" de Bissau (João Candeias / Valdemar Queiroz)


Guiné > Bissau > Café Ronda > Esplanada com cobertura de chapa de zinco > s/d> Fotos de Francisco Carrola (, da página do Facebook), recolhidas por Hélder Sousa, com a devida vénia. O Cafe Ronda situava-se na Av da República, um pouco mais abaixo do cinema UDIB e do lado contrário ao deste, segundo informação do Abílio Magro (*).


1, Comentários de João Candeias e de Valdemar Querioz sobre o Café Ronda (*)


(i) João Candeias Silva  [ ex-fur mil at inf, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca, 1973) e CIM Bolama, 1973/74]

O Café Ronda não era apenas café, era também pensão com quartos colectivos, tipo caserna, onde pernoitavam muitos militares de passagem a caminho da metrópole, de férias, ou de regresso à província. O que foi o meu caso em Novembro de 1972.

Era um ponto de encontro dos militares colocados em Bissau e também de malta como eu, vindos do mato. No tal balcão para o exterior, além das cervejas, café, etc,.  vendia-se  sorvetes muitos procurados por serem bons e porque o calor estimulava o consumo.

Sobre a explosão no café , em 26 de fevereiro de 1974 e no autocarro da Força Aérea , em 22, a notícia correu por toda a província causando alarido especialmente na tropa sediada em Bissau. O autocarro passou a ser vasculhado antes de entrar em serviço.

Embora sendo da Força Aérea,  o autocarro era muito utilizado pelo pessoal do Exército, principalmente por quem estava no QG e ia assistir ao cinema na base aérea [BA 12, Bissalanca]. O que foi várias vezes o meu caso.  receio de o usar não durou muito tempo.

O caso da piscina do QG   [, em Santa Luzia], numa sessão de cinema, foi uma consequência da estado de espírito dos militares. A piscina que podia ser utilizada, com condicionalismos, pelos sargentos,  era em algumas noites usada como cinema ao ar livre e foi numa desses sessões que o pânico se generalizou com a caixa de fósforos a arder. Uns diziam que foi uma brincadeira parva,  outros que foi um acidente a caixa começar a arder.

Como a malta tinha 20 e poucos anos,  em poucos tempo tanto o Café Ronda como a piscina voltaram à normalidade.

Ainda sobre o Café Ronda que eu conheci e frequentei, acrescento que  era um ponto de encontro de militares, do exército,  e paraquedistas, na sua grande naioria,  e em passagem de ida ou regresso à metrópole ou às respectivas unidades.

Mas destacava-se pelas dormidas tipo caserna,  onde fiquei umas noites em Novembro de 1972 a quando da minha vinda de férias a Portugal ao fim de 7 meses em Cabuca,  e por ser simultaneamente Casa de Câmbio. 

O dono cambiava a 110% o escudo da metrópole pelo "peso" da Guiné. No fim da comissão em maio de 1974 o câmbio já estava a 20%. Muitos militares usaram o estatuto e trocar em Lisboa, ali para o lado da Estefânia, a ela por ela. Eram os comerciantes que a troco da comissão  usavam os militares no negócio.

No fim da comissão com a entrega da guia de marcha,  recebiamos uma boa maquia de patacão que, no meu caso, usei uma parte para comprar bilhete na TAP, o restante cambiei em Lisboa.

Concluindo,  o Café Ronda não era um lugar muito aprazível em comparação com o Café Bento, batizado pelos militares como a 5ª REP onde, à sombra de árvores frondosas, passávamos algumas horas em tertúlia, bebendo enquanto nos engraxavam as  botas e os sapatos.

Noutro estilo, tínhamos o Pelicano, na orla marítima com ementa extensa e lugar obrigatório para jantar.


(ii) Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70]

Candeias: em 1969 e 1970, também em passagem para férias, lembro-me de ficar numa Pensão em frente das instalações da  Metereologia [, devia ser o Chez Toi, sito na Rua Eng Sá Carneiro , (***) ] , mas julgo não ter nenhum Café-Esplanada, só se o Café Ronda era afastado da casa da Pensão ou era noutro sítio. Não me lembro desse Café Ronda, ou então ainda não existia. [O Carlos Pinheiro não menciona o Café Ronda no seu roteiro de Bissau, pelo que não deveria existir no seu tempo, 1968/70. (**)]

A Pensão parecia uns adidos da tropa: camas da tropa, lençóis da tropa, falta de almofadas como na tropa e o dono também era um tropa. Parece que funcionava como se fosse em comissão de serviço e quando acabava havia o "trespasse" a outro tropa interessado que chegava.

Sobre o câmbio do escudos do BNU (pesos),  também funcionava os 10%, mil escudos do BdP custavam mil e cem do BNU. No avião TAP no regresso, no fim da comissão,  foram esturradas as últimas notas de mil do BNU em compras no avião e julgo que o comissário de bordo não fazia acertos de câmbio no preço dos produtos.

Sobre Cabuca, por lá passei várias vezes e foram Pelotões da minha CART 11 "Os Lacraus" que, além de segurança a colunas e de operações na vossa zona, montaram a segurança durante o período de tempo da construção dos vários pontões da estrada que ligava até à de Nova Lamego-Piche.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

(iii) João Candeias:

Valdemar.

Ao ler o teu comentário recordei - me que o dono  [do Café e Pensão Ronda ].era um militar de carreira, da marinha, nós milicianos dávamos-lhes outro nome. A espelunca e o recheio condizem, camas da tropa, os lençóis não recordo. Utilização era tipo cama quente e, como a malta preferia dormir na cidade, ia ficando e pagando.

Eu só fiquei dessa vez. Nas outras vezes que vim a Bissau,  fiquei na pensão no primeiro andar por cima da Casa das Ostras um pouco mais cara, sem ser luxo, mas nada tinha em comum. (****)

Um abraço, João Candeias 

________


(**) Vd. poste de 9 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18908: Estórias de Bissau (20): A cidade onde vivi 25 meses, em 1968/70: um roteiro (Carlos Pinheiro)... [Afinal o "Chez Toi" era a antiga casa de fados "Nazareno"...]

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21902: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS) (8): Cenas de um carnaval em Bissau

Edifício do STM em Bissau

1. Em mensagem do dia 5 de Fevereiro, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), fala-nos do Carnaval de 1970 em Bissau:


RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU

PEDAÇOS DA HISTÓRIA DA GUINÉ
 
8 - Cenas de um Carnaval em Bissau

Estávamos em 1970, o Carnaval estava à porta e, apesar da guerra, em Bissau sempre havia algumas comemorações desse período que antecedia, e ainda antecede, a Quaresma.

Em Bissau tudo era diferente e tinha sabor a saudades da santa terrinha, mas havia sempre foliões, dentro dos condicionalismos que se viviam.

No QG, mais propriamente na CCS, havia um jovem sempre bem disposto, sempre com uma graça na ponta da língua, mas afinal de contas teria as suas razões para não se sentir assim tão bem. Constava que teria vindo de Angola, “premiado” com algum castigo, e andaria por ali à espera que os eventuais problemas tivessem solução. Era o Jóia, como era conhecido em todo o lado.

Assim, o Jóia, que era mesmo uma Jóia no trato do dia a dia, nesse dia de Carnaval resolveu vestir-se à Fula, embrulhou-se nuns lençóis, e lá foi até à cidade brincar e confraternizar com os amigos que tinha e eram muitos.

Mas o Jóia, amigo do seu amigo, nunca desperdiçava uma cerveja, de preferência das bazucas, e lá foi correndo todos os pontos de interesse de Bissau, a começar pelo Santos,  logo à saída da porta de armas de Santa Luzia, desde o Império, passando pelo Benfica, desde a Solmar até ao Solar do Dez, ao Portugal e ao Internacional, ao Zé da Amura, ao Bento, até que chegou ao novel Pelicano, cheio que nem um ovo dada a novidade daquele novo estabelecimento de dois pisos e com belas vistas sobre a Avenida Marginal e Ponte Cais de Bissau.

Porém, nessa confusão de gente, o Jóia, terá dado um encosto a um camarada à civil, que não gostou da brincadeira e o terá mimoseado com alguns murros e o Jóia, naquela circunstância não deixou cair a sua honra de combatente pelo que desatou, rapidamente, parte dos lençóis respondendo com as suas mãos à dita pessoa à civil que terá ficado deitado no chão do café.

Entretanto o Jóia terá dado mais umas voltas pela cidade mas regressou ao Quartel General onde já tinha recado para no outro dia se apresentar ao Comandante. Era a vida.

E o Jóia lá foi no outro dia ouvir o Comandante que lhe terá perguntado se sabia quem era a pessoa a quem tinha dado um sova no dia anterior. Claro que o Jóia não sabia,  ao que o Comandante lhe disse que o outro camarada era um Alferes paraquedista. Então aí o Jóia não se calou e terá respondido ao Comandante: 

- Não me diga,  meu Comandante. Se aquele era um Alferes paraquedista, eu vou lá acima e derreto o Batalhão todo.

O Comandante já teria falado com o médico da Companhia e o Jóia foi encaminhada para a Psiquiatria do HM 241. Chegou lá e a primeira coisa que terá feito, foi dar um murro no tampo de vidro da secretária do Médico, vidro esse se partiu em mil bocados.

Resumindo, passados poucos dias, o Jóia tinha regressado à Metrópole e corria por lá a notícia que os processos tinham sido arquivados e o Jóia passado à vida civil ainda durante a Quaresma.

Apesar de tudo, nesse ano o Carnaval foi a salvação do Jóia que andava por ali esquecido.

Carlos Pinheiro

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2018 > Guiné 63/74 - P18838: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS) (7): Recordações do STM/CTIG

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21401: Memória dos lugares (413): O meu Seiko 5 (five), comprado na Casa Costa Pinheiro, parou ao fim de 50 anos... (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op Mensagens)



1. Mensagem do nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70) com data de 27 de Setembro de 2020:

O meu Seiko 5 (five) parou ao fim se 50 anos...

Comprei-o na Guiné, na Casa Costa Pinheiro em Bissau, onde trabalhava no escritório nas minhas horas vagas.
Já não me lembro quanto dei por ele mas não era barato, mas era e foi muito bom durante estes cinquenta anos.
Foi a peça que lá comprei que durou mais anos.

Comprei lá também um transístor SONY que não sei quanto tempo durou porque um camarada apropriou-se dele, enquanto estava a tomar o último banho da Guiné, poucas horas antes de seguir para o cais de regresso a casa depois de 25 meses e 10 dias de Guiné.

Também comprei uma máquina fotográfica FUJICA que durou ainda bastantes anos mas certamente por deficiência de uso também um dia parou mesmo de tirar retratos.

Mas o Seiko 5 deixou-me hoje ao fim de tantos anos.

A Casa Costa Pinheiro era talvez a maior casa comercial logo a seguir à Casa Gouveia da CUF.
Importava de tudo e tudo vendia em quantidades impressionantes.

Eram os automóveis Toyota Corolla, os Crown, as carrinhas Hi-Lux e as Staut e acima de tudo os camiões Toyota que por cá nunca apareceram.
Eram os relógios Seiko como facilmente do texto se pode deduzir bem como todos o material SONY, desde os pequenos transístores até aos mais potentes gravadores profissionais, de fita como era uso naqueles tempos e claro, as máquinas fotográficas FUJICA e respectivos acessórios e os indispensáveis rolos.
Eram as motas e as motorizadas Suzuky que nessa altura começaram a superar a Honda.
Era o material de som NIVICO, mas também o Garrard, para grandes salões e para profissionais.
Eram os produtos de beleza da Max Factor para as senhoras... a Colgate Palmolive que toda a gente usava nos quartéis, excepto no nas operações no mato claro, as esferográficas BIC que tantos milhares de aerogramas encheram de noticias, os tapetes da Issing Trading de Itália, que a malta comprava como recordação, eram os discos da Ansónia dos EUA, com os meregues a toda a prova, as porcelanas da Prago Export da Checoslováquia depois de ter também importado, em anos anteriores, os automóveis Skoda.

Enfim. Era uma casa muito grande se bem que não dava muito nas vistas, mas facturava muito bem.
Tantos milhares de letras ali preenchi referentes às vendas a prestações, especialmente dos carros e das motorizadas e motas.
As letras ficavam em carteira e os juros ficavam em casa sem intervenção do BNU que na altura era o único Banco da Guiné.

Nas madrugadas em que o Boeing da TAP ia a Bissau e voltava para Lisboa, era o dia e a noite toda a fazer-se correio para os mais variados fornecedores por esse mundo fora e para as mais variadas companhias de seguros porque parte importante das mercadorias perdia-se na viagem entre Lisboa e Bissau, sabe-se lá porquê. Mas as Companhias, depois do exame prévio na Alfandega e com a confirmação do Agente das seguradoras, garantiam a cobertura dos prejuízos.

E tudo isto para dizer que o meu Seiko 5 parou, ao fim destes 50 anos de vida e de trabalho sem parar... até que parou.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 de setembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21386: Memória dos lugares (412): Ponta de Jabadá, na região de Quínara, sentinela do rio Geba, reconquistada ao PAIGC em 29 de janeiro de 1965

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21225: Casos: a verdade sobre... (9): Álcool & drogas na guerra colonial: de consumidores a traficantes de canábis... Seleção de comentários ao artigo do Público, de 2/8/2020 - Parte I


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Fevereiro de 1967 > Cristal ou Sagres ? O "lobby" da cerveja na guerra... N a foto, o gen Arnaldo Schulz ao lado do piloto do helicóptero AL II... No banco de trás, duas caixas de cerveja, Sagres e Cristal... À direita, o fur mil Viegas, do Pel Caç Nat 54.

Comentário (humorístico) (*):  "Como se pode ver por esta foto, na Guiné, durante a guerra colonial, toda a gente se embebedava, do general ao soldado... E os que faziam a guerra eram os sodlados de 2ª linha, os guineenses, e nomeadamente os fulas, que, sendo muçulmanos, não bebiam, mas passavm todo o tempo a mascar cola...


Que fique bem claro para a a História: a haver atrocidades, só a eles podem ser imputadas...

A culpa foi toda da Intendência Militar que democratizou o uso de substâncias psicoativas: eram tão baratas, que eram acessíveis mesmo ao soldadp básico mais mal pago...

Não havendo 'liamba' na Guiné, o segredo da excessiva duração daquela guerra (que alguns queriam que fosse como a guerra dos 100 anos), tem um segredo: a "água de Lisboa, manga di sabe" e a "noz de cola" que dava um tusa do caraças: era como as pilhas Duracell... Podia faltar tudo, de antiaéreas a camisas de Vénus, menos a água de Lisboa e a noz de cola".
 

Foto (e legenda): © José António Viegas (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Cacheu > São Domingos > CCS/BCAÇ 1933 > Novembro de 1968 > "Água de Lisboa" (, ou melhor, "vinho do Cartaxo"...). O alf mil SAM Virgílio Teixeira (o segundo a contar da esquerda), a ajudar a descarregar garrafões de vinho, alguns dos quais têm o rótulo do Cartaxo (presumivelmente, da Adega Cooperativa do Cartaxo).


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados (Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Caramadas da Guiné). 

1. Seleção de comentários ao poste P21222 (*) - Parte I (**)


(i) Diconário Priberam da Língua Portuguesa:

ca·ná·bis
(latim cannabis, -is, cânhamo)
nome feminino de dois números

1. [Botânica] Designação dada a várias plantas do género Cannabis, da família das moráceas, em especial a Cannabis sativa, de folhas palmadas, cultivada pelo seu caule, que fornece uma excelente fibra têxtil, e pelas suas sementes, que dão um óleo; as flores e folhas são também usadas como droga entorpecente.= CÂNHAMO

2. Conjunto de folhas secas de cânhamo-indiano preparadas para mascar ou fumar. = MARIJUANA

3. Droga feita da resina das inflorescências dessa planta que produz sonolência ou outras alterações do sistema nervoso central. = HAXIXE

[ Palavras relacionadas: haxixe, maconha, cânabis, cangonha, marijuana, cânhamo-indiano, pango, erva, liamba,  diamba, riamba, soruma...

"canábis", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/can%C3%A1bis [consultado em 05-08-2020].
______________

co·la |ó|
(latim científico Cola, do quicongo nkola)
nome feminino

1. [Botânica] Designação comum a várias plantas do género Cola, da família das esterculiáceas. = COLEIRA

2. [Botânica] Fruto da coleira, cujas sementes são ricas em alcalóides estimulantes, como a cafeína. = NOZ-DE-COLA

3. Bebida refrigerante, doce, gaseificada e de cor acastanhada, preparada com uma substância extraída desse fruto ou com aromas sintéticos (ex.: pediu uma cola com limão).

"cola", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/cola [consultado em 04-08-2020].


(ii) Carlos Pinheiro:

(...) O  trabalho que a seguir partilho [, Cannabis e álcool: as companheiras esquecidas dos combatentes da Guerra Colonial, jornal "Público",  domingo, 2 de agosto de 2020], e que, possivelmente muitos de vós já tereis visto, feito por um fulano para a sua tese de doutoramento, depois de ter entrevistado 200 ex-combatentes, incomodou-me sobejamente porque – posso estar a ver mal – o senhor chegou aquelas conclusões depois de ter falado com uma inexpressiva percentagem daquelas muitas centenas de milhares de jovens que durante 14 anos deram o corpo ao manifesto. (...)

(iii) António J. Pereira da Costa:

(...) Cá estamos perante um doutorado que fez um estudo e tirou conclusões que nós não subscrevemos. Os militares portugueses não sabiam o que era "canábis", donde se extraía e como se preparava. Admito, teremos sempre que admitir, que alguns a conhecessem. Todavia, tudo se passou há 50 anos (mais ou menos) e a popularização da droga não tem essa idade.

O consumo de bebidas alcoólicas será diferente. O povo português consumia vinhos e aguardentes correntes, para além de "bebidas brancas", mais elaboradas. É provável que uma grande parte tenha tenha "descoberto" o whisky "num TO duma qualquer PU", pois na metrópole era caro e lá, com 100 paus, já se tinha uma garrafa...

Não creio que os soldados se embebedassem para ter coragem ou escorraçar a morte. Também nunca vi ninguém que recorresse ao álcool para matar o tédio ou reduzir a ansiedade em vésperas de uma acção.

Parece-me um trabalho bombástico e a crer desfazer tabus. Está na moda. A amostra apresentada será significativa? Em que contexto? O consumo de drogas na guerra, durante uma boa parte da sua duração,  não era praticado por totalmente desconhecido.

É deste tipo de "estudiosos" que eu tenho medo. Têm poder de divulgação e o que disserem, mesmo que pouco correcto,  é que vai valer para o futuro. A opinião de quem lá esteve, como não é cientista, não tem valor. (...)

(iv) Albertino Ferreira:

(...) Li o artigo, pelo menos diz uma verdade, na Guiné não houve consumo de cannabis, só de álcool, mas o clima também ajudava. Quanto à noz de cola,  só me apercebi que a usavam os soldados nativos integrantes das milícias, especialmente na zona de Bigene. (...)

(v) Alberto Branquinho:

(...) Pois é, "a ciência é com os cientistas"... Mas a "ciência" tem que ser a verdade das coisas e, principalmente, na sociologia e "arredores".

Nas minhas memórias não registei drogas nem das leves. Andei por quase 2/3 da Guiné e não cheirei nada. "Cola" sim, vi muita, mas consumida por milícias, principalmente e também soldados nativos. E álcool, muito!!!

De Bissau, não sei nada. Talvez consumissem para matar o "tédio" da ausência de guerra. (...)

(vi) António J. Perereira da Costa:

(...) Efectivamente a cola era muito consumida, mas pelo pessoal da milícia (civis armados) e recrutamento local. Era um hábito daquela sociedade que as autoridades portuguesas nunca tentaram contrariar. Lembro-me de que o chefe da tabanca de Cacine - o velho Aliu - andava com umas nosezitas embrulhadas num paninho muito branco e fechado com nós.
Mas, atenção, a cola era um excitante, um estimulante que não servia "para combater o tédio", tornava o combatente excitado, agressivo e mais "apto" para o combate.

Resultados? Nunca dei por isso. Não me consta que os "colados" tenham, alguma vez, desarvorado em direcção ao IN, estimulados pela droga... Também nunca dei por que tivessem maior resistência física.
E vocês? Alguém se recorda de um Grupo de Combate  devidamente "colado" a ter mais êxito que os não "colados"? (...)

(vii) Tabanca Grande Luís Graça:

(...) Esstou ler a entrevista do "Público" agora mesmo... São 8 (oito!!!) páginas dedicadas aos combatentes da guerra colonial e aos seus problemas psicossociais... É obra!...Ainda há gente que se interessa por este "lixo da história"...

Mas não se tirem conclusões apressadas sobre os comportamentos dos militares portugueses nos TO da Guiné, Angola e Moçambique...O próprio entrevistado previne, contra o enviesamento de umas algumas perguntas da jornalista: 'Foquei-me nos consumidores e tentei perceber o significado do consumo [, nomeadamente da "cannabis", que não havia na Guiné...] e todas as suas circunstâncias, mas deixando  sempre claro que não queria generalizar, não queria dizer que todos consumiram' " (...)

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21222: Recortes de imprensa (112): entrevista ao antropólogo Vasco Gil Calado sobre droga e álcool na guerra colonial, "Público", 2 de agosto de 2020 (Carlos Pinheiro)


Recorte da edição do Público, 2 de agosto de 2020: Texto de Patrícia Carvalho e fotografia de Daniel Rocha. O artigo só está disponível para assinantes. (Excerto reproduzido com a devida vénia...)  


1. Mensagem do nosso camarada e amigo de Torres Novas, Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70)

Date: segunda, 3/08/2020 à(s) 18:23

Subject:  Artigo no jornal "Público" sobre álcool e droga na guerra colonail

Caros companheiros e amigos

Peço imensa desculpa de vos estar a incomodar, mas o trabalho que abaixo partilho, Cannabis e álcool: as companheiras esquecidas dos combatentes da Guerra Colonial, e que, possivelmente muitos de vós já tereis visto, feito por um fulano para a sua tese de doutoramento, depois de ter entrevistado 200 ex-combatentes, incomodou-me sobejamente porque – posso estar a ver mal – o senhor chegou aquelas conclusões depois de ter falado com uma inexpressiva percentagem daquelas muitas centenas de milhares de jovens que durante 14 anos deram o corpo ao manifesto.

Ele, segundo diz, nunca se tinha interessado pela Guerra Colonial, e só agora, não sei porquê, realizou o tal trabalho e chegou a estas "esplêndidas" conclusões.

Não me quero alongar mais, mas permito-me perguntar se este senhor não mereceria que lhe fosse dirigida uma reacção que desmontasse o que o senhor afirma doutoralmente.

Já me têm feito confusão algumas teses de doutoramento, mas esta suplantou todas as medidas.

Se algum ou alguns dos meus amigos se quiserem dar ao trabalho de alinhavar algumas palavras acerca do assunto, fico grato.

Cá fico à espera.

Um grande abraço, virtual

Carlos Pinheiro

 PS - Vd. artigo no jornal Público de 2 do corrente:

2.  Nota do editor LG:

Obrigado, Carlos pela tua oportuna chamada de atenção. Mas é preciso ir  às fontes, ler em primeira mão o autor, para depois se ter uma opinião fundamentada.  O tema é delicado mas não é tabu. Temos, no nosso blogue,  30 referências sobre alcool, mas apenas duas sobre drogas... 

Percebo, pelo título do artigo, que possa desencadear reações emotivas (, já me chegaram ecos de Trás-os-Montes...), porque mexe com a nossa autoestima e pode ferir a honra da generalidade dos combatentes. Mas não vamos provocar aqui uma "caça às bruxas"... Há 16 anos que falamos, aqui, no nosso blogue, de tudo ou quase tudo, com frontalidade e verdade. Mas o nosso blogue não tem por missão produzir "trabalho científico", apenas partilhar "memórias"... A ciência é com os cientistas,,,

Começo por dizer que não li a entrevista do "Público", nem o livro, mas vou consultar a tese de doutoramento, do Vasco Gil Calado,  em antropologia, pelo ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, defendida em provas públicas em 17/9/2019.  Temos que separar o artigo de jornal (e os títulos de caixa alta dos jornais provocam muitas vezes leituras enviesadas) e o trabalho académico.

Este é um trabalho com arbitragem científica. E terá por certo méritos e desméritos. Não há trabalhos científicos perfeitos.  E é bom desde já chamar a atenção que não é um trabalho de  investigação (quantitativa) em epidemiologia mas um trabalho de investigação (qualitativa) em antropologia. Portanto, é preciso ter cuidado com as eventuais generalizações abusivas.

Este trabalho académico pode ser consultada no Repositório desta instituição ["O Repositório Institucional do Iscte tem como objetivo preservar, divulgar e dar acesso à produção intelectual do Iscte em formato digital. Na medida em que reúne o conjunto de publicações académicas e científicas do Iscte, contribui também para o aumento da visibilidade e impacto do trabalho de investigação a nível nacional e internacional."]

Referêmcia bibliográfica:

CALADO, Vasco Gil Ferreira - Drogas em combate: Usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa [Em linha]. Lisboa: ISCTE-IUL, 2018. Tese de doutoramento. [Consult. 3 de agosto de 2020 ] Disponível em www: http://hdl.handle.net/10071/18841. 

O acesso é restrito, por vontade expressa do autor (, por razões que desconheço, talvez relacionadas com a proteção das fontes e a confidencialidade da informação...),  podendo ser lhe pedida uma cópia em formato digital. Os trabalhos académicos, produzidos no âmbito das universidades públicas, devem estar ( e em geral estão)  em "open acesso", isto é, abertos à consulta pública.

Aqui fica o resumo da tese, o que é que está disponível "on line" no repositório, a par das palavras-chave: Antropologia cultural | Guerra colonial | Colonialismo português | Abuso de drogas | Memória coletiva | Usos e costumes | Portugal.

A Guerra Colonial Portuguesa foi um conflito de guerrilha marcado pelo desgaste físico e psicológico, tendo decorrido a milhares de quilómetros da «metrópole», em territórios inóspitos e em muito diferentes do que os jovens portugueses conheciam. 

Entre as novas experiências que tiveram lugar durante a comissão militar em África conta-se a descoberta da cannabis, uma planta de consumo tradicional em Angola e Moçambique, e a adoção de padrões de consumo intensivo de bebidas alcoólicas que a logística militar distribuía pelos quartéis. 

De acordo com as narrativas dos ex-combatentes, os usos de cannabis e álcool desenvolvidos pelos militares portugueses estão intrinsecamente relacionados com as circunstâncias do conflito, com as normas sociais e com as motivações de consumo. Na guerra, os militares portugueses recorriam às duas drogas como forma de ultrapassar as dificuldades, vencer o medo e lidar com uma realidade difícil de suportar, fosse pela omnipresença da violência, do tédio ou da tensão emocional. 

Embora a cannabis fosse uma planta que o olhar europeu historicamente associou à desordem e ao comportamento bárbaro, a partir do final da década de 60 do século XX os militares portugueses deram-lhe um uso diferente, consumindo-a de forma terapêutica, sem que isso desse aso a castigos disciplinares. No entanto, ao mesmo tempo, na «metrópole» o poder político iniciava uma «guerra às drogas», criminalizando o uso de cannabis e de outras substâncias psicoativas e fazendo da droga um problema social, associando-a à contestação social. 

Tudo isto permite perceber que a droga é um constructo social e um objeto eminentemente político, pelo que nada no uso de drogas é um facto adquirido ou algo que decorra exclusivamente das propriedades farmacológicas de cada uma, antes é condicionado histórica e socialmente, nomeadamente em função do contexto político. [Fonte: http://hdl.handle.net/10071/18841]

Há também um artigo do mesmo autor,  disponível em texto integral, "on line", na revista "Etnográfica" [Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia], e que já li em tempos (**).

Vasco Gil Calado, « As drogas em combate: usos e significados das substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa », Etnográfica [Online], vol. 20 (3) | 2016, Online desde 27 novembro 2016, consultado em 04 agosto 2020. URL : http://journals.openedition.org/etnografica/4628 ; DOI : https://doi.org/10.4000/etnografica.4628

Resumo: Apresentam-se as principais questões suscitadas pelo trabalho em curso acerca do uso de substâncias psicoativas na Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974). São identificados alguns aspetos-chave que emergem das narrativas dos ex-combatentes acerca da sua experiência de guerra e que contextualizam um conjunto de práticas, entre elas o uso de drogas. Confirma-se o abuso de álcool e o uso de canábis entre os militares das forças armadas portuguesas envolvidas no conflito, numa altura em que em Portugal surgiam as primeiras iniciativas de combate às drogas. Tanto o consumo de bebidas alcoólicas como de outras drogas pode ser entendido como uma forma de lidar com a ansiedade e a violência do quotidiano.

Em tempos, o Gil Vasco Calado pediu-nos ajuda para  este trabalho académico (**). Já não me lembro se me chegou a entrevistar, nem tenho a certeza de o conhecer pessoalmente,  O poste P16807 teve 12 comentários.
___________


(**) Vd. poste de 6 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16807: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (39): pedido de ajuda para tese de doutoramento em Antropologia, pelo ISCTE-IUL, sob o tema do uso de álcool e drogas na guerra colonial (Vasco Gil Calado)

(...) Chamo-me Vasco Gil Calado, antropólogo e técnico superior do SICAD [Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências]. 

Estou a fazer o doutoramento em Antropologia, no ISCTE, sobre o tema do uso de álcool e drogas na guerra colonial. Foi o Renato Monteiro quem sugeriu que o contactasse, na condição de grande especialista e dinamizador de um blog essencial sobre a guerra colonial. No âmbito académico da tese, gostava de o entrevistar, de forma anónima e confidencial, naturalmente.

O meu orientador é o Prof. Francisco Oneto, do departamento de Antropologia do ISCTE.
Nós cruzamo-nos no ISC-Sul, numa pós-graduação de Sociologia da Saúde, em que deu um módulo sobre Educação para a Saúde, se bem me lembro, para aí em 1999 ou algo do género. (...)

domingo, 26 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21199: Da Suécia com saudade (78): “O que teria sido se....?” ... A propósito da Bissau dos anos 60/70, recordados por Carlos Pinheiro... (José Belo)


Guiné > Bissau > s/d > "Monumento ao Esforço da Raça. Praça do Império"... Bilhete postal, nº 109, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa")

Colecção: Agostinho Gaspar (2010).  Digitalização (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



1. Mensagem de José Belo [. régulo da Tabanca da Lapónia]

Date: sábado, 18/07/2020 à(s) 13:56
Subject: "O que teria sido se....?"

Um interessante texto sobre Bissau, escrito por Carlos Pinheiro e há anos publicado na Tabanca Grande (*), foi agora reproduzido na Tabanca do Centro. (**)

Interessante por conseguir recriar  um certo ambiente,  e mesmo o "ar" que se respirava na Bissau daquela época. [Vd. também a nossa série, "Estórias de Bissau", de que já se publicaram uma vintena de postes, LG]

José Belo, ex-alf mil,. CCAÇ 2381 (Ingoré,
Buba. Aldeia Formosa, Mampaté e Empada,
1968/70); autor da série "Da Suécia
com Saudadr"
Tendo feito parte de uma Companhia Independente de Atiradores [, a CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70];  que passou toda a sua comissão de serviço afastada dos reluzentes centros cosmopolitas , fossem eles a Capital ou outras grandes cidades guineenses,confesso recordar Bissau como uma cidadezinha de Avenida única (esfaltada) ao fim da qual existia um arremesso de cais muito apropriado para navios de pequeno calado e...pouco mais.

Esta aparentemente tão falaciosa recordação é agora completada pelo texto publicado,nas  referências a meia-dúzia de comerciantes "terceiro-mundista", somadas a alguns "restaurantes" que mais não eram do que o que eram, e a uns "night-clubes" capazes de fazer sonhar o aldeão mais empedernido do nosso querido Portugal.

Depois de lidos todos os detalhes apresentados na descrição fica-se quase, quase,com a ideia de que a tão próxima cidade senegalesa de Dakar mais não seria que subúrbio pobre desta pujança social,comercial,e não menos ,intelectual .

O que será perfeitamente justificável. Os colonialistas franceses chegaram a esta Costa africana..... muito depois de nós!

Não será portanto de estranhar que um Senhor  Comentador, sempre atento a todas as oportunidades de "reeducar" politicamente a História e os cidadãos (então muito em uso pelo Oriente,e não menos por alguns dos pseudo revolucionários portugueses), tivesse de imediato colocado a seguinte pergunta: 

"O que teria sido se os malfadados colonialistas lá tivessem ficado mais umas dezenas de anos?" (O termo "malfadados" é obviamente usado com semântica contraditória)

"O que teria sido se....?" ,pergunta o mesmo comentador, se nos tivessem oferecido a oportunidade de mais uma dúzia de anos coloniais.

Se nos tivessem oferecido a oportunidade de conseguirmos (ou sequer tentássemos) fazer nessa dúzia de anos o que não realizamos em seiscentos anos de colonialismo na Guiné?

"O que teria sido se...?" a herança cultural e social que por lá ficou tivesse sido antes em educação de profissionais especializados em Administração, Medicina, Engenharia, Economia, Indústria, Agricultura, Pesca, etc. (E lá volta o Senegal,Dakar, tão próximo e tão distante em tudo o acima referido.)

Os neocolonialismos tão sonhados por alguns dos nossos patrioteiros, ao mesmo tempo que convenientemente esquecem que para tal se torna necessário economias robustas e forças militares significativas?!

A França em relação à África Ocidental,e outros arrivistas mais modernos sem passados coloniais importantes são exemplos interessantes.

"O que teria sido se...?" não tivéssemos sido obrigados pela guerrilha a nos reagrupar estrategicamente, em processo cada vez mais acelerado, abandonando Madina do Boé, Gandembel, Guileje, e outros Destacamentos, menores mas não menos importantes estrategicamente .

"O que teria sido se...?" o mesmo iluminismo-saloio dos geniais políticos, que levou à perda de Goa, se viesse a repetir na Guiné ?!. Marcelo Caetano referiu essa possibilidade. Os Chefes Militares da época também o fizeram.

"O que teria sido se...?"

Com tal tipo de pergunta cai-se no que em meios jurídicos norte-americanos se denomina "infantilidade analítica".

Pergunta que,  aplicada a toda e qualquer situação, seja ela pessoal ou coletiva (, histórica no exemplo referido), é verdadeiro exercício de retórica que pode nos levar a qualquer resposta,ao mesmo tempo que não nos leva a resultado algum.

Uma forma de infinito....caseiro.

Um abraço do J. Belo (***)

________________


(**) Vd. Tabana do Centro > quarta-feira, 15 de julho de 2020 > P1241: Já passaram 50 anoss... > A cidade de Bissau em  ‘68/’70, por Carlos Pinheiro

(***) Último poste da série > 18 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21179: Da Suécia com saudade (77): Os Vikings, os capacetes... e os cornos (, que só aparecem em 1820 e que hoje são de plástico, "made in China") (José Belo)

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21044: Escritos do António Lúcio Vieira (6): Rua da memória

António Lúcio Vieira (1943-2020)
António Lúcio Vieira (1943-2020), foi Fur Mil Cav na CCAV 788 / BCAV 790. 
Natural de Alcanena; viveu em Torres Novas. 
Jornalista, poeta, dramaturgo, encenador; autor, entre outros, do livro "25 poemas de dores e amores", vencedor da primeira edição do Prémio Literário Médio Tejo Edições, 2017. 
Faleceu ontem.

Deixamos este poema de sua autoria que nos foi enviado pelo seu amigo e nosso camarada Carlos Pinheiro.


"rua da memória"

não eram ainda os dias iluminados
da quinta das altas faias
dos mistérios das grutas
nos Olhos d’Água
dos poeirentos trilhos de aventura
nas terras dos Arneiros

o meu mundo era então apenas
nos tímidos dias de acordar
a singular rua onde nasci
e onde o sossego das horas
ecoava entorpecente pelas tardes

o meu pai montava altivo
uma Norton vermelha
de másculo motor
em cujo dorso voei aventuras
e de onde se libertavam odores
que ainda não esqueci

ao fim da tarde escancarava-se
rangente a larga porta da rua
com postigo de vidraças
e a moto vermelha entrava

levada pela mão cruzava a sala grande
seguia pelo corredor
até se deter em discreto canto
na imensa sala da lareira
junto à varanda das flores
por onde se filtrava a luz da tarde

não havia outro local onde guardá-la
e aquele espaço de forno e lareira
chão de soalho e cimento
era afinal quase meia casa

na salinha de costura
a avó Antónia suspendia o passajar
que a hora do jantar era já breve
e deslizava até à rústica bancada
junto ao forno onde no Natal
nasciam as negras broas com sabor a festas

lá fora a pequena rua
calçada de seixo castanho
ia então escurecendo
quando os restos de luz desmaiada
escorriam agonizantes
no alpendre da ti’Ludovina

um pouco abaixo
a noite chegava mais tarde
quando o sol se derramava
por detrás da vivenda com jardim
debruçada sobre os longos degraus

pequena quase envergonhada e discreta
a minha casa escondia-se no patamar
entre os dois lances da larga escadaria
e toda a encantada rua era calçada
em seixos que brilhavam com a chuva
arredondados polidos e castanhos

subia-se por ela ao Outeiro
e por ali se descia rumo à ladeira da fonte
ou à praça à Parreira à Varandinha
e ao miradouro à boca das Ladeiras

ao fundo dos degraus junto à padaria
e frente ao ladino alfaiate
no pequeno e fundo rés-do-chão
da “menina” Henriqueta
longe ainda dos tempos da escola
rasguei deslumbrado horizontes
e parti à descoberta das primeiras letras
que não mais me dariam tréguas

numa estreita serventia sem saída
logo acima dos degraus de cima
recolhia o meu avô António em acanhado e escuro palheiro
com cheiro a esterco a fava seca e a feno
a burra branca malhada que
resignada e pachorrenta me levava à horta e à fazenda
para as bandas do Peral

nas tardes de colher o sol
e soltar no regato barcos de papel
precursores das mil viagens
de um incurável vadiar

era porém pelos santos de verão
que a rua despertava e gritava vida
a Inês juntava braçados de alecrim
no cimo da rua incandescia-se a fogueira
onde se queimavam risos e alcachofras

noite dentro pulava-se o braseiro
a gaita de beiços do Fura-Palha
enchia de modas aquele recanto do Outeiro
vinha gente de outras ruas
debicar broas e fritos
e beber os prazeres da noite

espargiam-se os corpos
de fumos e de aromas
dos arbustos do campo
e a música e o perfume silvestre
ungiam a rua invadiam as casas
e seguiam pelas travessas tortuosas
ao encontro das sombras nas esquinas

já só as paredes recordam
a velha escola da menina ”Requeta”
e os fatos por medida do mestre Louro

mudaram-se as pessoas
secou a hera na parede do Polaco
e ninguém por lá agora lembra
a burra malhada do avô António

no patamar de seixo
as paredes do número onze
que em distante Janeiro me viram chegar
tombaram vencidas
num monte de escombros
restou-lhe de pé um rosto amarelo
e uma outra porta de postigos
debruada com vasos de flores

do saudoso tempo
partiram os rostos e as vozes
e daquele povo que a rua acolheu
já ninguém lá mora
sem dó levaram os seixos
brilhantes em dias de chuva
e vieram automóveis
violar a castidade da minha rua

é assim
tudo envelhece e se transforma
olham-se agora outros rostos
e até as ruas como a minha
sofrem incúrias e vexames
que as ruas têm alma e corpo
e adoecem e morrem
quando os homens querem

a minha rua de brincar
que o menino infante sonhava assim para sempre
não é agora mais que um espaço
maculado e raso de saudades
o resto de um passado
do pequeno sonhador
que bem cedo perdeu a inocência

a minha Rua da Cova
bem podia chamar-se agora
sei lá rua do Berço ou rua dos Sonhos
da Utopia da Saudade talvez da Inocência
ou apenas Rua da Memória

António Lúcio Vieira
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20405: Escritos do António Lúcio Vieira (5): Alvorar

Guiné 61/74 - P21042: In Memoriam (365): António Lúcio Vieira (1943-2020), ex-Fur Mil Cav da CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67) (Carlos Pinheiro)

IN MEMORIAM

António Lúcio Coutinho Vieira (1943-2020)
ex-Fur Mil Cav da CCAV 788/BCAV 790 
Bula e Ingoré, 1965/67


1. Em mensagem de hoje, 5 de Junho de 2020, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), traz-nos a triste notícia do falecimento do António Lúcio Vieira, membro da Tabanca Grande desde 2 de Agosto de 2019. [Tem oito referências no nosso blogue.]

Faleceu ontem, 04 de Junho de 2020, o nosso Camarigo e Grã-Tabanqueiro António Lúcio Coutinho Vieira. 

Foi para mim um dia muito difícil e não tive condições para alinhavar umas palavras em sua homenagem. Tenho imensos trabalhos que ele ao longo dos anos foi partilhando comigo, sendo que muitos deles são inéditos e nunca publicados. Apesar do dia ser triste, até porque não se sabe ainda quando é o funeral e em que condições, vasculhando os seus trabalhos, encontrei o único que ele escreveu sobre a Guiné, mas em conto que um dia terá compilado para aliviar os fígados e as preocupações da vida de um combatente. 
É um conto, anedótico, mas é interessante até porque revela mais uma vez a sua forma correcta de escrever bem. 

Se o Miguel ou o Carlos Vinhal, ou os dois, entenderem por bem publicar este conto em homenagem à memória do nosso amigo, acho que fazem uma boa acção. Se entenderem de outra forma, também compreenderei. Mas se assim for, envio, em alternativa, um poema sobre a sua, e minha, terra Alcanena.

********************

António Lúcio Vieira, síntese curricular, por Américo Brito

António Lúcio Coutinho Vieira
Poeta, Dramaturgo, Encenador, Investigador e Jornalista

Após os estudos académicos concluiu, anos mais tarde, um curso intensivo no Centro de Estudos Psicotécnicos, em Lisboa e, posteriormente, um outro de Relações Públicas.
Foi responsável, ao longo de treze anos, pelo departamento de Comunicação e Relações Públicas do CEP 4 ( ex-Rodoviária Nacional ).

Em paralelo com as funções profissionais, das quais nunca se afastou, desenvolveu, ao longo dos anos, uma vasta actividade, nas áreas da cultura e da comunicação, principalmente nos sectores do Teatro, do Jornalismo, do Audiovisual e da Rádio.
Ocupou o cargo de Vice-Presidente do Cineclube de Torres Novas, o de director-encenador no Centro de Juventude e, posteriormente, na Casa de Cultura da cidade, ambos na área do Teatro.
Fundou e dirigiu o Grupo de Jograis da USTN, o Grupo Cénico Claras, o TET-Teatro Experimental Torrejano e o Teatro Estúdio, nos quais, ao longo de vários anos, encenou textos de autores portugueses e estrangeiros, em cuja lista se incluem, para além do próprio autor, entre outros os nomes de Gil Vicente, Miguel Torga, Luís-Francisco Rebello, Carlos Selvagem, Jaime Salazar Sampaio, Luís de Sttau-Monteiro, Sófocles, Molière, Marivaux.

Das várias montagens que assinou, algumas em obras de sua autoria, destacam-se a estreia universal da farsa de Jerónimo Ribeiro, Auto do Físico (Séc. XVI), uma arrojada versão da Antígona, de Sófocles e a célebre farsa de Luís de Sttau Monteiro, "A Guerra Santa", que haveria de marcar politicamente, em Portugal, o Verão de 1977 e a farsa trágica, "Dulcinea ou a Última Aventura de D. Quixote", de Carlos Selvagem.
Adaptou obras teatrais, clássicas e contemporâneas e é autor de vários originais de teatro, alguns para o público infanto-juvenil.

Iniciou, na SPA-Sociedade Portuguesa de Autores, as 1ªs. Jornadas de Interpretação Teatral, onde pontuaram actores como Rogério Paulo e Canto e Castro, entre outros. A sua peça "Aldeiabrava" – 2.º lugar "exaequo", no concurso nacional promovido pela ATADT ( 1967 ) - viria a ser escolhida pela SPA, para representar o teatro português, numa mostra de livros portugueses em Moscovo.

Ao longo dos anos, vários títulos haviam de integrar a lista de obras dramatúrgicas do autor: "A Flor Mágica do Sábio Constelação" e "A Ilha das Maravilhas" – ambas destinadas ao público infanto-juvenil -, "O Vértice", "Aldeiabrava" (com prefácio de Luíz-Francisco Rebello). Ou a "Odisseia", "A 7.ª Guerra Mundial", "SOS - Sistema Optimizado de Saúde", ou o monólogo "Eu, Sofredor me Confesso", são alguns desses títulos.
Destinado a estudantes do ensino secundário surgiu, recentemente, uma colectânea de curtas peças, sob o título genérico de “Pequeno Teatro Académico”.
No prefácio à sua peça "Aldeiabrava", o então presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, teatrólogo e dramaturgo, Luiz-Francisco Rebello, amigo pessoal do autor, compara essa sua obra, nos aspectos temático e de conteúdo, a "O Exército na Cidade", de Jules Romains, a "Numancia", de Cervantes e a "Fuenteovejuna", de Lope de Vega.

É autor de vasto número de letras de canções e fados, principalmente de parceria com Paco Bandeira e com o maestro António Gavino e de vários temas da banda sonora da telenovela "Filhos do Vento" (RTP-1997). Para além de Paco Bandeira, gravaram igualmente os seus poemas, António Mourão, Vasco Rafael, Margarida Bessa, Maria Amélia Proença, os solistas das Orquestras Típicas, Scalabitana e de Rio Maior, entre outros.

No prefácio que dedicou ao seu livro de poemas "Re Cantos", outro velho amigo do autor, Pedro Barroso, deixa escrito que, lendo-se a sua poesia “sentimos o fulgor de uma enorme explosão de beleza pessoal; passa por ali o génio dos grandes” (...) “este livro fica aí para ler-se toda a vida como consultor e conselheiro. Como terapeuta das horas e breviário dos sentidos (...)”.

Já o Prof. António Matias Coelho, presidente da Associação Casa-Memória de Camões, em Constância e membro do júri que elegeria como vencedora a obra “25 Poemas de Dores e Amores”, diria a propósito deste seu último livro: “(…) Senti que lia um grande poeta. Esta é da melhor poesia que já li (…)”

Foi redactor principal no semanário "O Almonda", publicou reportagens na revista "Domingo Magazine", do diário "Correio da Manhã" e colaborou, ao longo dos anos, com vários jornais regionais.

É autor do script e da realização de curtas-metragens de cinema de ficção para a Equipa Fotograma e de vários documentários em vídeo. Foi director de estação e director de programas, em diversas estações regionais de rádio.

Vencedor de alguns festivais de canção de âmbito regional, obteve o 2.º lugar no Festival Nacional da Canção de Leiria ( 1987 ), possui prémios de rádio (programa Auditório – RCL ) e de teatro: "Aldeiabrava" viria a obter o 2.º lugar, "ex-aequo", no Concurso Nacional da ATADT (Portugal) vencendo o Festival de Teatro Português de Toronto (Canadá) em 1990.

António Lúcio Vieira foi distinguido, em 1997, com os diplomas de Mérito e de Louvor, pela Casa do Ribatejo, em Lisboa.
Em 2015 o Município de Alcanena atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito Cultural.

É Prémio de Poesia “Médio Tejo Edições” ( 2017) para “25 Poemas de Dores e Amores”. 
É membro da SPA – Sociedade Portuguesa de Autores.

********************

SUBMARINO À VISTA

Por António Lúcio Vieira

Esta é uma estória realmente surreal. Até no desenrolar dos dramas mais pungentes emergem, com alguma frequência, pequenos oásis de balsâmica voluptuosidade, preciosas gotas de água, que se libertam das nuvens da vida e nos refrescam o escaldante quotidiano, pautado pelas dores que sempre resultam das tragédias. Também no seio dos conflitos armados desabrocham, por vezes, essas pequenas e decisivas pérolas, que nos ajudam a refazer o debilitado estado de espírito e nos criam uma reserva de revigorante resistência, aos sucessivos assaltos de uma sorte mais madrasta do que a madrasta da Cinderela. 
Chega. 

Nada melhor do que contarmos, sem mais delongas, o insólito episódio, ocorrido algures nas margens de um caudaloso rio africano e tendo como cenário um diminuto cais, junto às pré-históricas instalações de um pequeno destacamento militar, algures nas entranhas da Guiné, em meados da longínqua década de 1960. 

Manhã cedo – pouco passaria das sete e meia – de um dia já a aquecer e a prometer mais uma escaldante jornada, em tudo igual às que habitualmente pautavam aquele, quase esquecido, reduto de uma reduzida unidade de Engenharia. A capital não distava muitas léguas e o local, quase inacessível por terra, alcançado apenas por tosca e estreita estrada, era classificado, à época, como um reduto seguro, pouco susceptível de se apresentar como alvo de ataques inimigos. 

Atracada, uma tosca jangada, de motor assustadoramente periclitante – na ausência de uma mais sofisticada LDM da Marinha - aguardava a chegada de uma qualquer coluna de veículos em trânsito, que ali necessitasse efectuar a travessia do largo curso de água. Pelo espaço em redor, após um reconfortante pequeno-almoço, os rapazes desentorpeciam as pernas, puxavam umas fumaças nos cigarros americanos, trazidos de Bissau e preparavam-se para mais um dia monótono e arrastado, igual aos restantes dias da monótona e arrastada comissão de serviço. Uma pasmaceira, aquele restar por ali, entre as refeições, umas partidas de sueca, umas mornas e coladeiras na rádio, umas revistas com gajas nuas, as sessões de anedotas, os aerogramas para a Maria, algumas fotografias e, quando calhava, três ou quatro viaturas, para enfiar na jangada e transportar para a margem contrária. 

Perdiam-se os olhos na imensidão do rio, pela cinzenta mancha de bolanha, que quase cercava as pequenas barracas, forradas a chapa de zinco, que o destacamento habitava; pelo renque de árvores-bissilões, na sua maioria – que ornavam a estrada na margem norte do rio, a dezenas de metros de distância, do outro lado onde os combates se iam tornando, cada vez com maior intensidade, um acontecimento diário. Mais a sul, por entre os restos de neblina que se elevavam da bolanha, os olhos ainda distinguiam a enorme mancha verde-escura do tarrafo que, da margem virada a poente, se alongava até perder de vista, para as bandas do mar. Dois ou três, dos homens do destacamento, ocupavam-se entretanto, junto ao cais, na recolha das armadilhas, deixadas no rio na noite anterior. Havia sempre peixe que optava por não dormir e o que buscava o engodo, nos engenhos de rede, habitualmente dava para uma refeição à pequena guarnição do destacamento. 

De pé, encostado à tosca viga de palmeira-dendém, num dos cantos do alpendre, do polivalente refeitório-secretaria e sala de convívio, o alferes que comandava o destacamento observava, a espaços, a paisagem em redor, por vezes de binóculo em punho, com o olhar atento e perscrutador, que se exige à suprema responsabilidade dos lideres, a quem compete zelar pelas vidas dos homens sob o seu comando e dos haveres, que o estado português confiara à sua guarda. Pese embora o facto de, por aquelas bandas, jamais ter havido notícia de presença inimiga, o homem sabia que não podia baixar a guarda. Quando menos se espera… E recordava, amiúde, os episódios lidos e relidos, sobre guerras distantes ou passadas, nos quais se dava conta das surtidas traiçoeiras, dos audaciosos golpes furtivos e das mil e uma artimanhas, que o génio dos grandes cabos de guerra sempre souberam engendrar, para colher o inimigo de surpresa. E também da importância estratégica de destacadas zonas do globo, locais cirurgicamente nevrálgicos para o rumo dos conflitos. Assim, aquele perdido posto militar, encravado entre a bolanha e o largo rio, bem podia ser - quem sabe - o seu estratégico rochedo de Gibraltar, ou algo semelhante. Por isso o nosso alferes não baixava a guarda. Cônscio da importância de uma observação constante e minuciosa, o homem queimava as pestanas, observando metro por metro, litro por litro, as margens e o leito do rio, que na sua frente se abriam. Com ele, ficasse o inimigo a saber, não contassem para menosprezar os perigos, muito menos para se entregar ao desleixo da rotina, que a experiência lhe dizia ser sempre má conselheira. Um homem, enfim, ciente da sua responsabilidade e da transcendência da missão que até ali o levara; àquele pasmado e frustrante longe de tudo, perdido entre nenhures, onde, habitualmente, o mais emocionante, do arrastado quotidiano, era a passagem, no seio das colunas militares, de uma ou outra bajuda, à boleia. No seio, foi o que atrás se escreveu, porque nos ditos das moçoilas, rijinhos e ali ao léu, vulgarmente designados por “mama firmada”, já a rapaziada ia, despudoradamente, e sempre que o ensejo se proporcionava, aquecendo as manápulas, naquele tão cativante, quanto emotivo e patriótico, exercício de acção psicossocial. 

Estava-se nisto quando, binóculos virados a montante, algo lhe chamou a atenção, lá longe no caudal do rio, logo após a curva junto ao mangal. Havia ali qualquer coisa a navegar, lentamente, em total discrição, descendo sorrateiramente o rio, bem no meio da corrente. Deixou o local de vigia, no alpendre do barracão e aproximou-se da margem. Não, não havia dúvidas: vinha ali qualquer coisa estranha, com um navegar manhoso. Algo enfim, naquela manhã, descia, lenta e matreiramente, a corrente. Mal se vislumbrava o dorso escuro do enigmático objecto, mas bem se via que era algo grande, arredondado e estranhamente silencioso. Por entre a onda de espuma que a sua passagem levantava, erguia-se sobre ele, na vertical e a cerca de um metro acima da água, hirto e misterioso, um outro objecto, igualmente redondo e escuro, a fazer lembrar um vulgar tubo de canalização. “Diabo, se aquilo não parece um submarino…”, cogitava o intrigado graduado, de cenho franzido e sentidos alerta. Voltou a mirar o estranho objecto que sulcava as águas, bem no meio da corrente, a uns bons cem metros da margem. Numa daqueles clássicas decisões, bem expressas nos cânones da caserna, que mandam, em caso de dúvida, atirar primeiro antes de se perguntar “quem vem lá?”, o homem tomou de imediato uma decisão de radical efeito. 

E tudo ali então se precipitou. De binóculo em riste - em clara desvantagem ante o, bem mais potente e avantajado, “periscópio” inimigo - porém munido de corajoso ímpeto de destemido afrontamento, o alferes gritava a plenos pulmões: “Peguem nas armas! Vai ali um submarino!”, enquanto os homens, dispersos pelo recinto, de expressão aparvalhada, tentavam perceber a situação. Antes de desaparecer no interior das instalações, em busca da sua própria arma e de umas quantas granadas defensivas, ainda o espavorido oficial repetia à restante guarnição: “Porra, vão buscar as armas!” Atarantados, os rapazes corriam, desordenadamente, para o interior dos barracões, em busca das G3. Pelo caminho, um ou outro, de mente menos confusa, ia-se deitando a matutar que ideia seria aquela de enfrentar um submarino com umas reles espingardas automáticas, mais umas pobres granadas, que tanta falta faziam para as radicais pescarias do peixe mais graúdo. Mas pronto, o alferes é que tinha os livros; por aquelas bandas, ainda era quem mandava na guerra. 

Entrincheirado com a jangada, o destemido comandante da guarnição abria fogo de rajada sobre o “submersível inimigo”. Só podia ser inimigo, já que a pelintra marinha de guerra nacional ainda não conseguira orçamento para tais luxos. Porém, o PAIGC ainda menos. Era pois, seguramente, um vaso de guerra de leste, da União Soviética, que todos sabiam estar de panelinha com os movimentos guerrilheiros. “Fogo, fogo nele!”, gritava o homem, qual Rommel no deserto, qual Napoleão antes da debandada em Waterloo, qual Nuno Álvares em Aljubarrota ou, mais adequadamente, qual Mouzinho em Chaimite. As balas – apenas as dele, adiante-se – tracejavam as águas, levantavam cogumelos de espuma, enquanto por ali, deitados no chão, em posição de fogo, os homens se entreolhavam, de expressões idiotas, sem entender patavina da situação. “Aquilo é um submarino! É ou não é, malta?”, interrogava ele, aos brados, num esforço de autoconvencimento. “É, é, meu alferes! Vê-se bem…”, respondiam os homens, confusos e sem coragem para contrariar o agitado superior. “Fogo nele! Afundem os gajos!” Relutantes, os subalternos lá iam disparando uns tiros dispersos, que aquilo de estar ali ao desvario a atirar para o boneco, não lhes cabia lá muito na cachimónia. 

O intrépido alferes, entretanto, em pequenas corridas pela margem, na busca de melhores posições de tiro, não dava tréguas ao misterioso objecto navegante. Era uma cena patética, digna da mais talentosa opera-buffa, dos gloriosos tempos da commedia dell’arte. Nos fugazes segundos que mediariam, entre o gizar de uma estratégia de ataque, ao iminente, inevitável e definitivo afundamento do descomunal submersível, o homem imaginava-se nas capas dos jornais da longínqua capital do império, sob os holofotes da televisão e os microfones das rádios, nos gabinetes dos ministérios e chancelarias, nos jantares de gala em sua honra, no decorrer dos quais, uma vez mais, se enalteceria, nas vozes embargadas dos nossos mais lídimos representantes, o seu heróico feito. O homem já se via - mais do que numa qualquer e banal entrega de medalhosas distinções, no Terreiro do Paço - nos próprios salões do Palácio de Belém, altivo, impante, solene, distinto, em farda de gala, na presença das mais altas figuras da nação. E depois – oh, subida glória! – recebendo, das mãos do venerando Chefe de Estado, uma qualquer Comenda, das várias com que o patrono das ordens honoríficas habitualmente ornamenta o pescoço e o ego dos nossos mais distintos eleitos. Depois, como corolário, talvez o nome numa rua da sua vila natal, quiçá de vilas e cidades de norte a sul do país, e a inevitável promoção por distinção que, unanimemente, as altas chefias forenses não deixariam de lhe proporcionar. Que subida honra, que glória, que página, nos anais onde se canta a imortalidade dos heróis. Caramba! Não é todos os dias – nem, por ventura, em todas as guerras – que se abate, sem remissão, ou se aprisiona, um submarino inimigo, recheado de uma tripulação amedrontada e rendida à heroicidade de meia dúzia de bravos militares portugueses. De Engenharia. Ainda por cima, homens da Engenharia! Toda a pequena guarnição estava, pois, prestes a protagonizar um feito único nos anais da história militar lusíada. Uma epopeia que contariam aos filhos e netos, os quais, orgulhosos do apelido e do sangue herdados, haveriam de se rever nela por incontáveis gerações. “Atirem, não o deixem escapar!”, e os rapazes, mais para evitar reprimendas do que para confrontar a ameaça navegante, lá iam despejando carregadores, para aquele intruso flutuante que, oriundo por ventura dos confins soviéticos, ali lhes calhou em sorte, por certo numa missão de solidária “mãozinha” ao inimigo. 

Uma, duas rajadas. O arrojado alferes não descansava. Depois, granada na mão, cavilha arrancada com um gesto largo e decidido e o lançamento do engenho para bem longe, nas águas do rio. À boca pequena comentava-se: “O nosso alferes não ‘tá bom da cabeça”. Então “aquilo” estava a ir ali a mais de cem metros de distância… quem é que o alferes pensava que era: “campeão do lançamento do martelo, ou quê?” Entretanto, mesmo ali frente ao cais, com um repentino remoinhar das águas, o “vaso de guerra inimigo” inverteu o “leme” a estibordo e parecia querer rumar a montante, de onde havia pouco surgira. “Está com medo, rapazes: ele está com medo. Vai voltar para trás! Fogo, não o deixem fugir!” E as armas voltaram a troar, rasgando de novo a quietude da manhã. E que manhã! Ciente agora que o matreiro submersível tentava escapar, o homem lembrou-se que, no reduzido espaço que servia de paiol, repousava a um canto uma metralhadora ligeira. Lá estava, havia muito, para o que desse e viesse. “A Dreyse, tragam a Dreyse!”. Lesto, o cabo e um soldado ergueram-se, entreolharam-se por momentos e partiram numa corrida, desaparecendo no interior das instalações. Quando voltaram, de metralhadora em punho e uma braçada de carregadores a caírem dos braços, deixaram a arma nas mãos decididas do alferes e aprestaram-se para o municiar. Da ponta da jangada, já sobre as águas, a Dreyse iniciou então o ritmado e mortífero concerto. As balas sulcavam as águas e atingiam certeiramente a misteriosa “embarcação”, ante o eufórico frenesim que agitava o bravo oficial. Fosse por acção das balas, ou por capricho da corrente do rio, o manhoso “submarino” inverteu de novo a rota e voltou a navegar para jusante, rumando, tranquila e suavemente, para a foz. Ficava já fora do alcance do fogo lançado da margem e parecia ir perder-se para lá da curva frente ao bosque de palmeiras, na viagem que o levaria ao oceano. As armas calaram-se. Uma densa e negra nuvem formava-se agora, nos olhos e na mente do ofegante comandante do destacamento de Engenharia, aquartelado naquela perdida margem de rio. 

As honrarias, as comendas, os jantares e discursos e as ruas com o seu nome esfumavam-se assim, mais depressa do que o fumo que se evadira dos canos das armas. Oh, glória tão efémera e vã! Oh, história tão ingrata, que assim lhe iria olvidar o nome. Que dia aquele, de tanto fervor patriótico e de tanta alma guerreira, transformados, ingloriamente, na mais redundante e decepcionante manobra militar, alguma vez encetada em terras da Guiné. Os deuses, os tais do Olimpo, deviam mesmo estar loucos. Oh, com os reveses enchem, tanta vez, as guerras de infortúnio. Ia assim o homem cismando, tentando refazer-se dos amargos de boca, resultantes da frustrante acometida. Acalmara-se um pouco. Acendeu um cigarro e encaminhou-se, cabisbaixo e de cenho franzido, para o recato das instalações. Necessitava de um revigorante whisky, para encarrilar as ideias. 

No exterior, ainda aturdidos, os homens olhavam-se, acendiam igualmente cigarros e, entre o encarrilar de ideias e a sequente procura do revigorante whisky, quedaram-se, por momentos, a matutar, que raio de mosca teria mordido ao alferes, para desatar a ver submarinos e a despejar quilos de munições, num pobre e inofensivo tronco de bissilão que, inadvertidamente, entendeu entregar-se aos prazeres da navegação no dia errado, no rio errado e na hora errada. O perturbado alferes, esse entretanto e enquanto via esvaírem-se os sonhos de glória e imortalidade, de olhar lançado ao alto e pensamento embargado pela emoção, justificava a si próprio o desaire, citando – como, de resto fica bem em situações tão dramaticamente solenes, como aquela – as palavras do poeta: “malhas que o Império tece…” Perdão; tecia. 

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Em rodapé, aqui - como preito de homenagem ao avisado bom senso - se regista o alívio da restante guarnição, pelo facto de, na balburdia gerada pelo fragor da insólita “peleja”, o inefável e confuso alferes nunca se ter lembrado de, via rádio, pedir o apoio dos T6 da Força Aérea, ou dos patrulheiros da Marinha. Valeu esse lapso porque, para ridículo, já tinham de sobra para contar.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20879: In Memoriam (364): Dos sete militares chacinados pelo PAIGC no “Chão Manjaco”, mártires da sua fé na autodeterminação e na consagração do direito do Povo da Guiné- Bissau ao poder (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

domingo, 12 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20851: Efemérides (322): O meu domingo de Páscoa de 1968 (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG)

Ressurreição de Cristo - Rafael


1. Em mensagem de hoje, dia 12 de Abril de 2020, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), lembra o seu dia de Páscoa de 1968.


O Domingo de Páscoa de 1968

Já estava na tropa desde Outubro de 67 quando no dia 10 daquele mês assentei praça na EPC em Santarém, de má memória, onde chumbei no CSM e mais 200 camaradas – sim chumbámos 201 em 360 - tendo passado para o Contingente Geral e no início do ano de 68 sido transferido para o RTM no Porto onde tirei a especialidade de Operador de Mensagens bem como a Escola de Cabos.

Mal acabada a especialidade, fui transferido para o BT na Graça em Lisboa, mas rapidamente colocado a prestar serviço na Delegação do STM – Serviço de Telecomunicações Militares – no Quartel General da 2.ª Região Militar, em Tomar.

Estava desarranchado, dormia num quarto com mais dois camaradas em três divãs separados, em casa do Cabo RD Almeida, como também ali dormiam noutros quartos mais camaradas de armas. Aquilo não era bem um quartel, mas principalmente de manhã, apesar de não haver toque de alvorada, todos nos movimentávamos bem e depressa.

Comia no Restaurante Diamante Verde, na Rua dos Arcos, por trás do Quartel General. Acho que o desarranchamento eram 500$. Do quarto pagava 120$ e do Restaurante pagava 500$. Mas como “matava” alguns serviços de camaradas que se podiam safar e pagar, a coisa compunha-se.

Todos estes serviços de “matança” eram “coordenados” pelo Sargento, chefe do Posto do STM.
O STM era nas águas furtadas do QG onde, para além do Centro de Mensagens (a minha especialidade), existiam a Central de Teleimpressores com contacto com o Batalhão de Telegrafistas em Lisboa e com o QG do Campo Militar de Santa Margarida, bem como com os outros Quartéis Generais do País e, claro, o Posto de Rádio, em grafia, que comunicava com as mesmas entidades.

Existia ali ainda um aparelho do tempo da 2.ª Grande Guerra, um fac-simile da altura, marca Siemens, que todos os dias era posto à prova com uma transmissão de exploração para o BT e a devida resposta. Aquilo era mesmo antigo. A técnica era baseada num cilindro onde se acoplava o documento a transmitir e ia rodando, depois de se fazer a ligação telefónica para transmitir o documento. Usava um tinteiro e um sistema com um aparo que ia impressionando o papel conforme a imagem do documento. Claro que por vezes borrava-se a pintura… mas aquilo tinha que ser posto à prova todos os dias como mandavam as normas.

No 1.º andar, para além dos Gabinetes do Brigadeiro Comandante da Região Militar e do Coronel Chefe do Estado-Maior e outras repartições, havia o Centro de Cripto onde, nós quando recebíamos alguma mensagem classificada, íamos ao postigo daquele Centro entregar a mesma por protocolo e eles, depois de fazerem a passagem a cifra, vinham ao postigo do nosso Posto entregá-la para ser encaminhada e transmitida para o ou os destinatários. Era assim o dia a dia.

No Rés do Chão, para além dos serviços do quartel General e as instalações da PM, havia a Central Telefónica do QG, com uma Central Civil e outra Militar que eram operadas por telefonistas do STM. Era dali que de vez em quando, sem grandes abusos, conseguíamos fazer uma ou outra chamada para casa, para dar notícias, ou para algum dos nossos vizinhos que tivesse telefone porque naquela altura esses aparelhos eram raros.

Era assim a vida dentro daquelas quatro paredes. Falta dizer que no Rés-do-Chão, virado para uma pequena parada interna, havia a Cantina muito frequentada por todo o pessoal do QG, do STM e da PM que ali estava instalada.

A comida no Restaurante não podia ser muita nem nós podíamos ser exigentes dado o preço que se pagava. Mas comia-se sempre uma boa sopa, um prato de peixe ou de carne, pouco abundante para se manter a linha, um jarrinho de vinho e algumas vezes uma peça de fruta.

Ora, no Domingo de Páscoa de 1968, estava de serviço e lá fui almoçar. A senhora D. Rosa avisou-me que havia rancho melhorado. De facto, veio uma canjinha de galinha apetitosa e depois arroz com frango corado no forno. O arroz estava muito bom, mas o frango ou a galinha vinha aleijado. Só havia patas e pescoços… pelo que perguntei se ela tinha ido comprar o frango ao Entroncamento que nessa altura estava na sua grande época dos fenómenos. Ainda bem que fiz aquela pergunta pelo que a senhora sempre me arranjou uns bocados de carne para ajudar a empurrar o arroz.

Coisas da tropa, neste caso passadas fora do Quartel, mas mesmo ali ao lado.

Boa Páscoa para todos os amigos e, já agora cuidem-se e não façam aventuras porque a Pandemia está bem viva, anda por aí cheia de força, a fazer a vida negra a uma população indefesa. Por isso temos que nos resguardar em casa, nada de visitas, nada de cumprimentos mesmo que ocasionais, porque todo o cuidado é pouco. Mas temos que ter esperança e esperar melhores dias porque depois da tempestade vem sempre a bonança. Esperamos que desta vez também seja assim. Mas, entretanto, toca a recolher em casa.

Um abraço colectivo para todos os amigos.

Carlos Pinheiro
12.04.2020
Domingo de Páscoa caseiro…
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20812: Efemérides (321): No dia 4 de Abril de 1970, saiu a CCAV 2721 do cais de Alcântara em direcção a Bissau (Paulo Salgado)