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quarta-feira, 19 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24235: Historiografia da presença portuguesa em África (364): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
O que foi a atividade da Casa Gouveia na Guiné é um dos assuntos relevantes que continua por investigar em profundidade. Esta comunicação de Maria Eugénia Mata num simpósio que se prendeu com as comemorações dos 150 anos do nascimento de Alfredo da Silva ilumina o tempo histórico dessas atividades, quando se iniciaram, contemporâneas da circulação da moeda com o BNU, não se conhece a documentação (estará perdida?) referente ao desempenho da Casa Gouveia em nome do BNU entre 1903 e 1917, fica-nos um quadro, dado por esta importante comunicação, do papel económico e financeiro da Casa Gouveia. A documentação existente na Fundação Mário Soares sobre a Casa Gouveia parece pouco elucidativa, resta saber o que há noutros fundos documentais, desde o arquivo da CUF, Arquivo Histórico Ultramarino, Sociedade de Geografia de Lisboa, Biblioteca Nacional, e por aí adiante. Grande empreitada que aguarda candidato...

Um abraço do
Mário



Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (2)

Mário Beja Santos

Há anos que procuro saber por onde andam os arquivos da Casa Gouveia, a principal empresa comercial da Guiné, associada à CUF. Finalmente abriu-se-me uma porta, há um arquivo no Barreiro, indicaram-me o nome de alguém que durante anos na Guiné estivera na gestão dos Armazéns do Povo, depois da libertação para eles convergiram o património da Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosa e Comandita, hoje assunto passado, tal como outros grandes empreendimentos, caiu na água levando ao tempo mais de 5 mil trabalhadores para o desemprego. Recebido com enorme afabilidade na Fundação Amélia de Mello, tenho a promessa de uma viagem ao Barreiro, ver o que há e não há. Entretanto, recebi uns bons quilos de publicações, comecei por este título Globalização em Português, atas do simpósio que se realizou na Academia das Ciências em Lisboa, Princípia, 2021. Chamou-me à atenção a comunicação de Maria Eugénia Mata com o título "Casa Gouvêa: Monetarização e Integração da Guiné na Economia Mundial". Vale a pena aqui respigar alguns dados pertinentes que permitem desvelar o poder deste empreendimento.

A autora, como vimos, revela a grande aproximação que existiu entre os negócios da Casa Gouveia e o BNU. Este, no período da Primeira Guerra Mundial, e muito depois, teve um papel determinante no sistema monetário, emitiu para as transações de pequeno valor (cédulas).

“Em pequenas cadernetas eram destacadas estas cédulas, um espaço deixado vazio permitia que fossem carimbadas em todo o Ultramar, foram emissões que se prolongaram até à Segunda Guerra Mundial, por razões de entesouramento e fusão do metal das moedas.”

Vimos igualmente que se adotou um novo sistema de pesos e medidas, difundiram-se as máquinas de costura, criou-se a frota da Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, que assegurava as ligações marítimas para o comércio bilateral de mercadorias e o transporte de passageiros.

Como a autora observa: 

“Nas exportações da Guiné, a Casa Gouvêa reunia e transportava para a metrópole os cultivos locais (mancarra, purgueira, rícino, algodão, mandioca) e as produções espontâneas de palmares, mangais, arrozais, bananais e outras frutas tropicais. Na segunda metade dos anos 1920 a procura internacional de produtos como a borracha e as oleaginosas desceu e bem assim os seus preços, no contexto das dificuldades da Grande Depressão de 1929-1933.” 

E adianta que a recuperação da Grande Depressão e os anos 1940 marcaram o aumento das produções e dos negócios na Guiné, o que se tornou visível com o crescimento de Bissau, tornada capital da colónia, uma capital que tinha um porto, onde afluíam navios nacionais e estrangeiros, em 1947 o Pidjiquiti recebeu uma nova construção de cais em estacaria de betão. 

Em que se transforma a Casa Gouveia? Tinha a sua sede em Bissau e como agente em Lisboa a CUF, Secção África-Guiné, situada na Rua do Comércio, 49, 4.º andar, em Lisboa. Era agente da Sociedade Geral Socony Vacuum Oil Company, para o transporte e distribuição de combustíveis da marca internacional e dos pneus MABOR.

É um tempo de pavimentação de estradas que permitiram a circulação de veículos de transporte. Em 1947, a colónia contava com telégrafo em 23 centros urbanos, melhorara a sua rede telefónica, tinham começado as emissões experimentais de rádio da estação de Bissau, foi reconstruída a fortaleza da Amura (desta vez em pedra em vez de barro e madeira), a capital encheu-se de equipamentos: o museu, o hospital com maternidade, a cadeia, a estufa, o liceu, o estádio, paióis, uma catedral, um palácio para o governador, uma mãe de água no Alto Crim para canalização e aprovisionamento doméstico; e foram construídas moradias para funcionários guineenses.

A Casa Gouveia servia a totalidade do território devido às suas sucursais, em 1948 eram 14: Bafatá, Bambadinca, Binta, Bissorã, Bolama, Brames, Cacheu, Teixeira Pinto, Farim, Nova Lamego, Geba, Mansoa, Sonaco e Pelundo. Sucursais em que se vendiam bens adaptados à vida em contexto rural e atmosfera étnica (têxteis, bicicletas, aparelhos de rádio, máquinas de costura, utilidades domésticas e querosene). 

A Casa Gouveia tem novos estatutos em 1961, passou de sociedade por quotas a sociedade por ações. Tinha obtido concessões por aforamento de pequenos territórios delimitados para o exercício dos seus propósitos na Guiné. As suas maiores propriedades rústicas localizavam-se em Buba, Bafatá, Farim e Canchungo.

E a autora dá-nos conta dos aspetos económico-financeiros em que emergiam os seus negócios, chama à atenção de que a circulação monetária do escudo da Guiné era diferente da circulação do escudo da metrópole, as exportações de produtos da Guiné eram pagas em escudos metropolitanos, ao preço da cotação desses produtos tropicais na Bolsa de Lisboa, incidia o pagamento de impostos alfandegários. Dá-nos conta da percentagem de cambiais obtida da exportação que devia ser entregue ao Fundo Cambial. Tive oportunidade, quando procedi a investigações no antigo Arquivo Histórico do BNU, de avaliar toda esta momentosa questão dos cambiais, as múltiplas petições das empresas que se queixavam da dureza de tributação. E escreve a autora: 

“O problema das cambiais tem a ver com o montante em escudo da metrópole com que ficavam os exportadores, e, portanto, condicionava a repatriação de lucros. E o poder político também o sabia. Quanto maior a percentagem de cambiais a entregar, menos lucros podiam repatriar. Toda a atividade da A. S. Gouvêa Lda. assentava em negociações com as autoridades políticas e administrativas locais e centrais (da metrópole) numa base de defesa dos seus resultados financeiros.”

A autora evoca testemunhos descrevendo os mecanismos económicos, cita mesmo o trabalho de Martinho Simões, datado de 1966, "Nas Três Frentes Durante Três Meses, Toda a Verdade da Guerra Contra o terrorismo", o repórter descreve as “casas grandes” do comércio guineense, visitou o centro industrial da Casa Gouveia no Ilhéu do Rei. 

Retomando a questão dos cambiais, a autora releva que a atividade da Casa Gouveia e da CUF da família Silva Mello eram decisivas para o sistema monetário e cambial da Guiné, explica o câmbio e as taxas, o papel do BNU como agente do Fundo Cambial da Guiné para fazer os pagamentos à metrópole em escudos metropolitanos e os ajustamentos operados a partir de 1961 no sistema de pagamentos interterritoriais, quando o Governo quis fazer uma união monetária de todo o espaço económico português, criando a Zona Monetária do Escudo.

Assim se chega à luta pela independência, somos confrontados com a atividade económica do período e após a independência a Casa Gouveia foi integrada nos Armazéns do Povo, uma integração que ficou concluída a 31 de dezembro de 1975. O imenso descalabro que se seguiu já não conta para esta história.

Finda aqui a recensão ao trabalho de Maria Eugénia Mata, vamos confiar que há outras fontes documentais à espreita de consulta.


Casa Gouveia em Bissau
Instalações da então Casa Gouveia no Ilhéu do Rei, fotografia de Francisco Nogueira, com a devida vénia
Antiga casa comercial António Silva Gouveia, posteriormente, utilizada para instalações militares do quartel de Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24219: Historiografia da presença portuguesa em África (363): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24222: Notas de leitura (1572): "As Voltas do Passado, A Guerra Colonial e as suas Lutas de Libertação", com organização de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, com vasto número de colaboradores; Tinta-da-China, 2018 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
O que há de francamente original nesta investigação, que tem tanto de ambiciosa como de bem sucedida, é um questionamento do passado sem ninguém se curvar a homenagear heróis mas a escrutinar factos, havendo resultados surpreendentes, pois há apropriação indevida de datas ou de cometimentos heróicos, caso dos massacres de Mueda ou do Pidjiguiti. É este permanente questionamento, por vezes profundamente incómodo, que faz desabar mitos ou ajuda-nos a compreender que um acontecimento ao tempo importante, caso da Operação Tridente, nos inícios de 1964, deu pasto a propaganda do PAIGC que avançou centenas e centenas de mortos portugueses, a coisa não tinha pés nem cabeça mas serviu de matéria na imprensa internacional. A evolução da guerra alterou completamente a importância do que tinha ocorrido na Ilha do Como. Estudar o assassinato de Amílcar Cabral também nos leva a compreender que há para ali a crónica de uma morte anunciada, segredos e tensões que ambas as partes em conflito escondiam. Revela-se que a chamada música de intervenção utiliza a figura inspiradora de Cabral para que organizações jovens tragam para a liça iniciativas que permitem gerar políticas públicas, revolucionar as identidades culturais. A celebração da morte do líder fundador é esquecida pelos velhos e reacendida pelos novos que reclamam uma política nova num país à deriva.

Um abraço do
Mário



Momentos marcantes da guerra colonial, lá e cá, todos na sala de espelhos

Mário Beja Santos

O projeto "As Voltas do Passado, A Guerra Colonial e as suas Lutas de Libertação", com organização de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, com vasto número de colaboradores, Tinta-da-China, 2018, é um roteiro indispensável para indagar o papel da memória, o questionamento do testemunho individual, a legislação ou o ato político possuidor de transformação, real ou aparente, as perguntas permanentes de quem mandou assassinar quem… É neste voltar ao passado por onde a guerra com as manifestações anticoloniais mobilizaram combatentes e populações, somos impelidos a regressar ao local e mensurar se aquele facto manteve estabilidade ou caiu no esquecimento, se é digno de evocação celebratória ou gerou indiferença.

Não é, pois, um repositório cronológico da guerra colonial, a metodologia seguida não é essa, escolhem-se marcos miliários em diferentes países, faz-se a sua anatomia ontem e hoje e expõe-se o resultado. A cronologia é a dos acontecimentos, como segue: Massacre de Batepá, São Tomé (1953), início da vaga de prisões de militantes nacionalistas em Angola (1959), Massacre de Pidjiquiti, Bissau (1959), Massacre de Mueda, Moçambique (1960). Indo por aí fora, iremos ler relatos sobre conferências, a ida das tropas portuguesas para os teatros de operações, a criação de forças especiais, a liturgia do 10 de Junho associada às Forças Armadas, o encerramento da Casa dos Estudantes do Império, a crónica de assassinatos, o fim do Exercício Alcora, a independência das ex-colónias.

Há nesta pesquisa um novo elemento disponível: a exposição é caleidoscópica, expõem-se os factos, releva-se o produto final que pode ser mitológico, extraem-se resultados que possibilitam o leitor a querer saber mais. Por exemplo, logo na descrição do Massacre de Batepá, a autora conclui:

“O que aqui se demonstra é que por mais que as políticas de memória de um evento histórico sejam instituídas e ritualizadas pelo Estado e deixem lastro ao longo de décadas e através de gerações, os seus significados mudam, emergindo outras narrações. É desta forma que os são-tomenses procuram inscrever o seu lugar nesta história”.

Também, houve quem se quis apropriar em exclusividade do arranque da luta armada em Angola, identificando a luta política anterior com o encadeado da luta armada. E também se conclui, a este respeito:

“A luta política, antecessora da luta armada, teve como autores os que, independentemente das suas tonalidades político-ideológicas, combateram o poder colonial. Frequentemente divergentes entre si, mas com um denominador comum: a prisão e a tortura como símbolos do arbítrio colonial. Nesse sentido, somos impelidos a considerar que as prisões de 1959/60 podem ser apreendidas como um processo histórico – ainda inacabado – de construção de uma gloriosa memória”.

Continua até agora por demonstrar que foi gente do PAIGC que instigou os trabalhadores do Porto do Pidjiquiti à greve de 3 de agosto de 1959. O gerente da Casa Gouveia foi irredutível, os trabalhadores revoltaram-se, veio a repressão, morreu muita gente, houve prisões, Amílcar Cabral aparece depois para aquela que terá sido a reunião crucial que irá definir quem fica no interior a subverter e quem parte para o exílio. O fundador do PAIGC considerou os acontecimentos como uma lição histórica e com a independência o 3 de Agosto ganhou a dignidade de feriado nacional. Mesmo com a separação da Guiné-Bissau de Cabo Verde, os acontecimentos do Pidjiquiti continuaram a ter lugar relevante na consolidação do PAIGC.

E, posteriormente, as referências mudaram de natureza. 

“Em 1993, uma greve de marinheiros marca o aniversário do massacre. Desde então, o feriado de 3 de agosto é também usado periodicamente pelos sindicatos como um momento de protesto pela falta de pagamento de salários. Durante as celebrações de 2014, enquanto Domingos Simões Pereira desafiava os guineenses para a criação de um museu em honra e memória de todos os resistentes, o secretário-geral da União Nacional dos Trabalhadores da Guiné afirmava que os atrasos nos pagamentos de salários punha em causa a realização dos sonhos dos mártires do Pidjiquiti. Pidjiquiti torna-se assim no símbolo da desilusão com os rumos da política pós-colonial à governação, aos desvios do projeto revolucionário do PAIGC ou à indiferença social”.

Em 16 de junho de 1960 ocorreu o Massacre de Mueda. Houvera detenções, o governador do distrito de Cabo Delgado, Almirante Teixeira da Silva, compareceu a um encontro com as populações, foi agredido por um maconde, chegam viaturas militares que abrem fogo. Quem lá estava fala em 16 mortos, a Frelimo em Argel fala em 150, mais tarde escreve-se que foram 600 mortos. Depois começa o uso feito do massacre. 

“Na cerimónia de Mueda, no dia 16 de junho de 2000, houve, em figurantes, colunas guerrilheiras do tempo da luta armada, isto é, uma representação da própria Frelimo. No passado houvera peça de teatro sobre o massacre, a última vez que foi representada foi em 1995, os atores estavam fartos de ser utilizados para uma cerimónia oficial e depois não receber nada. O próprio Faustino Vanomba tinha representado o seu papel (isto é, o papel que a História oficial lhe dava), em 1987 e 1990, a pedido insistente do administrador. Mas estava triste e dizia que não tinha sido assim".

Falando desta investigação o autor adverte que em todas estas contradições a questão de saber quem tem razão não é o essencial, não se pode é brincar aos heróis. 

“A Frelimo faz parte da História de Moçambique, mas a História de Moçambique nunca se poderá resumir à história deste importante partido. Mueda, 1960, não faz parte da história da Frelimo, nem pode, obviamente, fazer. Esquecê-lo para só transmitir a visão da Frelimo, de legitimidades e poderes que vieram depois, leva ao esquecimento dos homens que fizeram Mueda. Mas são eles os heróis”.

O autor traz também algumas saborosas observações, falando dos arquivos coloniais refere que estes veiculam a narrativa do colonizador, mas têm uma vantagem: não mudam. E termina dizendo que em 2000 perguntou a uma testemunha africana da tragédia de 16 de junho de 1960:
- Houve muitos mortos?
- Sim, muitos! Foram 16!
- Ah! Pensava que eram 600…
- … Sim, depois recebemos orientação de que eram 600.

Um grupo de cabo-verdianos, filiados do PAIGC, foram preparados em Cuba para desembarcar em Cabo Verde, a data prevista era 1967. Eram 31 guerrilheiros, prestaram juramento e comprometeram-se a desembarcar nas ilhas de Santiago e Santo Antão, seriam apoiados pelo governo cubano. O plano foi abortado, os membros do grupo seguiram outra formação militar na URSS, na sequência da qual passaram a intervir no terreno da guerrilha da Guiné, em 1968. 

Na lógica dos acontecimentos subsequentes, alguns deles foram figuras preeminentes na guerrilha, caso de Pedro Pires, Silvino da Luz, Honório Chantre ou Manuel dos Santos. Em 1988, foi institucionalizado em Cabo Verde o Dia das Forças Armadas Revolucionárias do Povo. Em 1991, realizaram-se as primeiras eleições legislativas multipartidárias, o vencedor foi o MPD. A partir de então, dá-se uma mudança profunda de discurso e de atitude, mudaram os símbolos nacionais em Cabo Verde concebidos durante o período da guerra pelo PAIGC. Alterou justamente a bandeira sobre a qual foi feito o juramento dos 31 guerrilheiros, houve debate, a questão parece arrumada. Mas como diz o investigador há que estudar as diferentes narrativas veiculadas que se tentaram impor desde a independência, incluindo os poderes simbólicos, mas surgiu um elemento novo, o MPD não pretende cultivar grande parte desse passado. 

“Na sociedade cabo-verdiana da década de 1990, a maioria da população residente tinha nascido após o período colonial, até aos dias de hoje, a história do país no século XX não consta dos programas do ensino básico e secundário, e a investigação histórica nacional sobre o processo de luta pela obtenção da independência política é ainda incipiente”.

É altíssimo o valor da obra "As Voltas do Passado", é uma seriação de factos que geraram quadros mentais, levaram a decisões políticas irreversíveis mas que ganharam reversibilidade com a mudança de atores, com a chegada de novos ideários políticos, com o cansaço de ritos que se vieram a demonstrar serem vazios ou não corresponderem à realidade. A grande lição deste projeto é que ainda pouco sabemos sobre a guerra colonial e as lutas de libertação e que o legado das mudanças ou das celebrações provoca incómodos. Isto para além de haver ainda silenciamento de amplas vertentes do conflito. É um incentivo para que se continue a estudar para bem da memória de todos.

Obra de consulta obrigatória para todos os interessados no estudo das guerras de África.


Cerimónia de comemoração do 10 de junho, Terreiro do Paço
Os resgatados da Operação Mar Verde
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24215: Notas de leitura (1571): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24219: Historiografia da presença portuguesa em África (363): Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Mais vale tarde do que nunca, abre-se finalmente uma janela para se chegar a essa sociedade comercial que era a mais importante da Guiné colonial, a Casa Gouveia. Fazendo uma declaração de interesses, não sei quantos dias e quantas noites estive em Mato de Cão a ver passar em duas direções estas embarcações, por vezes ao nível de comboio, e não poucas vezes sob a custódia de uma embarcação da armada, designadamente do tipo LDM. Bati a várias portas, recebi muita afabilidade e zero resultados. E, imprevistamente, depois de mais uma tentativa junto do Ministério da Economia (não esquecer que a CUF foi nacionalizada em 11 de março de 1975, dando origem à Quimigal, processo da competência daquele departamento ministerial), sou informado de um arquivo no Barreiro que devo contatar um responsável da Fundação Amélia de Mello, por sinal alguém que ensinou na Faculdade de Direito de Bissau e que esteve à frente da gestão dos Armazéns do Povo. Abrem-se as esperanças de vir ver a papelada da Casa Gouveia, há sérias dúvidas quanto à fartura da documentação. Mas saí deste agradável encontro com uns bons quilos de papel e comecei por este belo trabalho de Maria Eugénia Mata. Digo sem prosápia que a sorte algumas vezes favorece os ousados, ou aqueles que não esmorecem.

Um abraço do
Mário



Procurar saber um pouco mais sobre a Casa Gouveia (1)

Mário Beja Santos

Há anos que procuro saber por onde andam os arquivos da Casa Gouveia, a principal empresa comercial da Guiné, associada à CUF. Finalmente abriu-se-me uma porta, há um arquivo no Barreiro, indicaram-me o nome de alguém que durante anos na Guiné estivera na gestão dos Armazéns do Povo, depois da libertação para eles convergiram o património da Casa Gouveia, Sociedade Comercial Ultramarina e Barbosa e Comandita, hoje assunto passado, tal como outros grandes empreendimentos, caiu na água levando ao tempo mais de 5 mil trabalhadores para o desemprego. Recebido com enorme afabilidade na Fundação Amélia de Mello, tenho a promessa de uma viagem ao Barreiro, ver o que há e não há. Entretanto, recebi uns bons quilos de publicações, comecei por este título Globalização em Português, atas do simpósio que se realizou na Academia das Ciências em Lisboa, Princípia, 2021. 

Chamou-me à atenção a comunicação de Maria Eugénia Mata com o título "Casa Gouvêa: Monetarização e Integração da Guiné na Economia Mundial". Vale a pena aqui respigar alguns dados pertinentes que permitem desvelar o poder deste empreendimento.

A investigadora dá inicialmente o quadro da Guiné até 1879, data em que a colónia se desafetou de Cabo Verde. Em jeito de síntese, observa a autora que:
“A colonização portuguesa ofereceu uma língua oficial comum, o português, que originou o crioulo, e uma moeda comum, o real até 1911, e o escudo de 1911 até à independência. Todos estes elementos acentuaram a perda da identidade étnica das populações da Guiné, em favor de uma identidade cultural nova, crioula, sobretudo urbana, não necessariamente apoiante da situação colonial prevalecente". E destaca uma figura que a historiografia ignora, Manuel António Martins, capitão de uma sumaca que fazia a ligação de Lisboa aos Açores e que se fixou como comerciante no final do século XVIII em Cabo Verde. Martins esclarece que o comércio de Bissau neste tempo tinha 400 fogos e 5 mil almas, estava na mão de comerciantes estrangeiros: “a ilha de Bissau tem dois comerciantes, e tudo mais são caixeiros de negociantes estrangeiros que para ali negoceiam, e se forem contemplados nestes números os dois primeiros não se errará muito”.

Escreverá em 1831 um relatório sobre a Guiné e sobre a forma como se deveria reorganizar a colónia. “Uma hipótese era o reforço militar com 300 a 400 homens, e a deportação de 8 mil homens das tribos de Papel (régulos e seus descendentes em redor de Bissau) para Cabo Verde. A alternativa seria a criação de uma companhia com avultado capital para o comércio com a Guiné, para substituir ao longo do rio Nunes as feitorias de diferentes nações que ali operavam, por acordo secreto com o régulo da entrada neste rio. Visionariamente, a companhia (que só veio a ter paralelo com a Casa Gouveia de 1921 em diante) sustentaria financeiramente as despesas locais, diminuindo os gastos públicos, pagando impostos sobre a exportação, que ajudariam a fazenda pública.”

Há, pois, companhias estrangeiras e autora revela que no caso da Guiné duas companhias puderam ser identificadas no Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria: a The British Caima Timber Estate Wood Company e a Compagnie de la Guinée Portugaise, de Bruxelas, fundada pelo marquês de Livery, que se propunha a atividades agrícolas e comerciais. É neste contexto que são referidos outros comerciantes, caso de António Silva Gouveia, que terá chegado a Bolama em 1879 e um conjunto de casas comerciais, que terão curta ou média existência. O Governo português compreende que tem de dar apoio a iniciativas nacionais, vão geógrafos para mapear as colónias e é neste contexto que aparecem referências à CUF, que tinha por alvo principal a compra de sementes oleaginosas e que trabalhava também com saboarias. Um elemento enviado pelo Governo para identificar o potencial agrícola e comercial da colónia, tenente Manuel César d’Oliveira irá referir o nome da CUF, esta empresa fora fundada em 1865. Importa aqui anotar que a autora falar sempre em Gouvêa, pois é este o nome que consta escrito no seu passaporte do Governo Civil de Lisboa, ele era natural de Pinhel, e aparece profissionalmente como importador-exportador.

Entra agora em cena o BNU, teve contrato em finais de novembro de 1901 para abrir na Guiné uma primeira agência em Bolama, previa-se outra em Bissau, só acontecerá em 1917. Pretendo aqui relevar um dado dos meus trabalhos quando andei no Arquivo Histórico da BNU, a documentação inicial da delegação em Bolama é praticamente inexistente, a explicação que me deram os arquivistas era de que o desempenho do BNU era efetuado pela Casa Gouveia em Bolama. Ainda guardo a expetativa de vir a folhear esta documentação…

A investigadora dá-nos o contexto de conflitos interétnicos que se vivia na Guiné desde a década de 1880, alude às concessões de terras a colonos, à exigência que a esses se vai pôr de apresentar os documentos justificativos da posse desses terrenos. Observa igualmente que, “em 1917, a administração portuguesa tinha em paz apenas o concelho de Bolama e o de Bissau, onde abriu a segunda agência do BNU na Guiné, em 1917. Tudo mais eram circunscrições militares”.

As notas bancárias chegam com o BNU, portanto. Ao princípio, houve imensos problemas, pois os comerciantes estavam habituados a fazer as transações com moedas de prata. E vem uma nota curiosa: “Em 1915, a agência de Bolama pediu à sede para adotarem cores variadas consoante os diferentes valores das notas, para tornar mais fácil o seu uso entre pessoas analfabetas.”

Se a circulação fiduciária se revelava difícil, não menos se revelou a difusão e a adoção do sistema métrico, os comerciantes usavam o palmo e a braçada como medidas para o têxtil. Mas as casas comerciais aceitaram sem nenhuma dificuldade o nome sistema de peso e medidas.

António Silva Gouveia foi eleito deputado à Câmara dos Deputados como representante da Guiné, de 1911 a 1915, e a autora observa que ele ali defendeu menores impostos sobre a exportação do amendoim, reclamou cais acostáveis para Bolama e Bissau e preços que permitissem dar sustentabilidade à economia da Guiné. Seguem-se outros dados importantes:
“Em 1921, militarmente pacificada a Guiné, a sua casa comercial A. S. Gouvêa, de comercialização de coconote, amendoim e óleo de palma, foi transformada numa sociedade. Gouvêa, nascido em 1852, morador na que é hoje a rua Victor Cordon, 19, 2.º andar, em Lisboa, e a Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes, Lda., afiliada da Companhia União Fabril, representada por Alfredo da Silva, constituíram a 19 de março de 1921 a A. S. Gouvêa, sociedade por quotas, por tempo indeterminado. Eram objetivos da sociedade a industrialização e o comércio de produtos coloniais, com exceção do negócio bancário.”

A sociedade interessava a Alfredo da Silva pelas matérias-primas. A frota da sociedade assegurava as ligações marítimas para o comércio bilateral de mercadorias e o transporte de passageiros em 3 classes de confortos e de preços, de acordo com a localização dos camarotes. O que os documentos nos dizem é que os navios da sociedade levavam para a Guiné produtos alimentares exportados pela metrópole, como azeite e azeitonas, os diferentes tipos de vinhos, batata, leite em pó e condensado, frutas e frescos e outros elementos dos hábitos alimentares portugueses, como a sardinha, o bacalhau, classificados como géneros de primeira necessidade.

(continua)


Antigo armazém da Casa Gouveia em Bolama
Casa Gouveia em Bissau
Instalações da então Casa Gouveia no Ilhéu do Rei
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24199: Historiografia da presença portuguesa em África (362): Discurso político de Castro Fernandes, Bissau, 1960, Comemorações Henriquinas (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 29 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24175: Historiografia da presença portuguesa em África (361): Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Talvez seja útil dar aqui uma justificação destes elementos soltos que vou recolhendo na Biblioteca da Sociedade de Geografia. Considero, em primeiro lugar, que a historiografia carece do mais rigoroso levantamento que as circunstâncias permitem quanto a publicações da época, desde artigos nestes anuários, imprensa periódica, boletins, relatórios da administração, e muito mais. É na conjugação destas peças que podemos ir clarificando a nossa presença colonial. Em segundo lugar, e como este artigo de anuário permite antever, a colónia estava à procura de um novo rumo, a administração é incipiente, há experiências na produção agrícola, sonhou-se com a criação de gado (rotundo falhanço), criaram-se casas agrícolas, irão falir uma a uma (caso da Sociedade Agrícola do Gambiel), não havia o cuidado de atrair a população a um projeto onde eles se sentissem parte integrante, os gestores limitavam-se a querer pagar à jorna, não entendiam que o agricultor precisa de ter ligações à terra ou saber que está a tirar vantagens de um contrato de associação. Tinham entrado em força os intermediários, seguir-se-ão a Casa Gouveia e a Sociedade Comercial Ultramarina, adquirirão terras que nunca exploraram. Não conheço nenhum estudo rigoroso sobre todos estes falhanços do experimentalismo agrícola, a despeito dos estímulos dados para o conhecimento de culturas ajustadas. E ainda hoje se pode ler com pertinência o conjunto de artigos que Amílcar Cabral escreveu quando tinha responsabilidades na Granja Agrícola de Pessubé.

Um abraço do
Mário



Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917

Mário Beja Santos

É bem curioso o que neste volume do Anuário Colonial, editado pela Imprensa Nacional no mesmo ano de 1917 se diz sobre a colónia, tanto dependente de Cabo Verde como sobre a sua história em tempos de autonomização. Abre o artigo com a narrativa do descobrimento da Guiné (dados hoje ultrapassados), segue-se uma descrição sobre o comércio feito pelos moradores da ilha de Santiago, desde o início do séc. XVI, diz-se que o seu principal trato se efetuava no reino de Budumel e particularmente na angra de Besiguiche, e dali se espalharam pelos rios Gâmbia, São Domingos e Casamansa, rio Geba e Rio Grande de Buba. Os portugueses tinham uma feitoria nos Banhuns, na região de São Domingos, rio que também era chamado de Farim. No fim do séc. XVI, foi nomeado primeiro Capitão-Mor de Cacheu António de Barros Bezerra, que fortificou a povoação. A narrativa prossegue elencando tratados, litígios permanentes com os autóctones, refere-se a presença francesa e inglesa e assim chegamos à questão de Bolama. Um dado curioso deste tópico é que não há referência à convecção luso-francesa depois de todas as peripécias da gradual ocupação dos franceses do Casamansa. Esta resenha histórica fina-se com a menção ao desastre de Bolor, que conduziu à separação da Guiné de Cabo Verde.


É mais adiante, a propósito da superfície da Guiné que se alude ao Tratado de 12 de maio de 1886 e aos respetivos trabalhos de balizagem, o número avançado é de 36.125km. Faz-se igualmente menção à orografia, portos e população. Diz-se haver falta de dados seguros sobre a população da Guiné. “Os mais dignos de crédito fazem atribuir à colónia aproximadamente 289.000 almas.” Segue-se uma citação do livro sobre a Guiné portuguesa redigido pelo antigo governador Carlos Pereira: “No regulado do Cuor, situado na margem direita do Geba, defronte de Bambadinca, habitavam até 1908 Biafadas, cujo chefe Infali Soncó. Depois de ter sido destituído, os Biafadas abandonaram o Cuor, indo uns para o Oio e outros para Quínara. O governador investiu como régulo do Cuor o Serua Abdul Injai, ao qual se juntaram muitos outros indígenas pertencentes a diversos grupos étnicos fora da Guiné (Turancas, Serua, Saracolés, etc.). Abdul Injai não conseguiu que o Cuor se povoasse de indígenas da colónia. E como o território é pobre, foi abandonado por Abdul e ocupado imediatamente pelos Oincas, reconheciam o território como meio de comunicação indispensável com o rio Geba.”

Na referência à navegação, menciona-se que o Governo mantém uma esquadrilha de lanchas-canhoneiras, pequenos vapores e lanchas de vela. Falando das linhas de navegação, é recordado que além dos vapores ingleses fazer o serviço costeiro ao longo da costa da Senegâmbia, os portos de Bolama e Bissau estão ligados à metrópole pela carreira mensal que também passa pelo arquipélago de Cabo Verde, e adianta-se que o porto de Bissau está ligado mensalmente com a vizinha colónia francesa por uma carreira de vapores franceses.

As comunicações telegráficas eram efetuadas por cabo submarino, e mais se diz que a comunicação telegráfica terrestre estava no início. As povoações mais importantes são mencionadas: Bolama, Bissau, Cacheu, Farim, Geba, Buba e Cacine.

No destaque feito ao regime político administrativo, adianta-se que as possessões da Senegâmbia eram consideradas num concelho em tudo sujeito ao governador-geral da província de Cabo Verde, e mais se diz que este concelho era dividido em praças e presídios, administrado por um governador chamado da Guiné portuguesa, residente em Bissau. As praças fortes, presídios e mais pontos habitados, dependentes do Governo, tinham um chefe responsável. O artigo aproxima-se da desanexação da Guiné face a Cabo Verde. Por carta de Lei de 18 de março de 1879, foi o território da Guiné desanexado da província de Cabo Verde, constituindo-se uma província com governo independente, ficando igual em consideração e atribuições ao Governo de São Tomé e Príncipe, e tem a sede em Bolama.

Lendo o artigo com atenção, fica-se a saber que o governador é omnipotente, nomeia os chefes responsáveis das ditas Praças Fortes e Presídios, é ele que nomeia a comissão municipal, fica obrigado a visitar anualmente duas vezes, pelo menos, a praça de Cacheu e uma vez todos os fortes e presídios que fazem parte do seu governo; também em cada praça ou presídio havia um chamado juiz dos grumetes, igualmente nomeado pelo governador da Guiné. Para o autor do artigo, há outras datas a ter em conta: em 21 de maio de 1892, dá-se a organização do distrito autónomo da Guiné; em 18 de abril de 1895 é criado o distrito militar autónomo da Guiné; e quanto a circunscrições administrativas há a registar os concelhos de Bolama e Bissau e as circunscrições de Geba, Cacheu, Farim, Buba, Cacine, Brames e Bijagós. Esclarece-se que na Guiné não existem indústrias próprias. Destaca-se a riqueza agrícola, sendo a borracha, o coconote, a mancarra, a cera e o arroz os principais produtos (atenda-se neste tempo a produção orizícola ainda era muito baixa).

Quanto ao quadro de instrução pública, era composto por 9 professores: 2 em Bolama, 1 em Bissau, Cacheu, Farim, Bafatá, Canchungo, Bambadinca e Buba; e 4 professoras em Bolama, Bissau, Cacheu e Farim. A estrutura viária era praticamente inexistente, como se escreve: “Há execução de um troço de extensão de 3.700 metros na estrada de Bolama à Ponta Oeste, não existem na Guiné vias de comunicação que mereçam a classificação de estradas. Há largos caminhos rasgados no mato, acompanhados lateralmente de valetas em terra, bastante regularizados alguns, para trânsito de veículos, se os houvesse na província.”

No ano de 1915, os serviços telégrafo-postais da Guiné eram executados por 8 estações telégrafo-postais, por 6 estações exclusivamente postais e 2 estações exclusivamente telegráficas, estas pertencentes à Eastern Telegraph Company. No que toca à organização militar, diz-se que o governador é o comandante superior de todas as forças militares, tem ao seus dispor 2 companhias indígenas de infantaria e 2 secções de artilharia. E quanto aos serviços da marinha, regista-se uma esquadrilha composta pelas lanchas-canhoneiras Zagaia e Flecha e dos vapores Bissau, República, Rio Corubal, Rio Mansoa, Capitania e Oio. E ficamos a saber, quanto a instituições de saúde, que há em Bolama um hospital militar e civil e delegações e enfermarias em Bissau, Cacheu, Farim e Bafatá.

Carta da colónia da Guiné, 1933
Antigos armazéns da Casa Gouveia, Bolama
O Pidjiquiti, cerca de 1890
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24162: Historiografia da presença portuguesa em África (360): As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24161: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte I: Eu estive lá (Mário Dias)

Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs cabos milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo): estiveram juntos na tropa, entre 1959 e 1960, até ao dia (novembro de 1960) em que o Domingos Ramos desertou, passando-se para o lado dos nacionalistas e independentistas do Amílcar Cabral (*)

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Passados tantos anos, continua a haver curiosidade, da parte dos nossos leitores, sobre o que se passou em Bissau, no cais do Pijiguiti (lê-se: Pidjiguiti), ou  Pindjiguiti (como escrevem, mais recentemente, os guineenses), ainda uns anos antes da guerra em que estivemos envolvidos.  No nosso blogue, publicámos logo no início duas versões, de Luís Cabral (na altura "guarda-livros" da Casa Gouveia) e do nosso camarada Mário Dias, um dos históricos do nosso blogue (**), e que frequentou, em 1959,  o 1.º CSM que se realizou na Guiné e de que fizeram parte alguns futuros quadros do PAIGC, como Domingos Ramos, o Constantino Teixeira ou o Rui Djassi.

Escrevemos na altura (***):

(...) O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional", na narrativa do PAIGC (que então se chamava apenas PAI).

Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos  marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF – Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. 



Notícia de primeira página do "Diário de Lisboa", edição de 4 de agosto de 1959 (em que o destaque ia para as peripécias da XXII Volta a Portugal em Bicicleta): a agència Lusa, noticiava, a partir de Lourenço Marques, um "fait-divers": "Elefantes trucidados pelo comboio no vale do Limpopo"... 

Fonte: Citação:(1959), "Diário de Lisboa", nº 13166, Ano 39, Terça, 4 de Agosto de 1959, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_17262 (2023-3-22)

Na época, é bom lembrá-lo,  a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo. E, nós, adolescentes (eu tinha 12 anos), estávamos longe de pensar que a futura guerra da Guiné iria sobrar também para nós (dez anos depois, no meu caso)...

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa. (...)

Guiné-Bissau > Bissau > 1976 >  Planta da cidade em mapa publicado a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). Imagem gentilmente cedida por A. Marques Lopes (2005).
 

Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959: 

depoimento de Mário Dias (***)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959 (*****). Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas), Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas 
– umas à vela e outras a motor  – que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.



Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente  –   na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente 
 [António] Carreira – sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica 
 [na altura, Subsecretário de Estado da Aeronàutica, Kaúlza de Oliveira de Arriaga (1955 - 1961)].

Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca.

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão 
  [José Severiano]  Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá.. Foto do 
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. 

A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com es
pingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. 

Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local [o intendente António 
Carreira],  os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.

– Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? 

As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe  que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. 

Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

(i)  O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

(ii)  Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

(iii) Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

(iv) Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (****), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

(v) E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Parênteses retos: LG]



Guiné-Bissau > Bissau > 2005 > Também eles, os filhos, netos e bisnetos do Pidjiguiti, os filhos, netos e binetos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros e trabalhadores do Porto do Pidjiguiti, em 3 de agosto de 1959, têm direito à verdade.(*****)

Foto: © Jorge Neto (2005). Todos os direitos reservados
 [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas de L.G.:



(...) Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné. (...)


(****) Fui eu que fiz referência, em 2006, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos soldados (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

(*****) Vd. poste de 21 de março de 2023  > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24088: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte III: A fuga para Dacar, nos princípios de 1960, com a ajuda do madeireiro e antigo deportado político Fausto da Silva Teixeira


Guiné > Bissau > s/d > Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 144". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal). A Associação (também comhecida por Câmara do   Comércio de Bissau) ficava junto ao palácio do governador... O projeto é de um jovem arquitecto de Lisboa, Jorge Chaves (1920-1981), e a remonta  à segunda  metade da década de 50. Depois da saída dos portugueses em setembro de 1974, a sede da Associação Comercial  passará a ser, muito naturalmente, a sede do PAIGC, ou seja dos novos senhores da guerra, com Luís Cabral, irmão de Amílcar Cabral (1923-1973), como primeiro presidente da jovem república da Guiné-Bissau.

Na opinião de outros arquitectos de renome que trabalharam para África, o edifício desenhado por Jorge Chaves (com murais de José Escada), pelo arrojo das suas linhas, conforto, mordernidade e até riqueza, não ficava atrás da arquitectura de Brasília, por exemplo, e era unanimemente considerado como o melhor edifício que Portugal  deixou  em Bissau, do ponto de vista arquitectónico.

Nascido em Santo Antão, Cabo Verde, J
orge Chaves não pertencia ao Gabinete de Urbanização Colonial (ou do Ultramar, como passou a ser chamado, a partir de 1951), e daí talvez a razão do projeto ter uma modernidade que não seria possível dentro do paradigma da arquitectura colonial de então, marcado pelos constrangimentos da funcionalidade, adaptação ao clima, resistência e uso de materiais de baixo custo de manutenção.

Foto: © Agostinho Gaspar (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]


Anúncio comercal, publicado em Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2.  Digitalização: © Mário Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné LG. O Mário Vasconcelos faleceu, infelizmente, em 2017.]

1. O madeireiro Fausto da Silva Teixeira podia ser considerado "simpatisante" da causa nacionalista (leia-se: do PAIGC). Mas nunca foi "militante"... Tinha serrações modernas, mecânicas, em Bafatá, Fá Mandinga e Banjara, antes da guerra.   A sua firma foi fundada logo em 1928. Sabemos que em 1947 já estava plenamente integrado na sociedade guineense, sendo um empresário respeitável... Como o próprio Amílcar  Cabral (AC), conceituado engenheiro agrónomo até 1960...

No nosso blogue temos uma dúzia de referências ao Fausto Teixeira. Num dos postes que já publicámos (*), reproduzimos um documento, de setembro de 1966, dactilografado, de 16 páginas (capa incluída), que tem a chancela do PAIGC, e  que se destinava a dar a conhecer (e a combater) "os interesses capitalistas estrangeiros (portugueses e não portugueses) na Guiné e Cabo Verde" (sic) (*). Estranhamente (ou nem por isso),  não vem o nome da firma Fausto da Silva Teixeira.

De facto, no ponto XII, há referências aos "madeireiros", mas as empresas citadas são apenas três, e nenhuma delas nossa conhecida... A omissão do nome do Fausto da Silva Teixeira, é capaz de fazer sentido.

Na altura dissemos que, em relação à fonte da informação documental, no essencial, e tendo em conta o detalhe dos dados, parecia-nos ser de origem portuguesa, fornecida pelos meios oposicionistas que então combatiam o regime de Salazar. (talvez a partir de Argel).

O nome de Fausto Teixeira  também  não aparece na lista das 600 personalidades que constam, como tal, no respetivo blogue e na respetiva página do Facebook ("notas biográficas de cidadãs e cidadãos que lutaram contra o fascismo e o colonialismo"). 

Mas o mesmo acontece com outros dos seus companheiros de desventura: de facto, também não contam dessa lista os nomes de Gabriel Pedro (1898-1972) (igualmente desterrado para a Guiné e depois para o Tarrafal, tal como o seu filho Edmundo Pedro) e de Manuel Viegas Carrascalão (1901-1977) (operário gráfico, anarcossindicalista, preso sob a acusação de bombismo e de pertencer, tal como Fausto Teixeira e Gabriel Pedro, à "Legião Vermelha", acabando por ser desterrado para Timor em abril de 1927, no navio "Pêro de Alenquer", numa viagem que vai demorar 5 meses, com passagem por Cabo Verde, Guiné, onde desembarcam alguns deles e entram outros, e Moçambique onde é rendido o comandante do navio.).

No caso do Fausto Teixeira, a omissão do seu nome,  talvez possa ser devida ao facto de lhe terem perdido o rasto, desde que, com vinte e poucos anos, foi desterrado para a Guiné, em 1925, não pelo "fascismo" da Ditadura Militar / Estado Novo,  mas ainda pela I República em fim de vida.

De qualquer modo, Guiné e Timor eram dois dos piores sítios do nosso glorioso Império para onde o Estado mandava os desgraçados dos "desterrados políticos", sendo ali entregues à sua sorte. Para este inferno, que eram estas duas colónias, iam em geral os indivíduos de profissões manuais ou, no caso de militares, os soldados e os marinheiros. Enfim, até no exílio e deportação, todos eram iguais mas uns eram mais iguais do que outros.

Em todo o caso sabe-se, desde pelo menos a publicação, em Portugal, em 1984, das memórias do Luís Cabral ("Crónica da Libertação", Lisboa, O Jornal, 464 pp., uma edição miserável, o livro, brochado, em que as folhas nems equer são cosidas, apenas coladas, desconjuntando-se todo...), que a fuga deste para Dacar, capital do  Senegal, em princípios de 1960, só terá sido possível com a cumplicidade  e ajuda de dois portugueses, deportados políticos, e oposicionistas ao Estado Novo:

(i)  Maria Sofia Carrajola Pomba [Amaral da Guerra, por casamento], farmacêutica, dona da Farmácia Lisboa, em Bissau (alguns dos seus ajudantes ou empregados destacar-se-iam depois como militantes  do PAIGC, o Epifânio  Souto Amado e o Osvaldo Vieira); apesar de ter ficha na PIDE, vai para a Guiné, nos princípios dos anos 50, com o marido:

(...) "o seu apoio, ao embrionário nacionalismo independentista, é reconhecido pelos históricos dirigentes do PAIGC  que não poupam elogios ao seu papel na luta anticolonialista, nomeadamente no auxílio à organização clandestina de reuniões, na prestação de informações relevantes sobre prisões iminentes, como a de Carlos Correia, e na preparação de fugas, como a de Luís Cabral (auxiliado também por Fausto Teixeira)" (**)

(ii)  Fausto Teixeira (há dúvidas sobre a sua idade: um seu neto diz que nasceu em 1900 e morreu em 1981, mas sabe-se que desembarcou na Guiné em 1925).

2. Vamos ver, na "Crónica da Libertação",  algumas passagens sobre a fuga do Luís Cabral (LC)

O LC era "guarda-livros" (noutras passagens intitula-se contabilista...)  na Casa Gouveia, que pertencia ao Grupo CUF. Mas o seu trabalho político clandestino, no seio do PAI (ainda não se usava a sigla PAIGC) começou a levantar suspeitas da polícia política, mais organizada e ativa depois dos "acontecimentos" de 3 de agosto de 1959 (greve dos marinheiros e trabalhadores das docas do Pijiguiti). 

Na altura o PAI ainda estava confinado a Bissau e era formado por pouca gente,  sobretudo de origem cabo-verdiana, pequeno funcionalismo de 3 ou 4 empresas: além da Casa Gouveia, a NOSOCO, o BNU, os CTT... E a versão sobre o Pijiguiti, onde a Casa Gouveia e o seu subgerente, António Carreira, tiveram muitas culpas no desfecho trágico da greve (pp. 65-70) está muito mal contada por  LC: o PAI quis chamar a si, indevidamente, os louros...

Em contrapartida, "na Casa Gouveia, o meu trabalho profissionalmente sério continuava dando os seus frutos, num momento em que os homens do grupo CUF (Companhia União Fabrl) começavam a aceitar a necessidade de alguma africanização dos quadros superiores da empresa" (pág. 81).

Com uma boa opinião dos patrões, gabinete novo, casa própria, um bom salário, a mulher também tinha um bom emprego, um casal com respeitabilidade e  prestígio na comunidade, etc., o LC tinha tudo para fazer uma boa carreira na empresa. Mas a sua opção foi outra: seguir o irmão, AC, na luta pela independência da Guiné e Cabo Verde. 

Estamos na véspera na inauguraçao da Associação Comercial, Agrícola e Industrial da Guiné, um edifício moderno, de arquitetura arrojada para a época, pago pelo Governo central.

Aristisdes Pereira,  que era chefe da Estação Telegráfica dos CTT (e o Fernando Fortes era  o chefe da Estação Postal, na prática os "donos" dos CTT) , em Bissau, consegue interceptar um telegrama em que o administrador da Gouveia (que tinha vindo  de propósito de Lisboa para assistiir às "festividades" em Bissau)  telefonou para a sede a pedir um novo guarda-livros para a empresa, já que o LC ia ser preso... Mas só "depois de encerradas as contas  do ano comercial findo",  a pedido da própria empresa...  (pág. 83), o que dá uma ideia da promiscuidade entre a PIDE e alguns meios empresariais...

A notícia, confirmada pela dra. Sofia Pomba Guerra (que tinha bons contactos com, pelo menos,  um oficial do exército), pôs em marcha o dispositivo para a fuga: "um antifascista português estava pronto a encarregar-se de me fazer sair, a todo o momento, do país" (pág. 83).

Fausto Teixeira é descrito como um "deportado político e muito conhecido pelas suas opiniões contra o governo fascista".

Pormenores da fuga, relativamente segura e discreta,  podem ser lidos nas páginas 83-87.

(i)  na véspera de partir o LC não escapou aos rituais da superstição que os seus "camaradas de Partido" lhe impuseram: ao sair de casa tinha que deixar cair um ovo no chão; se ele não se partisse,  devia desistir da viagem (!) (pág.  84);

(ii) o automóvel do Fausto era um Peugeot 203, pintado de cor azul forte ("se a memória não me falha") (pág .85);

(iii) o LC entrou no carro do Fausto, ja era noite, frente ao cinema UDIB, um dos sítios mais iluminados da Av. da República,  deitou-se no chão,  enquanto o carro  seguia lentamente pela Av. da República acima:

(iv) O condutor, por sua vez, "ia tranquilamente saudando as pessoas pelo caminho e  até parou  escassos segundos para dizer  algumas palavras ao inspector da PIDE que estava sentado na esplanada na Pastelaria Império " (pág. 85);

(v) a PIDE nunca suspeitou do plano: esperava que o LC caísse na armadilha de levar o seu próprio carro, daí ter posto guardas na ponte de Ensalma e à entrada de Mansoa: Fausto usou um dos seus camiões para ludibriar a vigilância dos guardas...

(vi) conhecido dos guardas, o Fausto não teve necessidade de parar: o LC atravessou a ponte escondido no  camião: já na estrada de Nhacra,  saiu do camião e voltou a entrar no automóvel e tudo correu bem até ao fim da viagem, perto da fronteira com o Senegal:

(vii) (...) "foi uma viagem agradável. O meu companheiro falou muito da sua vida política em Portugal, da sua prisão e do seu envio para a Guiné. Aqui o Governador deportou-o para a ilha de Bubaque, donde não podia sair.  Pouco a pouco a pressão  foi no entanto diminuindo, até ele poder viver como toda a gente" (pág. 85).

(viii) o LC acrescenta mais, para justificar o gesto altruísta do madeireiro:

 "Queria ajudar a luta de libertação da Guiné. (...) Considerava-se devedor dessa contribuição. Para já, estava em condições de tirar do pais qualquer militante que tivesse que sair. (...) Tinha pintado uma tira branca numa grande árvore, mesmo à entrada do entroncamento  que conduzia à serração, partindo da estrada de Mansabá a Bafatá" (pp. 86/87).

(viii) E conclui:

(...) "Entrámos na serração e logo a seguir continuámos em direção à fronteira, perto da localidade de Fajonquito. A  estrada tinha sido aberta pela Missão Geo-Hidrográfica e nunca era utilizada. A mata era tão cerrada que muitas vezes o caminho parece de longe não poder dar passagem a um carro. (....) Pouco depois, passávamos ao lado da tabanca de Fajonquito e  em seguida o meu companheiro parava o carro e mostrava-me  a tabanca senegalesa de Salekenié. (...) Devia ser por volta das três horas da madrugada quando nos separámos. (pág. 87).

Admitindo que o Fausto e o LC tenham partido às 20h00 de Bissau e chegado às 3h00 da manhã, à fronteira, logo a seguir a Canhanima (com Fajonquito à esquerda) e Cambaju (o "chão" do nosso Cherno Baldé) terão percorrido pouco mais de 200 km em 6/7 horas... Na época, e em plena estação seca (estávamos em janeiro), e ainda não havendo guerra (minas, emboscados, abatises...) até foi uma boa média... (No tempo das chuvas, e em plena guerra, eu cheguei a fazer um quilómetro por hora, na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho...)

Como não conhecemos outras versões deste episódio, não podemos confirmar ou infirmar a veracidade dos factos. Mas tudo indica que se terá passado mais ou menos assim como o LC descreve. (****)

PS - A grafia correta da aldeia fronteiriça senegalesa, em frente  a Cambaju,  deve ser Selikenié, segundo o mapa da Google,  e não Salekenié, como escreve o LC. (Mas aqui o Cherno Baldé deu-nos uma ajuda: a grafia portuguesa é Saliquinhé; não confundir com  Saliquinhedim, a sul de Farim, que os militares portugueses conheciam melhor por K3; os topónimos guineenses são tramados.)




Guiné > Carta da província (1961) > Escala 1/500 mil  > Provável percurso do Luís Cabral e do Fausto Teixeira, numa noite de janeiro de 1960, de Bissau até à fronteira do Senegal (Selikinié / Saliquinhé), passando por Mansoa. Mansabá, Banjara, Camamudo, Contuboel e Cambaju... Segundo o Cherno Baldé, os nossos homens teriam evitado Bafatá e seguido de Banjara para Camamudo, e depois apanhando a estrada Bafatá-Contuboel-Senegal... Fajonquito fica ao lado de Canhámina(estamos em pleno coração do "chão" do nosso amigo Cherno Baldé).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)

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(***) Vd.postes de:


18 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17482: (De) Caras (84): Fausto Teixeira, deportado político em 1925, empresário em Bafatá, de quem o 2º tenente Teixeira da Mota, ajudante de campo do governador Sarmento Rodrigues dizia, em 1947, ser um "incansável pioneiro da exploração de madeiras da Guiné"... Mais três contributos para o conhecimento desta figura singular (José Manuel Cancela / Jorge Cabral / Armando Tavares da Silva)

16 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17477: (De) Caras (83): Ainda o madeireiro Fausto da Silva Teixeira, com residência familiar em Palmela, amigo do "tarrafalista" Edmundo Pedro... Apesar da "amizade" com Amílcar Cabral e Luís Cabral, teve um barco, carregado de madeiras, atacado e incendiado no Geba, a caminho de Bissau...

8 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17447: (De) Caras (75): Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira, um dos primeiros militantes comunistas a ser deportado para a Guiné, em 1925, dono de modernas serrações mecânicas (Fá Mandinga, Banjara...) a partir de 1928, exportador de madeiras tropicais, colono próspero e respeitável em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960..."Quem foi, afinal, o meu avô?", pergunta o neto Fausto Luís Teixeira (nascido em Ponte Nova, Bafatá, onde viveu até aos três anos)..

(****)  Vd. postes anteriores da série:

2 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24031: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos- Parte I: Ainda não foi desta que o autor nos contou toda a verdade...