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terça-feira, 18 de julho de 2023

Guiné 61/74 – P24485: (Ex)citações (428): Restos de uma saudade que se definha no tempo e onde a passagem pela Guiné deixou também as sua marcas. De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Restos de uma saudade que se definha no tempo e onde a passagem pela Guiné deixou também as sua marcas

De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce

Porra! Desculpem-me camaradas por esta dicotomia de palavreado porque sou cidadão do Baixo Alentejo, natural da freguesia de Aldeia Nova de São Bento e oriundo de famílias humildes. Gentes que, modestamente, souberam laborar, com precisão, o” pão que o diabo amassou”. Não foram pessoas letradas, mas gentes que bem souberam, com o seu erudito conhecimento, distinguir “o trigo do joio”.

Com um dujbi a tirar água de poço em pleno mato
Na perceção de um antigo combatente, eu de carne e osso, fui um fruto oriundo de excelentes pomares, estes polvilhados de estrume de animais que me deram vida e que foi ganhando alicerces que me permitiram chegar à idade presente, 72 anos, e ser quem hoje o sou. O meu saudoso pai, Francisco Saúde, foi um dos militares que “guardaram” a fronteira entre Portugal e Espanha no tempo da guerra civil espanhola (1936). Dele, meu pai, recolhi excelentes ensinamentos que guardarei para sempre neste já débil corpinho.

A cédula militar do meu pai, com a sua impressão digital

Estamos em pleno século XXI, onde a voraz notícia se transmite facilmente com os meios tecnológicos de que facilmente cada um de nós dispomos. O tempo de irmos aos correios para contactarmos alguém telefonicamente, e que estava longe, era do tipo em que a telefonista lá colocava uma “cavilha” no seu “painel” telefónico, sendo que ouvir do outro lado da linha alguém, entretanto solicitado, obedecia a um demasiado tempo de espera. Ou enviar um telegrama, ou quando a notícia chegava através de uma telefonia, a pilhas, ou a chegada da televisão a preto e branco. Recordo, desses tempos, ouvir aquela trova do antigo regime quando a guerra rebentou em território angolano e que dizia: “Angola é nossa!”. Ora, eis que anos mais tarde o meu destino militar passou por conhecer uma das antigas províncias ultramarinas.

Hoje, porém, todo esse voraz passado dissipou-se nas auréolas do tempo, sabendo nós o quão difícil fora chegar ao momento presente, onde o poder tecnológico permite examinar o Mundo de uma outra forma pronta, ou seja, de fio a pavio, ou conhecer conteúdos de uma outra guerra, que sabemos que existe, em cima do acontecimento.

Sento-me ao meu computador portátil e lá vou debitando ideias que o meu coração me suscita, um coração que teima em bater, não obstante as delinquências sofridas ao logo da vida, mormente como protagonista de um antigo combatente numa Guiné a ferro e fogo. Sim, porque na verdade a vida, em toda a sua extensão, é uma ligeira passagem por este cosmo terrestre e o nosso final irreversivelmente certo.

Longe vão os tempos em que a “máquina” humana correspondia na sua totalidade. Agora… “emperrou”

Presentemente, a minha “máquina” acusa irreparáveis falhas que o tempo jamais recuperará, dado que as peças incriminam desgaste, o que é normal, e não usufruírem do deleite de uma retificação, ou da sua oportuna substituição. A tal “máquina” que sempre correspondeu aos meus imperecíveis desejos, mesmo quando fui um dos muitos camaradas da guerrilha em território guineense. Aquela velha “máquina” humana jamais recuou perante as adversidades surgidas. Ficaram as imagens que detenho e que viajarão comigo para a perpetuidade.

De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce tudo foi rápido. Mas, fica para a história a nossa passagem por este planeta de onde colhemos excelentes momentos, sendo que existiram ainda outros piores, sendo o caso específico, e em particular, alguns dos instantes constatados na guerra de além-mar. Tudo, no fundo, fez parte das nossas vivências. Regressámos a solo lusitano vivos e sãos, sendo que os nossos corpos regressaram tal como partiram. Outros, infelizmente, não poderão partilhar da mesma filosofia de uma vida.

Pessoalmente parti, muito novo, da minha aldeia, Beja recebeu-me e conheci a algazarra de uma Lisboa deveras eletrizante. Nasci, após o fim da 2ª Guerra Mundial, à beira das searas e de um campo essencialmente marcado pelo prisma do literalmente saudável. Pelas ruas da minha aldeia, umas empedradas outras em terra batida, delineei os meus primeiros passos de vida. Vi mulheres com xailes pretos a tapar-lhes o rosto e parte do corpo, ou conterrâneas cujos xailes tinham um preceito que anunciava a presença de um filho na guerra colonial, os ranchos de homens que aos domingos percorriam o povoado parando às portas das tabernas e lá seguia o voluntário a caminho do taberneiro a comprar uma garrafa de vinho, trazendo consigo um copo por onde todos bebiam, enquanto os outros lá se lançavam em mais uma moda.

Assisti, ainda, ao abrir de valas cujas canalizações tinha como efeito que água canalizada chegasse a casa de quem o quisesse, ou a ida à bica comunitária situada no rossio, ou ao poço lobo. Recordo, com nostalgia, o tempo das matanças do porco. Da construção do depósito da água. O barulho de uma carroça, puxada por animais, a deslocar-se sobre as ruas empedradas. As aleluias com os moços, sempre em correria, andarem de loja em loja em busca de rebuçados, ou figos, de entre tantas outras brincadeiras de criança. Das profissões de então, sendo muitas delas agrestes. A luta das classes sociais. De homens que deixaram história. Do tempo que eu, com quatro ou cinco anos, fui “abarroado” pelos cães galgos do “Galdrapas” quando ao sair da taberna do meu tio Zé Torrão, rua do Sobral, se atiraram a mim e me “sacaram” uma sande que, entretanto, comia.

Dos jogos de futebol dos rapazes e do jogo do ringue das moças. O saltar aos “aviões”, do pau da lua ou do eixo. Memórias, embora sintéticas, que nos fazem viajar no tempo e que nos enviam para a nossa juventude. Ou uma ida aos ninhos lá para as bandas do monte do campinho onde o montado imperava e um barranco no qual as mulheres lavavam a roupa, ou uma ida para as califórnias, uma zona onde havia figos de qualidade. Beber água do poço do “tio” Matias e com a rapaziada exausta pelo calor que se sentia. Poço do “tio” Matias que ao lado tinha um forno onde se coziam os tijolos.

Da feira anual de setembro, 1, 2 e 3, na minha aldeia, e das romarias que nos enchiam de prazer e orgulho. A Festa das Santas Cruzes é disso um exemplo óbvio. O dia de São Sebastião, 20 de janeiro, a sua procissão e a venda de ramos de laranjas. E tão bem que o nosso João Lucas o fazia.

Saudades de um tempo que se definhou enquanto o “diabo” esfregou os olhos. Do Bairro Alto ao Algés, nas baixas, passando pela malta da rua da Atafona, do Rossio, do Bairrinho, do Rabo Toureiro, de entre muitos outros, todas essas “guerrilhas” futebolísticas amigáveis o tempo queimou. Ou, dos jovens que partiam para a guerra do Ultramar e o presumível “luto” de ausência que os pais e irmãos assumiam.

Hoje, encostado, não a um cajado, mas a uma bengala, lá vou prosseguindo o meu viver, “queimando” as pestanas dos meus olhos, tendo como finalidade deixar memórias para as gerações presentes e futuras poderem observar desde que o interesse lhes desperte a atenção. Testemunhos também de uma Guiné onde fui mais um dos camaradas que se depararam com tal conflito.

O meu AVC que leva praticamente 17 anos de “convívio” com a minha pessoa e que data a 27 de julho de 2006, uma madrugada que nunca esquecerei, não me derrubou, pelo contrário deu-me ganas que me trouxeram eloquentes prazeres.

Comandando uma coluna que se dirigia a Bafatá

Um dia partirei para um outro mundo, ficando, porém, a certeza que repousarei para a eternidade na terra que me viu nascer: Aldeia Nova de São Bento. Restos de uma saudade que se definha no tempo, ou seja, de uma juventude saudável a um envelhecer agridoce, sabendo, no entanto, que naquele recanto lá descansam camaradas e amigos infância, da minha geração, que perderam a vida nas então três frentes da guerra colonial.

Ficará, porém, no meu cardápio uma passagem pela guerrilha na Guiné, território onde conheci o quão difícil fora assumir um conflito onde os poderes das armas impunham, obviamente, respeito. Mas, jamais me sairá da minha memória a despedida dos jovens mancebos que eram enviados para as frentes de guerra. Na minha aldeia, a exemplo daquilo que passava em quase todo o nosso território, era comum as famílias e amigos se juntarem para prestarem ânimo a quem partia. Ou, os regressos daqueles que chegavam aparentemente bons de saúde, ou daqueles que faziam essa viagem de regresso, mas “embrulhados” em quatro tábuas de madeira.

Retratos de uma vida que ficarão eternamente no meu mero historial! 

Abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 5 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24367: (Ex)citações (427): Retratos de existências em tempos de conflito armado. O existencialismo humano (José Saúde)

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Guiné 61/74 – P24367: (Ex)citações (427): Retratos de existências em tempos de conflito armado. O existencialismo humano (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Retratos de existências em tempos de conflito armado

O existencialismo humano

Comecemos pelo princípio do existencialismo humano, ou seja, pela existência de um qualquer ser vivo, mesmo mínimo que ele seja, numa esfera chamada Terra. Exploro, ainda que sinteticamente, que nós, indivíduos pensantes, sentimos e agimos de acordo com os momentos vividos, uma vez que esta transversal veracidade cujas linhas, embora oblíquas, se mantêm análogas ao longo das nossas vidas.

Numa visão ampla de compassivas existências, interpreta-se, filosoficamente, que na espécie humana subsistem, em certas ocasiões, sensações de pavor e ansiedade perante um mundo aparentemente absurdo que o rodeia, mas que, entretanto, se vai moldando ao longo da sua formal viagem terrena.

Esta cosmopolita e pressuposta tese filosófica, onde, por vezes, se vinculam presumíveis interrogações, eleva-nos para uma dissertação de ideias que nos transportam para o princípio da humanidade, onde o “homo erectus” foi paulatinamente transformando-se, ganhando novas formas de vida, novos pensamentos, novas estruturas físicas, envolvendo-se em lutas guerreiras, lutas que visavam superiorizar-se ante o adversário, conquistou novos terrenos, criou as suas pátrias, os seus credos, religiões e cores, bem como o seu próprio idioma, sendo nós uma consequência lógica de uma transformação humana de todo imparável.

Aliás, numa pesquisa persistente sobre a espécie humana, julga-se que ela terá cerca de 6 milhões de anos, sendo os seus primatas oriundos do noroeste de África, onde o seu habitat natural terá tido lugar numa floresta tropical. Relativamente ao termo “humano”, no contexto da evolução humana, alude-se ao género “homo”.

Após este pequeno introito, o qual se prende com o nosso crescimento, físico e intelectual, ao longo dos anos que levamos de existência, puxo a fita cinéfila atrás e revejo-me na Guiné, onde os galões amarelos e as divisas estabeleciam ordem hierárquica. E eis que, num impulso previamente controlado, reencontro-me com o inesquecível momento aquando ousei, uma tarde, dar banhos na piscina destinada aos oficiais do QG, instalações estas situadas por detrás dos nossos alojamentos alcunhados então como o “Biafra”, mas cuja piscina era também franqueada à classe de sargentos, julgo eu.

A banal filosofia de vida que na altura perfilhei, assimilava-se a uma espécie de “infiltração num trilho armadilhado”, porém, joguei com o facto de que em Nova Lamego, Gabu, não existir tal benesse, por isso a minha atrevida ida ao local foi tipo de uma enlouquecedora emboscada que surtiu efeito. Não houve “assalto à mão armada”, tão-pouco “mortos e feridos”, mas puros instantes de entretinimento.

Resumindo: todos éramos singelos militares que cumpríamos uma comissão militar obrigatória numa terra distante que nos fora literalmente imposta, uma vez que éramos, afinal, numa liturgia considerada sem fronteiras, originários de antigos guerrilheiros de um tal “homo erectus” e que o tempo transformou. Segue-se mais um pequeno texto, onde as aventuras em solo guineense proliferavam.

Ida à piscina do QG, em Bissau

O dia, como sempre, estava divinal. Sol e calor q.b. prometia uma ida a banhos para refrescar ideias de um corpo que se deparava com uma sufocante temperatura que não dava tréguas a um furriel miliciano que, ocasionalmente, se encontrava na capital. A visita a Bissau, embora curta, apresentava-se oportuna para uma escapadela à piscina dos oficiais que, por acaso, estava também franqueada à classe de sargentos.

Lembro que a piscina ficava por detrás das instalações de sargentos no Quartel General (QG). Sei que a minha presença em Bissau ficou a dever-se ao facto de me encontrar de férias e esperando pelo dia da viagem que me trouxesse, por 30 dias, à então metrópole. Tudo isto se passou nos primeiros dias do mês abril de 1974.

Não sei de quem terá partido a ideia de uma tarde a banhos em águas calmas e sobretudo refrescantes. Um camarada, certamente, propôs o desafio e a malta não rejeitou a experiência que contou para o enriquecimento factual das minhas aventuras guineenses.

A piscina, na sua estrutura física propriamente dita, continha bons espaços de lazer e de desporto. Recordo, com saudade, o campo de voleibol, por exemplo. Ressalta-me à mente os improvisados jogos entre camaradas. Os despiques exacerbados protagonizados por militares que pertenciam, quiçá, a especialidades ou a secções diferentes em horas de pleno ócio.

Anoto que esses jogos poderiam ser jogados por equipas de piriquitos organizados que casualmente por lá terão passado. Porém, a minha conceção nessa visita à piscina do QG, encaminhou-me para uma visão mais ampla, isto é, depreendi que toda aquela rapaziada, essencialmente alferes, cheiro-me a gente que se conhecia mutuamente para além de outros oficiais com patentes mais elevadas que olhavam o novo visitante como um mero intruso. Olhares enviusados, alguns de esguelha, que espelhavam reinar num trono meramente sonhado. Deixai-os em paz, senhor! Teremos, eu e o camarada que me acompanhava, comentado.

Perante a benesse não me fiz rogado e eis-me a saltar para a água da piscina. Depois veio o salto do meu camarada. Nadámos, apanhámos um pouco de sol e retirámo-nos, ficando a dúvida para os graduados superiores quem seriam os dois marmanjos que invadiram aquele espaço porventura “armadilhado” e se retiraram rumo ao “Biafra” dos sargentos!

Nas minhas memórias conservo histórias hilariantes de uma Guiné onde os contrastes de patentes militares traçavam irreverentes poderes e, simultaneamente, desusados princípios, onde a pressuposta guerra dos galões se sobrepunha, e de que maneira, ao contingente das divisas.

Mas tudo isto são narrativas passadas, porque também sei que o pessoal da cidade era portador de uma conduta diferente daquela que constatávamos no mato. Existiam, e é verdade, hierarquias militares que marcavam posições diferenciadas e quanto a isso nada a dizer, melhor, a contradizer. Era a lei do mais forte que imperava.

Recordo de uma ocasião passar por Gabu um amigo meu, tínhamos sido companheiros de futebol no Sporting, o Luís Guerreiro, era soldado, e levá-lo à messe de sargentos, sendo que a sua presença foi bem acolhida. Disse de quem se tratava e não houve o menor problema, não obstante o Luís, a princípio, duvidar da fartura que lhe coloquei à sua disposição.

Numa outra ocasião, na cidade de Bissau, encontrei um velho amigo que era da PM que fingiu não me conhecer. Pomposo, tipo mandão, tentou entrar num trilho pressupostamente desconhecido e fazendo jus à braçadeira que ostentava no braço procurou amedrontar-me com uma pergunta tipicamente baixa e sem algum nexo aparente. Se a memória não me falha o gozo da brincadeira era o crachá de Operações Especiais/Ranger colocado no meu ombro esquerdo. Respeitosamente olhei-o de frente, olhos nos olhos e disse-lhe: “primeiro bate-me a respetiva continência e depois falamos”. O rapaz viu que meteu água e a conversa enveredou por um outro tipo de palavreado.

Contrastes... o mato era mato, a cidade era a cidade!

Um abraço, camaradas 

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

17 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24228: (Ex)citações (426): Recordações dos Comandos Africanos em Paunca, em setembro de 1970 (Valdemar Queiroz e Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 11, 1969/70)

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24340: Memórias de Gabú (José Saúde) (97): Jovens da tabanca Rostos de inocência. Pedaços de vida de uma Guiné que conhecemos. Crianças (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

As minhas memórias de Gabu

 Jovens da tabanca Rostos de inocência

Pedaços de vida de uma Guiné que conhecemos

Crianças

Camaradas,

Viajo pelas ondulantes ondas do tempo, afirmando seguramente que recordar é viver, tal como assevera o povo e com razão, que nós, antigos combatentes na Guiné, conhecemos, em parte, a vivência das crianças numa tabanca localizada no interior de um mato denso, onde o seu viver quotidiano na comunidade local, uma comunidade, aliás, essencialmente limitada pela falta da chamada liberdade de acção, uma condicionante que por força de uma razão maior terá de ser analisada em toda a sua verdadeira extensão, era simplesmente uma incógnita.

Nesta conjuntura, não entremos pelo mundo imaginativo literalmente irreal ou pressupostamente histérico que o nosso raciocínio ético nos propõe, mas baseado na isenção da realidade então observada. Analisemos sim, e imparcialmente, o viver dessas crianças que habitavam encurraladas entre as duas forças inimigas que, no terreno, não davam tréguas.

Nesses tempos, sempre hostis, as crianças despertavam em mim, tal como sempre o fizeram, sentimentos de uma profunda sensibilidade. Com elas, as crianças, compreendi que viver em liberdade era um confortante revigorante para que as suas almas no calor da luta armada reclamassem apenas paz.      

Mas a guerra é feita pelos homens, homens com os seus hobbies particulares à flor da pele, logo os possíveis sonhos das crianças ficavam, e ainda ficam, para trás. Para vocês crianças de outrora que conheci, hoje homens e mulheres da região de um Gabu que dantes calcorreei, fica o meu profundo sentimento de saudade.

Bem-haja a vossa infantil coragem por um sofrimento que era tão-só proveniente dos senhores da guerra. Das vossas carinhas inocentes guardarei eternamente imagens de jovens residentes em tabancas onde as necessidades imperavam.

Neste contexto, permitam-me deixar o meu grito de Ipiranga em conflitos armados que deixaram e vão desmesuradamente deixando abalos: Não às guerras! Não aos “senhores” das guerras! Não às opulências dos homens! Não às suas riquezas de “senhores” possessores de armamentos que só matam! Não à morte de inocentes crianças! Sim à paz! Disse.

Que sejam vocês crianças, principalmente as que conheci nessas tabancas da Guiné, os mensageiros de uma paz que nós, homens com carater, tão bem o desejamos. 

Mais um pequeno texto do meu livro "UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ/BISSAU 1973/1974, Edições Colibri. 

Jovens da tabanca

Rostos de inocência

Os seus olhares espelhavam uma extrema inocência. Os seus rostos, meigos, imploravam uma paz que teimosamente se esvaziava no infinito do horizonte tantas vezes nublado. As crianças são pequenos seres humanos que sempre me despertaram múltiplos sentimentos. Gosto de crianças!

A minha passagem pela Guiné – Gabu – ficou também marcada pela inequívoca afeição aos miúdos guineenses. Num flash às minhas memórias a sensibilidade das garotas e garotos, nascidos e criados numa tabanca escondida algures no mais denso mato ou na sua orla, mexeram com a minha susceptibilidade.

Deparei-me com rostos que me transmitiam visões verdadeiramente arrepiantes. Crianças que não conheciam o prazer de brincar. A guerra, essa maldita realidade constatada no terreno, impingia frágeis condições às populações para sua sobrevivência.

Crianças que não conheciam o prazer de saborear um pudim flan e que não sabiam o que era a luz elétrica e a água canalizada. A tabanca, o seu doce lar, apresentava condições muito débeis. Não tinham camas e nem tão-pouco brinquedos. Os seus corpos descansavam sobre um pano garrido que apelidavam de colchão. No interior da tabanca pouco existia. Não havia móveis nem talheres de prata para receber um ilustre convidado. Olhava e via-se… nada!

À porta da tabanca, os cuidados da mãe passavam por bater a mandioca enquanto as crianças, por vezes infestadas de moscas, esperavam encarecidamente pelo momento em que as migalhas lhe caíssem a jeito. Noutras ocasiões era o arroz que atendia os seus desejos. Comiam com as mãos!

Nas alturas do fanado, uma festa tradicional nalgumas etnias indígenas, era comum deparámo-nos com grupos de jovens no mato que tinham sido submetidos a um rito de passagem, um processo cultural, de resto, fundamental em qualquer sociedade humana que é a iniciação dos rapazes e das raparigas à idade adulta. A minha ideia inicial sobre o fanado - minha e de muitos dos meus camaradas na época - era de que se tratava de uma espécie de operação primária, feita por métodos obsoletos utilizados pelos homens e mulheres grandes aos jovens que se preparavam para despontar para uma vida sexual futura, isto é, na fase exata que implica a passagem da puberdade para a idade adulta. Sabíamos vagamente - já que a cerimónia era secreta - que os seus órgãos genitais, pénis e vagina, sofriam pequenos cortes focais, sendo a sua principal finalidade manter a tradição dos seus antepassados. Era uma pequena cirurgia dolorosa, confessavam aqueles que conheceram o sofrimento.

Mas as coisas, vistas num campo correcto, não eram bem assim. Ou seja, se no caso dos rapazes, a microcirurgia se resumia ao corte do prepúcio, no caso das raparigas trata(va)-se de uma autêntica Mutilação Genital Feminina (MGF). Sabemos que a excisão do clítoris e dos grandes lábios nas meninas, era, e é, uma prática inaceitável à luz dos direitos humanos, e como tal um crime, penalizado pela lei dos Estados modernos, designadamente Portugal e a Guiné-Bissau. Porém, a lei está longe de ser cumprida na Guiné-Bissau, face ao atavismo desta prática milenar e ao secretismo das cerimónias, que são realizadas em separado (rapazes e raparigas).

Por outro lado, as fanatecas (mulheres que fazem a excisão feminina) têm ainda, em termos simbólicos e materiais, um grande peso nas comunidades mais tradicionais (em geral islamizadas).  É, no fundo, uma prática - para a qual é necessário encontrar alternativas - de há muito denunciada e combatida pela Organização Mundial de Saúde - a que acresce as suas graves implicações para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres que são submetidas ao fanado tradicional.                 

O método, rude, era feito com facas de mato entre outros apetrechos caquécticos e as feridas curadas com mesinhos caseiros, asseguravam os antigos sofredores.

A juventude da tabanca era cordial. Recebiam-nos com carinho. Acontecia, e disso sou testemunha, que, com chegada da tropa branca a algumas das tabancas, a miudagem parecia “coelhos” a correrem directos às suas tocas. Deparávamo-nos, então, com os seus pequenos olhos luzidios a espreitarem do interior das tabancas os intrusos que, entretanto, tinham chegado. Depois tudo voltava à normalidade, os miúdos aproximavam-se e o convívio conhecia um novo rosto.  

As crianças conviviam com as agruras da guerra. Trabalhavam no campo a par das suas mães. O pai descansava. Semeavam o milho, a mancarra, criavam galinhas, cabritos e colhiam os frutos que a Natureza gentilmente lhes oferecia.

Um espelho de sobrevivência! 


Um abraço, camaradas 

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série de 9 DE SETEMBRO DE 2020 > Guiné 61/74 – P21341: Memórias de Gabú (José Saúde) (96): A fé na guerra (José Saúde)

domingo, 2 de abril de 2023

Guiné 61/74 – P24187: (Ex)citações (423): Camaradas que se separaram na Guiné (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas que se separaram na Guiné

Camaradas,

Nesta fase da vida, que já vai longa, há momentos que nos enchem de saudade e, sobretudo, de uma amizade que persiste, não obstante o tempo passado.

No pretérito dia 18 de março, 2023, celebrámos o 50º Aniversário do 1º Curso de 1973 de Operações Especiais/Ranger, em Lamego, tal como havia antes anunciado, sendo que por lá revivemos instantes que jamais esqueceremos. Foi, no fundo, um “folclore” de emoções, tendo em linha de conta os laços que nos unem de uma especialidade que nos terá dado um outro traquejo para enfrentar a guerra Colonial, ou do Ultramar.

Neste encontro, marcado pela excelência entre camaradas e alguns dos seus familiares, revi o camarada Pedro Neves, almoçámos lado a lado, tal como demonstra a fotografia, sendo que o “peso da idade” mui dignamente transformou os nossos corpos.

Aqui vos deixo um texto do meu livro “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL – GUINÉ-BISSAU 1973/1974 MEMÓRIAS DE GABU”, Editora Colibri, Lisboa, editor Fernando Mão de Ferro


Camaradas que se separaram na Guiné
Pedro Neves foi para Binta, eu para Gabu


No QG, em Bissau, com o Pedro Neves no dia em que chegámos à Guiné – 2 agosto de 1973

Atesta a lonjura do tempo que o rótulo de uma amizade que teima em permanecer imutável entre dois velhos camaradas de armas, atravessam géneses de uma eternizada amizade e predispõem-se de forma clara a tecer comentários vantajosos entre sexagenários que se conheceram nos verdes de uma juventude irreverente, onde a sua condição militar ditou uma estima que se mantém, e manterá, indestrutível.

Reconheço que durante a minha vida militar travei inúmeros conhecimentos com camaradas e desse rol de personagens com os quais mantive contactos pessoais, nesses velhos tempos, alguns deles existem que permanecem patentes na montra das nossas excêntricas recordações.

Agora, o meu memorial para um justo debate, recai num velho camarada de nome José Pedro Neves. Um amigo com o qual partilhei momentos inolvidáveis por terras de Lamego. Fomos instruendos do 1º curso de 1973 de Operações Especiais/Ranger e instrutores do 2º curso, sendo que ambos demos instrução ao 1º grupo de cadetes, onde tivemos como aspirante Daniel Pereira, um rapaz de Cabo Verde que, tal como eu, fizemos a recruta no CISME, em Tavira.

Ditou a bolinha mágica da fortuna, ou azar, que fossemos contemplados com uma comissão na Guiné. Uma mobilização que, como era suposto, se apresentava como cruel. Tratava-se do princípio de uma nova rota militar e que usurpava maquiavélicas coincidências para dois jovens que não conseguiram ludibriar a malvadez do futuro.

Aconteceu que a ida para terras de além-mar fosse plena de coincidências. Comparecemos ao embarque no aeroporto de Figo Maduro, só que o voo foi suspenso, sendo que a viagem se protelou por vários dias. “Desarmado” e boquiaberto com a situação deparada, o Pedro, um homem de coração enorme, prontificou-se a solucionar a condição de um camarada ranger, entretanto desapossado de um lar para pausadamente aguardar pela ordem de partida.

“É pá, não tenhas problemas, ficas na minha casa”. Uf, que alívio, pensei. E lá fomos a caminho do seu lar. Os pais do Pedro receberam-me com pompa e circunstância, dormi, comi e bebi, passeámos pela capital e nada me faltou nos dias antes do embarque. Obrigado pela hospitalidade e sobretudo sensibilidade!

Partimos então para a ex-província ultramarina no dia 2 de agosto de 1973, no mesmo avião que descolou de Figo Maduro, Lisboa, e partilhámos o mesmo banco da nave, saboreámos a refeição servida a bordo, bebemos o fresco líquido (whisky) de um copo e trocámos ideias sobre a sorte que nos esperava na guerra.

Chegados ao aeroporto de Bissalanca fomos depois conduzidos para as instalações militares do QG, em Bissau. A receção foi cordial. Faltaram as passadeiras vermelhas para receber em apoteose os ilustres mancebos acabadinhos de aterrar em solo africano. Os barracões, como recordam aqueles que por lá passaram, estavam entolhados de camaradas, alguns já velhinhos na guerra e os recentes “piriquitos”. Notava-se, a olhos vistos, que os brilhos das divisas dos novos guerrilheiros impunham ordem numa hierarquia que a plebe muito bem conhecia.

As camaratas, com camas sobrepostas, sugeriam o sentimento de uma desolação profunda sobretudo para os recém-chegados. Procurámos o poiso, acomodámos a nossa bagagem e envidámos esforços no sentido de uma visita ao centro de Bissau. O objetivo era conhecer novas paragens, aliás, tal como sucedeu.

Entretanto fomos informados do horário das refeições que eram servidas no refeitório da messe de sargentos, defronte às nossas esplendidas “residências”, sendo que pelo meio das amenas cavaqueiras lá surgiam as brincadeiras do “piu-piu”. Sons jocosos emitidos pela velhada que parecia estar de partida para a metrópole depois de uma comissão que não lhes terá dado tréguas.

Lembrando essas famosas camaratas no QG, alcunhadas como o Biafra, recordo que eram uma espécie de tudo ao monte e fé em Deus. Algumas das camas eram pomposamente ornamentadas com redes mosquiteiras. A malta de passagem pelas instalações colocava as artimanhas e por lá ficavam. Serviam depois de abrigos para os novos hóspedes. O zumbido agudo noturno dos mosquitos era ensurdecedor. Ali deparamo-nos de pronto com o clamor da primeira batalha.

Chegou a hora da despedida. O Pedro lá partiu rumo a Binta e eu a Nova Lamego, Gabu. Nas minhas novas instalações reencontrei outros dois camaradas que tiraram o curso de Operações Especiais/Ranger comigo em Penude: o Rui Álvares e o Cardoso. Acontece que o Cardoso acabou por demandar para uma outra zona da Guiné, enquanto eu e o Rui permanecemos em Gabu.

Do Cardoso nunca mais tive informações. Perdi-lhe o rasto. Sei que era natural de Moimenta da Beira. Desejo que esta ausência poderá ter um fim em vista se porventura algum camarada que leia este pequeno texto nesta obra me dê alvíssaras desse meu velho amigo. O Cardoso tinha uma estatura baixa. Gostava de reencontrá-lo tal como aconteceu há uns anos com o Rui. Com cabelos brancos, ou com falta deles, como é o meu caso, reconhecer-nos-emos de imediato e lá acontecerá aquele fraterno e apertado abraço.

Interiorizando os contextos de as minhas memórias Gabu, realço a passagem pelas instalações do QG, em Bissau, afirmando convictamente que esse espaço foi visitado, e revisitado, por muitos camaradas que fizeram escala na capital guineense ao longo da sua comissão militar na guerrilha da Guiné.

Curioso era a arquitetura dessas instalações. Mas como a sua utilidade era simplesmente casual, a malta acomodava-se como podia e não refilava com o que lhe era colocado à disposição. Lembram-se, camaradas? Toca a desafiar essas recordações e sacar cá para fora essas velhas lembranças.

Dessas passagens breves pelo QG, recordo que numa das idas para o faustoso resort, encontrei dois amigos de Beja, um o furriel comando de nome Chico Dias, que me levou a provar um prato a que chamavam “ninho de andorinha”; outro o furriel Zé Felício, um rapaz com o qual mantenho uma indestrutível amizade.

Recordo o desafio proposto pelo Chico Dias na prova do ninho de andorinha, uma refeição cujo tempero era feito na base do muito piripiri africano. Escusado será dizer que o sacana do ninho de andorinha levou-nos a refrescar as gargantas com uma boa dose de cervejas. Não me lembro do fim, mas aquilo fez efeito, isso fez.

Experiências comestíveis guineenses que, à época, fazia mover montanhas de prazeres africanos! 
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 

7 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24125: (Ex)citações (422): Os combatentes, Vietname e Portugal (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto)

terça-feira, 21 de março de 2023

Guiné 61/74 – P24158: Efemérides (383): 50.º Aniversário de instruendos e cadetes que passaram por Penude, Lamego (José Saúde)


Entrega dos livros de José Saúde e de José Casimiro Carvalho onde relatam as nossas presenças na Guiné, ao Comandante do CTOE, Coronel Sousa Rodrigues


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

50º Aniversário de instruendos e cadetes que passaram por Penude, Lamego


      Num recanto, já anichado em “poeira”, guardam-se memórias de um serviço militar obrigatório que nos levou a conhecer a guerra colonial e as suas óbvias consequências.

Gratidão a Lamego


Camaradas,

Fomos instruendos do 1.º Curso de Operações Especiais (Ranger) do ano de 1973 em Penude, Lamego. No contexto de infindáveis memórias, bem como numa combinação de prazeres conjunturais onde a saudade inevitavelmente prolifera, estivemos no passado dia 18 de março de 2023, sábado, em Lamego para recordar, e sobretudo comemorar, os 50 anos do período em que por lá andámos.

Registe-se que este grupo de camaradas, alguns acompanhados pelos seus familiares, se reúne, anualmente, uma ou duas vezes em vários locais deste soberano solo português. A razão fundamental destes encontros, onde comandante Alberto Grácio, um alferes miliciano que conheceu a guerra da Guiné, junta as tropas, afina o clarinete e toca a reunir os camaradas, sendo o emaranhado das conversas processadas ao redor de uma mesa sempre infindáveis.

Presentemente, todos já septuagenários e naturalmente aposentados, desfrutamos do prazer de uma velha camaradagem, de uma amizade que perdura e de um laço eficaz de união que nos fez mais fortes numa especialidade na qual um camarada que, por motivos vários, não acompanhava o andamento dos outros, jamais ficaria para trás, prevalecendo no íntimo de cada um de nós, então instruendos, o sentimento de solidariedade entre jovens que diariamente se deparavam com as mais díspares adversidades militares.

Deste grupo, que por força de uma razão maior ainda se vão juntando, subsistem camaradas que pisaram os três palcos da guerra colonial – Angola, Moçambique e Guiné -, sendo o meu caso, tal como muitos dos outros camaradas, o solo guineense.


Formatura no pátio do CTOE

O CTOE recebeu antigos militares rangers com pompa e circunstância

A escrita é, na sua sucinta forma de expor acontecimentos em público, uma matéria fundamentalmente essencial, onde as panóplias de emoções vagueiam com uma gigantesca atividade humana por interioridades de vidas em que as sinuosidades dos tempos, assim como a sua multiplicidade das ocorrências, deixa antever que recordar é viver. E foi precisamente nessa multiplicidade de factos que eu, tal como muitos dos camaradas do meu curso, partimos um dia de Lamego rumo ao conflito da Guiné.

Lá longe, em África, ou seja, na Guiné, o meu destino reservou-me uma estadia em Nova Lamego, região de Gabu, onde conheci, tal como todos os camaradas, os efeitos cruéis de uma guerra que não dava tréguas às nossas tropas.

É um facto, creio que real, que todos transportamos nos nossos já usados “cabedais” confecionadas ocorrências que fizeram de nós os homens que hoje somos. É certo que alguns dos nossos camaradas já ficaram pelo caminho, partindo para a tal viagem sem regresso, ficando aqui expresso o nosso sincero e sentido pesar: Paz às suas almas!

Lamego recebeu-nos com pompa e circunstância. Eureka! Terá sido o “grito” comum de toda a rapaziada aquando o nosso reencontro pelas terras lamecenses, onde a escadaria do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios nos trouxe à memória as loucas correrias, quer escadas abaixo, quer escadas acima. Para história da cidade, e obviamente para os rangers, ficará sinalizado que aquela majestosa obra se apresenta como um dos ex-libris de uma urbe na qual expelimos muito suor e lágrimas.

A cidade de Lamego é antiquíssima e foi reconquistada aos mouros em 1057 por Fernando Magno de Leão. Narra a história do Condado portugalense que terá sido em Lamego que decorreram as lendárias Cortes de Lamego, Cortes estas que terão proporcionado a aclamação de D. Afonso Henriques como Rei de Portugal e ali se estabelecerem as "Regras de Sucessão ao Trono".

A sua gastronomia é vasta, destacando-se desse élan gastronómico os seus presuntos e o cabrito assado com arroz de forno, de entre outros manjares sobejamente apreciados, a que se junta a produção de vinhos, nomeadamente vinho do Porto, mas, sobretudo, os vinhos espumantes.

Com a afabilidade do Comandante do Centro de Operações Especiais (CTOE), Coronel de Infantaria Jorge Manuel de Sousa Rodrigues,que se disponibilizou para nos receber com a devida honra, sucedendo-se uma visita às instalações da Unidade, onde o Comandante foi exímio em explicar a evolução de uma Unidade marcadamente exemplar, fazendo-o de forma simplesmente distinta e, sobretudo, acessível, e eis-nos a percorrer alguns dos recantos de um quartel, agora remodelado, que nos recebeu há 50 anos atrás.

Por outro lado, o Chefe da Secção de Operações, Informações e Segurança do Centro de Tropas de Operações Especiais, Tenente Coronel de Infantaria Carlos Cordeiro, terá engendrado o programa abaixo exposto com o qual os rangers do 1º Curso de 1973 foram contemplados:

10h00 – Chegada ao Quartel de Stª Cruz
10h30 – Receção e cumprimentos de boas vindas (Cmdt do CTOE)
Apresentação de cumprimentos pela comissão organizadora
10h40 – Início da cerimónia:
Cerimónia de Homenagem aos Mortos (CHM)
Leitura dos Mandamentos Ranger
Descerramento da placa comemorativa
Visita ao espaço visitável do CTOE
Visita à Igreja de Stª Cruz
11h30 – Visita ao Aquartelamento de Penude
Exposição de material
Foto de grupo junto ao monumento “Ranger”
12h30 – Fim da visita.


Homenagem aos mortos da Unidade na guerra Colonial

Houve, depois, uma visita ao Aquartelamento de Penude, onde todos revivemos os tempos que por lá andámos a desbravar o que, para nós, era desconhecido.

Seguiu-se um almoço no Restaurante Paraíso de Ouro, localizado na Serra das Meadas, com uma visão privilegiada sobre uma paisagem encantadora onde o rio Douro também nos deu as boas-vindas, servido com dignidade, houve abraços, o reviver de memórias de antigos camaradas que “passaram as passinhas do Algarve” para conseguirem ganhar os crachás da dura especialidade, seguindo-se, naturalmente, a despida, mas ficando, entretanto, o nosso profundo reconhecimento pela forma como fomos recebidos. Obrigado!


O camarada ranger Peixoto e o nosso antigo e então capitão Gomes Pereira

Fica aqui também referido, e com toda a nossa maior honorabilidade, a presença neste Encontro do nosso então Capitão José Gomes Pereira, um Ranger que muito nos ensinou e, logicamente, por nós muito “puxou” para reconhecermos capacidades escondidas.

Abraços camaradas e um até breve.

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 

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Nota de M.R.:

Vd. últimos postes desta série em:  

18 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24151: Efemérides (382): Homenagem aos antigos combatentes da guerra do ultramar, do Concelho de Resende, vivos e caídos em campanha, dia 29 de Abril de 2023, que contará com uma represenção do nosso Blogue

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 – P24101: (Ex)citações (421): Sim, estou velho! (José Saúde)



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Sim, estou velho!

A idade não perdoa. Que tínhamos todos a noção dessa inquestionável realidade. Fui, tal como todos os camaradas de armas, um jovem que conheceu momentos de alegria e também de horrores na guerra da Guiné. Todavia, sim estou velho. Conto, resumidamente, momentos de prazeres e de angústia pelo tempo que já passou.

Deixo os livros que já escrevi, 11, e da árdua labuta como jornalista ao longo de mais de trinta anos. Somos, agora, meros seres humanos que vagueamos pelos pingos da chuva e que paulatinamente nos deparamos com a estonteante viagem que já fizemos ao cimo deste imenso globo terrestre.

Na nossa cédula pessoal ficou registada a nossa presença por terras da Guiné, bem como os nossos tempos de meninos e moços.

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Condicionalidades de um tempo sem tempo: Sim, estou velho!

Sim, estou velho! Sim, o tempo, esse vadio, já voou. Dissipou-se. As gotas de orvalho diluem-se a uma velocidade impressionante. O meu rosto determina uma idade já avançada (72 anos). Sim, porque a saudade mata devagarinho os anos já consumidos pela essência das eras passadas. Sim, essa tal melancolia que parece previamente distante, perdeu-se pela fresta de uma porta que se foi definhando com o declinar das épocas. Vagueio pelo trilho “desarmadilhado” de uma vereda que inevitavelmente vai estreitando. Sim, esta é uma das inevitáveis realidades que o ser humano literalmente terá de compreender e sobretudo aceitar.

Curvo-me perante a transformação física do meu corpo. É verdade. Não o escondo. Mas atenção: ainda não me considero um trapo. Talvez um trapo de um fino fio de seda vindo das equidistantes arábias, mas impregnado com uma juventude já perdida. Ficaram os requintados cheiros que dantes me arregalaram as narinas. Ou, o toque em “matéria proibida” onde proliferavam memoráveis mistérios. Sim, esses frenéticos momentos continuam fixamente emoldurados na minha mente, mas com traços de um puro êxtase dantes ocorrido.

Recreio-me, agora, com a saudade. O que fiz e o que deixei de fazer. O meu corpo, outrora atlético, está velho. Cansado. De uma aldeia, a minha sempre querida Aldeia Nova de São Bento onde nasci, a metrópoles de maior dimensão, de tudo conheci. Conheci e fiz amizades. Tudo, porém, foi ontem. E foi ontem que brinquei com os meus amigos no Largo do Ferreira, lá para as bandas do Algés. Do João Luís, ao João Ferro, António, vulgo “Encherto”, António e Bento Charrinho, dois irmãos infelizmente já desaparecidos, Manel “Galha Galha”, Bento “Tomba Lobos”, Chico do Toril e o João Cheta, de entre muitos outros miúdos, foram companheiros no jogo de futebol com uma bola de trapos, ou com uma bexiga de porco regateada no mercado da aldeia. As leis, então impostas pela rapaziada, impunham que o jogo terminava aos 10, a mudança de campo aos 5 e as balizas eram delimitadas com duas pedras, sendo que o retângulo de jogo, desproporcionado, não tinha linhas que limitassem o espaço.

Mas, eis que numa elementar reciclagem feita à razão desta minha existência, revejo, com saudade, a mocidade perdida e uma vida preenchida de aventuras e desventuras. Ninguém é perfeito e eu também o não fui e nem tão-pouco o sou e, logicamente, jamais o serei.

Saí do meu recanto sagrado, ou seja, da minha sempre querida e adorada Aldeia Nova de São Bento, muito novo com destino a Beja, urbe onde concluí a instrução primária e fiz grande parte da minha vida. Todavia, jamais renunciei uma ida ao berço que me viu nascer e me consumirá para a eternidade. É lá, na minha aldeia, que um dia repousarei para a perpetuidade.

Existiu sempre no meu ego o espírito de aventura, ora quando a adrenalina me levava ao êxtase, ora quando o momento implicava uma maior concentração, tendo em conta o passo seguinte que, por força de uma razão maior, teria de ser dado. Mas nem sempre as coisas funcionaram da melhor maneira. É natural e aceito esses ímpetos momentâneos. Errei, tal como todo o ser humano. Ninguém é um exemplo imaculado e nem tão pouco um ser perfeito.

O mundo do futebol traçou-me um outro destino. Do Despertar ao Sporting, com uma passagem pelo Benfica, foi o desenho traçado e fundamentalmente concluído. Depois, veio o Desportivo de Beja, o FC Serpa e o Atlético Aldenovense.

Pelo meio ficou o cumprimento do serviço militar obrigatório. De Tavira aos Rangers, em Lamego, sendo o quartel em Penude, foi um estreitíssimo passo. Seguiu-se a Guiné, onde cruzei a guerra com a paz. Ali conheci uma outra realidade. Uma realidade onde os odores africanos se cruzaram com o “cantar” das armas. Regressei, felizmente, tal como parti. Apenas mais velho de idade. Fica, contudo, nas minhas mágoas de ver partir camaradas para a tal viagem sem regresso.

No retorno de África um emprego em Lisboa assinalou a minha volta à capital do Império. Regressei, depois e mais velho em idade, à velha Pax Júlia em 1978 e onde dei os primeiros passos no maravilhoso universo do jornalismo com o meu saudoso amigo Delmiro Palma, no jornal “O ÁS”, um semanário que adquiri no ano de 2000, sendo, para além de proprietário, o seu Diretor.

Trabalhei, em simultâneo, para vários órgãos de comunicação social desportiva, quer regionais quer nacionais, ficando a certeza que o jornal “A BOLA” terá levado o meu nome e a nossa região baixo alentejana além-fronteiras, para além do JN (Jornal de Notícias). O jornalismo preenchia a minha profícua mente. 12 anos na Rádio Voz da Planície, como coordenador da área desportiva, levou-me a possuir nos três programas na RVP: O “Estádio”, aos sábados; “Planície Desportiva” aos domingos com relatos de futebol incluídos; e diariamente o “Livre Direto”, com dois apontamentos, um logo pela manhã, um outro à tarde. Em 2005 assumi dar a cara pela TV Beja, televisão por Internet.

Um dia, em finais de 1990, lancei o primeiro livro, “Glórias do Passado”, seguindo-se uma segunda obra, ou seja, o II volume sobre a mesma matéria. Em 2006, com 55 anos de idade, fui “contemplado” com um AVC que me deixou entre a vida e morte. Sobrevivi e lutei, incansavelmente, pela minha liberdade. Recuperei o possível.

Limitado a uma cadeira de rodas tracei cenários quiçá inimagináveis. A mente, porém, comandava felizmente o corpo, logo a minha luta titânica passava pelo regresso ao mundo da escrita e ao seio de uma sociedade que me fora sempre cordial. Aliás, a mente, essa fascinante ferramenta de que todos somos possuidores, estava limpa, não obstante a afasia entretanto manifestada. As palavras não saíam com a fluidez que dantes me era comum. Gaguejava e os movimentos físicos estavam ausentes, todavia, esses pequenos/grandes pormenores foram por mim ultrapassado, dado que nunca atirei a toalha ao chão. Segui em frente e de cabeça levantada.

Mas, eis que comecei a vislumbrar a prosperidade do caminho do futuro. Recuperei o que esteve ao meu alcance e regressei ao mundo real e ao computador, principiando-me a elaborar textos para os leitores contemplarem. Em 2008 surgiu o convite do Diário do Alentejo. Aceitei e não mais parei. Paralelamente ressurgiu a veia de escritor e toca a lançar livros, sendo o antepenúltimo, tal como o anterior, com a chancela da Editora Colibri, “Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes”. Para trás ficaram, para além daquele que atrás citei: Glórias do Passado, volumes I e II; O Trilho; AVC Na Primeira Pessoa; Guiné-Bissau As Minhas Memórias de Gabu; Associação de Futebol de Beja 90 Anos de Memórias e Relatos; AVC O Guerreiro da Liberdade; Aldenovense Foot-Ball Club ao Clube Atlético Aldenovense; Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/1974 e Bola de Trapos - Crónicas Desportivas do Baixo Alentejo 1904 a 2022.

Este apurado texto, sendo na minha opinião bastante exígua, reconheço, no entanto, que reproduz retalhos de uma vida de um ser humano nascido numa aldeia que vive de paredes-meias com a vizinha Espanha, província de Andaluzia, que leva 72 anos contabilizados e que assumindo um raciocínio lógico me leva a concluir: Estou velho! Sim, estou velho, mas ainda pronto para continuar hirto ao cimo deste globo terrestre, embora reconheça que as minhas limitações físicas já pesam no meu corpo, hospedando a certeza que as curtas viagens aventureiras se vão diluindo com o evoluir dos tempos. Presentemente o meu carro são as minhas pernas e é com ele, o carro, que me desloco para qualquer ponto deste solo lusitano. Mas, estando velho, e residente neste pequeno “invólucro” terreno, sinto-me ainda capaz em continuar a senda da escrita.

Para trás ficam imagens de anteontem, de ontem e de hoje. Somos, afinal, pequenas gotas de orvalho que se diluem em pequeníssimos ciclos de vida. Aqui ficam imagens dos livros por mim já publicados.

Abraços e beijos
Zé Saúde (Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523)
Jornalista/escritor

Observação: Os três últimos livros publicados, Um Ranger na Guerra Colonial – Guiné-Bissau 1973/1974, Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes e Bola de Trapos Crónicas Desportivas do Baixo Alentejo 1904 a 2022, foram editados pela Editora Colibri, Lisboa. Deixo, para já a minha obra feita como escritor, onde enalteço o meu ilustre "torrão sagrado".













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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

6 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24042: (Ex)citações (420): As caçadas por meios aéreos só ao alcance de alguns (Gil Moutinho, ex-Fur Mil Pil)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 – P24070: Agenda cultural (830): Guiné e os seus sofridos segredos explanados em livro: J. Casimiro Carvalho, um camarada ranger que coabitou com a dor de perdas humanas (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Guiné e os seus sofridos segredos
explanados em livro: J. Casimiro Carvalho, um camarada ranger que coabitou com a dor de perdas humanas


Camaradas,

Viajo pelas melancólicas alas do tempo, transito agora pelo princípio da liberdade de expressão, recuo à nossa juventude, revejo-me, tal como todos vós, como um jovem com 21 risonhas Primaveras, reencontro-me com o serviço militar obrigatório, recordo a passagem pelo CISMI, em Tavira, e o quão difícil se tornou a vida militar pelas suas quiméricas consequências futuras, mas, num momento único dos deveres militares eis-me a enfrentar o frio de Penude, Lamego, ao largo dos primeiros meses do ano de 1973, onde o cair da neve por terras durienses formava um manto branco que ilustrava arrojados quadros de inigualáveis pintores de renome mundial.

Sei que a sagacidade da especialidade de Operações Especiais/Ranger não era matéria que se cheirasse. Porém, esse privilégio assumia-se como um repto para todos aqueles que ousassem desafiar os receios dos então eleitos em beber naquela fonte exímios conhecimentos militares. Conhecimentos que se tornariam importantes para os tempos vindouros. Aliás, a tropa, na sua generalidade, fora para todos nós militares um “colégio” de aprendizagem, por isso, não discuto opções individuais e nem tão-pouco o conteúdo da inegável utilidade de cada uma das especialidades, mas respeito uma ou outra opinião porventura discordante, porque no contexto de guerra todas elas (especialidades) formaram um cordão umbilical humano no conflito armado. Todos, sim literalmente todos, fomos pedras basilares nessa guerra, onde cada um de nós ostenta, merecidamente, o desígnio de antigo combatente. Formámos todos, sem exceção, um “esquadrão” de uníssonos militares que pisámos o palco da escaramuça, onde o cenário da morte se apresentava sempre como um mistério.

Nesta conjuntura, Penude, no meu caso particular, apresentou-se para mim, puto de tenra idade, como uma verdadeira cronologia de vida. Por lá passaram, e passam, milhares de camaradas que ainda recordam esses inflexíveis tempos. Tempos em que a imprevisibilidade do momento seguinte ditava intensas e acrescidas inquietações, enquanto as operações planeadas no terreno caíam em catadupa. Mas, numa conjuração aos “deuses maiores” ficou escrita na pétala de um cravo que tudo terá valido a pena porque contextualizando todo o desenvolvimento da árdua especialidade, conclui-se: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”; argumentava, noutros tempos, o pensador Fernando Pessoa.

De Penude saíram camaradas que pisaram os três palcos de guerra: Angola, Moçambique e Guiné. A Guiné foi, em concreto, o meu hediondo destino e de muitos outros companheiros, mas presentemente, e por razões óbvias, falar-vos-ei do camarada ranger José Casimiro Carvalho que pisou o agreste solo guineense.




O Zé Carvalho tem uma história de vida, e sobretudo militar, deveras encantadora. A sua já longa vida, colocada agora em livro, reflete a existência de um puto reguila, com capacidades excecionais para defender o seu “condado”, grau este constituído na base de rapazinhos onde as traquinices proliferavam e as ideias infantis se multiplicavam, que cresceu ao longo da sua existência subindo a corda da vida a pulso, o pai, patriarca do clã Carvalho, ralhava-lhe e por vezes repreendia-o com alguma ferocidade, o mundo dos empregos onde a prioridade passava para amealhar mais uns escudos, uma benfeitoria que acrescentava mais valias mensais para uma tribo familiar que muito agradecia a audácia operante do seu filhote, e que, tal como a generalidade dos moços do seu tempo, lá foi encaminhado para o serviço militar obrigatório.

Como tinha sido aluno do ensino secundário foi enviado para Leiria, RI 7, sendo que aí usufruiu, com a devida vénia, passar para o Curso de Sargentos Milicianos, sendo o seu encaminhamento para Penude, Lamego, cuja prioridade passou por tirar o curso de Operações Especiais/Ranger.

Como militar ranger, o Zé Carvalho, fez a sua dura comissão em Guileje e Gadamael, em particular. Nestes palcos de guerra conheceu as maiores barbaridades de um conflito armado que não dava tréguas. Viu morrer ao seu lado camaradas, andou com um morto às costas e observou ao vivo atrocidades horríveis que ainda não lhe saem da memória. Mortos e estropiados foi uma imagem impiedosa com a qual o nosso companheiro se confrontava amiúde.

Este livro – “De Puto Irrequieto à Guerra na Guiné, como Ranger - Na Primeira Pessoa” – é, tão-só, um marco de incandescentes memórias que retratam, e bem, o que fora a realidade de um atroz conflito de luta armada, onde todos nós, antigos combatentes, soubemos o que fora a crueldade de uma guerra que, sendo recente, tende cair no limbo do esquecimento das novas gerações.

Após a passagem à disponibilidade foi agente da BT-GNR, instituição pela qual se encontra aposentado.

Camaradas, somos cada vez menos pois a inevitável veracidade da morte já “carregou” com muitos dos nossos condiscípulos, porém, enquanto existir um antigo combatente da guerra colonial, ou ultramarina se assim o entenderem em pé, ele será a julgadora sentinela que dará o alerta para a hodiernidade dos nossos concidadãos que parecem esquecer que houve uma guerra recente, onde os seus avós, ou pais, ou outros familiares próximos, por lá passaram e por lá também deixaram pedaços da sua juventude.

Fomos, afinal, “os filhos da madrugada” que combatemos em campos hostis e que fizemos circunscritas “estórias” nos campos de batalha, onde o uivar dos “lobos”, mas noutras circunstâncias assim como noutros palcos de mordomias se deixavam levar pelo poder de uma corte que presunçosamente gritava, no início da guerra, que “Angola é nossa”. Uma afirmação que viria futuramente tornar-se abrangente e alastrar-se por outros palanques da peleja. Enfim, cronologias de vida, as nossas, que parecem cair no descrente “vale dos leprosos”, onde a realidade copiosamente se separa de idealismos vãos que desvirtuam por completo a história de um País chamado Portugal.

Tínhamos, e sempre, em consideração que por a guerra colonial passaram perto de um milhão de jovens, que houve cerca de 100 mil feridos, 30 mil evacuações e 10 mil mortos. Pensemos, sem mácula, que esta foi a realidade de gerações que se confrontaram com tal barbaridade e que agora, os que restam, lá vão deixando memórias, ficando algumas delas escritas em obras sobre a temática de uma guerra na qual fomos inteligíveis protagonistas forçados.

Concluindo: fica o meu conselho para que compremos um exemplar do livro do Zé Carvalho, uma vez que vale apena ler a sua evolução de vida e os tempos de uma Guiné a ferro o fogo.

Um abraço, camaradas

José Saúde

Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

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Nota de M.R.: