Mostrar mensagens com a etiqueta Histórias de José Marques Ferreira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Histórias de José Marques Ferreira. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5252: Histórias de José Marques Ferreira (10): Funeral de 'homem grande', refeição melhorada... da tropa


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 7 de Novembro de 2009, a seguinte mensagem:

Funeral na Guiné – Refeição melhorada

É um bocado tétrico, arrepiante até, fazer disto um poste e logo com tal título. Mas a verdade é que vivi os momentos de um funeral na Guiné, de cuja participação tivemos «direito» a… bifes.

Não estou a brincar com coisas sérias. Eu explico melhor, embora com deficiências memoriais provocadas pelos quarenta e tal anos que passaram.

Então vamos aos pormenores.

Já estava há bastante tempo na Guiné, na localidade de Ingoré. Como se sabe, lá como noutros territórios limítrofes, são abundantes as etnias. Cada uma tem os seus princípios, os seus costumes, as suas lendas e crenças, a sua vida…

Na única estrada que atravessava a localidade, na direcção nascente - poente, para os lados de Sedengal, onde estava um pelotão da minha companhia, logo a seguir ao pontão da bolanha que ficava à saída de Ingoré, havia uma tabanca. Já não recordo como se chama, ou chamava.

O que eu sei é que tivemos conhecimento que havia falecido, ali, um «homem grande» daquela tabanca. Penso que foi a um domingo.

Como naquela guerra o domingo era respeitado, como dizia o saudoso Raul Solnado paravam-se as hostilidades, um grupo de camaradas nos quais eu me incluía, resolvemos ir ao funeral… do morto (que raio de redacção esta!).

Não fomos munidos de G3, porque era muito perto e, como eu já disse, a guerra estava fechada, levávamos apenas algumas facas de mato. Mais tarde concluímos que foi o que fizemos de melhor.

Chegados à tabanca, havia muita algazarra, como era próprio nestas alturas e nestes acontecimentos (e não só), quando fomos confrontados com a oferta de enormes e bem apetecíveis peças de carne.

Não houve meias hesitações. Facas metidas na tenra carne, já não me lembro bem, se de bovino, se de vitela (que raio de confusão) e toca de carregar com elas até ao aquartelamento. Um surpreendente pitéu que iria fazer as delícias de um bom almoço, ou jantar, de bifinhos.

Recordo-me que uma das peças era a pá, parte das pernas (de vitela ou de vaca, bolas, seria de boi? Isto hoje está muito mau… era carne e pronto!)




Estava a brincar, para vos explicar que realmente fomos ao funeral e que não viemos de mãos a abanar, fazendo-me recordar alguns hábitos ainda correntes nalgumas regiões do nosso país, onde as famílias dos falecidos oferecem comida e bebida aos acompanhantes dos actos fúnebres.


Naquela etnia, que já não sei qual é, mas se houver alguém que saiba, pedia-lhe o favor de intervir, todos os bens do falecido devem ser distribuídos, sejam galinhas, porcos (algumas etnias não comiam carne de porco, por exemplo, os Mandingas), gado bovino e tudo o resto, segundo creio.


Porque a riqueza daquela gente é medida, não pela quantidade de dinheiro que detém, mas pelo número de cabeças de gado que possui!


Penso que será de frisar, por que nem sequer o sabíamos, que não fomos visitar a família do falecido por causa de obtermos a carne. Mas que ela veio mesmo a calhar, porque a abundância não reinava para aquelas bandas, disso jamais me esqueci.


Pena foi que ninguém tenha tirado uma fotografia da oferenda, para agora confirmar, por imagem, o que acabo de vos contar. Bolas…


Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes


Foto: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

10 de Novembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5249: Estórias avulsas (56): Um tiro que tapou o sol na Ponte Marechal Carmona (Joaquim Mexia Alves)

sábado, 7 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5226: Histórias de José Marques Ferreira (9): A noiva Mandinga


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 6 de Novembro de 2009, o terceiro extracto do "Jornal da Caserna" da sua Companhia.


Camaradas,

Votos de felicidades saúde e dinheiro para gastos… pelo menos algum…

Proveniente do «Jornal da Caserna», cujo cabeçalho vai encimar este post, aqui está mais uma cândida, inocente e pacífica estória, neste caso sobre os costumes da Guiné.

O autor que deu nome e vida à estória, já aqui referi, é o Ramiro Fernandes Figueiredo, que não sei por onde anda à muito tempo, era o médico da CCAÇ 462.


A noiva mandinga

A noiva mandinga acabava de chegar num jipe da Administração. Vinha marcialmente escoltada por cipaios, que se apilhavam na viatura. À frente o cabo cipaio e entre este e o condutor indígena – A NOIVA. Atrás distinguia-se um animador do cortejo com o “calandim”, uma espécie de bandolim indígena – que tirava uns sonidos exóticos.

O noivo que não era outro que o sherif, chefe religioso muçulmano, pagara “manga” de pesos ao tocador; e este, ciente da sua missão e responsabilidade desfazia-se em trejeitos para arrancar do instrumento toda uma amálgama de ruídos. Sempre com um sorriso aberto, descortinavam-se uns incisivos faltosos e uns molares apodrecidos. O carro virou em direcção da casa do cabo cipaio, onde a noiva ficou religiosamente guardada.

À noite chegou a formação do batuque para a conduzir em festança até casa do sherif. O batuque era composto por um mandinga alto e esguio de óculos doutorais, que regia a barulheira. O apito de marcação de ritmo mordia-lhe os lábios; e as mãos batiam cadenciada e diabolicamente num “tântano” alongado, mais parecendo que a fúria do seu entusiasmo poria em breve o tambor de pantanas. Outros dois acólitos tamboreiros completavam o grupo musical.


À frente vinham as “bajudas”, raparigas virgens – candidatas ao “fanado” garridamente vestidas (não destoando o usual pé descalço…), na singeleza e simplicidades dos corpetes e panos colados às carnes. Bamboleavam-se em movimentos cheios de graça dos braços e os pés nus batiam abafada e energicamente no chão poeirento.

Chegado o cortejo a casa do cipaio tudo redobrou de entusiasmo e vigor. Abriu-se um círculo. Crianças à frente e uma ou outra “bajuda” que era bailarina; atrás as mulheres grandes também “roncas” nos seus trajes vistosos. Irrompe pela casa uma onde de bajudas virgens que são envolvidas pelo homem do violino que não arredou pé. Dirigem-se ao quarto da noiva, que cândida e tímida recebe “mantanhas” e votos de vida feliz.

A virgem casadoira era uma dessas belezas mandingas que geralmente se encontram por aí. Esguia, alta e esbelta; olhos negros, talhados oblíquos – misteriosos. O cabelo é típico – sulcado de risquinhos transversais conjugando-se aos lados numas pequenas madeixas, que mais pareciam pequenas espigas de trigo. Cingia-lhe a cinta um pano senegalês, que lhe moldava as formas delicadas e elegantes; e o tronco era revelado pelo pequeno corpete, que discreto lho cobria, sem realçar nada que não fosse proporcionado.

Era na verdade uma autêntica Vénus negra que vali “uilli lulo”, ou sejam os cinco mil pesos pagos pelo felizardo que a escolhera. Formou-se novamente o cortejo e a noiva lá foi rodeada pela frescura das jovens virgens. O tocador redobrou em ritmo, agitação e ruído musical. Chegados fronte da casa do sherif, este veio ao encontro da noiva com o seu grupo religioso e conduziu-a à entrada numa cerimónia que o noivo repetia pela quarta vez – já que Alá é generoso quanto ao número de mulheres. Cá fora as “bajudas” faziam coro em cânticos, outras entravam em círculo, arrancando sapatadas cheias de vida e erguendo delicadamente as mãos, contorciam-se ao sabor do ritmo do apito e “tântanos”.

O negro esguio do tambor suava por todos os poros. Lá dentro a noiva era apresentada aos membros da seita religiosa e estava tudo a postos para o banquete geral ao ar livre, que a generosidade do chefe deu a toda a gente muçulmana da “tabanca”.

O Ramadão tinha acabado e a ocasião era propícia para refazer algo do que havia perdido toda esta gente em quarenta dias de jejum…

“ÓKEY”
(Ramiro Fernandes Figueiredo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 462, cuja história foi publicada no «Jornal da Caserna de Março de 1964)
Guiné - Ingoré, Março de 1964.

Nota: - A foto que ilustra este texto é um dos postais ilustrados que se vendiam por lá, na época. Comprei este que, atrás, tem escrito pela minha mão: 31/12/64 – O dia do aniversário da minha mulher. E como está lá escrito «parabéns e felicidades» - o resto não transcrevo -, serviu tal postal para ilustrar esta história. Às tantas, vão aparecer por aí alguns comentários, colocando-me em maus lençóis, por ter enviado este postal à Maria Fernanda. Que querem vocês, elas eram assim (as bajudas claro)... tal como está esta no postal!

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes


Foto e gravura: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

sábado, 31 de outubro de 2009

Guiné 63/74 – P5187: Histórias de José Marques Ferreira (8): Jornal da Caserna (2)



1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 31 de Outubro de 2009, o segundo de alguns extractos do "Jornal da Caserna" da sua Companhia.

Os meus cumprimentos para a Tertúlia:

No seguimento da ideia que foi exprimida no primeiro poste (P5171), aqui vai uma pequena história do «Jornal da Caserna», um «órgão de comunicação social» propriedade de ninguém, mas com o apoio de muita gente da CCAÇ 462, cujo primeiro número foi dactilografado com cópias a químico em 1964, ano este em que não haviam ainda as actuais e práticas fotocópias, para reprodução do original ilustrado. O primeiro número foi dado à estampa (que grande definição para aquele tempo), em Fevereiro de 1964.

O número 15 deste periódico foi o último, porque em Outubro de 1964 recebemos ordens de carregar as trouxas e “desacampar”. O acampamento seguinte foi em Bula, como companhia operacional, sendo este o local onde estava centrado o BCAÇ 507 (Ten Cor Hélio Felgas), que, pouco tempo depois, deu lugar ao BCAV 790 sob o comando do Ten Cor Henrique Calado.

Eis a história:

Fogo com tornado em chuvas

“No fundo escuro da morança circular, entorpecida pelo reumatismo, que lhe roía as juntas, gemia a “mulher grande” do chefe da tabanca.

Àquela hora estavam os homens a juntar forças ao terçado para varrer mato, sulcar a terra, enterrar o fruto, para que a mancarra despontasse.

O chefe com os seus vizinhos de morança repetiam e juntavam os esforços, destilavam suor sobre calor abafado, para o trabalho do talhão deste ou daquele; onde cresceriam as suas esperanças em nova campanha de venda. Ora, o velho e resoluto Samba, fula genuíno, era um dos mortais em que a tropa do destacamento perto depositava confiança. Assim era na verdade e nas horas de trabalho ou de calcar mato de lés a lés, espiolhava com os seus homens todos os movimentos suspeitos do pessoal bandido no mato cerrado.

A mulher do fiel Samba lá estava estendida na esteira, suportando a ferrugem dos anos. Era a única alma viva, além de um outro garoto que brincava ou dormia a sesta em sorna doentia à sombra do mangueiro acolhedor. De repente, em surpresa assassina, os bandidos fizeram uma sortida e deitam fogo que se ateia furioso à palha seca dos moranças. Corre apressado o Samba, que ao ver fumo e gritos ao longe – pensa em mau agoiro. Quando corre ofegante passa pelos dedos o chifre e mèzinhos que trás ao pescoço. Aperta-os com força e com raiva.

Com espírito de jambacosse em mau agoiro – pensa no pior. Cansado, fura em corrida a entrada do quartel e conta ao Comandante o acontecido. Este põe o seu dispositivo de guerra em marcha, não atendendo ao tornado envolto em chuvas, que estala à mistura com o ribombar do trovão.

Os elementos facilitam a progressão. Estala um tiroteio de pôr os ouvidos a zunir e abatem-se alguns dos assaltantes em fuga precipitada. Algumas crianças fugiam espavoridas ao fogo crepitante em palha nas coberturas, sem o inevitável de algumas perecerem às chamas que as lambiam em círculo. Mulher grande – morre frente ao ódio excitado e assassino.E só por o velho Samba ser fiel… não aderir à catequização que se promovia. Samba com a lágrima no olho, cheio de dor – olha a sua casa em chamas.

Nada mais há a fazer…

- Enfim, foram mais umas vítimas inocentes desta guerra… - comentou mais alguém para o comandante da tropa, que conformava o velho Fula.

(Do nosso correspondente em Teixeira Pinto – ÓKEY)”

Esclarecimento:

Chamávamos ao nosso periódico da companhia: «Jornal da Caserna». Uma publicação que tinha os seus colaboradores locais e, mais além, “correspondentes” destacados em outras localidades, com resquícios de estrutura física e tudo.

Por isso, nós, já em 1964, utilizávamos e dávamos forma àquilo que hoje se intitula, corriqueiramente, de Comunicação Social, e é aceite pela sociedade como perfeitamente banal e natural.

Veja-se que até tínhamos um correspondente em Teixeira Pinto, que nos enviava, por avioneta, histórias como esta acima publicada e que, posteriormente, eu transcrevia para o “stencyl” (creio que é assim que se escreve).

O pseudónimo ÓKEY, era utilizado pelo Alf Mil Médico Ramiro Fernandes Figueiredo, que embora pertencendo à minha companhia (Ingoré), foi destacado, ou «emprestado», à unidade de Teixeira Pinto.

Foi o mais «destravado» e bem-disposto militar que conheci na minha vida. Penso que era, ou viria a ser, psiquiatra. Mas, o que ele gostava mesmo, era de jogar futebol misturado com toda a rapaziada… um desporto que, na Guiné, permitia a criação de grandes elos de amizade e fraternidade… inesquecíveis!

Aproveito esta oportunidade, para enviar esta foto de uma palhota que não foi incendiada (já que falamos delas na estória), que constituía o meu bur.. ako e que legendo assim: «Isto é uma moradia! Façam favor de entrar. Guiné - Có - Abril de 1965».

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes

Foto e gravura: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.
__________
Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:


quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Guiné 63/74 – P5171: Histórias de José Marques Ferreira (7): Jornal da Caserna (1)



1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, enviou-nos com data de 26 de Outubro de 2009, o primeiro de alguns extractos, que nos irá enviar futuramente, do "Jornal da Caserna" da sua Companhia:


Camaradas,

Há já algum tempo que ando ausente da tertúlia da Guiné e Camaradas. Pensei (e quando isto acontece, é sinal de que, às vezes, penso mal) que se haviam esgotado as “estórias” da minha estadia na Guiné, ou melhor, do meu turismo naquelas terras de vermelho.

Se alguns acontecimentos neste interregno aconteceram, até falhei um encontro com um dos nossos editores – Magalhães Ribeiro –, porque no dia em que tive uma oportunidade para ir ao Porto, e depois aí realizarmos o nosso contacto e encontro, esqueci-me do telemóvel em casa. Desculpa, mais uma vez, MR.

Não sei se já dei conhecimento à tertúlia, que fundei, em Ingoré, um pequeno «Órgão de Comunicação Social», com a designação já pouco usada actualmente, de: "JORNAL DA CASERNA".

Então lembrei-me que nos diversos exemplares de «Jornal da Caserna», que guardo e preservo desde então, há artigos quer da minha autoria, quer de outros camaradas, que, merecem ser publicados e, certamente, que eles vão gostar de os tornar a ler, aqui no blogue.

Conheço-os a todos, mas desde a desmobilização que nunca mais nos voltamos a cruzar. A identificação de cada um dos autores vai surgir no desenrolar da postagem de vários artigos que vos vou enviar, sendo esta, também, uma boa forma de os darmos a conhecer ao restantes Camaradas e Amigos, e, ao mesmo tempo, nós os recordarmos.

Creio bem que os autores quando descobrirem aqui, os seus textos ficarão agradavelmente surpreendidos.

Para nós da CCAÇ 462… poderá até ser o início do reencontro pessoal!

Hoje, transcrevo uma história cujo autor assinava com o pseudónimo “Flash” (o Alf Mil Geraldes), que era o ilustrador do «Jornal da Caserna» e possuía jeito e vocação para o desenho, e caricatura, fora do comum. O título da sua história, baseada em factos reais, como todas as que relato da Guiné, era a seguinte:

Duas horas de espera em S. Vicente

Estava eu aborrecido na margem do Cacheu esperando cambança. A jangada com um desarranjo aborrecido, continuava parada e as horas passavam… algumas moscas aborrecidas passeavam nas nossas mãos e na cara, provocando uma revolta que se traduzia em palmadas desesperadas nos locais em que elas pousavam.

Alguns patos bravos, pegas e outras aves cruzavam o ar sobre as nossas cabeças com toda a sorte de pios extravagantes.A meu lado, sentados, silenciosos e imóveis, alguns nativos esperavam também que a jangada se resolvesse a passar-nos. Com resignação comecei a olhá-los, aos seus enfeites de argolas, latas, o corpo suado devido ao sol que nos martelava lá do alto e os seus movimentos cadenciados para afastar os insectos… foi então que reparei mais em pormenor num deles.

Era um moço forte, alto e desenvolvido, rosto impassível igual a tantos outros, o seu braço direito estava cortado pela articulação do cotovelo… depois de alguns segundos de exame distraído à sua mutilação, ia a desviar o olhar quando ele voltando os olhos para mim por curto espaço de tempo, fitou o toco mutilado do seu braço.

Pressenti que ele ia dizer alguma coisa e olhei-o mais atentamente, ele bateu com o braço esquerdo no que restava do braço amputado, e, com um sorriso em que deixou entrever uns dentes grandes e separados e num tom de voz forte, quase divertido, afirmou: “Lagarto”. Compreendi que ele me explicava aquela mutilação e abanei a cabeça, mostrando atenção ao que ele me disse e encorajando-o a continuar.

Tinha sido duas chuvas atrás, de manhã muito cedo quando ele, Samba, acompanhado do seu filho, um macho ainda novo, de poucas chuvas, se meteram na canoa para atravessar o Cacheu e chegar à outra margem onde o arroz semeado esperava os seus braços para produzir o suficiente para aguentar no tempo seco.

Samba, deitado na parte traseira da canoa, preguiçosamente auxiliava as remadas do filho, com o braço metido na água, movimentando-o qual o remo tosco que o filho utilizava. Subitamente um vulto esverdeado sulcou a água, e, Samba sentiu a dor aguda de muitos dentes fortíssimos dum lagarto.

Devia ter-se sentido muito aflito, pois nos seus olhos prespassou uma sombra quando contou esta passagem, depois a canoa começou a balançar perigosamente ameaçando voltar-se pelos puxões violentos do crocodilo. Samba olhou o filho ainda novo e sentiu um medo que o pelou, mas um pensamento súbito iluminou-o e, com um repelão a sua mão esquerda segurou o cabo da faca afiada que trazia à cintura… depois com golpes rápidos, os dentes e lábios apertados cortou com a faca os ligamentos do braço no cotovelo, e, foi o bastante para que com um estalido seco o crocodilo mergulhasse nas águas amareladas do Cacheu levando na boca, bem preso nos seus afiados dentes o braço valente daquele homem, que, após o seu acto de heróico desespero ficaria caído sem sentidos no fundo da canoa com um coto sangrento e uma faca na mão esquerda.

Quando a sua narrativa terminou, fiquei a olhá-lo, em olhar mudo de admiração e não tive palavras para perguntar nem dizer mais nada… e ele sorria.A jangada começou a funcionar com um lento ranger de ferros desconjuntados, as aves com os seus pios estranhos e as moscas continuavam a sobrevoar-nos.

Fiz um aceno ao homem e dirigi-me ao sítio de atraque.

Finalmente íamos passar!!!”



Nota: A ilustração é exactamente um possível retrato da frente do aquartelamento em Ingoré, impresso no cabeçalho do «Jornal da Caserna» na sua segunda edição. A primeira era dactilografada, e só o original é que era ilustrado pelo camarada Geraldes.

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes


Gravura: José M. Ferreira (2009). Direitos reservados.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4869: Histórias de José Marques Ferreira (6): A morte à frente dos olhos… perdão, à frente da avioneta!



1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, enviou-nos com data de 25 de Agosto de 2009, mais uma engraçada (para nós diz ele) estória:

Camaradas,

A morte à frente dos olhos… perdão, à frente da avioneta!

As velhinhas e saudosas avionetas “Auster” eram uma maravilha, para transportes rápidos nas guerras coloniais.


A “Dornier” era muito melhor, com mais bojo de capacidade e mais espaço, permitia que fôssemos sentados na base que servia de apoio do aparelho sobre o pavimento.

Todos nós temos algumas ‘estórias’ com estes aparelhos da Força Aérea.

Eu tenho algumas e, numa delas, pareceu-me que não chegaria ao destino, tal foi a reacção que o “Gregório” me provocou, que me agoniou o estômago...

Precisamente porque o piloto passou a viagem a fazer piruetas, subindo e descendo constantemente, em “picanços” de arrepiar. Isto de Bissau até Ingoré. A missão era entregarmos o correio, através do postigo lateral, junto dos respectivos aquartelamentos, nomeadamente no dos meus camaradas de Sedengal.

Um dia, surgiu a necessidade de ir ao quartel-general a Bissau, fazer qualquer coisa que não me recordo. O que eu não esqueço foi o que aconteceu antes de partirmos para Bissau, melhor dizendo, quase nem chegávamos a sair de Ingoré.

Havia uma serração próximo do aquartelamento. Certo dia, apareceram lá pessoas responsáveis pela empresa proprietária dessa serração, numa avioneta (creio que uma “Auster”), que apenas tinha capacidade para três passageiros.

O comandante da companhia contactou essas pessoas, no sentido de nos permitirem essa deslocação a Bissau. E quem havia de ir na aeronave, eu, «o administrador da companhia».

A preocupação foi saber qual o peso que eu transportaria, já que não levaria armas, nem cartucheiras, nem munições. Nada mais do que uma pasta comportando, talvez, meia dúzia de documentos.Feitas as apresentações, lá entramos na avioneta. Como certamente devem estar a adivinhar, nada percebo de avionetas ou veículos do género.

Com a avioneta a funcionar, dirigimo-nos para o início da pista (coisa que outros pilotos com veículos idênticos não faziam), e senti, estranhamente, uma aceleração do motor muito anormal. Avançamos em grande velocidade em direcção à estrada que estava no topo da pista. Na berma, do lado contrário, existiam algumas moranças nativas.

Em Ingoré, esta pista, de terra batida, ficava junto à estrada para S. Vicente, a pouca distância daquela localidade.Voltando à pista, o aparelho deslizava rapidamente, mas não via modo nem jeito de o mesmo levantar voo. E eu via a aproximação da berma da estrada e das referidas moranças a uma velocidade vertiginosa. Pensei então que íamos ficar esborrachados algures por ali, até que, numa espécie de golpe rápido, a avioneta levantou, com o ruidoso roncar do seu motor, por cima das moranças e toca de ganhar altura.

Só vos digo que foi um susto pior que alguns tiros em terra firme… quase borrei as calças, ou calções que trazia vestidos…

Mas, lá em cima, já com perfeita noção que o pior tinha passado, comecei a verificar que quem pilotava ia em direcção, não de Bissau, mas um pouco desviado para nordeste, pelo que, passado pouco tempo, estaríamos no Senegal. Íamos na direcção de Barro, um pouco “inclinados” para a fronteira, portanto, iríamos entrar por lá dentro, mais perto ou mais longe, sem licença de quem quer que fosse.

Quando olhei para a paisagem e vi as vias que eu já bem conhecia, só me restou fazer uma coisa simples; bater no ombro de quem pilotava (pois a barulheira lá dentro era tamanha que não se conseguia contactar com ninguém) e, por gestos, dizer-lhe que a direcção a tomar era a da estrada, que estava por debaixo e atrás de nós, melhor dizendo, na direcção do nosso lado direito.

O homem viu que ia mal, mudou de direcção em ângulo recto e começou a orientar-se pela dita estrada que ia de Ingoré-S.Vicente-Bula-Bissau.

Chegamos, finalmente e em pouco tempo, a Bissau. E só aqui é que me apercebi, que aquele aparelho, excluindo talvez a bússola, não tinha qualquer outro tipo de aparelho de orientação: um mapa, um rádio, nada…

Afirmo isto porque, para aterrar no aeroporto, demos uma volta e aguardamos que da torre de controlo, através de sinalética com bandeiras, no passadiço exterior (não sei como se chamam as áreas de varandas que rodeiam estes equipamentos), lhe fosse dada autorização para aterrar.

Caros camaradas só posso dizer-vos uma coisa: isto pode não ter graça nenhuma para vós, ou interesse algum, mas, para mim, foi uma experiência que me provocou um cagaço tal, que gosto pouco e nem quero recordar muitas vezes…


Nota: - Na foto, o homem que não tinha vocação para piloto de helicópteros (mas oportunidades não lhe faltaram, como esta). Prefiro bem mais andar com os pés assentes no chão… acho que é melhor!

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira

Foto 1: © Casimiro Carvalho (2009). Direitos reservados.
Foto 2: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:


quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4785: Histórias de José Marques Ferreira (5): Rádio “Voz da Liberdade” também mentia!

1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, enviou-nos com data de 02 de Agosto de 2009, mais uma curiosa estória:

Caros Camaradas e Tertulianos;

As minhas estórias têm sido simples, sem “suspense” algum e sem pretensão de querer tirar o sono, ou relembrar macabras e catastróficas situações. Nada disso. A minha guerra foi outra, como aqui já disse.

Hoje a estória é sobre:

Rádio voz da liberdade também mentia!

Ingoré.

A primeira companhia a utilizar um território bem definido e delimitado na Guiné, mas demasiado extenso para tão pouca gente, foi a minha CCAÇ 462.

Muito agradeço ao camarada que fez uma lista das companhias, que passaram por Mansoa, onde a CCAÇ 462 está incluída, ao tempo - 1963-1965 –, por ter ido substituir, naquela localidade, uma secção.


Não havia lá nada, nem sequer as condições mínimas e indispensáveis para podermos sobreviver. Tudo teve que ser construído de raiz, a partir do… zero.

Mas a história que vos quero contar não é sobre este assunto, que apenas serviu para um pequeno intróito afim de lembrar aos meus caros camaradas, aquilo que foi dito nas minhas estórias anteriores.

Como militares, tínhamos sempre (e de que maneira diga-se) a guarda montada, em estratégicos postos de vigia, principalmente durante os períodos nocturnos.

Nesses períodos de vigia, para poder fazer “andar” os ponteiros dos relógios mais rapidamente, levávamos o nosso “receptor” (transístor – pequeno rádio -, que funcionava a pilhas), que se vendia às “carradas” na Guiné, geralmente da marca Hitachi.

Como eu sabia, antes de embarcar, da existência de uma emissora do IN – A voz da liberdade -, que emitia propaganda contra o regime de Salazar/Caetano, assim que as oportunidades surgiam, também eu a escutava, por motivos lógicos e óbvios sem levantar suspeitas, através de um auscultador (já usado naquela época), nos meus períodos de sentinela, nos tais postos de vigia.

Era por demais conhecida uma das vozes de “trovão” e determinada de um homem, chamado Manuel Alegre, na sua identificação mais abreviada, que por sinal era meu conterrâneo de concelho, e eu lá o ia ouvindo nas suas emissões a partir de Argel.

É claro que já não me lembro da maior parte do conteúdo, daquilo que ele ia dizendo nas suas emissões, mas há uma passagem naqueles anos idos de 63-65, em que ele noticiou um “facto” passado na Guiné, relativamente perto do local onde eu estava, de tal forma bombástico e terrível, que dificilmente esquecerei.

Dizia Manuel Alegre então numa das suas locuções que, dias antes na estrada Bula-Bigene-Bissorã, o PAIGC teria desencadeado forte ataque «ao exército colonial e do regime fascista» (era mais ou menos assim a sua definição), numa emboscada às NT, que provocou cerca de uma centena de mortes entre os nossos militares, entre outras “façanhas” menos bombásticas que o nosso pessoal teria também sofrido.

Quando ouvi aquilo, pensei com os meus botões: “Que grande mentira”. Mas, como estava ali sozinho e não podia desvendar o que acabava de ouvir naquela estação de rádio, por palavras do Manuel Alegre. Ainda por cima, havia muito pouco tempo em que eu tinha estado nas redondezas do local da noticiada mortandade, na mencionada estrada, e nada me constou acerca da anunciada “chacina” e da respectiva “operação” dos guerrilheiros IN.

Quero com isto dizer que se do nosso lado as coisas eram publicitadas e apresentadas da forma que mais convinha, do outro lado também se mentia sem despudor… se é que na guerra, mesmo daquele tipo, fosse obrigatório existir qualquer pudor…

O que era preciso, era impressionar e… desmotivar a outra banda.

E aí meus amigos, valia tudo!

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira

Foto: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

terça-feira, 21 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4720: Histórias de José Marques Ferreira (4): Uma estranha emboscada, CCAÇ 462, 1963/65


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, enviou-nos com data de 15 de Julho de 2009, mais uma curiosa estória passada com a sua companhia:


UMA EMBOSCADA À… DISTÂNCIA?

Existiam informações que davam conta da possível passagem de um grupo IN (que parece já era habitual), por um caminho já nosso conhecido, que fazia cruzamento com a estrada entre Ingoré e Barro.


Era natural a existência desse corredor, que se situava a sul da margem direita do Cacheu e a norte da estrada Ingoré - Barro.

Passada essa estrada a meia dúzia de quilómetros ficava a fronteira com o Senegal, e Ingorézinho localizava-se a poente.

Era, aquilo a que se designava então em termos militares, um importante corredor…


Face à informação recolhida, foi decidido montar uma emboscada no citado cruzamento, tendo-se previamente, como mandavam as boas regras “emboscadoras”, feito um cuidado e meticuloso reconhecimento ao local.

Já no quartel, delineou-se um plano para montar a emboscada, tendo-se tomado as devidas providências que, incluiu a antecipação da hora do jantar que foi servido mais cedo que o habitual (pouco depois das 16h00), após o que partimos para o local transportados em viaturas.


A certa altura descemos das viaturas, que regressaram à base, e todo o pessoal seguiu apeado, em direcção para o local estipulado.

Nada de anormal até aqui, o que veio a seguir é que “estragou” tudo.


Como já era hábito e conhecido, quando o horizonte se apresentava escuro, era presságio de aproximação de mau tempo. Passada cerca de meia hora, o presságio passou a certeza, pois desabou tamanho temporal em cima de nós, tipicamente tropical, com o consequente e rápido escurecimento da paisagem à nossa volta.

Não se enxergava nada a mais de um metro de distância.

A técnica já velhinha para não nos perdermos, foi seguir o caminho em fila indiana, agarrados aos casacos dos camaradas da frente, com uma das mãos.


A chuva desabou a cântaros, a trovoada era constante e iluminava perfeitamente toda a zona. Nas botas, a lama já pesava mais que as mesmas.

Os trovões ribombavam constantemente, com um ruído mais ensurdecedor que o dos disparos dos canhões e obuses.

Os efeitos luminosos das faíscas e os estrondos dos trovões, à nossa volta, eram mais espectaculares que qualquer fogo-de-artifício de S. João, que algum dia tivesse visto.


Mas lá fomos sempre a andar. Estava decidido que não voltávamos para trás, pois o temporal, tal como os outros anteriores, havia de passar e o nosso capitão estava decidido a levar a bom termo a emboscada.

Até que a certa altura, no meio daquela escuridão, o capitão manda parar, e refere que lhe parece ser ali o local onde a operação sobre o grupo IN devia ser montada.

O dispositivo das forças foi então distribuído, de acordo com o esquema pré-delineado, partindo do princípio que estávamos no local correcto.


Em pequenos grupos ou individualmente, como no meu caso, lá ficamos abrigados nos respectivos esconderijos, esperando pelo momento de entrar em acção.

Vimos as horas a passar e… nada!

Quando a manhã raiou é que constatei bem do local que me coube em sorte. Eu estive a noite toda deitado, debaixo de uma árvore de porte e altura enormes.


“Xiça, que perigo - pensei eu naquele momento -, com aquele temporal e trovoada, e eu debaixo deste “pára-raios”! Meu Deus, que sorte a minha, nenhum raio ter atingido esta árvore. Com esta altura toda… uma faísca por aqui abaixo e lá ia o filho do meu pai desta para melhor, sem apelo nem agravo!

Ao raiar a aurora, o capitão deu ordem de reunião.

Respirei com alívio e fui-me juntar aos meus camaradas na estrada, com lama em cima de medir ao palmo, e passamos a bater a zona periférica à procura de eventuais indícios da presença inimiga.


Grande bronca, pois começamos por constatar que havíamos ficado emboscados a cerca de 150 metros, acima do cruzamento pré-referenciado!

Acercámo-nos do dito local e detectamos várias pegadas humanas fresquinhas, naturalmente de pessoas, que por ali haviam passado.

Conclusão, nós não demos pela passagem do IN e eles não deram pela nossa presença…

Foi assim uma emboscada… fracassada… da CCAÇ 462.




Nota: - Aproveito esta oportunidade para enviar uma foto rara, que mostra com direito a placa identificativa e tudo, a Fonte Longa de Ingoré, onde nos abastecíamos de água salobra. Era a única nascente natural vários quilómetros em redor. Mais tarde, outros camaradas nossos chegaram a ser ali emboscados, com resultados catastróficos. Fui lá muitas vezes buscar abastecimentos aproveitando para tomar umas boas banhocas. Era vulgar encontrarmos lá, também, muitos nativos a fazerem o mesmo.

Para todos um abraço,

J.M. Ferreira

Foto: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
____________
Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4699: Histórias de José Marques Ferreira (3): Um fado no silêncio da madrugada


1. Mensagem de José Marques Ferreira, que foi Soldado Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, com data de 15 de Julho de 2009, com mais uma curiosa e divertida (para o envolvido não o deve ter sido muito) estória passada na sua companhia:


Camaradas;

Ingoré, ambiente de guerra.



Já aqui disse que a minha guerra na Guiné foi mais turismo e pó, que se entranhava nas narinas, na pele, na roupa e em tudo quanto era sítio, do que bombardeamentos, emboscadas (salvo uma “brincadeira” de que não sabemos as origens e que um dia, se se justificar, contarei) e tiros, que, felizmente, nos passaram ao lado. Nem sequer ouvimos tiros (os do IN claro).

Vá-se lá saber porquê. Estávamos lá e não fomos “incomodados”, ao passo que outros camaradas, não podem, absolutamente, dizer o mesmo.

Mas, mesmo assim a Guiné, como por aqui se diz, também foi sentida, vivida, com paixão, pelas coisas boas, porquanto também a nossa companhia, sem tiros, esteve na terreno a ajudar a construir a paz…

Parece conveniente justificar é que as populações – mais uma vez as populações – foram sempre a nossa preocupação, respeitando as suas vidas, os seus modos de viver e as suas necessidades, sem intromissões no que genuinamente lhes pertencia… os seus hábitos, costumes, crenças, etc., etc.

Sempre houve, aquilo que se convencionou chamar, na altura, a acção psico-social.

Isto quer dizer que, aquela gente, necessitava de nós, nos momentos maus porque passaram, e nós necessitávamos dela para o nosso equilíbrio psíquico, isto é, permitir-nos ter sempre presente a abismal diferença entre a guerra e a paz, entre a vida e a morte.

Enfim, desviei-me um pouco da história de hoje. Vamos a ela.

UM FADO NO SILÊNCIO DA MADRUGADA

Aquilo a que se chamava “aquartelamento”, em Ingoré, nem iluminação eléctrica tinha, luz só a dos petromax. Chegou a haver electricidade durante um ou dois meses, até os geradores “pifarem”, de tal modo fatalmente (desconheço os motivos dos “pifos”), que nunca mais tivemos iluminação eléctrica.

Havia segurança montada, sob uns cibes espetados no chão e com os quais se fez uma torre de vigia, não sei para quê, pois um bazucada prostrava aquela treta e o respectivo pessoal num instante (apesar disto dava algum jeito e alguma imagem de segurança).


De acordo com o local havia um esquema de segurança, que incluía um posto de vigia, situado mesmo nas traseiras do edifício, onde dormia o nosso comandante da companhia (façam-me o favor de não serem maliciosos).

Certo dia, o camarada que ali cumpria a seu turno de serviço, às tantas da madrugada (que bonita canção alentejana dava esta cena na madrugada de Ingoré) resolveu, àquela hora imprópria, cantar um fado.

O que eu pensei de imediato, quando me contaram o sucedido, foi que o “desgraçado” recorrera a este subterfúgio, para “camuflar” o alívio de algum sonoro “flato”, que o estaria a incomodar.

O que é certo, é que o “artista” pôs-se a cantar, já não sei que fado, mesmo sem acompanhamento à viola ou à guitarra. Imaginei os gestos, dedilhando a G3, em substituição dos ditos instrumentos. Não sei se foi assim, mas calculo que pouco menos terá sido...

O que eu sei é que a sua voz, melodiosa ou não, acordou o nosso comandante.

Este, não gostou mesmo nada de ouvir cantar o fado àquela hora da matina, pelo que, não esteve com meios ajustes e toca de, na Ordem de Serviço que se seguiu, sentenciar, sem apelo nem agravo, uns dias de detenção para o rapaz (é verdade detenção na Guiné, meus amigos!), como prémio para o tom “afinado” com que acordou o capitão da companhia!

Aqui sim, é caso para dizer: Triste fado, triste sina…

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira


Foto: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
____________
Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em: