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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20183: Notas de leitura (1221): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (25) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
O bardo despede-se do Como, não com uma litania ou uma epifania mas com um epitáfio. São versos de mágoa e quem o acompanha foi acidentalmente levado para uma outra experiência duríssima, não uma batalha mas uma vivência de anos num local inconfundível, Madina do Boé.
É de supor que vários autores tenham descrito esta via-sacra, a que conheço está em duas obras de Gustavo Pimenta que experimentou Madina do Boé em carne viva, estava de férias quando em fevereiro de 1969 ocorreu o brutal desastre da travessia do Ché-Ché. E dá-nos uma dimensão do que era uma coluna entre Canjadude e Ché-Ché, as primícias do Inferno, tudo contado com a serenidade e um saber de experiência feito.
E agora o BCAV 490 vai regressar a Bissau, segue para outras paragens, entre elas Farim, Jumbembem e Cuntima. Temos ainda muito rio para navegar.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (25)

Beja Santos

“Nesta grande operação
muitos rapazes sofreram:
30 feridos gravemente,
dez colegas morreram.

No Como já se sabia
que havia muitos bandoleiros.
Os paraquedistas e fuzileiros
lutavam com valentia.
O Batalhão de Cavalaria,
desempenhava a sua missão,
lutando pela Nação.
Todo o pessoal trabalhou
e muito bandido tombou
nesta grande operação.

A Comando e Serviços passou
todo o tempo livre de perigo.
Não atirámos ao inimigo,
mas foi porque não calhou.
Algumas vezes se esperou,
mas nunca lá apareceram.
Talvez fosse porque temeram
a força que lá havia.
E fazendo reforços, noite e dia,
muitos rapazes sofreram.

Dão muito que falar
estes maus tempos passados,
mas diminuímos os malvados
que a ilha queriam tomar.
Têm que se conformar
que não vencem nossa gente.
Atacaram constantemente,
mas a tudo resistimos,
e no fim da operação vimos
30 feridos gravemente.

Vamos então regressar
para a nossa bela cidade,
onde estamos à vontade
para uns dias descansar.
Pior do que tudo foi o azar,
dos que a mocidade perderam.
Pela Pátria combateram,
dando a sua própria vida,
e abalando desta lida
dez colegas morreram.”

********************

Gustavo Pimenta
O bardo, em jeito de epitáfio, regista o seu olhar quanto aos acontecimentos do Como, eleva o tom para falar da bravura, da coragem, curva-se perante as perdas em combate. É nisto que o acompanhante do bardo se lembra de outras paragens, fora dos azimutes da BCAV 490, lembra-se de um longo penar que deu pelo nome de Béli e Madina do Boé, imagine-se. Guarda memória de dois livros injustamente descurados de Gustavo Pimenta, “sairòmeM Guerra Colonial”, de 1999, e “A sorte de ter medo”, de 2017. Chegou à Guiné em setembro de 1967, em jeito de aperfeiçoamento operacional andou pela Mata do Poindom, acima do Xime, depois Porto Gole, mais tarde viajam para Madina do Boé, irá também falar de Béli. Deixará em ambos os livros impressões daquele horror.
Transcreve-se o que ele vai escrever em “A sorte de ter medo”:

“O percurso até ao rio Corubal, em cuja margem se situa a povoação de Ché-Ché, é perigoso, sobretudo após se passar Canjadude que fica a meio caminho.
É preciso ir ao Ché-Ché verificar as condições de travessia do rio, especialmente as da jangada que permitirá colocar na outra margem a companhia e as viaturas em que se fará transportar com toda a sua bagagem.
O alferes do terceiro grupo de combate vai no DO 27 com o major do batalhão que faz o PCV que controla uma operação do efetivo estacionado em Ché-Ché, e do ar fotografa o local.
No dia seguinte, com o seu grupo de combate, reforçado por outro de nativos, protege uma coluna que vai reabastecer a tropa e as populações de Canjadude e Ché-Ché e onde seguem o major e um furriel de Engenharia que vão observar a jangada.
Saem manhã cedo, até Canjadude as viaturas seguem a boa velocidade, o percurso é considerado seguro.
A partir daí a viagem é a pé, a tropa ladeando a picada em proteção à coluna com uma equipa de nativos à frente a picar o terreno, prevenindo a existência de minas.
Pela mesma hora, outra equipa de picadores sai do Ché-Ché em sentido contrário ao da coluna, devendo encontrar-se a meio do percurso.
Estabelece-se o contato: quatro nativos, com Mauser a tiracolo e uma pica na mão, aguardam a coluna – há mais de duas horas, dizem – sentados na berma à sombra de uma árvore. Escassa e débil força para tão delicada missão. A tropa retoma o seu lugar nas viaturas, a coluna avança com a velocidade possível pela estrada esburacada de terra batida.

Escassos quilómetros percorridos a viatura segue na frente – uma GMC, sem capota para evitar traumatismos ao condutor em caso de rebentar alguma mina e com os guarda-lamas cobertos de sacos de areia para amortecer o impacto – é violentamente sacudida pelo rebentamento de uma anticarro.
O major de Engenharia, que exigia ir ao lado do condutor na viatura da frente para não apanhar a nuvem de pó que a coluna levanta, fica gravemente ferido.
O alferes do terceiro grupo, que ia na caixa da mesma viatura, voa alguns metros juntamente com três soldados que o acompanhavam, um dos quais o enfermeiro.
Parada a coluna, procura-se socorrer o major. O furriel que, a dias do fim da comissão o quis acompanhar, ao precipitar-se para ele pisa uma antipessoal e morre minutos depois.
O enfermeiro fica ferido pelos dois rebentamentos.
Monta-se a segurança em volta do local. Picam-se os arredores à procura de mais minas, rebentam duas, uma delas fere mortalmente um soldado do grupo de nativos.
Tenta-se o contacto rádio com a sede do batalhão para pedir evacuação dos feridos e dos mortos, o ANGRC9 não atinge nenhum recetor, ninguém responde.
De súbito, surgem dois helicópteros, um a seguir ao outro, voando no sentido de Ché-Ché para Nova Lamego. Consegue-se o contacto com um deles e pede-se-lhe apoio para a evacuação. Responde que estão a evacuar feridos graves da tropa de Ché-Ché, que se prossiga até lá e aí se verá o que será possível fazer.

A viatura que despoletou a mina, com a frente desfeita, fica no local. Avança para a frente outra GMC, com capota, sem sacos de areia e apenas com o condutor, os grupos de combate regressam à segurança lateral da coluna, retoma-se a picagem da estrada.
Já com o Ché-Ché à vista, outra mina anticarro que os picadores não detetaram é ativada pela viatura que segue em frente, o condutor sai inexplicavelmente ileso. A iniciar a coluna vai agora um Unimog, que, de tão leve, ficará desfeito se outra rebentar. Atinge-se o aquartelamento já o fim do dia se aproxima. O efetivo local, além de vários feridos, sofreu três mortos nativos na operação que efetuara. Os helis não param de chegar e partir com os feridos, entre os quais o enfermeiro da coluna.
Os mortos ficam, serão levados no dia seguinte, nas viaturas, de regresso a Nova Lamego.”

Dias depois, a companhia ruma a Madina do Boé, faz-se a cambança:
“Os bombardeiros T6 vêm sobrevoar levemente a zona, duas horas depois a primeira viatura desembarca no outro lado.
A transferência de toda a coluna demora o dia inteiro, numa azáfama permanente, cansativa e perigosa: deslocar a jangada agarrando a corda e impulsionando-a é uma manobra que tende a desequilibrá-la dado o enorme peso que suporta com as viaturas carregadas e os homens que nela seguem.
Os jatos Fiat aparecem sobre o local e rapidamente desaparecem.
Monta-se o dispositivo de segurança ao verdadeiro destacamento em que se transforma o local de desembarque onde se vai pernoitar.
Mal o dia nasce, aguarda-se a chegada dos T6, o itinerário até Madina vai ser efetuado picando minuciosamente o terreno e com eles permanentemente, aos círculos, por cima: está-se na zona do Boé onde as colunas só conseguem mover-se com proteção aérea constante.
A coluna avança lentamente, ao ritmo em que se consegue uma picagem conscienciosa, sob um calor asfixiante e com o pessoal estafado.
Pelo caminho, aqui e além na berma da estrada, viaturas destroçadas por minas em operações anteriores adornam a paisagem com um toque inusitado e assustador.
Ao início da tarde atingem o aquartelamento que envolve e protege a isolada povoação local".

Admito que existam outros relatos tão circunstanciados como este, mas Gustavo Pimenta faz parte daquele contingente que em fevereiro de 1969 provará um desastre de imensas proporções na travessia do Ché-Ché, o que ele vai descrevendo nesta sua obra é como que um auto-de-fé, que em ponto algum deste Portugal se invoque ignorância do que ali se passou: que Béli está a cerca de 15 quilómetros da fronteira da República da Guiné e que mais para sudoeste fica Guilege; que Madina se situa para Sul, está num vale, entre pequenas elevações montanhosas, beneficia de uma nascente de água ali a cinquenta metros fora do arame farpado, tem uma população maioritariamente Fula.
Regista os abrigos, as condições do quartel, como se vive, há mesmo para ali uma dobadoira de pormenores:
“Na ponta mais a sul do perímetro há um pequeno edifício, espécie de arrecadação de coisas inúteis, em frente ao qual está o mastro em que, permanentemente, esfarrapada nas extremidades, flutua a bandeira nacional: aqui não há condições para cerimónias de hastear e arriar.
Todos os edifícios evidenciam ter sido duramente atingidos pelo fogo inimigo.
No beiral do edifício do comando um enxame de abelhas montou residência.
Dentro do terreno fortificado, uma vaca, que parece não ser de ninguém, vagueia pachorrentamente”.

Fazem-se patrulhamentos, dentro do aquartelamento os militares mantêm-se junto dos respetivos abrigos, por vezes há tréguas, a seguir vem a tempestade de fogo, os ataques a Béli também são incessantes, o destacamento será abandonado, mais tarde chegará a hora de retirar de Marina do Boé, no início do ano de 1969. O desastre na travessia do Ché-Ché é do conhecimento de todos.

(continua)
____________

Notas do editor

Poste anterior de 20 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20161: Notas de leitura (1219): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (24) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 23 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20170: Notas de leitura (1220): “Antologia de textos lusófonos sobre o Senegal”, seleção de textos de António Montenegro, José Horta e Mallé Kassé, sem indicação de editor; Dakar, 2015 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20161: Notas de leitura (1219): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (24) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Era compreensível que os acontecimentos da Ilha do Como merecessem amplo destaque na gesta do bardo. Espero que quem ali combateu naquele terrível penar aqui venha exprimir outros pontos de vista, narrar outros episódios, clarificar situações que ficaram no olvido. A história da Unidade do BCAV 490 é parcimoniosa, como se disse, faz-se referência a um anexo, que não encontrei e se algum dos confrades o possuir bom seria que aqui se referenciasse outros episódios que não couberam na poesia nem nos testemunhos. A imaginação de quem acompanha o bardo saltitou para as belezas da natureza, sempre irresistíveis, a despeito das aflições e sofrimento vivido. Repare-se na descrição que Alpoim Calvão faz de uma missa ao ar livre e o maravilhamento do céu e das águas, a par da comoção dos mortos e da emoção dos vivos.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (24)

Beja Santos

“Temos muita companhia
já com pouco pessoal:
coxos, doentes e feridos
vão indo para o hospital.

Há muito tempo passado
e sempre a mesma labuta.
Há quase dois meses que se luta
e ainda há muito malvado
que tem que ser acabado
o bando que cá existia
é uma patifaria,
que dá cabo da rapaziada,
mas isso não lhes vale nada,
temos muita companhia.

Em duas ocasiões
no meio dos terroristas
morreram dois paraquedistas
deram gritos de aflições.
Fizeram muitas operações
dentro daquele matagal,
mas quase sempre se deram mal
devido a tantos bandidos.
Por isso, os pelotões reduzidos
já com menos pessoal.

Um dia Cauane atacaram
foi atingido Joaquim Augusto,
apanhando um grande susto
quando as granadas rebentaram.
No sacristão também acertaram,
dando grandes gemidos.
Com as mãos e dedos perdidos
Quítalo e o sapador doutra vez,
e em pouco mais de um mês
coxos, doentes e feridos.

Dois paraquedistas se perdiam
longe de S. Nicolau,
o caso esteve bem mau
porque entre os bandidos se viam.
Indicados por um avião saíam
sem perderem o moral.
Será isso o principal
no soldado cheio de heroicidade.
E os feridos com gravidade
vão indo para o hospital”.

********************

O tom pungente que o bardo usa, vamos encontrá-lo em obras do tempo e posteriores. Contemporâneo, temos os relatos de Armor Pires Mota e Alpoim Calvão. Naquele Sul, de 1963 em diante, andaram Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Luís Rosa, José Brás, António Loja, Idálio Reis, entre outros. O sul de Mejo, Guilege, Gadamael, Cacoca, Sangonhá, Gandembel, Cacine, Catió. Páginas de fraternidade, de lástima pelas perdas, de revolta pela construção de aquartelamentos feitos com tanto de sangue, suor e lágrimas e depois abandonados. E mesmo nessa apoteose de sofrimento ou mágoa há a extraordinário revelação do feitiço africano, a descoberta de uma natureza viva.

E aqui lembro Leonel Olhero e o seu livro “Ultrajes na Guerra Colonial – Reminiscências de furriel de cavalaria”.
Primeiro, uma trovoada tropical:
“Uma trovoada, com carácter primitivo e sagrado, apavorou-nos. Receoso, o Sol estremeceu de inquietação e correu a esconder-se. Numa embriaguez de luzes, relâmpagos cintilaram em ziguezagues de fogo, bateram nas trevas e apanharam relâmpagos em resposta. De alto a baixo, raios riscaram rasgando fundo os céus. Irrequietos, os trovões estalaram implacáveis vibrando de tronco em tronco e em cada folha, assustando aves e ribombando pelos caminhos do céu imenso num estampido ensurdecedor, enquanto que o vento, carregado dos cheiros da terra e do odor da selva, bradou com fúria e em rajadas hirtas e tudo impeliu numa maluca confusão”.

Agora o Furriel de Cavalaria embarca num Sintex, vai a Bula buscar salários, assombra-se com a travessia do rio:
“Para lá das desviadas margens, num sussurro, naquele rio largo como uma promessa via-se água que penetrava na brumosa mata de onde, desafiando nos céus altas fasquias, se erguiam crescidas e seculares árvores. Por causa das investidas da nossa artilharia, com olhos cansados de procurar, vi cepos definhados com galhos despidos e rasgados. Braços vegetais abertos que nos desejariam abraçar e onde poisavam centenas de colónias de coloridos periquitos (…) Na tona da água, bandos de periquitos de rabo de junco rasavam, chispavam à nossa passagem e rabiscavam hieróglifos (…) Inumeráveis abutres repugnantes e agoirentos que poisavam nos poleiros altos da sossegada e densa ramagem, alteavam-se impassíveis, estremecendo penosamente as enormes e aborrecidas asas. Alguns, mais tímidos, alavam para o escuro daquele tão intemporal bosque e ali ficavam à espera, de olhos tristes e adiados”.

Mas vamos descer até ao Como e ouvir o que escreveram os biógrafos de “Alpoim Calvão, Honra e Dever”:
“Uma operação tão longa como a Tridente, que decorria há já cerca de mês e meio, sempre com duros combates e em que os estacionamentos temporários eram desconfortáveis e penosos, tinha necessariamente um impacto negativo no estado físico e anímico do pessoal. Mas o esforço compensava. Era notório que a actividade inimiga esmorecia, a resistência era agora fugaz e em nada se comparava já à bravura dos combates travados no início da operação.
O dispositivo inimigo nas ilhas de Caiar, Como e Catunco estava praticamente desmantelado, o prestígio do PAIGC e dos seus chefes abalado, a sua confiança desaparecera, o respeito e temor pelas autoridades portuguesas era evidente.
Tinha entretanto o Tenente Calvão criado um núcleo de guias guinéus que com os seus camaradas metropolitanos partilhavam as mesmas canseiras e os mesmos perigos. Havia, no entanto, dois homens que o seguiam para todo o lado como sombras e aos quais Calvão ficou eternamente grato pela coragem, desinteresse de si próprios e dedicação que sempre revelaram: um do Bombarral, o José António; e outro um Manjaco do Pecixe, o ‘Touré’. Mais tarde, num jornal, Alpoim Calvão recordou um caso ocorrido durante aquela operação e que tão profundamente o marcou:
‘(…) Os sucessos da guerra tinham causado várias baixas na minha Unidade. Pedi ao Capelão Militar que acompanhava as forças em operação para rezar uma missa pela alma dos mortos. Numa manhã, na praia onde estava localizado o estacionamento, preparou-se a realização da cerimónia. Aliás, tudo o mais simplificado possível: o altar era um caixote que servira para transportar rações de combate e o templo, o ar livre, com o mais maravilhoso dos tectos: um céu azul, incomparável.
Mal barbeados, sujos, com as faces vincadas pelo cansaço e pela tensão da luta, os homens foram-se chegando e a missa começou. Juntaram-se-lhes, por serem católicos, alguns dos carregadores negros que acompanhavam as forças. O profundo silêncio era apenas alterado pela voz do celebrante e pelo barulho do mar, que, em pequeninas ondas, se enovelava na praia.
Uns de joelhos, outros em pé, os homens seguiam, ou melhor, viviam o santo sacrifício. Acabrunhados pela morte de alguns camaradas, sentiam a necessidade daquele diálogo com Deus e muitos deles, pela primeira vez, souberam o que era a Missa.
Eu estava de pé, um pouco apertado, duplamente comovido pela lembrança dos mortos e pela emoção dos vivos.
E num deslumbramento, numa autêntica revelação de ecumenismo, vi, sobre a minha direita, alguns guias muçulmanos que olhavam a cena com muita dignidade e compostura e procuravam participar nela, orando também ao mesmo Deus, pelo descanso das almas dos que tinham caído e pela vitória das armas portuguesas’.”

E os autores chegam ao termo do seu relato:
“Decorridos mais de dois meses sobre o início da Operação Tridente, concluiu-se que militarmente nada mais havia a fazer na zona, pelo que foi decidido o regresso de todas as forças em acção, ficando apenas montado um aquartelamento em Cachil, onde foi instalada uma Companhia do Exército com a missão de controlar as margens do rio Cobade, numa posição estratégica muito importante para o reabastecimento de Catió. Sendo de prever que dentro em breve aquele local voltaria a estar sujeito a uma intensificação dos ataques, tornou-se necessário manter ali uma LDP em permanência, de modo a garantir o regular abastecimento do aquartelamento de água, mantimentos e munições. Às 12h00 do dia 22 de março, o DFE8 embarca no ‘Bor’ rumo a Bissau, onde chega na manhã seguinte. Era o fim da Operação Tridente”.

(continua)

 O bardo a caminho da Ilha do Como

O bardo e camaradas a caminho da Ilha do Como

O bardo faz leituras na Amura, inspira-se junto da velha peça de artilharia.

Página do jornal do BCAV 490, gentilmente cedida pelo confrade Carlos Silva, um investigador infatigável a quem devo muitas atenções.
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Notas do editor

Poste anterior de 13 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20145: Notas de leitura (1217): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (23) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 16 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20150: Notas de leitura (1218): “O Massacre Português de Wiriamu, Moçambique, 1972", por Mustafah Dhada; Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20109: Notas de leitura (1213): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (21) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Conheci finalmente o bardo, fomos almoçar borrego e bebemos uma boa pinga, bom pão molhado em azeite e azeitonas saborosíssimas. Já nos tratamos pelo nome próprio, trocamos presentes, os dele necessariamente mais valiosos, são fotografias, imagens de jornais de caserna. Pedi-lhe encarecidamente que notificasse os camaradas do BCAV 490 do que aqui se passa, congeminei este tipo de divulgação da sua "Missão Cumprida" para pormos a nossa sala de conversa a funcionar em pleno, gente de todas as comissões a contar histórias parecidas, prevalecendo, claro está, os testemunhos que vierem do BCAV 490. O bardo e eu agradecemos que haja muitas interferências, comentários e adição de todos os materiais da época. Valeu?

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (21)

Beja Santos

“António Roque fugiu
ao fazer a retirada.
Na mata de Uncomené,
esta coisa amargurada.

A 487 em Caiar
ia tudo patrulhando,
algum gado apanhando
para fome não passar.
Neste sítio não houve azar
mas mais tarde surgiu.
Para a mata se partiu,
havendo muitas aflições
e, acabando as munições,
António Roque fugiu.

Morreu um cabo e um soldado
da 1.º Companhia
quando o 2.º pelotão seguia
para dentro do mato cerrado.
Passou-se um mau bocado
havendo muita rajada.
O Fitas, bom camarada,
a muito se aventurou
e um tiro na barriga levou,
ao fazer a retirada.

O comandante do Pelotão
era o sr. Alferes Menezes.
Ele recomendou muitas vezes
para não perderem reação.
Apesar de muita aflição
lutaram sempre com fé.
O amigo Henrique José
é que passou muita dor:
morreu ele e o condutor
na mata de Uncomené.

O Comandante do Batalhão
neste ataque ficou ciente:
foi talvez o mais valente
de toda a operação.
Quiseram apanhar à mão
a nossa rapaziada,
jogaram muita catanada
ao chegarem à nossa beira,
pois não esquece pela vida inteira
esta coisa amargurada.”

********************

É dever aqui ajuntar memórias de outros que andaram pela batalha do Como. Há tudo a ganhar em ler o testemunho de António Rebelo Heliodoro, fez parte do DFE8, comandado por Alpoim Calvão. Tem um antes e um depois do Como, é leitura tão emocionante que aqui se cita algum do antes e depois, conforme aparece na obra "Dias de Coragem e de Amizade, Angola, Guiné, Moçambique: 50 histórias da Guerra Colonial", de Nuno Tiago Pinto, A Esfera dos Livros, 2011:

“Fomos recebidos em Bissau por uma banda de música. Depois de deixarmos as coisas no destacamento, andámos a ver a cidade. Eram os primeiros dias de novembro de 1963. Mas não tivemos muito tempo para passear: deram-nos logo a missão de libertar a aldeia de Darsalame, que tinha sido tomado pelos ‘turras’. Era para ser uma operação de três dias. Durou oito. Passámos o rio Geba, entrámos no Corubal e chegámos a terra nas Lanchas de Desembarque Médio (LDM). Foi a primeira vez que entrei em ação. A tensão era enorme porque não sabíamos o que ia acontecer. Nunca nos explicaram o que era a guerra. Nem no curso de Fuzileiros Especiais.

O destacamento tinha 78 homens e éramos liderados pelo Comandante Alpoim Calvão. Desembarcámos num palmeiral, sofremos logo uma emboscada. A noite estava a aproximar-se quando caímos noutra emboscada, numa passagem que dava acesso à tabanca. Estava tudo destruído e não havia população. O Alpoim Calvão foi o primeiro a ser atingido por um tiro que lhe furou o camuflado e acertou de raspão nas costas. Eu é que o levantei. Combatemos. Mais à frente um rapaz foi ferido na cabeça e levado para a lancha.

Conseguimos entrar na tabanca e içámos a Bandeira Portuguesa. Depois passámos lá a noite, encostados às bananeiras a aguentar o cacimbo. Ao todo, estivemos lá oito dias e o inimigo acabou por se afastar. Recebemos ordens para regressar a Bissau. Foi um batismo a sério.

No início de 1964 fomos chamados para a Operação Tridente. Alguns destacamentos tinham a missão de tomar as ilhas de Caiar e de Catunco. A nossa era o centro do Como. Fomos acompanhados pelo Batalhão de Cavalaria 490, por uma companhia de Para-quedistas e outra de Comandos. Desembarcámos de madrugada. Estávamos a contar com uma grande receção, mas não aconteceu nada. Chegámos ao centro da ilha e içámos a bandeira. Mas na segunda noite começámos a levar porrada. Na manhã do terceiro dia o Comandante Calvão foi ao mato com duas secções. Estivemos 2 horas e 45 a combater o inimigo. Contámos uns 100 homens que nos atacaram com o fogo cruzado. Saímos da tabanca de S. Nicolau com duas baixas. Foram os primeiros fuzileiros mortos em combate. Não sabemos se lhes provocámos baixas.

Numa altura em que o Comandante Calvão foi à fragata Nuno Tristão receber ordens, começámos a ser bombardeados. Estivemos ali duas semanas naquele impasse. Não havia comida e ao fim de oito dias tivemos de ir cortar carne do gado que tinha sido abatido quando lá chegámos. O fundo dos cantis trazia um pequeno tacho onde fazíamos uma sopa em pouco tempo. Bebíamos a água das poças onde andavam os porcos. Era só meter um comprimido lá para dentro para a desinfetar. Algumas semanas depois foi montada uma base logística numa praia. Estava lá uma Companhia de Comando e Serviços a fazer comida e havia tendas de medicina. Ficávamos lá dois dias a descansar e depois voltávamos ao mato. Sempre por charcos e pela selva. Nunca pela estrada. À noite o Destroyer ia lá bombardear.

Andávamos por ali quando uma das companhias foi atacada e perdeu-se no mato. O oficial deles foi pedir ao Comandante Calvão que os fosse buscar. E nós fomos. Percorremos a mata toda e conseguimos reunir os homens, que tinham fugido cada um para o seu lado. Só ficaram lá dois que tinham sido mortos e armadilhados. Quando os puxámos, por acaso, a cavilha da granada ficou presa na terra e não rebentou. Foi um dia de glória. Por causa disso o meu Destacamento foi condecorado com uma Cruz de Guerra.

Depois voltámos aos combates. Lutei debaixo das bombas de napalm que eram lançadas por aviões que vinham do Sal para queimar a mata. Nós estávamos entrincheirados lá em baixo e sentíamos as pernadas das árvores a cair. Estremecia tudo. Foi dramático. Cheguei a pedir a Nossa Senhora de Fátima para aquilo passar. Quando contei isto, chamaram-me mentiroso. Mas eu digo aquilo que vi e por que passei. Nunca me vou esquecer disso, enquanto for vivo. Foram 72 dias e 72 noites.

Regressámos a Bissau com os mortos, fizeram-se os funerais e passado um tempo estava noutra operação na mata de Cacine. Nos dois anos em que estive na Guiné participei em 109 ações de fogo. Foram horas e horas de patrulhamento. Até que em julho de 1964 fomos acompanhar o batismo do Destacamento de Fuzileiros Especiais 10 na Operação Túlipa. Tratámos de tudo em três dias e quando nos preparávamos para regressar, ficámos sobre fogo inimigo. Um avião nosso sobrevoou a tabanca onde estávamos e começou a descarregar bombas em cima de nós. Nesse dia 17 sofremos 4 mortos e 42 feridos. Eu fui um deles. Fiquei com estilhaços nos braços, nas pernas e na cabeça – além dos problemas nos ouvidos. O sangue escorria-me. Fui evacuado para Cacine e no outro dia fui levado para Bissau. Assim que fiquei melhor regressei ao ativo. Eram precisos homens. Dos 74 operacionais iniciais ficámos com 18.”

(continua)

Imagens cedidas pelo Santos Andrade, fotografias tiradas na Ilha do Como e em Bissau, 1963-1964


Imagens das duas primeiras páginas do n.º 3, do boletim Sempre em Frente, do BCAV 490, 8 de Agosto de 1965.
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Notas do editor

Poste anterior de 23 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20087: Notas de leitura (1211): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (20) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20095: Notas de leitura (1212): Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20087: Notas de leitura (1211): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (20) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Seria de toda a conveniência que aqui se vazassem comentários dos confrades que participaram ou que acompanharam de perto a Operação Tridente. A história da Unidade, a do BCAV 490, gentilmente emprestada pelo Carlos Silva, é muito parcimoniosa, remete para um anexo que não tenho. Há o "Tarrafo", de Armor Pires Mota, há este documento que ora se apresenta, temos o depoimento do António Heliodoro, a que se irá fazer referência, apareceu no volume Dias de Coragem e de Amizade, Angola, Guiné, Moçambique: 50 histórias da Guerra Colonial, de Nuno Tiago Pinto, A Esfera dos Livros, 2011. Apelo, pois, a contributos que possam constituir o outro lado do espelho que é a poesia do Santos Andrade.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (20)

Beja Santos

“Morreram dois fuzileiros
muitos rapazes atingidos
precisamente noutra altura
Baía e Ameixa foram feridos.

Foi antes do meio-dia
que os fuzileiros foram ao mato
onde houve o grande contacto,
que com o fogo se estremecia,
lutando com valentia
foram feridos muitos companheiros.
Os bandidos traiçoeiros
deviam ser degolados.
Por causa desses malvados
morreram dois fuzileiros.

Quando o ataque principiou,
daquilo já se esperava,
a retirar obrigava
a força que os enfrentou.
Feridos às costas se carregou
havendo muito gemido.
O helicóptero foi pedido
levando os feridos para Bissau.
Entre Cauane e S. Nicolau
muitos rapazes foram atingidos.

Quando um caça patrulhava,
os bandidos fogo faziam
até que o atingiam
e no chão se despedaçava.
Tudo se incendiava:
gasolina, óleos e pintura.
O piloto sofreu amargura,
ao ficar todo queimado
e foi este caso passado
precisamente noutra altura.

Em S. Nicolau quiseram
resistir dois pelotões.
Como noutras ocasiões
avançar nunca puderam.
Muita rajada lhes deram.
Aquilo foi um castigo,
devido a tantos inimigos
retiraram do matagal,
mas na retirada, às 9 e tal,
Baía e Ameixa foram feridos.”

********************

Em 2019, a editora QuidNovi deu à estampa um conjunto de volumes sobre a guerra colonial. O quinto volume destacava a Operação Tridente, desenhada no maior sigilo. Os comandantes das unidades envolvidas no ataque apenas foram informados de todos os planos escassos dias antes do embarque. Os próprios oficias subalternos só souberam da ordem e do objetivo militar na véspera do Dia D. Foram 71 dias o tempo da operação. Ao fim de 48 dias de combates, as tropas portuguesas intercetaram um estafeta com uma carta de Nino Vieira, escrita à máquina e destinada a dois importantes chefes de guerrilha, Rui Djassi e Domingos Ramos, eram a prosa de aflição, Nino precisava de reforços, e concluía: “Tenho encontrado uma situação muito grave. As tropas estão aumentando cada vez mais as suas forças, tanto como terrestres, aviação e também por meios marítimos. Camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem guerrilheiros aí, já estamos a contar com a baixa de 23 camaradas durante todos estes dias dos ataques”.

Vejamos o essencial deste texto sobre a Operação Tridente, tal como consta neste quinto volume das Edições QuidNovi. Na véspera do ataque, a artilharia portuguesa instalada em Caiar flagelou sem descanso toda a região norte das ilhas de Caiar, Como e Catunco. Os guerrilheiros acreditavam que esse seria o local de desembarque. Enganaram-se. As forças envolvidas na Operação tomaram as ilhas de assalto pelo lado sul. Os desembarques decorreram sem um único tiro. O Dia D, 15 de janeiro de 1964, precisamente às 8.30 horas, os fuzileiros especiais pisaram a zona de combate: o destacamento 7, comandado pelo Primeiro-Tenente Ribeiro Pacheco desembarcou num ponto da ilha Caiar enquanto o destacamento 8, sob as ordens do Primeiro-Tenente Alpoim Calvão chegava a um outro local na ilha do Como. A missão destes fuzileiros era estabelecer cabeças de praia que permitissem o desembarque das companhias de cavalaria, que vinham em três agrupamentos. O agrupamento A, comandado pelo Major Romeiras, tinha ordens para seguir imediatamente para a tabanca de Caiar. O agrupamento B, sob o comando do Capitão Ferreira, tem por objetivo Cauane, aqui se darão os primeiros combates, as tropas portuguesas atacam com fogo morteiro ao mesmo tempo que a Força Aérea bombardeia. A primeira baixa é um T6 abatido pelos guerrilheiros. O comandante do DFE8, Alpoim Calvão, toma uma decisão arriscada: à cabeça de um grupo de fuzileiros entra na mata densa e começa a desalojar a guerrilha. O agrupamento C está sob o comando do Capitão Anselmo, sobe o rio de Catunco, tomam Catunco Papel e Catunco Balanta sem oposição da guerrilha. O agrupamento D, sob o comando do Primeiro-Tenente Faria de Carvalho desembarca na costa leste de Catunco, nas margens do rio Cumbijã. O comandante da Operação Tridente está ainda a bordo da fragata Nuno Tristão. Concluída a primeira fase da Operação, as unidades ocupam posições de combate, inicia-se a segunda fase que se prolongou até ao dia 24, nas ilhas de Caiar, Como e Catunco combate-se violentamente, fazem-se batidas, são feitos alguns prisioneiros, na ilha do Como as forças do PAIGC flagelam severamente, em Catunco não se encontram guerrilheiros mas foram descobertos depósitos de arroz e muito gado. Estamos já na terceira fase, o Tenente-Coronel Cavaleiro desceu ao terreno, as tropas de cavalaria, os fuzileiros especiais, o grupo de comandos, o pelotão de paraquedistas estão todos em ação.


Vejamos o relato dos acontecimentos como são descritos neste livro:
“Os portugueses conseguiram integrar-se progressivamente na mata, pelo sul, pelo norte e pelo lado oeste. A artilharia e a Força Aérea bombardeavam à noite pontos suspeitos na mata. Os militares localizaram e destruíram dois grandes acampamentos das forças do PAIGC. Foram arrasadas as tabancas de Cauane, S. Nicolau, Curcó, Cassaca, Samane, Uncomené, Cachida e Cachil. O mais violento dos combates, na mata de Cassaca, decorreu entre as seis da manhã até às quatro da tarde.
A 24 de Março, ao fim de 71 dias de operação, o Tenente-Coronel Fernando Cavaleiro podia cantar vitória. Os grupos de guerrilha, incapazes de susterem os ataques portugueses, estavam em fuga. Foram arrasadas praticamente todas as tabancas das ilhas de Caiar, Como e Catunco”.

As forças portuguesas regressam ao continente, é decidido criar um destacamento em Cachil. O bardo irá depois falar-nos de Farim. Por ora, vamos continuar a desfiar a sua lírica em pleno Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 16 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 19 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20074: Notas de leitura (1210): A Descolonização Portuguesa, Aproximação a um Estudo, Grupo de Pesquisa Sobre a Descolonização Portuguesa; Instituto Democracia e Liberdade, Lisboa 1979 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20065: Notas de leitura (1209): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (19) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Prossegue a batalha do Como, é óbvio que o bardo dá prioridade à sua gente mas a operação teve farto envolvimento, foram de primordial importância tanto as forças navais como os meios aéreos. Neste episódio se releva a singularidade do diário de Armor Pires Mota, tem páginas comoventes, importa não esquecer que foram escritas em cima dos acontecimentos, é de questionar a fibra deste homem, as suas orações tocantes, o sofrimento compartilhado, o horror que viu, como aqui descreve.
E volta-se a falar de Alpoim Calvão e das forças navais, há que dar o seu a seu dono, no termo desta operação o Coronel Fernando Cavaleiro percorrerá a pé toda a ilha, era vitória de pouca dura, sina da guerra de guerrilhas, setenta dias de duros combates.
O bardo, como veremos, ainda tem muito a contar sobre a batalha do Como.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (19)

Beja Santos

“Quando a gente cá chegou
junto ao Batalhão lutavam
as tropas desembarcadas.
Bons serviços prestavam.

Muito fogo teve de atirar
a 2.ª Companhia
porque aquela patifaria
custava a recuar.
Depois de a Cauane chegar
a luta continuou.
Debaixo do fogo se trabalhou
para construir os abrigos.
Eram muitos os inimigos,
quando a gente cá chegou.

Algum tempo se passou
e em Catunco tudo normal:
com ordem do Sr. Cap. Cabral
a Ilha se patrulhou.
Um pretinho se apanhou
e para mascote o levavam.
Quando um dia caminhavam
apanhou-se um dos bandoleiros
e em todo o lado os fuzileiros
junto ao Batalhão lutavam.

Em Caiar se encontrava
o Alferes de Artilharia
que com boa pontaria
nos malvados acertava,
de noite ou de dia jogava
uma porção de granadas.
Media bem as coordenadas
não atingindo as Companhias.
E decorreram 70 dias
as tropas desembarcadas.

O pelotão dos paraquedistas
encontraram alguns bandos
junto aos homens dos comandos
que também deram nas vistas.
Mataram muitos terroristas
e alguns vivos apanhavam.
Um dia à praia chegavam
com prisioneiros na mão
e durante toda a operação
bons serviços prestavam.”

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É o momento propício para se dar voz a quem sobre esta batalha escreveu em forma de diário. “Tarrafo”, de Armor Pires Mota, é uma das obras incontornáveis da literatura da guerra da Guiné. O livro foi alvo da censura, retirado do mercado livreiro, reeditado mais tarde. É um legado de páginas densas, emocionantes, temos aqui a guerra em direto que o Alferes de Cavalaria enviava em forma de crónicas para o Jornal da Bairrada.
É um testemunho sem paralelo sobre a Batalha do Como:
“Atravessámos o riacho e o tarrafo, de saco às costas, muito a custo, curvados e encobertos pela vegetação, quase impotentes e amachucados porque a viagem fora penosa, difícil. E debaixo de fogo intenso, a rastejarmos, entrámos no objectivo… Sinto-me em baixo. A alma pesa-me como chumbo. E causa-me calafrios a morte daquele dois moços que ao entardecer, foram encontrados nus. Só lhes deixaram as meias enfiadas nos pés, por algum motivo religioso. De resto, levaram-lhes tudo. Tinham o sexo mutilado, o nariz arrancado e os olhos e pelos rasgões, espalhados pelo corpo, tudo leva a crer que lutaram corpo-a-corpo, quando se viram sós e sem munições. Não quero que ninguém fique com a impressão de que este diário é pura ficção nem, tão pouco, que me mascarem de valente. Escreverei para mim e não para a eternidade. E aqui estarei para chegar até ao fim”.

O autor reza o terço quando rebenta a fuzilaria, estão metidos num cerco em ferradura, o ataque é repelido, renasce a atmosfera de silêncio enquanto um vento húmido traz o cheiro horrível da carne a apodrecer algures, entrecortado pelos estrondos da artilharia. É uma batalha como não haverá igual, em tudo o que se passou na Guiné, tomam-se posições, por vezes recua-se, derrubam-se acampamentos, há rompantes desse combate que ganham uma dimensão apocalíptica, vive-se permanentemente à espera de um contra-ataque, como Armor Pires Mota escreve:
“Há quarenta dias que o mundo para nós é a incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fronte atormentada. Há refeições em branco, porque não apetece senão a paz, o regresso. Uma grande parte da tropa está já inoperacional. As semanas são uma eternidade. Até parece que nascemos na tropa, na guerra”. 
 E é neste diário emocionante que no dia 1 de março de 1964, Armor Pires Mota faz uma oração como não vi escrita outra igual:
“Só Tu sabes, Senhor, a minha hora.
Mas tenho medo porque sou homem e tenho o destino de mãos vazias.
Que as minhas mãos não façam correr sangue inocente, mas que não sejam cobardes se for preciso castigar, matar ou morrer.
Mas tenho medo, Senhor!
Tu bem sabes que eu tenho uma mãe que chora e reza a minha ausência e que a saudade chora dentro de mim como uma criança longe dos braços maternos.
Tu sabes que eu tenho sonhos de ouro e espero de olhos azuis no futuro.
Tu sabes que eu tenho um amor na vida de mãos cheias de primavera e cabelo preto, da candidez dos lírios. E Tu bem sabes como dói cair uma rosa no chão só porque não choveu…
E só Tu sabes o segredo da noite: para a vida?, para a morte?
A hora é de luta para vencer ou morrer.
Mas tenho medo sem ser cobarde e tremo todo como cana agitada ao vento.
Espero em Ti.”

A batalha parece interminável, sangrenta, com casas de mato a arder, paraquedistas perdidos, um certo caos nas ordens e contraordens.
O autor escreve nova página do diário:
“Tivemos missa, como antigamente nas manhãs das grandes batalhas. O altar era feito com duas caixas de cerveja e montado por detrás da casa velha a ruir. De tronco nu ou descalços, mas alma cheia de esperança nos desígnios eternos, todos quanto ali estavam confiavam ao Senhor dos Exércitos as suas angústias, as horas más, as vitórias e as derrotas, as saudades da terra e da família, da noiva… Deus desceu à guerra para a paz”.

O diário de Armor Pires Mota não finda aqui, quando saem da Ilha do Como ruma para Jumbembem, de outras coisas falará.

Retornemos a “Alpoim Calvão, Honra e Dever”, e ao mês de fevereiro, as forças do PAIGC continuam a oferecer feroz oposição, o DFE8 não tem descanso e a 27 desse mês este DFE e o DFE7 embarcam com destino a Cachil, trabalhando em conjunto pela primeira vez na Tridente.
Vai prosseguir o relato dos acontecimentos:
“Chegaram à cambança do Brandão pelas duas da manhã, quedando-se aquartelados pouco depois no estacionamento de Cachil. Mas é curto o descanso, pois às 4h30 é dada a alvorada e uma hora mais tarde inicia-se o movimento simultâneo das duas unidades, seguindo o DFE7 pela orla este da mata grande de Cachil e o DFE8 pela orla oeste. Chegados ao limite sul, o DFE7 entra em contacto pelo fogo com o inimigo, enquanto o DFE8 permanece sem ser detectado. O DFE7 manobra então de modo a ocupar um esporão mais a sul, enquanto os F-86 da Força Aérea bombardeiam o tarrafo e a orla da mata de Cassaca onde o inimigo se continua a manifestar com alguma violência.
As secções avançadas entram em contacto com o inimigo que, tento retirado aquando o ataque aéreo, voltara às suas posições e esbarrara com o fogo dos dois destacamentos, responsável pelo abate de alguns guerrilheiros e pela apreensão de material de guerra. Em estreita colaboração, as restantes secções de fuzileiros ocupam a orla norte da mata de Cassaca, enquanto a retaguarda é protegida por um grupo de combate da CCAÇ 557 e uma secção do DFE2. O DFE8 assume depois a vanguarda e progride a oeste da picada, em direção a Cassaca, onde já estão instaladas a CCAV 487 e o grupo de Comandos. Juntas as forças, inicia-se o regresso a Cauane, progredindo na vanguarda o DFE8, seguido pelo DFE7, pelo grupo de Comandos e pela CCAV 487. O inimigo não se torna a manifestar.

Alpoim Calvão não mostra grandes preocupações quanto à sua defesa pessoal. Usualmente armava de G3, mas muitas vezes optava por levar apenas uma pistola-metralhadora UZI, ou até mesmo uma simples pistola, e não costumava carregar com muitas munições. Entendia que a missão de um comandante não era estar deitado a dar tiros, como um simples atirador, mas sim permanecer de pé enquanto o tiroteio chicoteava as copas das árvores ou ceifava o capim e lhe assobiava aos ouvidos. Procurava estar o mais protegido que fosse possível, qualquer tronco de árvore, por mais estreitinho que fosse, servia. Mas de pé, sempre de pé, a única maneira de ver a ação, intervir, poder dirigir a manobra, comandar.

Numa das fases da Operação Tridente seguia como observador o Capitão-Tenente Melo Cristino, Diretor de Instrução da Escola de Fuzileiros, que, nunca tendo participado em qualquer campanha, pretendia sentir ao vivo o comportamento das unidades em combate, razão por que entendera visitar o teatro de operações da Guiné e fizera questão em acompanhar pessoalmente uma acção. Nessa ocasião, quando algumas secções do DFE8 progrediam na retaguarda de um pelotão de paraquedistas, a Unidade caiu debaixo de fogo inimigo, responsável por duas baixas.
Durante o intenso tiroteio travado de seguida e enquanto o Tenente Calvão de pé procurava orientar a manobra dos seus homens, o Comandante Melo Cristino, surpreendido pela violência do fogo e pela chuva de metralha que caía em seu redor, gatinha desorientado pelo chão sem saber muito bem o que fazer. A admiração e o respeito que passou a sentir pela coragem de Alpoim Calvão e dos seus fuzileiros deixou de conhecer limites.

A partir de certa altura, após a passagem dos aviões da Força Aérea, os fuzileiros ouviam fortíssimos rebentamentos na mata e o solo estremecia com a violência de um tremor de terra. Era mais um bombardeamento, mas de invulgar potência. Na sua origem encontrava-se o Comandante da LFG “Dragão”, Primeiro-Tenente Lopes Carvalheira, que via com preocupação a operação arrastar-se durante muito tempo e pensou numa maneira de abreviar o esforço exercido na Ilha do Como. Tinha conhecimento que nos paióis de munições em Bissau estavam estivadas bombas de profundidade para a guerra antissubmarina. Eram cargas poderosíssimas de 350kg de trotil que se encontravam atribuídas às fragatas em serviço na província, mas que, não só por serem desnecessárias naquele teatro de operações como também por representarem um perigo acrescido, eram desembarcadas no início das comissões.
Lopes Carvalheira fez então um teste com as cargas utilizadas para repelir ataques de mergulhadores e confirmou que as espoletas tinham um retardo de 20 segundos. Foi pois fácil ao seu Imediato, Oficial da Reserva Naval, licenciado em Matemática, estabelecer os cálculos da altitude a que deveriam ser largadas de avião para rebentarem a escassos metros do solo. Lopes Carvalheira pede licença para se deslocar a Bissau, embarca num helicóptero Allouette II a bordo da ‘Nuno Tristão’ e expõe a sua ideia, que conta com o apoio inequívoco do Governador da Guiné, Comandante Vasco Rodrigues.”

Ver-se-á a seguir como este dispositivo beneficiou Alpoim Calvão e os seus homens na Batalha do Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 9 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20046: Notas de leitura (1207): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (18) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20054: Notas de leitura (1208): “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20046: Notas de leitura (1207): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (18) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Nesta fase do trabalho, mantenho a maior das expectativas quanto a contributos. A Operação Tridente foi alvo de propaganda do PAIGC: falou em 500 mortos das nossas tropas, em retirada caótica, numa derrota sem precedentes. A atoarda ganhou raízes, pessoas com a responsabilidade do historiador Carlos Lopes reproduzia em 1982 tal propaganda. Felícia Cabrita reproduziu atoardas semelhantes depois de ter visitado a Ilha do Como a convite de Nino Vieira, uma vergonha, o gosto pelo puro sensacionalismo, o desrespeito absoluto pelo contraditório. Há hoje muito material sobre a Operação Tridente, aqui se reproduzem dados sumários da história da Unidade e equacionam-se elementos da biografia de Alpoim Calvão que foi o comandante do DFE8 na referida operação, reconhecidamente com uma postura de valentia, dotando os seus homens de uma grande capacidade ofensiva e solidariedade com os outros militares.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (18)

Beja Santos

“Com o destino navegou
o Batalhão de Cavalaria
para a grande operação.
Algum pessoal morria.

Sua Excelência o Brigadeiro
no cais de Bissau se encontrava
e a saída ele ordenava
mais o comandante Cavaleiro.
Foi a 14 de Janeiro
que o cais se deixou.
O “Bor” e o “Geba” abalou,
ficando em terra uma Companhia
que na noite do mesmo dia
com o destino navegou.

Dia e noite navegando
ao largo do Como se chegou.
O 8.º Destacamento desembarcou,
debaixo de fogo avançando.
A 488 rastejando
com muita coragem seguia.
O bando que aí se acolhia
recuava com temor,
pois nunca perdeu o valor
o Batalhão de Cavalaria.

No mesmo dia se desceram
mais duas das Companhias
que, no espaço de alguns dias,
muita sede eles sofreram.
Rações de combate comeram,
com bolachas em lugar de pão.
Foi para cumprir a missão
que tudo isto passámos
e no Como nos instalámos
para a grande operação.

Na praia de Caiar
o resto do pessoal desceu
onde desci também eu
para o material descarregar.
Com os meus colegas a ajudar
muito frete se fazia.
Fez-se um buraco onde se dormia
tranquilo e descansado,
mas no grande mato cerrado
algum pessoal morria.”

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O que o bardo aqui nos dá conta é da Operação Tridente, do seu início. Sobre a mesma, considerada um dos principais acontecimentos de toda a guerra colonial, dispõe-se de inúmera documentação. Logo a história da Unidade, um relato detalhado. Vejamos alguns elementos essenciais. Tudo começa a 14 de janeiro, a Tridente durou 71 dias, as forças executantes iniciaram o regresso em 24 de março. Foi a primeira no seu género, integraram a operação forças terrestres, navais e aéreas. As forças terrestres eram constituídas por três destacamentos de fuzileiros especiais, uma companhia de caçadores mais um pelotão, um pelotão de paraquedistas, um grupo de comandos, um pelotão de obuses e outros efetivos do BCAV 490. Não houve resistência ao desembarque. O IN revelou-se bem instruído e muito agressivo e com poder de fogo extraordinário. O seu moral foi sendo abatido ao longo do tempo, no final da operação atuava em pequenos grupos dispersos, sem qualquer agressividade e fugindo ao contacto. Do lado das nossas tropas são repertoriados oito mortos e vinte e nove feridos e mortos confirmados do lado IN setenta e seis. É transcrita a carta em que Nino apela a reforços ao fim de 48 dias.

A biografia de Alpoim Calvão intitulada “Alpoim Calvão, Honra e Dever”, por Abel Melo e Sousa, Luís Sanches de Baêna e Rui Hortelão, Caminhos Romanos, 2012, dá amplo destaque ao comportamento deste oficial da Armada à frente do Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 8. Vamos reter alguns dados, outros acompanharão a evolução da Operação Tridente.
Porém, antes de mais, um dado singular da liderança de Calvão:
“Os processos utilizados pelo comandante do DFE8 para assegurar a eficiência da sua unidade nem sempre seguiam à risca o disposto nos manuais militares, mas eram seguramente os mais eficazes. Por vezes, quando as infracções cometidas por um dos seus fuzileiros caíam sob a alçada do Regulamento de Disciplina Militar, o que não era invulgar, o Tenente Calvão dava-lhe a escolher entre receber o castigo previsto por este regulamento ou calçar as luvas de boxe e com ele resolver o assunto a murro. Geralmente era esta segunda opção a escolhida pelos infractores, apesar do grande porte e da poderosa força do seu comandante”.

Estamos no Como, vejamos o registo de dia 23 em que Calvão sai com uma secção do seu destacamento, outra da CCAV 488 e um grupo de comandos a fim de proteger a progressão deste último que tencionava passar para o Uncomené (um local da ilha do Como).  
“O inimigo que aguardava emboscado na orla da mata, junto a uma picada, abre fogo com uma metralhadora pesada e armas ligeiras. Apesar de ter garantido a surpresa inicial, acaba por ser batido pelas forças portuguesas apoiadas pela aviação, sofrendo vários feridos e abandonando dois mortos no terreno. Ainda assim o grupo de comandos não conseguiu passar devido ao lodo existente junto ao tarrafo. Nesse mesmo dia, horas depois, um avião T6 despenhou-se a oeste de Cauane, pelo que antes de regressar ao estacionamento a força passou pelo local onde jazia o corpo do piloto, que foi recuperado meio carbonizado para de seguida ser recolhido por um helicóptero Alouette II.
Logo no início do mês de Fevereiro, o DFE8 recebe ordem para penetrar na mata a oeste de Cauane. Objectivo: a fixação e envolvimento da tabanca grande de Cauane. Inicia a penetração na mata sem ser detectado, colocando-se atrás da posição inimigo que a mata cerrada tornava invisível, apesar de estar a menos de 30 metros. Qualquer movimento naquela densa vegetação poderia denunciar a presença dos fuzileiros, pelo que o Tenente Calvão decide emboscar com um dispositivo estático comandado pelo imediato e constituído por duas secções com esquadras de MG42 em linha à frente. Em cada flanco, uma secção e o resto dos homens de apoio à retaguarda, ficando o comando colocado numa posição central um pouco descaído sobre o flanco direito. Um pequeno grupo inimigo, sem se aperceber da manobra, passa a alguns metros desse flanco, que de imediato abre fogo abatendo um inimigo armado e ferindo outros. A reacção foi pronta e resultou num fuzileiro ferido. Com o inimigo a dar mostras de grande vitalidade, as forças terrestres continuavam a pressionar toda a região das três ilhas.

No dia 7 de Fevereiro, uma companhia de cavalaria ataca a tabanca de S. Nicolau, fixando naquela povoação os guerrilheiros que reagiram com o poder de fogo de uma metralhadora pesada. Enquanto decorre o combate, o DFE8 progride silenciosamente em direcção ao objectivo, iniciando o envolvimento sem ser detectado. Abre fogo ao entrar em contacto com o inimigo, abate um guerrilheiro e provoca diversos feridos, pondo os restantes em fuga. Por duas vezes tentou o adversário reagir com a mesma estratégia, sendo de ambas repelido.

Dez dias passaram. Pelas 04h30 do dia 17 de Fevereiro, o DFE8 com um grupo de comandos e um grupo de combate da Companhia 488 inicia a progressão em direcção à ponta nordeste da mata de Curcô, de acordo com a táctica habitualmente seguida pelos fuzileiros. É sempre feita por fora de picadas e trilhos, o que apresentava duas grandes vantagens: evitar possíveis minas e armadilhas e surgir junto do inimigo por onde ele menos esperava.
Cerca das 10h00, um pequeno grupo inimigo tenta atacar a retaguarda da coluna, mas é sacudido e posto em debandada com duas granadas de mão. Depois, destruíram-se alguns depósitos de arroz. Uma hora mais tarde, a coluna chega à mata a norte de S. Nicolau onde avista homens armados, aos quais monta imediatamente uma emboscada com óptimos resultados: o DFE8 abate três inimigos e os comandos um. Os guerrilheiros entram, então, numa fuga desordenada, estimulada pela metralha cuspida por uma aeronave T6.
A progressão acabaria por ser retardada por um ataque de abelhas que inferiorizou os paraquedistas e as três secções da vanguarda da DFE8.

No dia 24 de Fevereiro, a Companhia do Capitão Cidrais, ao desembarcar no Uncomené, vê-se fixada na bolanha debaixo de violente fogo, ao abrigo do pequeno quadrado de um ourique, a cerca de 150 metros da orla de uma mata onde o inimigo se encontrava bem instalado e devidamente protegido. Os soldados mal podiam responder ao fogo pela exiguidade da posição ocupada e desprotegida. É então que o comandante das forças terrestres toma a decisão de fazer sair o DFE8 em seu socorro. Quando alcançou a posição dos sitiados, o Major Romeiras, Comandante do Agrupamento A, pediu aos fuzileiros para procurarem na mata os dois mortos que a CCAV 487 deixara no terreno durante uma investida à posição inimiga. Desta incumbência se encarregou o Segundo-Tenente Malhão Pereira, Imediato do DFE8, com duas secções, e após uma breve batida, veio a encontrar os dois corpos despidos e sem armas, estando um deles armadilhado com granadas. Enquanto isto, o Tenente Calvão e o Capitão Cidrais, em reconhecimento expedito, exploravam para sul da sua posição, a fim de conseguirem uma visão táctica completa da situação e poderem retirar a tropa da CCAV 487, esgotada pelo intenso e penoso combate. Acabou a força toda por ter de recolher às lanchas de desembarque para a conduzir à Fragata Nuno Tristão, onde os fuzileiros foram recebidos uma vez mais, entre marinheiros, com a amabilidade e amizade habituais”.

(continua)

Convívio em 2010 do BCAV 490
fotografia retirada do blogue Ilha do Como (Guiné)
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Notas do editor

Poste anterior de 2 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20028: Notas de leitura (1204): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (17) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20036: Notas de leitura (1206): “Guiné-Bissau, das Contradições Políticas aos Desafios do Futuro”, por Luís Barbosa Vicente, Chiado Editora, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2019:

Queridos amigos,
A malta da BCAV 490 já está a beber o seu cálice de fel, o bardo Santos Andrade não pára de nos contar desditas, apanham-se armas na guerrilha, morre-se de ambos os lados, há sol inclemente, mosquitos cruéis, emboscadas e patrulhamentos, caminhamos para o final de 1963, em Bissorã, em 14 de janeiro irão todos do cais do Pidjiquiti até ao Como, começando por desembarcar na Praia de Caiar.
Faz-nos hoje companhia um escritor açoriano com vários regressos literários pela Guiné, desta feita "Braço Tatuado", conta-nos histórias avulsas, o drama central é o do Niza, que não se conformou que a sua Lena desse o dito por não dito, era uma espera longa demais, o Niza não suportou a rejeição, aqui temos o relato de toda a tragédia que chegou a Dunane num aerograma. Histórias de guerra que todos conhecemos. Mas aqui, a qualidade literária de Cristóvão de Aguiar impõe-se por si só.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (13)

Beja Santos

“Amigo Diogo Augusto
duas armas apanhou
foi este rapaz louvado,
bom serviço desempenhou.

Foi ao pôr do dia
que saiu o 1.º e o 3.º pelotão.
Junto ao senhor Capitão,
todo o pessoal seguia.
Ele nos carreiros os metia,
por entre qualquer arbusto,
muitas vezes, com muito custo,
avançavam pelas bolanhas.
Tem para contar muitas façanhas
amigo Diogo Augusto.

Até ser de madrugada,
numas tabancas estiveram,
mas dormir nunca puderam,
por causa da bicharada.
O Tavares, bom camarada,
muitas picadas levou:
o clarim adormecido ficou
a um canto encostado
e nesse dia o tal soldado
duas armas apanhou.

Quando os aviões chegaram,
voltaram à mata de Fajonquito
onde houve conflito
quando os bandidos os avistaram.
Ao 185 apontaram,
mas falhou a escorva do malvado.
Ele voltou-se para o lado
matando dois dos três.
E a 18 deste mês
foi este rapaz louvado.

O Furriel Pacífico se feriu
quase no último dia,
feriu-se um rapaz de Artilharia
quando a mina explodiu.
O pelotão de António Mestre seguiu
socorrendo o que se passou.
O Varela e o Joel alinhou
com o Diamantino, boa pessoa,
que entre Bissorã e Mansoa
bom serviço desempenhou.”

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Entrou-se na rotina da guerra, patrulha-se, fazem-se colunas, captura-se armamento, explodem minas. Refletia sobre as atividades da CCAÇ 675 em Binta, sob o comando do Capitão do Quadrado. E nisto a memória esvoaça para outras paragens que as de Bissorã ou Mansoa ou Farim ou Guidage, vai-se para o Leste, há um alferes que vive em Dunane, dá pelo nome de Arquelau de Mendonça, é o escritor Cristóvão de Aguiar, aqui será várias vezes invocado, hoje circunscrito a coisas que escreveu no seu romance “Braço Tatuado”, 1.ª edição em 2008:
“Os camiões estão estacionados em frente do ex-estabelecimento comercial de um libanês, transformado em edifício de comando e secretaria. Os motores aquecem, roncando. Tudo a postos: rações de combate, cartucheiras à cinta de cada combatente, sacos de campanha cor de azeitona, com alguma roupa interior, maços de cartas e aerogramas amarelos, a cor do desespero. Só falto eu. Acabei de atravessar a parada, ainda me vou demorar um pouco na secretaria, tenho de ultimar, com o nosso Primeiro Gervásio, a guia de marcha do pelotão: ‘Por ordem de S. Ex.ª, o Comandante-Chefe, segue para a sede do batalhão de Nova Lamego, onde aguardará ordem de marcha para Dunane, o Primeiro Grupo de Combate desta Companhia, a fim de reforçar, sempre que necessário, as forças estacionadas no sector militar constituído por Nova Lamego, Piche, Canquelifá e Buruntuma. Vai abonado, assim como todos os seus homens, de alimentação até hoje inclusive…”.
Um pouco antes, o autor já apresentara a CCAÇ 666, o mesmo número da Besta do Apocalipse, a última parte do Novo Testamento que revela o mistério de Deus julgando e destruindo o mal, a fim de implantar o Seu Reino sobre a Terra.
E apresenta-nos Dunane:  
“Fica num mamelão da planície que se alonga de Piche a Canquelifá. Pode-se avistar léguas de terra arborizada, por vezes concentrada em mata virgem, outras raleando nas lalas, ou despindo-se por completo nas bolanhas, rios secos que, na época das chuvas, se transmudam em pântanos onde o indígena cultiva o arroz, praticamente abandonado nesta zona de ninguém e armadilha para os grupos de combate que aí se atolam até ao pescoço”.

O autor é expedito em contar histórias avulsas, sem rigor de espaço e de tempo. Uma para exemplo:
“O Alferes Leite morreu cerca de um mês antes do regresso definitivo a Lisboa. Tinha o seu grupo de combate intacto – um pelotão independente de artilharia sediado no destacamento de Cambaju há cerca de dois anos. A zona era pacífica e assim havia de continuar por bastante tempo.
Passeavam-se pelas tabancas ao redor, mantinham estreitas ligações com a população indígena, composta sobretudo pelas etnias Fula e Mandinga.
Duas vezes por semana, às quartas e sextas, quase todo o grupo de combate ia ao rio abastecer-se de peixe. No destacamento só ficavam os rancheiros, o radiotelegrafista, o cabo cripto e os faxinas de serviço. O alferes acompanhava o grupo da coluna. Ele próprio conduzia o jipe, os restantes iam num Unimog velhinho e lá seguiam na sua rotineira missão piscatória. Em vez de se lançar a rede às águas, lançavam-se duas ou três granadas ofensivas que explodiam debaixo de água. Pouco depois, aparece à tona uma espessa toalha de peixes mortos. Escolhem-se os mais grados e de melhor qualidade e deixam-se os restantes para serem comidos pelos jacarés ou debicados pelas aves de rapina… Desta vez o Alferes Leite foi estraçalhado por um crocodilo. O calor chicoteava a pele tisnada e ele quis, como de costume, dar um mergulho para se refrescar. Mergulhou e nunca mais apareceu. Quero dizer, apareceram mais tarde os restos de uma perna e um pedaço de tronco. Vieram encaixotados para a metrópole”.

E irrompe o cenário da tragédia, o seu personagem chama-se Niza:
“Na mão direita a carta já desdobrada. Pelos vincos se nota que deve ter sido lida e relida. Procura em mim uma testemunha ou um confidente que lhe confirme ou arrede a teia das desconfianças urdidas no íntimo com babas suspeitas…
‘Ó meu alferes, faça-me o favor de ler esta carta e diga-me depois com toda a franqueza se a Lena não está, por meias palavras, dando o dito por não dito…’. Ao fim de a ler, fiquei com a certeza que estava. Mas não lhe disse. Procurei antes, à minha maneira, tanger-lhe os bordões de um invisível instrumento a ver se lhe arrancava o tom de outra melodia. Fui dizendo que tivesse calma. A Lena, notava-se nas entrelinhas da carta, gostava muito dele, só que estava cansada de esperar e tinha de esperar outro tanto e quem espera, meu amigo… Terminei a cantilena com um lugar-comum, desses que se lançam à água como bóia de salvação, ‘Hás-de ver, Niza, que na próxima carta ou aerograma tudo se compõe e ela muda o seu pensar, ora se muda. E o namoro fica de pedra e cal…’
O Niza desesperou, o alferes Arquelau de Mendonça apercebe-se que se chegou ao último acto quando viu o destacamento em reboliço, toda a gente a correr para se esconder, o Niza de arma apontada ameaçando quem ousa aproximar-se. Até o cozinheiro deixou os caldeiros ao lume. O Niza avisa que dispara se o alferes der um passo adiante. O alferes tenta parlamentar, o Niza ameaça, e despeja para o ar, em rajada, quase todo o carregador da espingarda. ‘O meu alferes é o maior culpado da minha desgraça; se me tivesse proibido de fazer a tatuagem, já havia remédio; agora que estou fodido não vou nem quero ficar sozinho – vão todos ficar fodidos comigo…’. Rasga a manga da camisa, aos palavrões principia a esfolar o local da tatuagem. Nesse instante caiem-lhe três homens em cima, o Niza é imobilizado. Segue para os serviços de psiquiatria do Hospital Militar. “Três dias após a chegada ao hospital, o Niza apareceu morto. Enforcou-se com os lençóis da cama. Quando o encontraram pendurado, já enegrecido, um dos furriéis enfermeiros, atraído pelo vermelho vivo do sangue ainda a escorrer-lhe do braço direito, ainda conseguiu soletrar as palavras insculpidas na pele – Amor de Lena...”

Inevitavelmente, este romance de guerra não escamoteia o horror que uma mina antipessoal provoca:
“De súbito, um estampido. Vem dos lados da dianteira da coluna. Num instinto adquirido, toda a gente se manda para o chão. Era a emboscada, já há muito esperada. Não se trata de emboscada. Tão só uma mina antipessoal que explode debaixo de um pé do Furriel Simões. Ao aproximar-me do local, deparo com um homem enegrecido, autêntico autóctone, e fico por momentos mais descansado... Num ápice se desfaz o momentâneo alívio. O sinistrado é mesmo o Furriel Simões. Ficou negro da explosão. Voou-lhe a bota do pé esquerdo juntamente com o pé. Procuram-se ambos, mas tal deve ter sido o sumiço que nunca mais se encontraram. Do tornozelo para baixo, não existe nada. Corre apenas uma bica de sangue. O furriel grita pelos filhos que deixou algures no norte do continente. Acode-lhe o furriel enfermeiro com uma injecção de morfina e estanca-lhe o sangue com os coagulantes que traz na bolsa dos primeiros socorros e enrole-lhe com gaze e uma ligadura a parte final da perna. Por fim, cai num sono de pedra. Vai agora estendido numa maca de campanha transportada por quatro homens”.

Em pinceladas largas, aqui se registam as memórias desse açoriano de S. Miguel, que em breve regressará à nossa companhia para se juntar ao bardo Santos Andrade que em breve nos irá contar a batalha do Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 28 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19925: Notas de leitura (1191): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (12) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19936: Notas de leitura (1192): “Cambança Final”, por Alberto Branquinho; Sítio do Livro, 2013 (Mário Beja Santos)