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terça-feira, 14 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23350: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (29): Por terras de Farim - II (e última) Parte: gentes e lugares


Foto nº 5A > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Tabanca de Canico  Tomane, mulheres mandingas, horticultoras (2)

Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Tabanca de Canico  Tomane, mulheres mandingas,  horticultoras(1)

Foto nº 5B > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Tabanca de Canico  Tomane, mulheres mandingas, horticultoras (3)

Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 >  Tabanca de Canico  Tomane, bajudas mandingas...  Vejam os "progressos" do véu islâmico..., quando comparamos estas imagens com as do passado de 50 anos.


Foto nº 7 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Molhos de lenha, à beira da estrada, no K3. A lenha e o carvão são levados para Bissau para que não falte na época das chuvas na casa das famílias... 90% das famílias de Bissau ainda os utilizam como combustível nas suas cozinhas.

Foto nº 8 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Horta de Djalicunda

Foto nº 9 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 >  Tabanca de Binar Fula, Dungal

Foto n  10 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Tabanca de Binar Fula, Dungal. Ainda há burros...


Foto nº 11 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 >  "Torre de observação e de lanternas, na rampa sul de Farim"

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das fotos que o  Patrício Ribeiro (nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário) nos mandou de Farim no passado dia 9 (*).

Interessantes as fotos nºs 5 e 6, reveladoras da evolução dos costumes no que diz respeito à indumentária feminina e, nomeadamente, ao uso do véu islâmico. Sobre este assunto ver um artigo do El País, de 16 de agosto de 2016 (Islão: ISLÃ - Como identificar os diferentes tipos de véus islâmicos)
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Nota do editor:

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...



Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 4612/74 (12jul74-15/10/74) > 9 de setembro de 1974 > Cerimónia da entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné, o PAIGC, e da retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, na região do Oio, serviu perfeitamente para esse duplo propósito...É uma foto  histórica, em que se vê o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, então fur mil op esp / ranger, a arriar a bandeira verde-rubra. (O MR é membro da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2005 (*)...

Foto (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Trinta e seis anos da "troca de bandeiras" , em 1 de setembro de 1974... Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o pau da bandeira; à esquerda as ruínas do forno de cozer o pão que fazia as delícias do "Chico, menino e moço"


Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2010).
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II (*)


(iii) A chegada dos guerrilheiros


Passaram-se dias e semanas e, quando menos se esperava, foi anunciada a chegada dos guerrilheiros que devia acontecer para os lados de Oio/Caresse, zona donde se esperava que viessem, naturalmente. Toda a aldeia saiu para assistir à chegada mas, era falso alarme. No sítio indicado não estava ninguém.

Passados alguns dias, foi feito o mesmo anúncio mas, já metade da aldeia estava na dúvida e preferia esperar pela confirmação. Desta vez, efectivamente, estavam lá e, não era do lado de Caresse (oeste) mas do lado sul (Bairro Mandinga de Morcunda), donde menos se podia esperar. Tratava-se de uma táctica da guerrilha, simples diversão ou prudência de quem ainda não acreditava na sua sorte? Talvez fosse tudo isso ao mesmo tempo.

Rapidamente a notícia correu pelas aldeias da redondeza, as pessoas afluíram em massa. Crianças, jovens, mulheres, velhos; todos queriam ver a gente do mato, aliás, os “bandidos” agora convertidos em heróis da libertação nacional. 

Depois de todas as campanhas de desinformação do regime colonial, o que vimos era simplesmente inacreditável. Afinal, eram pessoas normais, como nós, dos pés a cabeça. Não tinham rabos como os animais, nem chifres como imaginamos os diabos. Encontrámo-los, alguns sentados, outros de pé, dispersos debaixo da sombra das mangueiras. Cabeludos, magricelas, olhos vermelhos, uma expressão visual que se situava algures entre o homem e o animal.

Exceptuando as armas e os uniformes que traziam, eram exactamente iguais aos prisioneiros que tínhamos visto no quartel alguns anos antes (na altura a população civil era muito céptica quanto ao serem verdadeiros “Paigecistas” inclinando-se mais para a ideia de que seriam, quando muito, cortadores de chabéu, perdidos entre as remotas aldeias oincas no mato de Caresse).

Controvérsia à parte, aqueles prisioneiros, de facto, não estavam fardados e o aspecto esfarrapado, nauseabundo, mais metia dó que medo. Sempre que podíamos, metíamos algumas coisinhas por baixo das paredes de chapas que serviam de celas, com o nariz apertado entre os dedos. Porém, entre nós, nem todos partilhavam o mesmo sentimento e havia quem aproveitasse a ocasião para dar umas pisadelas nas mãos esfomeadas que apalpavam a terra e o ar à procura do abençoado pedaço de pão. Tinham fome.

  Quem são estes, os cubanos?  − perguntava alguém ao vizinho do lado. Sem resposta.

  São estes que nos metiam tanto medo!?  − comentou, incrédula, uma mulher fula que trazia ao colo uma criança, tendo no corpo apenas o pano amarrado até a cintura pondo a mostra os seios usados, elásticos, espalmados sobre o ventre (é uma pena o “nós Alfero Cabral” não ter passado por aqui).

  Não se iluda,  mulher, no mato, cada um destes bandidos vale por dez   explicou o Queta “chauffeur”, antigo companheiro do tenente Jamanca.

Os homens que se apresentaram eram poucos (um bigrupo?) e pareciam ser mais altos do que eram na realidade, como os corredores de fundo. O comandante era um homem de etnia mandinga, de meia-idade, alto e simpático que logo cativou as atenções, vindo a revelar-se um excelente orador.

Ele mudou os hábitos da aldeia. As suas reuniões de presença obrigatória não demoravam menos de 12 horas, o que lhe valeu a alcunha de Presidente Sékou Touré. Quando as pessoas eram convocadas, diziam às suas mulheres: “Mariama, prepare a comida de manhã cedo, porque vamos a reunião de Sékou Touré”. 

No decorrer das longas reuniões do Partido, aqueles que pediam para ir satisfazer algum necessidade fisiológica, mulheres inclusive, eram acompanhados por homens armados. Começávamos a colher os frutos da verdadeira independência bem à moda dos movimentos de libertação em África.

Os guerrilheiros usavam uniformes castanhos ou cinzentos (pontilhados de pequenas formigas pretas). Eram diferentes dos sarapintados que estávamos habituados a ver. Pareciam novos e os corpos magros, quase esqueléticos, particularmente dos fulas, nadavam dentro dos uniformes o que dava a sensação de que não estariam lá muito habituados a usá-los.

A maioria tinha nos pés sapatos de cor castanha, feitos de um tecido duro e resistente, amarrados com cordel. Eram leves e combinavam bem com a cor das fardas. Alguns deles usavam, ainda, plásticos simples comprados, talvez, no Senegal. Não havia muito rigor no fardamento. Os seus olhos, esses, eram muito vivos e penetrantes, em alerta permanente, com as armas ao alcance das mãos. Pela primeira vez, víamos com os nossos olhos, a famosa RPG7.


(iv) A atracção pela metrópole


Mais tarde, quando a retirada do que restava das tropas portuguesas já era iminente, um outro soldado, mecânico-auto, o Jorge, da companhia de Gadamael, ofereceu-me o livro que seria o primeiro da minha vida, cujo título era "Inglês sem mestre”,  sob um fundo de tiras azuis e vermelhas cruzadas.

Fiquei com vergonha de dizer que não o conseguia ler. Esta oferta tinha mexido comigo e tinha-me incitado a aprender a ler. Na época, não sabendo interpretar o seu conteúdo, ofereci-o ao meu irmão mais velho que estava mais avançado na escola e que o levaria consigo na sua primeira viagem de estudos a Portugal em 1980. Com ar muito triste e lamentando a nossa sorte, o Jorge disse-me naquele dia:

  Olha, Chico, nós vamos embora, os “turras” vão tomar conta disto e são capazes de matar a todos, se quiseres ir comigo eu falo com o teu pai.

  Não, nós vamos dar-lhes as nossas vacas e ficamos em paz  − respondi-lhe, rindo.

Não tinha reagido à sua oferta, como se não tivesse percebido, na realidade não estava interessado. Durante todo o tempo que passámos no quartel entre os portugueses, a informação que tínhamos da metrópole era muito escassa, dispersa, esporádica, idílica, feita principalmente de imagens de meninas brancas, cor da neve, anjos do céu, exibindo-se no jardim de Éden com os seus vestidos “volantes” (Cheira bem… cheira a Lisboa!), docemente embaladas pelo fado da Amália e o trepidante futebol do Benfica de Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra, mas era, apesar de tudo, um país de brancos.

A ideia de viver, de forma permanente, no meio dos brancos e suas esquisitices não me seduzia muito, pese o facto de gostar infinitamente dos seus frangos gordurosos, da batata inglesa, do bacalhau salgado e do cheiro dos chouriços vermelhos. (Alláh, o clemente e misericordioso, me perdoará por esta pequena fraqueza humana. ).

Mesmo supondo que eu quisesse ir,  de certeza que a minha avó não mo permitiria. Ela era o meu anjo da guarda e tinha horror aos soldados, com as suas orelhas vermelhas e seus modos libertinos. “Os brancos não respeitam a idade”, dizia. “Se não, como é que se explica que os chefes (os oficiais) sejam mais novos que os subordinados?”. A vista dos soldados, ela fugia e se entrincheirava dentro da sua palhota.

Entretanto, a sua neta, nascida em tempos de Guiné Melhor do seu único filho varão, passava horas a fio a namoricar, mesmo a porta, com um malandro de orelhas vermelhas que só aparecia envolto na escuridão da noite.

Mas, o verdadeiro motivo porque não fui tentado em viajar para a metrópole, estava ligado à forma de lá chegar. Tinham-nos informado, de fontes seguras, que a única forma de uma criança entrar no navio e fazer a viagem era estar metida dentro de um caixão como faziam com os periquitos ou outros animais de estimação. A minha ideia sobre o assunto era clara e firme. Viajar metido num caixão era não, nunca e jamais. Podiam ficar com todas as sardinhas da Europa.

No fundo, também, não acreditava muito nas afirmações do meu amigo Jorge,  pois os germes do nacionalismo que tinham conquistado terreno no inicio dos anos 70 e a propaganda que tinha antecedido a entrada do PAIGC já estava a fazer efeito na consciência de muitos guineenses que não estavam seriamente comprometidos com a guerra.

O meu caso não era isolado pois, mesmo entre as pessoas adultas e que tinham servido na guerra e estando agora desmobilizadas como o Mamadu Baldé (mais conhecido por Mamadu Senegal, antigo chefe de milícias, originário do Senegal, citado numa das narrativas de José Cortes), e muitos outros naturais da zona encontravam-se no meio das pessoas que foram receber os guerrilheiros, num ambiente de festa e confraternização.

Depois da primeira visita, vieram mais outros grupos vindos de outras “barracas” (acampamentos), recebidos sempre com o mesmo entusiasmo pela população civil e militares portugueses e, no meio disso tudo, podia-se notar um facto bem curioso, a meu ver. Pela forma como os recebiam e se congratulavam, trocando pequenos presentes e “lembranças”, os soldados portugueses pareciam muito mais satisfeitos com o fim da guerra do que os guerrilheiros.

Talvez pela primeira vez na história dos conflitos armados, um dos beligerantes que, para todos os efeitos, tinha perdido a guerra, parecia estar feliz por não ter vencido. Era compreensível mas nem por isso deixava de ser intrigante.

Na minha infância, havia duas classes de pessoas as quais nutria uma grande admiração e cujo meio frequentava com muito gosto: Era a dos atletas/lutadores tradicionais (habitualmente fulas pretos) e a dos soldados (de todos os tipos), ambos apresentando características muito semelhantes no que se refere ao seu comportamento: Irreverência congénita, ousadia e provocação, ausência de pudor e inclinação para violar regras sociais pré-estabelecidas e/ou velhos tabus, a fraqueza pelas mulheres e sobretudo a predisposição constante para criar situações ridículas, hilariantes.

Lembro-me, a propósito, de uma conversa entre dois milícias em que um deles explicava ao outro, de forma convincente, que aos brancos não lhes interessava o fim das guerras, de todas as guerras e, acrescentava:

- Na terra deles há uma coisa pequena do tamanho de uma agulha que era capaz de arrasar todo o território da Guiné e matar todos os terroristas num abrir e fechar de olhos.

Agora, eu sei que ele se referia as trágicas bombas largadas sobre Hiroshima e Nagasaki. O segundo milícia, mais lúcido, tinha replicado ao primeiro:

- Deus nos livre, se isso acontecesse, tu ias esconder o teu traseiro fedorento onde, na cova de um porco-espinho?!

Perante a gargalhada geral dos presentes, a conversa que tinha começado de forma amena, terminara em pancadaria. Quem teria razão?


(v) A (mu)dança das bandeiras

Na manhã do dia 1 de Setembro de 1974, os poucos soldados que ainda estavam 
presentes (um pelotão da 2ª CCaç / BCAÇ 4514/72,, perfilaram no centro do aquartelamento para cumprir o último acto militar da entrega do quartel de Fajonquito. De um lado estavam os portugueses, doutro, os guerrilheiros. Frente a frente, pela última vez. Todos fardados com rigor. Cada grupo com a sua bandeira. As cores não eram muito diferentes, vermelha, verde e amarela. Só divergiam nos motivos, na origem e no destino. Os “ex-bandidos” também estavam distintos nesta derradeira cerimónia de passar o testemunho.

Notava-se que na fila dos portugueses, não havia muita diferença, pareciam ter sido escolhidos a dedo, altura mediana. Já do lado dos nossos, a disparidade era gritante, enquanto uns eram baixinhos, outros eram desmesuradamente altos. Como na música e na dança, na África tropical a desordem é só aparente.

Da boca do oficial saíram, de forma vigorosa, os “firme” e “ombrós-arma”, acompanhados de movimentos da tropa a condizer, a corneta soou estridente seguida pelo coro dos cães da aldeia em protesto, as armas foram apresentadas a altura dos peitos soerguidos. 

Primeiro, arriaram a bandeira portuguesa, lentamente no início, mas quando ia quase a meio do percurso, contrariando o ritmo habitual, com largos esticões o soldado fê-la cair rapidamente, atirando o pano em cima dos ombros, enquanto desfazia o nó. O gesto denunciava alguma impaciência. Depois, foi a vez da nova bandeira subir e flutuar ao vento. Garanto-vos que estávamos ansiosos e orgulhosos.

O guerrilheiro encarregue do acto deu dois passos a frente, encaixou a bandeira na corda e puxando uma das pontas, fê-la subir, normalmente. E quando estava quase a chegar ao topo, por qualquer razão, estas se emaranharam entre si deixando a bandeira presa, não podendo subir nem descer. Foi precisa uma pequena ajuda do soldado português para acabar com a trapalhada das cordas e terminar, finalmente, com a parada (seria isto um sinal para o futuro?).

Depois houve uma troca de apertos de mãos de parte a parte. Havia uma pequena assistência de populares do lado de fora dos arames farpados. Não tinham sido convidados.

Olhando para trás no tempo, esta cena onde uma dúzia de soldados está perfilada frente a frente, procedendo a passagem simbólica do poder de uma terra que tinha sido administrada durante muitos anos por militares, na ausência de qualquer autoridade ou representantes da sociedade civil, desperta em mim, pouco a pouco, a sensação de que a Guiné, a nossa querida Guiné, de facto, não tinha sido preparada para viver sob um regime civil com base em princípios de governação democrática.

Por outras palavras, a população da Guiné foi, e durante muito tempo, preparada para conviver com as ditaduras militares. Não surpreende muito, a ordem da sucessão parece inequívoca. De distrito militar repressivo (princípios do século XX), o território passou para uma província militarizada e em guerra (1963/74) e desta seguimos directamente para uma ditadura de guerrilheiros impreparados, ávidos de poder e sedentos de sangue. 

Não existe e nunca existiu uma tradição de poder civil, situada acima dos grupos étnicos. Neste aspecto, em particular, as ex-colónias francesas estavam ou ainda estão a milhas de avanço. As imagens filmadas sobre as independências desses países são disso um facto bastante revelador, pondo de parte o caso da Algéria.


(vi) Os meus amigos guerrilheiros, balantas


Foi preciso esperar pela terceira vaga de guerrilheiros, sempre em bigrupos, para finalmente conseguir fazer alguma amizade. Eram dois combatentes de etnia Balanta, naturais de Banta (região de Quinara), o Dinis e o Marcos. Pelo menos é o que me tinham dito.

Se os portugueses me tinham ensinado as primeiras letras de forma desinteressada, foi com esses jovens Balantas que acabei por assumir a real necessidade de aplicar-me aos estudos a fim de melhor poder contribuir para a construção da nossa Pátria (um vocábulo novo, com consonância especial, na altura).

Com os soldados portugueses tinha começado a moldar um instrumento, uma ferramenta de pesquisa e de trabalho mas foram estes guerrilheiros do PAIGC, esfarrapados e desnutridos que, imbuídos do espírito genuíno de libertação e emancipação de todos os povos da Guiné sem distinção, na altura, me ajudaram na definição do objectivo da minha escola. O que antes era longínquo e desconhecido, passou a ser conhecido e desejado.

Em casa o meu pai recebeu-os efusivamente, tirando o chapéu da cabeça e curvando-se em sinal de respeito antes de lhes apertar as mãos, como sempre fazia diante das autoridades. O Dinis, calma e serenamente, explicou-nos que estes gestos já não se justificavam pois, todos eles eram filhos do povo.

 Nós lutamos para acabar com a humilhação do nosso povo em geral e dos nossos pais em particular, homens e mulheres, foi isso que Cabral nos ensinou e é isso que vamos transmitir aos nossos irmãos mais novos.

Ele falava olhando para mim, meigamente.

Na estrutura militar dos guerrilheiros, havia o comandante e o adjunto do comandante, mas a partir dali já era difícil descortinar a sequência hierárquica, tanto para cima como para baixo na cadeia. Eram sinais de uma desordem latente donde podia nascer a anarquia que viria ao de cima, anos depois.

O Dinis era um combatente simples, um aldeão que, não sendo muito instruído era relativamente bem informado sobre as ideias e conceitos políticos da época. As suas palavras eram simples e claras e com ele iniciei a minha aprendizagem na escola do pensamento polítíco que começava com Cabral e terminava em Marx e Engels ou vice-versa.

Nesta viagem de iniciação político-ideológica, o Lenine era a criança prodígio que tinha encontrado o livro de um velho sábio (Marx) e graças ao qual ele tinha revelado ao mundo as ideias revolucionárias de como tornar o mundo mais justo, mais progressista, apesar das contrariedades criadas pelas forças reaccionárias da direita capitalista (os demónios). “Foram as ideias contidas nesse livro antigo que, também, permitiram a libertação do nosso povo, através de Amílcar e seus companheiros”, concluía Dinis.

No entanto ele não sabia dizer se, eventualmente, Cabral teria encontrado com o jovem Lenine, quando foi a Moscovo, à procura de tais ideias. Ele se defendia, dizendo: “Tu és jovem e já bastante avançado na escola, depois, quando fores para a União Soviética, perguntas a eles para saber, eu não sei, não estive lá, sou um simples combatente”.

Saberia mais tarde que Cabral tinha nascido no ano de 1924, no mesmo ano em que morria o líder dos sovietes, o Lenine. O mais importante aqui não era a forma mas sim o conteúdo.

A passagem dos guerrilheiros por Fajonquito foi breve, mas antes de partir, desmantelaram completamente o quartel, onde nunca chegaram a se instalar verdadeiramente, seja pelo pobre número de efectivos ou por outras razões desconhecidas. A atenção estava, sobretudo, concentrada sobre Canhámina e os caminhos de acesso à fronteira com o Senegal.

Quanto ao resto, os olhos atentos dos comissários políticos se encarregariam de velar. O fim do quartel representou, para a aldeia, o inicio da escuridão, a noite, com o desaparecimento do único grupo gerador da localidade. Ninguém tinha pensado nas consequências, aliás, nem sequer tinham dado à população a possibilidade de pensar.

Mais tarde soube que o Dinis e o Marcos se tinham voluntariamente desmobilizado e regressado para a sua aldeia natal onde continuariam a trabalhar com os jovens da sua tabanca, ajudando na recuperação das bolanhas abandonadas durante a guerra e continuando a sensibilização dos mais novos sobre os ensinamentos de Cabral no meio de histórias da luta de libertação nacional para a qual tinham dado o melhor da sua juventude.

No ano seguinte, após ter concluído o ensino primário, eu cumpriria a promessa feita ao Dinis de continuar os estudos na cidade, mais precisamente no ciclo preparatório de Bafatá,  que tinha sido aberto poucos anos antes. Já não era somente a fome e a batalha pelo reconhecimento do grupo que me impeliam para a frente mas, também, a fome pelos livros, pelo saber, pensando, no meu íntimo que a única forma de voltar a reencontrar os meus divertidos e irreverentes amigos brancos era pela via da escola.

Antes porém, de fazer a minha primeira viagem a Europa em 1985, mais precisamente à URSS, tinha ido à tabanca de Banta, no sector de Empada, à procura dos meus velhos camaradas de 1974. Na localidade, esperava-me uma pequena surpresa, pois, ninguém se lembrava dos antigos combatentes do PAIGC com os nomes de Dinis e/ou Marcos.

Penso que teria acontecido uma dessas práticas muito comuns entre os Guineenses das zonas rurais, de usar nomes (cristãos, logo civilizados) fabricados para o momento e a ocasião,  aos quais podiam livrar-se mais rapidamente que um camaleão muda as suas cores.  Na aldeia, teriam voltado aos seus verdadeiros nomes da terra, ocupando os assentos que as suas idades sociais lhes reservavam dentro da comunidade (que não coincidiam necessariamente com a idade biológica), animando as festas dos “ irãs” que habitam os grandes poilões da floresta sagrada do sul.

No caminho de regresso à cidade, perguntava-me a mim mesmo se eles existiram de facto ou se tudo não passara de pura imaginação do espírito fértil de uma criança que queria acordar cedo demais?!

Fajonquito, 17 de Junho de 2010

Cherno Baldé (**)

[ Revisão, fixação de texto, adaptação, subtítulos, para efeitos de publicação neste poste: LG]

(Continua)

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terça-feira, 28 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22577: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VII: A lenda de Alfa Moló






A lenda de Alfa Moló - belíssimas ilustrações do mestre português José Ruy (Amadora, 1930), um dos maiores ilustradores e autores de banda desenhada (pp. 49, 50, 52 e 53)


1. Transcrição das págs. 50 a 54 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5.



A lenda de Alfa Moló (pp. 50-54)


Um dia, um pobre mendigo chegou à tabanca (21)  de Amedalai (22) e,  pretendendo descansar, pediu hospitalidade em várias casas, mas todas elas a recusaram.

Até que chegou a uma pobre casa, onde uma mulher, apesar de o maridon não estar presente, o recebeu e lhe matou a fome.

Quando o marido, Moló Eigué, chegou, ficou contente pela hospitalidade dada pela sua mulher, pois fazia gosto e tinha orgulho em receber bem quem o visitasse.

Moló Eigué ao conversar com o mendigo, ficou admirado com a sua sabedoria, pois nunca tinha conhecido um mendigo tão sábio. Na verdade, o mendigo era um grande marabu (23) de nome Seiku Umarú (24), que viajava disfarçado de mendigo.

Depois de descansar, o mendigo decidiu seguir viagem, e Moló Eigué fez questão de o acompanhar.

Moló Eigué acompanhou o marabu de Amedalai até Coli (25) , e aí chegados, o marabu despediu-se, dizendo-lhe:

 Todas as terras que comigo percorreste, serão tuas, este será o teu Reino, pois é essa a vontade de Alá.

Moló Eigué ficou confuso e sem compreender as palavras do marabu. Como seria possível ele tornar-se Rei, sendo ele apenas um servo (26) de um rico fula, Samba Eigué, de quem já os seus pais também tinham sido servos…

Moló Eigué tinha em sua casa um carneiro do qual gostava muito, pois estava ensinado de tal maneira, que era como uma pessoa. Andava sempre atrás dele e até quando comia, o carneiro estava ao seu lado.

Um dia, ao voltar da caça, sentou-se à mesa para comer, e o carneiro não apareceu. Então ele perguntou à mulher:

 Onde está o meu carneiro?

A mulher respondeu-lhe:

– Eu queria que você comesse primeiro, para depois lhe contar. Os guerreiros mandingas vieram e levaram o seu carneiro para Cansalá. O Mansa Djanqui
Uali mandou levar o gado de todas as pessoas.

 O quê? –  disse Moló Eigué,  afastando a tigela com a comida.

Sem mais palavras montou no seu cavalo e cavalgou para Cansalá. Quando chegou à fortificação de Cansalá, Moló Eigué pediu aos guardas para falar com o Mansa.

 Está louco! Não pode falar com Mansa  disseram os guardas.

 Roubaram o meu carneiro, e eu quero o meu carneiro de volta! – exclamou Moló Eigué furioso.

 Cuidado, não fales mais assim, senão morres! O carneiro foi o almoço do Mansa. Vai caçar um porco do mato - responderam os guardas rindo.

 O Mansa vai pagar muito caro este carneiro  disse Moló Eigué e abandonou Cansalá.

Moló Eigué foi de tabanca em tabanca, apelando à revolta:

 Os mandingas estão a abusar, não nos respeitam, não param de aumentar os impostos, roubam as nossas coisas, tratam-nos como escravos, temos que nos revoltar.

Alguns responderam:

– Os mandingas são muito poderosos, nós não conseguimos vencê-los.

Moló Eigué a isto respondeu:

 Eu vou lutar! Se não me ajudarem a lutar, terão que fugir, porque quando as balas começarem a voar, então todos terão que fugir.

Muitos homens vieram juntar-se a Moló Eigué, pedindo-lhe para os guiar na luta contra o domínio mandinga, pois por todo o lado se iniciavam focos de revolta contra os abusos mandingas e era grande a vontade de substituir os reinos mandingas por reinos fulas. Além disso os fulas do Reino do Futa Djalon (27) tinham desencadeado uma jihad contra os reinos animistas, e era obrigação de todos os muçulmanos juntarem-se a essa jihad.

Moló Eigué era um devoto muçulmano, que possuía estudos corânicos, era
respeitado, e era também um famoso caçador, o que fazia dele o homem certo
para os conduzir nessa guerra. Assim ele tornou-se o líder de um grupo de 400
homens, na luta contra os mandingas animistas (28) do Império de Cabú.
 
As palavras do marabu, começavam agora a fazer sentido para Moló Eigué.
Moló Eigue pagou o seu resgate ao seu senhor, o nobre Samba Eigué, tornando-se um homem livre, e partiu para a guerra. E embora o seu nome fosse Moló Eigué Baldé, ficou para sempre conhecido como Alfa Moló.

A floresta onde Alfa Moló e muitos dos seus companheiros costumavam caçar, tornou-se a base para lançar a revolta, contra o Império animista de Cabú.

Após a derrota dos mandingas e a destruição da sua capital, Cansalá, o Reino do Firdu é alargado até Coli, com Alfa Moló como Rei, tal como o marabu tinha predito.

O nobre fula Samba Eigué, antigo senhor de Alfa Moló, não aceitou que este pudesse ser agora o Rei de Firdu, e furioso pelo poder que este tinha conquistado,
gritou:

 Um escravo não vai governar aqui!

Desencadeou-se assim uma guerra entre os fulas, mas Alfa Moló (29), com a ajuda do seu filho Mussá Moló e dos seus aliados, venceu os seus inimigos fulas, e tornou-se senhor incontestado do Reino de Firdu.

O Reino de Firdu tornou-se assim um Reino de fulas-pretos (30), um Reino em que os antigos escravos e servos são agora os novos senhores. (**)

 Esta é  uma das lendas de Alfa Moló.

Alfa Moló conseguiu um Reino, mas o seu filho Musá Moló teve que continuar a sua luta para manter o Reino do Firdu, pois continuaram a existir lutas internas entre os fulas.

Mussá Moló, para assegurar o seu poder e combater os seus inimigos, fez novas alianças. Uma das mais importantes foi a aliança com os franceses, mas isso não alterou o fim do Reino do Firdu, pois o fim dos Impérios Africanos estava próximo, e os novos senhores seriam em breve os países europeus.

__________

Notas do autor:

(21) Tabanca - é a designação usada para aldeia, a qual tem origem no
termo crioulo tabanka.

(22) Amedalai - situa-se no Firdu.

(23) Marabu - designação dada aos religiosos muçulmanos considerados santos ou sábios, nalguns textos é usado o termo mouro, que tem o mesmo significado. Os marabus tinham grande influência na socie dade fula e mandinga, eram homens letrados, muitas vezes considerados homens santos. Estes homens entendiam que o seu poder era uma emanação de Deus graças ao profeta Maomé, e que era sua obrigação levar a verdade divina aos povos pagãos, que consideram bárbaros ignorantes.

(24) Seku Umaru – um grande marabu também conhecido pelo nome El Hadgi Omar

(25) Coli - o Rio Coli faz fronteira a leste da Guiné-Bissau com a Guiné Conacri, perto de Piche.

(26) Escravos e servos - era costume fulas e mandingas possuírem escravos e servos, Artur Augusto da Silva, na pag. 29 de “Usos e Costumes Jurídicos dos Mandingas”, faz a diferenciação entre estes estatutos sociais:

“Escravos - constituem esta classe os prisioneiros de guerra, aqueles que eram comprados e os que se entregavam voluntária ou compulsivamente para pagamento de uma dívida, e ainda os seus filhos.

Servos - que podiam ser da gleba, quando eram dados em recompensa a algum guerreiro juntamente com a terra a que ficavam adstritos por si e seus filhos, ou servos de ofícios, adquiridos pelos nobres para trabalharem em qualquer oficio. Além da casta a que pertenciam devido ao ofício exercido, eram servos porque trabalhavam por conta de outrem e eram sua propriedade.”

(27) Futa Djalon - O Reino Futa Djalon ou Futa Jalon, foi fundado em 1725, e estava localizado a sul do Império de Cabú, na Guiné-Conacri (República da Guiné).

(28) Mandingas animistas - são igualmente chamados de soninquês.

(29) Alfa Môlo - segundo René Pélissier na “História da Guiné I”, na pag. 212 refere que foi “Rei do Firdu, tendo rejeitado praticamente a tutela do Futa-Djalon, Alfa Molo foi, de 1869 até poucos anos antes da sua morte (1881), um dos coveiros do Gabu e, por todos os meios,
procurou manter a sua independência em relação aos Fulas-Forros.”
 
30 Fula-preto - é a designação dada aos fulas com origens noutras etnias que foram dominadas pelos fulas, e que seguiram o modo de vida fula, na sua maior parte são oriundos das etnias mandingas e beafadas, e de casamentos destes com fulas forros, e futa-fulas.

Fulas-forros - é a designação dada aos fulas originários do antigo Forreá.

Segundo o livro de José Mendes Moreira “Os fulas do Gabú”, o nome teria origem no nome dado à terra conquistada aos beafadas,

Forriá, que significa na língua fula “terra da liberdade”.

Futa-fulas - é a designação dada aos fulas originários do Futa Djalon (reino situado na Guiné-Conacri), normalmente têm as têmporas da face marcada por uma dupla incisão vertical ( || ).

2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?


Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

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Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

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10 de julho de  2019 > Guiné 61/74 - P19966: Historiografia da presença portuguesa em África (166): Alfa Moló Baldé e o mito fundador do reino de Fuladu, em 1867 (Cherno Baldé) - II (e última) Parte

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22293: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte X: Igreja de Santa Sofia, Constantinopla, Bizâncio / Mesquita Azul, Istambul,Turquia, 2012





Igreja de Santa Sofia / Mesquita Azul, Istambul, Turquia

Texto e fotos recebidos em 15/6/2021



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros.

É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 280 referências no blogue.



Igreja de Santa Sofia, Constantinopla ou Bizâncio, ou Istambul, Turquia, 2012


De um lado, uma flamejante Mesquita Azul, do outro uma enfeitiçada igreja de Santa Sofia. Quase no meio, o espaço-memória do hipódromo romano, lugar, outrora, de elevadas cavalarias, execuções primárias, mil tragédias e farsas no teatro do mundo. Por perto, a Cisterna mergulhada na terra, há quinze séculos dando de beber às gentes de Bizâncio, Istambul. Lá em baixo, o azul do mar.

Santa Sofia me entristece. No tempo do imperador Justiniano, em 537, era o maior templo cristão jamais construído, se não tocava as estrelas, pelo menos abraçava o céu.

Na cidade, ao longo dos séculos, tantos guerreiros, tantos conluios, tanto malquerer, tantos exércitos…Trinta quilómetros de colossais muralhas circundavam Constantinopla, Istambul. A brutalidade ignóbil das lutas pelo poder. Assassinavam-se, envenenavam-se, cegavam-se imperadores, decapitava-se gente honesta. As naves da igreja de Santa Sofia inundadas de lágrimas. No entanto, luxo e arte também floresciam. Candelabros gigantes iluminando a escuridão, pilares de mármore, painéis coloridos, mosaicos enormes, os retratos de santos, de Jesus Cristo e de Maria, a vastidão dos espaços, o dourado do tempo. Houve igualmente muitas primaveras de concórdia e harmonia, e pessoas felizes em vidas tão breves.

1453, os turcos tomaram Constantinopla, vieram os sultões muçulmanos, inventaram Istambul, o império otomano tomou forma. Expulsaram e mataram cristãos, transformaram Santa Sofia numa imensa mesquita.

Hoje, entro na espantosa Hagia Santa Sofia, mesquita e igreja, a da Divina Sabedoria. Que Alá seja grande no seu trono invisível, que o humilde Jesus, todo-poderoso, nas pinturas e mosaicos do século XI, meio escondidos pelo veredicto temeroso do Islão, continue o seu caminho, por dentro, por fora de Santa Sofia, para além dos séculos, rumo ao infinito.

António Graça de Abreu, em Istambul, 2012

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terça-feira, 11 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22192: 17º aniversário do nosso blogue (10): por que é que das "lavadeiras" ao "sexo em tempo de guerra" vai um passo ? (Carlos Arnaut / Cherno Baldé / Luís Graça)


Baião > Ancede > Mosteiro de Santo André de Ancede > Mosteiro, masculino, cuja origem remonta aos primórdios da nacionalidade,,, Vale a pena uma visita,,, Está em restauro, com projeto de Siza Vieira... São quase mil anos de história que nos contemplam e nos confrontam ... Faz parte também da "rota do românico" (Vale do Tâmega)...

Mas tem também uma capela, octognal, do séc. XVIII, chamada do "bom despacho", que merece uma visita especialmemte guiada... Foi lá que descobrimos  a 'anjinha de Ancede', que parece passar despercebida aos visitantes e aos guias locais (*)... Uma delícia, essa e todas as demais peças da arte barroca popular, sob a forma de cenas de teatro, relativas aos mistériso da vida de Cristo... com destaque para a cena da circuncisão do menino Jesus...  Questão do foro teológica com muitos século, entre os cristãos, é a a discussão (por vezes acolarada, apaixonada e dramática) do "sexo dos anjos": são meninos ou meninas, ou não têm sexo ? Se são meninas, faz-se a "infibulação" (ou cobre-se com um véu para "tapar as vergonhas", os "pipis", ou o "pito", como se diz no Norte em bom calão); se são meninos... "cortam-se... as pilinhas", como aconteceu há décadas na igreja da frequesia de Paredes de Viadores, Marco de Canaveses (!)... (A arte islâmica tem  uma vantagem: não permite a figuração, seja humana, seja animal...)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P22173 (**)

(i) Carlos Arnaut  
 
Caro Luís: curiosa a questão das lavadeiras e o imaginário da contratação de "só roupa" ou "corpo todo".

Por tudo o que fui ouvindo ao longo da comissão, embora a amostra ao inquérito seja pequena, acredito que as percentagens encontradas estejam muito próximas da verdade . Acredito ainda que um contrato que englobasse a cláusula "corpo todo",  fosse mais fácil de conseguir com umas etnias do que com outras. 

Refiro-me concretamente às bajudas fulas, a quem, pelas razões conhecidas,  o sexo pouco ou nada dizia, enquanto que as balantas, por exemplo, tinham nessa questão toda uma outra postura. Mais uma variável, a étnica, para aprofundamento do estudo. 

A minha lavadeira, ao longo de 21 meses, desde que passei a comandar o 16º Pel Art, foi sempre a mesma, mulher do meu municiador Bona Baldé já referido anteriormente, e que sempre tratou da minha roupa com um desvelo sem par. (...)

6 de maio de 2021 às 12:23


(ii) Cherno Baldé

 Caro Arnaut,  interessante o teu ponto de vista sobre a variável étnica, mas não no sentido em que tu referes: "Refiro-me concretamente às bajudas fulas, a quem pelas razões conhecidas o sexo pouco ou nada dizia, enquanto que as balantas, por exemplo, tinham nessa questão toda uma outra postura". 

Na Guiné do periodo da guerra colonial ou na Guiné-Bissau actual, não existiu antes e não existe hoje nenhuma etnia em relação a qual "o sexo pouco ou nada dizia", isto não existia em África. É um fenomeno que surgiu com o período colonial e se acentuou com as independências e o alargamento da globalizaçao. 

Sociologicamente falando, o sexo sempre foi e ainda é um importante factor sócio-cultural que as sociedades, de uma forma ou outra, tentaram e tentam regular ou controlar de forma a influenciar o comportamento da reprodução e sustentabilidade das mesmas, assim como manter um nível aceitável de saúde materno-infantil. 

Em África, muitas vezes, o sexo estava ligado não só à procriação dos filhos, mas também à dinâmica da produção económica,  ou seja, na orientação dos mais jovens e mais fortes em relação ao factor trabalho,  etc. De modo que, e aí concordo, pode-se estudar o comportamento das mulheres usando as variáveis étnica e, talvez religiosa, no sentido de saber que factores podiam entrar nesse jogo, assim podemos questionar: 

(i) Quais eram os grupos populacionais ou étnicos maioritários no território em geral ou em determinadas regiões? 

(ii) Quais eram os grupos mais próximos em termos de aliança estratégica com os Portugueses e que mais facilmente podiam interagir com os soldados metropolitanos? 

(iii) Em que grupos populacionais os casos dos "filhos de vento" foram mais numerosos ?

(iv)  Quais eram as confissõs religiosas desses grupos populacionais e em que medida o factor religião facilitava ou dificultava a interaç~zo com os militares portugueses? 

A análise dos outros aspectos sociais como a maior ou menor dependência das mulheres e/ou a liberdade sexual entre outros, ja são mais difíceis de avaliar. Por exemplo, é geralmente consensual a opinião segundo a qual a mulher Bijagó é a mais livre e autónoma e, logo a seguir, vem a mulher Balanta e Manjaca. 

De todas, as mulheres muçulmanas são consideradas as menos livres e com menor grau de autonomia de decisão, aparecendo em primeiro lugar as mulheres Fulas, seguidas das Mandingas e outras da mesma religião. Todavia, dos casos de filhos vivos de portugueses com nativas que conheci, as mulheres muçulmanas (sobretudo fulas) aparecem em primeiro lugar, logo seguidas das Balantas (animistas) e em terceiro lugar vem as Manjacas (animistas). 

Mas, eu não me coloco no lugar de um estudioso desta matéria, pois eu, sendo nacional e pertencente a uma região e a um certo grupo étnico,  não posso ter o distanciamento necessário para o efeito. Sá queria demonstrar, se necessário fosse, que a variável étnica pode ajudar, mas não sera suficiente, de per si, para explicar toda a dimensão do fenómeno em discussão.  (...)

6 de maio de 2021 às 14:22


(iii) Luís Graça

Infelizmente, o tema ("lavadeiras", que já tem mais de 4 dezenas de referências no blogue...) tende a cruzar-se (e a sobrepor-se) com outros como bajudas, sexo, etnias, mutilação genital feminina, filhos do vento... mas também religião, etc. É um terreno um pouco "minado". E, como tal, tem que ser tratado com serenidade, informação, conhecimento, e sobretudo sem pré-conceitos.

Talvez o Carlos Arnaut possa explicitar melhor o que escreveu: "Refiro-me concretamente às bajudas fulas, a quem, pelas razões conhecidas, o sexo pouco ou nada dizia, enquanto que as balantas, por exemplo, tinham nessa questão toda uma outra postura."

O simples convívio, na Guiné, há 50/60 anos, com populações desta ou daquela etnia, e nomeadamente com a população feminina, não nos autoriza (, a menos que tenhamos feito estudos aprofundados sobre o assunto, ou tenhamos um grande conhecimento da literatura especializada...) a fazer comparações entre grupos e sobretudo a tirar conclusões numa matéria tão complexa e sensível como a sexualidade humana...

Julgq que o Carlos Arnaut quando diz que, naquela época, "o sexo pouco ou nada dizia" às raparigas e às mulheres fulas, "pelas razões conhecidas", estava a subentender o facto, estatisticamente fundamentado, da generalização da MGF (Mutilação Genital Feminina, para usar uma expressão adotada pela OMS - Organização Mundial de Saúde, e outras instâncias internacionais), entre as mulheres de religião muçulmana (e nomeadamente fulas).

Na época, poucos de nós tinha informação sobre este problema (que é antes de mais de saúde pública tanto quanto o é de direitos humanos). Nem as autoridades portuguesas nem o PAIGC se preocupavam com a tragédia imensa que representava então a MGF (,ou, de maneira mais grosseira, o "fanado" feminino, que também era e é um rito de passagem, um ritual de iniciação, com profundo significado sociocultural).

Em resumo, as fulas são (ou eram) "excisadas", as balantas não... Sabe-se que não é um problema de religião, opondo muçulmanas contra cristãs e animistas... É um problema mais vasto, de natureza socioantropológica, com raízes históricas complexas.

Que a MGF tem imnplicações, não só na saúde sexual e reprodutiva das mulheres, mas também na vivência da plena sexualidade (de mulheres e homens), isso tem... Mas eu seria incapaz de fazer comparações neste domínio (da sexualidade humana) baseado no factor étnico... E, por formação sociológica, não o faria...

É, de resto, um domínio onde há uma imensão de mitos e de preconceitos...ainda hoje, em pleno séc. XXI.

10 de maio de 2021 às 22:50
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Notas do editor:

sábado, 6 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21974: Álbum fotográfico de António Marreiros, ex-alf mil, CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e CCaç 3, Bigene e Guidage, 1973/74 - Parte VI: O Ramadão (2/3)

 

Foto nº 6 > Um cego é conduzido ao local da cerimónia por um familiar ou vizinho


Foto nº 7 > O grupo dos homens



Foto nº 8 > O grupo das mulheres


Foto nº 9 > O almami conduz as orações (1)


Foto nº 10 > O almami conduz as orações (2)


Foto nº 11 > O almami conduz as orações (3)


Foto nº 12 > Fim da cerimónia ? Ao fundo, os rapazes que dispersam


Guiné > Região de Gabu > Buruntuma > CCAÇ 3544, "Os Roncos de Buruntuma" > 1972 > O Ramadão (2 e 3)

Fotos: © António Marreiros (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum do  camarada António Marreiros [ a viver há quase meio século no Canadá (Victoria, BC, British Columbia).  ex- alferes miliciano em rendição individual na CCaç 3544, "Os Roncos", Buruntuma, 1972, e, meses depois, transferido para Bigene, CCaç 3, até Agosto 1974]... 

A sequência é relativa à festa do Ramadão, em Buruntuma, em 1972, e as cimco primeiras fotos já foram legendadas e comentads pelo Cherno Baldé, o nosso assessor guineense, que vive em Bissau, para as questões etnolinguísticas.

2. Legendagem do Cherno Baldé ao poste P21971 (*)

Caros amigos,

O António Marreiros postou mais uma série de excelentes fotos falantes sobre a comunidade de Buruntuma no ano de 1972, por ocasião da celebração do fim do mês sagrado do Ramadão.

A seu pedido, aqui vão os meus comentários [às fotos nºs 1, 2, 3, 4 e 5]



Foto nº 1

Um homem grande no seu traze de festa a caminho do local da celebração que normalmente se realiza no centro da aldeia debaixo de uma árvore, a mais importante, que tradicionalmente recebe este acto de submissão a Alá,  o criador, o benevolente e misericordioso, simbolizando a união e conc+ordia entre os habitantes da aldeia.

Em segundo plano e do lado direito vê-se um abrigo (bunker) contra flagelações e bombardeamentos de artilharia. Este tipo de abrigos feitos para protecção das populações civís existiam nas (fronteiras) zonas mais expostas as flagelações inimigas. Eram relativamente frescas durante o dia e insuportáveis durante a noite. Deviam ser limpos regularmente e bem resguardados sob pena de servir de covíl de cobras e outros répteis que abundam nas regiões tropicais. 

A parte de cima do bunker foi aproveitado para servir de celeiro para stock das reservas de alimentaçao (milho miúdo e sacos de arroz com casca ?) da familia.



Foto nº 2

A árvore da Manjanja (ou Mandjandja) em Crioulo, Tabâ(i) em mandinga e fula, foi o local escolhido para a realização da cerimónia. Os homens estão sentados debaixo da árvore e relaxados, esperando a hora da chegada do Almami (Chefe religioso) e o início da cerimónia que se realiza uma vez por ano após o periodo do Ramadâo (jejum de 30 dias consecutivos, das 5h00 as 7h30). 

A organização da mesma está hierarquizada, tendo na frente os homens, depois o grupo das dos rapazes e criançasem,  seguindo-se as mulheres à uma certa distância, As crianças às vezes misturam-se com o grupo das mulheres.



Foto nº 3 

O Almami (à  frente) e o grupo dos seus auxiliares (seguindo atrás),  a caminho do local da realizaçao da cerimónia, passam pelo grupo dos rapazes que estão sentados não atrás mas à frente das mulheres na ordem hierárquica da cerimónia de reza muçulmana que requer silêncio, calma e grande concentração.




Foto nº 4 

Duas mulheres grandes da aldeia em trajes de festa, aproveitam para os habituais cumprimentos e uma breve troca de palavras antes do início da cerimónia.

Foto nº 5 [em baixo, ao centro] :

Mostra a primeira fila do grupo das mulheres sentadas debaixo do sol e algo impacientes, à espera do inicio da cerimónia, aqui o sol fustiga e não há sombra. 

Em primeiro plano, uma mulher sentada numa pele de carneiro. As esteiras de bambu e as peles de carneiro eram largamente utilizadas antes do aparecimento das esteiras feitas de material polietileno.



Foto nº 5


Melhores cumprimentos,

Cherno Baldé


PS - Fizemos uma pequena correcção à legenda das Fotos nº 2 e nº 3: O grupo dos rapazes vem a seguir ao dos homens adultos e não atrás das mulheres...


2. Legendas complementares do Cherno Baldé às fotos deste poste (Ramadão, 2/3)


As legendas estão perfeitas, gostaria de acrescentar alguns elementos sobre as fotos nºs 10/11 e 12.

Nas fotos nº 10/11 podemos ver do lado direito do Almami, no chão, uma pedra e o bastão que ele trazia na mão que têm significado histórico e que evoca a ligação e herança cultural e religiosa dos Hebreus/Judeus. 

A pedra, na sua forma, simboliza o púlpito e no seu conteúdo sacramental invoca o tabernáculo ou Arca da aliança da religião hebraica e que na religião muçulmana é substituída pela mesquita como lugar sagrado. O bastão por sua vez simboliza o mesmo que Moisés recebeu do Deus no Egipto e graças ao qual conduziu o seu povo atravessando o Mar Vermelho para o Sinai.

No fundo o Ramadão é a repetição ritual e simbólica de uma tradição judaica. Logo a seguir a esta cerimónia vão realizar uma recitação de algumas horas, lendo e traduzindo na lingua local a história resumida da história e da tradição da religião desde os primórdios com Abraão até ao legado (Sunna) do Profeta Mohamed, revisitando outros Profetas importantes como o Moisés (Annab Mússa) e Jesus (Annab Issa, na versão islâmica).

Na foto nº 12, o grupo das crianças já se dispersou, pois a eles não interessa a parte litúrgica da recitação que demora algumas horas, hoje é dia de festa e é esse o espírito que os anima. Em casa vão tomar o pequeno almoço e preparar o carneiro que será sacrificado logo que a cerimónia é finda e que vai juntar toda a família.
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