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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7240: José Corceiro na CCAÇ 5 (18): Insubordinação na CCAÇ 5, dia 8 de Novembro de 1969

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 2 de Novembro de 2010:

Caros amigos,
Luís Graça, Carlos Vinhal, E. Magalhães.
Comprometi-me no post P5978, que daria o meu testemunho sobre a rebelião dos Gatos Pretos africanos em Canjadude. Eis-me pois, a descrever o sucedido segundo o meu pulsar, apoiando-me na memória e nos registos que fiz na época.
Publicarão, caso entendam, que tem algum interesse para o blogue; se optarem pela publicação poderia ser o dia 8, data em que se completam 41 anos após o acontecimento.

Um abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (18)

INSUBORDINAÇÃO NA CCAÇ 5, NO DIA 8 DE NOVEMBRO DE 1969

Foto 1 > Um pelotão da CCAÇ 5 no aquartelamento de Cabuca a reforçar a segurança. É o pelotão do Alferes Varela, que quando foi destacado para Bolama, os seus homens que o estimavam choraram. O Varela hoje é advogado em Almada.

Quando fui mobilizado para ir para a Guiné em rendição individual, cheguei a Canjadude à Companhia de africanos CCAÇ 5, no dia 13 de Junho1969, era sexta-feira e dia de Santo António. O Comandante da Companhia era o Capitão Pacífico dos Reis, já com um ano de comissão e tinha-se empenhado em juntar os pelotões da CCAÇ 5 todos em Canjadude, porque andavam dispersos por vários locais. Durante a minha comissão na nesta Unidade, que se dilatou por 25 longos meses, conheci ao todo quatro Comandantes de Companhia.

O Capitão Pacífico dos Reis iniciou a sua formação castrense no Colégio Militar. Durante os quatro meses que foi meu comandante da Companhia, saí muitas vezes para o mato em operações com o Capitão, e devido à particularidade de eu ser de Transmissões, quer na progressão nos trilhos das bolanhas, quer emboscados nas matas, eu ficava sempre muito próximo dele.

Pelo que observei, intui e escutei, durante essa vizinhança, formalizei um juízo que me autoriza a tecer algumas considerações, sobre o militar Capitão Pacífico dos Reis, atendendo àquilo que me foi facultado presenciar. Registei na altura o seguinte: Militar destemido com capacidade de comando, rigoroso no exercício de impor disciplina, mas com a percepção dos limites até onde pode soltar a rédea, e a quem a solta, operacional arrojado, sempre disponível e combativo na linha da frente a comandar os seus homens, não se poupando a esforços para não dar oportunidade a que o inimigo se instale no território marcado… não deixa o crédito por mãos alheias.

Assisti algumas vezes, durante o dia, a actos do Capitão, cujas decisões eram arriscadas, subia no jipe e saía do aquartelamento juntamente com quatro ou cinco militares da Secção dos Dragões, (militares de Comandos africanos que eram guarda-costas do Capitão) embrenhavam-se afoitos na mata, em volta do aquartelamento e regressavam cerca de meia hora depois. No dia 12 de Setembro de 1969, houve coluna a Nova Lamego, e veio um Pelotão para Canjadude para manter segurança ao destacamento, porque havia uma operação a nível de Companhia no dia seguinte. Na coluna rebentou uma mina, na viatura que a encabeçava e na qual ia o Capitão, eu estava como operador de transmissões na viatura a seguir, houve 15 feridos, alguns dos quais com muitíssima gravidade, pedi evacuação por heli para 10 feridos. O Capitão sofreu alguns ferimentos, mas aparentemente nada de grave.

Foto 2 > À saída do aquartelamento, para o lado nascente a 150/200 metros, do arame farpado, tínhamos logo a bolanha alagada, isto não é rio. Corceiro, Pita, Ferra, Matias, Marques e Medeiros.

No dia 13 houve operação de três dias, comandada pelo Capitão Pacífico dos Reis, cujo objectivo era o Siai, eu também fui. Foi uma progressão no terreno muito difícil, devido a termos que caminhar muito tempo em terrenos alagados, algumas vezes com água pela cintura. Emboscámo-nos para passar a noite e devido à proximidade que mantinha com o Capitão, apercebi-me que esteve em padecimento e gemeu muito durante toda a noite, provavelmente devido aos ferimentos e efeitos provocados pela mina do dia anterior.

Ainda o alvorecer se escondia envergonhado e já todos de pé e enlameados, mastigávamos a bucha e bebíamos da lata o leite achocolatado. Era preciso avançar, estava o caminho à nossa frente à espera, senão ficava tarde. Continuámos a progredir por trilhos alagadiços, tendo parado 3 ou 4 vezes devido ao cansaço do pessoal, rumávamos em direcção a Ganguiró onde à chegada nos emboscámos, era já quase meio-dia. Neste local houve necessidade de pedir meia dúzia de evacuações, uma das quais para o Capitão, o pessoal estava todo estoirado.

O Capitão tinha sensibilidade especial para lidar militarmente com a tropa nativa, não ajuízo se era por formação ou por carácter, ou quiçá brio devido à admiração que os nativos nutriam pelo exemplo de operacionalidade e segurança que ele lhes inspirava, que os cativava, e tinha-os disciplinados e controlados, e eles por sua vez retribuíam com estima, respeito e obediência, para com o seu Capitão, no qual muito se apoiavam e o consideravam um valente. Cheguei a assistir a ligeiros desentendimentos entre militares metropolitanos e nativos, e estes ameaçavam logo que iam falar com o Capitão.

Devido ao entrosamento existente entre o Capitão Pacífico dos Reis e os militares nativos, tornava-se difícil a integração e rendição, que não se afigurava pacífica, para o novo Comandante que o viesse substituir no na companhia, a não ser que tivesse um perfil idêntico.

Era uma Companhia que não se podia aquilatar o comportamento dela como se fosse uma força de metropolitanos, havia muitas especificidades que era necessário respeitar minimamente, além dos factores de ordem sociocultural e económico. Grande parte dos cerca de 220 militares africanos da Companhia, estavam próximo dos 30 anos de idade, ou mais, tinham as mulheres e os filhos a viver com eles, eram desarranchados, já tinham 6 ou 7 anos de tropa com guerra e só meia dúzia deles sabiam ler. Era necessária habilidade para compreender e avaliar a complexidade cultural da CCAÇ 5, que era uma amálgama sociável. A diversidade de tradições e costumes dos nativos da Companhia era admirável, pois englobava todas as etnias da Guiné.

Dia 30 de Setembro, chegou a Canjadude o Capitão que substituiu o Pacifico dos Reis, neste mesmo dia chegou também o Furriel José Martins, creio que veio de férias da Metrópole.

Dia 6 de Outubro de 1969, o Capitão José Manuel Marques Pacífico dos Reis (hoje Coronel na reserva) deixou de ser o comandante da CCAÇ 5. Houve coluna a Nova Lamego e todos os pelotões queriam ir para levar o seu Capitão, foram dois pelotões, eu também fui. Na parte da tarde no regresso a Canjadude, durante o percurso, choveu torrencialmente e chegámos ao aquartelamento, todos encharcadinhos.

(Email que recebi da Guiné dia 01-11-2010)

Boa Tarde
Fiquei muito contente por ver a fotografia de meu Capitão Pacifico dos Reis.
Eu estive no 2.º Pelotão de Alferes Gomes

Atentamente
Paulo calos Media

Dia 7 de Outubro, escrevi na minha agenda, como era habitual escrever todos os dias: - “ Tive que me levantar cedo porque estou de serviço, 1.º turno no Posto de Rádio. O dia está fresco e aos poucos chove, mas nada parecido com a aguaçada que apanhamos ontem. Para não alterar o ritmo, o almoço foi salsicha com arroz e o jantar será arroz com salsicha… Estamos a ficar “fodidos” com a alimentação! Já quase um mês que o comer é pouco e de má qualidade. O que me tem safado é o pão, alguma lata de fruta enlatada e os conteúdos das encomendas que os meus pais me têm enviado, aproveitando o acordo existente entre os correios e Movimento Nacional Feminino. Aqui não há nada que eu possa comprar para comer, além das latas da fruta em calda. Espero que este novo Capitão faça alguma coisa de forma a melhorar a alimentação. Por aquilo que me disse o “Tripa” (soldado nativo), os tropas africanos não vão à bola com a cara do novo Capitão… (teceu mais considerações). Está em Canjadude o homem da foto-cine, passou o filme que eu já tinha visto, - In Ginocchio da Te - com o Gianni Morandi.

Foto 3 > Em Canjadude pessoal a partir e acarretar pedra. O Corceiro está sentado em cima duma pedra a descansar, o Silva está com a marra na mão.

Destaques resumidos de alguns acontecimentos, que escrevi nas agendas nos dias subsequentes:

Dia 8, o Capitão obrigou todo o pessoal das praças a trabalhar no destacamento a fazer uma limpeza geral, que a avaliar pelo que é pretendido executar, vamos ter trabalho para mais de dois meses, sem contar com as construções de abrigos que estão em curso, que tem dado muito trabalho ao pessoal. O Capitão começou logo por alterar o horário laboral, suprimindo uma hora na parte da manhã e outra na parte de tarde, ao período do descanso, horas que foram implementadas aos períodos do trabalho. Está um Pelotão em Nova Lamego, todas as noites sai um Pelotão para o mato, o pessoal anda cansado mal alimentado... que mais querem de nós!? Os militares nativos andam revoltados, deitam chispas pelos olhos…
Dia 9, foi o dia de receber o pré.
Dia 10, houve operação para o mato por dois dias, o Capitão não foi, eu estou de serviço no Posto de Rádio. O pessoal que ficou no destacamento, anda tudo a toque de caixa a trabalhar…
Dia 12, houve coluna a Nova Lamego. Regressou o Pelotão que estava ausente. Começa a fazer calor.
Dia 14, operação para o mato dois dias, o Capitão não foi…Tem havido algumas flagelações inimigas aos aquartelamentos aqui das redondezas.
Dia 17, operação com três pelotões durante dois dias, o capitão não foi e os que ficam são obrigados a trabalhar desalmadamente. Era regra quando se regressava das operações do mato, descansar no dia seguinte… essa regra acabou!
Dia 18, veio a DO trazer o correio e vieram dois militares Rádiomontadores, para afinar e reparar equipamento de transmissões.
Dia 23, operação de dois dias, com três pelotões, o capitão não foi. Eu fui nesta operação, que foi muito cansativa, devido ao estado pantanoso em que os terrenos que palmilhámos estão, caminhou-se muito tempo dentro de água, e no dia 24 de manhã, houve necessidade de fazer duas evacuações. Todo o pessoal se queixa que o trabalho está a ser exaustivo, os graduados estão a fazer muita pressão sobre quem trabalha…Dia 27, houve coluna a Nova Lamego, foi uma coluna azarada, no regresso tivemos nove furos nos pneus das viaturas, e o “Tripa” caiu duma viatura em andamento, ficou todo escavacado, o corpo parecia um “Cristo”, mas não perdeu a animosidade e o humor que o caracteriza, dizendo ele: - “Que isto lhe aconteceu num momento agoirado da sua vida, porque Alá fechou os olhos e passou pelas brasas, e não o pôde amparar, na queda.”
Dia 30, saída para o mato com 3 pelotões, por dois dias.
Dia 2 de Novembro, vimos uma grande cobra dentro do abrigo de Transmissões, que não conseguimos apanhar. Durante o dia há muito calor…
Dia 5, saíram dois pelotões para o mato, por três dias. Anda muito calor, os africanos dizem que já passou a época das chuvas.

Na tabanca, os civis e os militares andam interiorizados com as orações do Ramadão, vivem estes momentos de devoção com tanta convicção, que dá para cogitar! Os Islamizados, que creio que são praticamente todos, durante o período do Ramadão, não podem comer nem beber nada durante o dia, desde o alvorecer até ao crepúsculo, não podem fumar, não podem ter relações sexuais nem alimentar maus pensamentos ou desejos, assim como não devem alimentar maus sentimentos (ira, revolta, vingança, traição), enquanto durar o Ramadão, intervalo de tempo entre duas fases lunares de lua nova…

Foto 4 > Militares e civis, na tabanca de Canjadude, a orar segundo as suas devoções, durante o Ramadão.

Foto 5 > Corceiro, vestido à civil na tabanca de Canjadude, durante o Ramadão, no meio de alguns civis.

Resumo condensado do que escrevi, no dia 6 de Novembro de 1969:
"Anda tudo cansado com o trabalho no destacamento e há muita pressão dos superiores, as idas para o mato a caminhar em bolhanhas alagadas são uma constante, saídas nocturnas consecutivas, falta tempo para dormir e descansar, a alimentação é péssima, os africanos estão no seu tempo de reflexão e oração, andam muito inactivos e apáticos, por um lado, mas por outro estão agressivos, contrariando o ciclo da tolerância e meditação que impõe o Ramadão, a somar há ainda a instabilidade devido à tensão sexual contida. O Capitão hoje deu duas bofetadas ao Luís Có, (nativo) humilhou-o perante os camaradas, já fora do horário de trabalho, e pelos vistos já não é a primeira vez que bate em africanos….”

Dia 7, (para dia 8) durante a noite, o Capitão foi fazer uma ronda surpresa, visitando todos os postos de vigia, segundo consta apanhou um militar num posto da tabanca a dormir. O Capitão chamou o furriel (Sargento de Dia) e disse-lhe que ia participar dele, porque não sabia controlar os homens que tinha sobre a sua responsabilidade. Passado uma hora ou duas, sem que ninguém previsse, o Capitão voltou a fazer nova ronda, apanhou novamente num posto da tabanca um sentinela a dormir, o Capitão pegou na G3 do sentinela e levou-a consigo.

Dia 8, Sábado, logo de manhã, o Mascarenhas (nativo) foi ter com o Capitão e pediu para lhe devolver a sua G3. O Capitão deu-lhe à vista dos presentes dois murros que o deitou ao chão.

Foto 6 > Corceiro, sentado na pedra à saída do posto de rádio, como era seu hábito.

Ao meio da tarde, eu estava de serviço no Posto de Rádio, sentado no exterior na pedra que nos serve de assento. Nisto, vejo vir todos os militares nativos fardados e equipados com todo o armamento, e em silêncio, formam alinhados na parada, cerca de 220 militares. Três deles, encabeçados pelo João dos Comandos (nativo), destacam-se e vão falar com o Capitão, que lhes deu pouca atenção, virou-lhes as costas e dirigiu-se para o abrigo, o grupo dos três vêm comunicar algo à formatura, no dialecto deles que eu não percebi, retiram-se novamente, dirigem-se agora, ao abrigo do Capitão, onde estiveram uns minutos, saíram e encaminham-se para a parada, comunicam algo ao pessoal da formatura, de imediato e apressados arrancam todos em direcção a Nova Lamego, armados até aos dentes, com bazucas, morteiros, todo o armamento da CCAÇ 5. A percepção que me atormentou, é que ninguém está a dar a devida importância ao caso, invadindo-me a sensação que não há consciencialização do confronto que está em curso, não vejo ninguém a preocupar-se, e voluteia a fantasia que isto é um problema de africanos, e eles que se desembaraçassem, tudo se refugia nos abrigos a enterrar a cabeça na areia, mais parece que tudo pensa - que a pimenta no cu dos outros é refresco quando o cu que está a arder é o nosso… Fico com a percepção que ninguém acreditou que ousassem tomar esta atitude…

Foto 7 > João, (dos Dragões) está sentado no meio das duas cadeiras. Foto tirada em cima do abrigo dos graduados.

Foto 8 > Alferes Sousa e Furriel José Martins, no campo de futebol de Canjadude. Atrás, do lado direito, o Furriel Gonçalves que era o Sargento de Dia a 7 de Novembro.

Foto 9 > Sargento Enfer. Cipriano

O Furriel José Martins, não sei se saiu da secretaria ou não, tropeçou com o grupo dos sublevados, quando começaram a abandonar a parada, e ao dar-se conta do acontecimento, talvez para os demover dos intentos, ou talvez até nem acreditasse que os revoltosos levassem a acção em frente, e naturalmente bem intencionado porque efectivamente até poderia acontecer uma tragédia, disse-lhes: - Saiam para fora do arame farpado e metam-se na picada, que vem algum bombardeiro e vos manda alguma bojarda. Mas os insurrectos não ligaram, nem olharam para trás, e rumaram acelerados para a picada em direcção a Nova Lamego, onde desapareceram…

O Furriel Carvalho viu os militares desaparecerem, na saída de Canjadude para Nova Lamego e foi para o abrigo dar conhecimento ao Alferes do seu pelotão, Alferes Sousa, que por acaso era o 2.º Comandante da Companhia, porque o Alferes Gomes estava de férias. O Alferes Sousa foi ao abrigo do Capitão. Posteriormente mandaram chamar o Sargento Enfer. Cipriano (nativo), cujas relações já não eram muito sadias com o Capitão, o Sargento Enfermeiro até deixou de dormir no quartel e foi dormir para a tabanca. O Capitão, o Alferes Sousa, o Sargento Cipriano e mais dois ou três Furriéis, saíram do aquartelamento no encalço dos revoltosos, numa viatura…

A nossa atitude, éramos meia dúzia de gatos-pingados no aquartelamento, foi tentar vigiar os civis da tabanca, para não deixar sair ninguém a levar informação ao IN sobre o acontecimento, caso não tivesse saído já, o fim da tarde aproximava-se veloz e começamos a organizarmo-nos para ir para os postos de vigia.

A viatura com o Capitão e os militares que o acompanhavam interceptaram o grupo dos militares revoltosos, já a mais de 1,5km de distância de Canjadude. No sucesso do diálogo entabulado, foram de capital importância, para os convencer a retroceder, as boas influências do Sargento Enfermeiro Cipriano (nativo), que algumas vozes diziam, que terão sido as suas manobras instigadoras que levaram os militares a originar a rebelião. Não foi de menos importância, a acção persuasiva do Alferes Sousa, junto do seu Grupo de Combate, mas que se viu forçado a arriar as calças, e a comprometer-se solenemente perante todos os rebeldes, garantindo-lhes que ia desencadear um processo, para que o General Spínola viesse a Canjadude falar com eles, caso desistissem da intentona de ir para Nova Lamego. A presença do Capitão foi pouco ou nada interventiva, limitou-se a ouvir.

Por mero acaso, quando o pessoal já estava de regresso ao aquartelamento, foram sobrevoados a baixa altitude por dois bombardeiros T6, exercício que acontecia frequentemente, devido às visitas regulares que os T6 faziam à zona de Madina do Boé, passando sempre a baixa altitude por Canjadude.

Os militares regressaram a Canjadude com semblante triunfalista…

Foto 10 > Em Canjadude, sentados no assento da viatura. Na linha da frente, com toalha ao pescoço: 1.ºs cabos Saldanha (Cabo Verde), Camilo; atrás do lado direito: 1.ºs cabos Martins, Jorge (nativo), Leitão, os dois nativos do lado esquerdo não me ocorre o nome.

Foto 11 > À direita o Barbosa, o outro militar não me ocorre o nome.

Ao chegarem ao Aquartelamento foram pedir justificações ao Furriel José Martins, para esclarecer qual a razão porque tinha chamado os T6, pedido que nem o Furriel Martins nem ninguém fez.

Os 1.ºs cabos Barbosa e Saldanha (nativos, o último era cabo-verdiano), que foram elementos preponderantes e dinâmicos na organização da insurreição, vieram perguntar-me se eu tinha mandado alguma mensagem via rádio, a pedir a intervenção dos T6. Eu respondi que não, o que efectivamente era a verdade. Sensibilidade pessoal: para mim, o 1.º Cabo Saldanha, era entre os militares nativos de Canjadude, o mais educado, correcto, respeitador e instruído, do qual eu era amigo e continuei a ser.

O Alferes Sousa não pode cumprir a promessa, já tinha havido com ele há tempos, quando desempenhava as funções de Comandante da Companhia, um episódio “irrelevante” mas divertido, que ficou conhecido como “o very-light”. Embora fosse, e é, o Sousa uma excelente pessoa, teve algumas dificuldades a partir daqui com os militares africanos, aos quais teve dificuldades em segurar o pulso até ao fim da sua comissão.

Foto 12 > Dois milícias, com os livros da instrução primária, 2.ª classe, na mão.

Foto 13 > Picada para Nova Lamego, à saída do arame farpado de Canjadude.

Os militares africanos ganharam muita força, houve dias agitados…

O Capitão tinha comandado a polícia em Coimbra, quando da crise universitária de 1969.

Para lavrar o auto da insubordinação, veio de Bissau num DO, um Major e um Furriel, no dia 17 de Novembro. Muitos de nós fomos inquiridos. O Major e o Furriel deixaram Canjadude o dia 24.

O Capitão deixou Canjadude, o dia 28 de Março de 1970, foi colocado em Bissau, foi promovido a Major e ficou a desempenhar na Guiné, as funções de responsável pela educação (ensino). Para substituir o Capitão, veio comandar temporariamente a Companhia, o Capitão que comandava a CCS do Batalhão de Nova Lamego, porque ainda não tinha vindo substituto da metrópole.

Boa saúde e um abraço para todos.
José Corceiro
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7181: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (11): Lisboa a viver num apartamento com mais três estudantes (José Corceiro)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7063: José Corceiro na CCAÇ 5 (17): Coincidências no dia 3 de Agosto de 1970

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7181: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (13): Lisboa a viver num apartamento com mais três estudantes (José Corceiro)

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 24 de Outubro de 2010:

Caros amigos, Luís Graça, Carlos Vinhal, E. Magalhães.
Envio este testemunho, onde exponho como eu senti o 25 de Abril na época, antecedentes e algumas consequências, que publicarão caso entendam que tem algum interesse para o blogue.

Um abraço
José Corceiro


NO 25 DE ABRIL EU ESTAVA EM...

Os anos sessenta foram fabulosos em acontecimentos musicais, e testemunharam uma criatividade ímpar, que fez florir uma grande multiplicidade de inovações nos géneros musicais e nos ímpetos comportamentais dos jovens. São dignos de destaque os talentosos artistas ingleses, no campo da música, tais como os Beatles, os Rollings Stones, os The Who, o Cliff Richard e muitos outros ídolos americanos, que se sobrepuseram com o seu estilo cultural original, a cuja corrente a irreverente juventude aderiu voluntariosa, obrigando as comunidades a romper com muitas tradições sociais, que estavam arreigadas nos comportamentos dos povos há séculos. Muitos conceitos que se pensavam bem alicerçados, desabaram, e outros se inovaram, no campo da política, comportamento, moda, sexo, religião, etc. Foi a adesão em massa por parte da juventude, sempre ansiosa por novas experiências, que ao aderir a esta original onda do estilo de vida destes ídolos, que em parte contribuíram para o aparecimento nos anos de 1966/67, das manifestações dos movimentos Hippies, com a sua doutrina filosófica contra cultura, manifestando a sua rebeldia no campo das ideias, no modo de vestir, nos comportamentos contestários, questões ambientais, emancipação sexual, vida comunitária, discordância dos valores tradicionais face a tudo o que os cercava. Os adeptos do movimento Hippie, filosofavam e procuravam uma nova identidade, purificada e liberta de tudo o que consideravam impuro e nefasto no seio da sociedade reinante. Algumas das ideias dos Hippies rasgaram com as concepções há muito instituídas, deixando campo vazio aos novos conceitos por eles propagandeados, que se foram dispersando na sociedade, acabando por ser absorvidos. Os Hippies, adoptaram como seu, o símbolo da paz, e o lema que apregoavam bem alto, era: Paz e Amor.

Em Portugal os anos 60 foram tempos agitados, tempos problemáticos e difíceis, para o regime Salazarista e para o povo português.

O nosso País não tinha tradição de música Pop & Rock, este género musical foi uma onda importada da cultura dos países anglo-americano, no princípio da década de sessenta, acabando por nascerem assim, as primeiras correntes de rock no nosso país.

Quando começaram a surgir as primeiras bandas musicais, influenciadas pelos artistas do rock americano, os grupos portugueses não tinham raízes nem tradição de música contestaria, e não enveredaram pela atitude do inconformismo, mas antes porém, optaram pelo facilitismo da via da ingenuidade e simplicidade do género musical “Yé-Yé”, que o mesmo é dizer, tudo gente bem comportada que não quer provocar sarilhos, mas sim assegurar uma vida calma e tranquila.

O regime fascista controla a governação do País, onde se instalou há mais de 30 anos. Com raras excepções a juventude portuguesa não se envolve em questões de política, nem lhe são dadas oportunidades para tal, já que a macabra polícia ”Pide” tem tudo minado e controla os passos de meio mundo, servindo-se da rede tentacular dos seus impúdicos informadores, que estão infiltrados em tudo o que é repartição pública, devassando a vida de quem lhes aprouver, não permitindo que algum cidadão, mais atrevido, ponha o pé em ramo viçoso.

O povo politicamente é amorfo, o balão do descontentamento, devido à repressão do regime, está prestes a rebentar, as injustiças contra o cidadão comum agravam-se a cada dia que passa, o ódio sufocado do povo contra o regime, já é difícil de ocultar, o desejo para vingar as atrocidades cometidas pelo poder, ameaça explodir a qualquer momento.

Rebentam as primeiras contestações de vulto, levadas a cabo por algumas personalidades bem integradas no regime salazarista. É o caso da candidatura do General Humberto Delgado, em 1958… - obviamente, demito-o… - palavras de Humberto Delgado, a referir-se a Salazar. O assalto e o desvio, do paquete Santa Maria, foi em 22 de Janeiro 1961, a responsabilidade deste acto é também assumida pelo General “Sem Medo”. O massacre do porto de Pidjiguiti, na Guiné, foi em 3 de Agosto de 1959.

O assalto da prisão, em Luanda, foi em 4 de Fevereiro de 1961, esta acção dá mais um rombo e um abanão na estrutura do poder, inicia-se o alvorecer e despertar das consciências dum povo adormecido, que amanhece, acorda e abre os olhos para outras realidades, e com outros sentimentos, começando por condenar a resposta de retaliação do assalto à prisão, dada pelas autoridades portuguesas, que arrasaram aldeias inteiras com bombardeamentos, massacrando inocentes indefesos.

A Índia invade, Goa, Damão e Diu, em 18 de Dezembro 1961, que nós dizíamos serem nossas possessões há séculos; estoira a guerrilha em Angola, no ano de 1961; a rebelião do assalto ao Quartel de Beja, foi em 1 de Janeiro de 1962; aparece a Frelimo em Moçambique, em 1962; começa a luta na Guiné com o ataque ao quartel de Tite “que foi a primeira acção armada do P.A.I.G.C”, em 23 de Janeiro de 1963. Portugal, do dia para a noite, vê-se obrigado a um enorme esforço suplementar, com o envio de contingentes militares, para combater em três frentes distintas.

A juventude estudantil portuguesa inquieta-se e acorda, começa a desperta e a politizar-se, ganhando consciência de luta contestando o regime vigente, eclode a crise universitária de 1962.

Crise Universitária, de 1962 (http://www.manuelgrilo.com/rui/artigos/crise.html)

O envio de tropas para o ultramar começa a ser em massa, e todos temem que a sorte lhes vá bater à porta num futuro muito próximo, caso se continue com a mesma política, que está a absorver as sinergias de toda a juventude dum País, ao ser mobilizada para os Teatros Operacionais de Guerra das colónias e é inevitável que terão que se confrontar, empunhando armas, frente a frente com os nossos irmãos, alguns dos quais são amigos e seguem o mesmo percurso universitário. (O eloquente Poste 3543 – encontro de Dois Amigos no TO, frente a frente os “Inimigos”- Mário Dias e Domingos Ramos patentearam um leal exemplo de amizade e generosa sensatez, ditosos intervenientes, apanágio que só contempla Homens com grande dignidade e honradez, porque só estes são bafejados com esta sabedoria. Para mim um marco Importantíssimo no Blogue, um comportamento a raiar o mitológico, coincidências da vida. Parabéns para os dotados com este discernimento). A maioria dos jovens não compreende o que é que está em causa no conflito, duvidando se vão defender a soberania da Pátria ou os interesses de alguns colonialistas. As instâncias internacionais estão todas contra as nossas pretensões, deixando-nos isolados e orgulhosamente sós. Estamos envolvidos em três frentes de combate, numa guerra de guerrilha que poucos são os que sentem estímulo para a alimentar, nem há simpatia pela doutrina que a apoia, duvidando-se se efectivamente estamos a contribuir para o interesse do país, ou a desbaratar a sua economia. Falta motivação combativa.

A somar a este desinteresse, as forças mobilizadas quando chegam ao destino, vão encontrar instalações com péssimas condições de alojamento, algumas são degradantes, a aclimatização é dificílima, a alimentação é de má qualidade e pobre. Eu, na Guiné, tive um períodos que durou mais de dois meses, em que a alimentação foi diariamente arroz, algum misturado com caganitas de rato, atum e salsichas, duvidando-se do estado de conservação de cada um destes géneros alimentícios, se eram próprios para consumo, porque o odor era nauseabundo, mas nada mais havia para comer (e éramos só cerca de 40 arranchados). Honra seja feita, ao Sr. Capitão Costeira, na altura Comandante da CCAÇ 5, homem sensível, e dotado de excepcional carácter e compreensão humana, que a determinada altura, crendo que esta injustiça estava a ultrapassar o limite do razoável, deslocou-se a Bissau, onde comprou vários alimentos, fretou uma avioneta, creio que civil, para os transportar para Canjadude, onde foi logo confeccionada uma ceia condigna, (jantar) que comemos sôfregos, confraternizando todos reunidos, sentados à volta da mesma mesa.

É notório que se está a atingir o auge do limite das capacidades do Estado, era incomportável exigir tanto sacrifício à nobre juventude dum País, tão pequeno e com tão limitados recursos económicos, forçado por interesses de alguns monopólios, que não souberam nem quiseram aproveitar e criar condições oportunas e atempadas, para solucionar o problema, arrastando-nos agora para uma guerra fratricida em três frentes, guerra que já dura há mais duma década, sem perspectiva de paz à vista, estando a ceifar milhares de vidas e a deixar outras tantas com deficiências físicas, dum lado e do outro, não poupando a vida a inocentes, a agravar, ainda ocasiona traumas psíquicos, supliciando os que assistem aos horrores da guerra, traumas que só a morte lhos vai apagar. A guerra é sempre uma catástrofe… que provoca horrores e excessos de parte a parte… uma imbecilidade… Não se vislumbra no horizonte fim à vista para esta contenda.

O País continua cada vez mais só. O regime está tão obcecado com a linha da sua política que se convenceu (ou quer convencer) que só ele é o detentor de virtudes e da verdade, despreza toda e qualquer proposta no sentido de encontrar uma via diplomática alternativa, para solucionar o caso e pôr fim à guerra, alheando-se de todos os contra-argumentos que lhe sejam desfavoráveis, preferindo antes enterrar a cabeça na areia, para não ver, não ouvir, nem dar diálogo a vozes conscienciosas e sensatas, que exprimem outras opiniões… Progressivamente vai-se avolumando e generalizando a contestação ao regime vigente, e surgem resistências à mobilização dos militares para o ultramar.

Já antes da década de sessenta, surgiram algumas vozes de intervenção (protesto) no campo da música e da poesia, que com palavras dissimuladas contestam o regime. O José Afonso é a figura emblemática da canção de intervenção em Portugal, figura proeminente no combate contra a opressão do regime, através da canção. Dizia o Zeca Afonso sem pretensões algumas: - Semeio palavras na música. Assim, através das suas palavras disseminadas através das baladas, umas vezes com letras mais veladas, outras, mais explícitas, contesta o regime. Eu tenho algumas músicas do José Afonso, que algumas vezes ouvia com amigos mas com muito recato e quase em silêncio, havia receio (isto em 66 ou 67).

Vampiros: ( http://www.youtube.com/watch?v=ZUEeBhhuUos&feature=related)

Dentro da música de intervenção, há outros nomes que merecem ser lembrados, é o caso: José Mário Branco, Janita Salomé, Fausto, Sérgio Godinho, Vitorino, Manuel Freire (Pedra Filosofal), etc. que tiveram um percurso de vida, utilizando a canção de intervenção, para se manifestarem contra o antigo regime, o que os molestou, tendo alguns sido perseguidos acabando por se exilarem.

Pedra Filosofal: (http://www.youtube.com/watch?v=2DA-mzhk0s4)

FOTO 1 - Coimbra, 17 de Abril de 1969, o desfile militar, povo, estudantes e cartazes!

FOTO 2 - Coimbra, 14 de Junho de 1969, estudantes na R. Ferreira Borges, operação balão.

FOTO 3 - Coimbra, 22 de Junho de 1969, Final da Taça de Portugal. Comunicados caem sobre os espectadores

Por sua vez o regime também aproveitou a imagem e a popularidade dos artistas da época, (conveniência ou ingenuidade destes) ao promover espectáculos com os cantores mais conotados com a ideologia política do poder, espectáculos esses que serviam para serenar o cidadão, e ao utilizar os meios de comunicação divulgava-se a mensagem enganosa, que havia união entre o poder e o povo, ao qual o regime servia e administrando com rigor e controlo o erário público. Um embuste. Também eram enviados artistas em digressão pelas Províncias Ultramarinas onde eram fomentados espectáculos para impressionar e confundir a opinião pública, ao passar a mensagem que a guerra era obra de grupelhos conflituosos, que não intimidavam nada nem ninguém, visto que até os nossos artistas se deslocam livremente em segurança, a locais que difamadores dizem ser perigosos. A actuação dos artistas era a prova de que há paz e tranquilidade e não guerra! Era o continuar das “Conversas em Família” e o renovar o velho discurso do ditador dos anos trinta: - «Às almas laceradas pela dúvida e pelo negativismo, nós procuramos restituir o conforto (com bastonadas e prisão) das grandes certezas. Nós não discutimos Deus e a sua virtude, não discutimos a Pátria e a sua História, não discutimos a Família e a sua moral, não discutimos a Glória do trabalhador e a sua obrigação. Assim foram construídas as pilastras do edifício.»

Paralelamente a estes acontecimentos, começa a germinar uma juventude mais esclarecida e mais politizada, que se organiza contestando o regime e as suas instituições, e rebenta a Crise Académica na Universidade de Coimbra, nos meses de Abril, Maio e Junho, de 1969.

Crise Universidade de Coimbra: (http://www.youtube.com/watch?v=FV5cFbvK5p8&feature=related)

Crise Universidade de Coimbra: (http://www.youtube.com/watch?v=IqC6H0Ry17c)

Crise Universidade de Coimbra: (http://videos.sapo.pt/vFw8pzw6tGnH7JYATOlz)

Fotos: (http://caminhosdamemoria.wordpress.com/2009/06/02/crise-academica-coimbra-1969/)

Enquanto a guerra no ultramar ceifava a vida a militares e a inocentes dos dois lados, a polícia continuava a dar bastonadas nos contestários, e estes por sua vez aperfeiçoavam os seus métodos de reposta. Os embarques em massa para a guerra continuam, por vezes utilizando transportes marítimos cujas condições e instalações são humilhantes e degradantes para o homem, como me aconteceu a mim quando fui para a Guiné no Niassa, em 24 de Maio de 1969, mais parecendo que carregavam massa humana já destinada a carne de canhão. Estas condições eram aceites por muitos jovens, todos praças, por imposição e servilismo, mas com revolta contida, pois não tinham outras condições, sócio-económicas que lhes permitissem alternativa.

Progressivamente alguma juventude começa a adquirir consciência política, e concluí que a guerra é incomportável e de finalidade duvidosa, e decidem-se por abandonar o País a assalto, mancebos com 17, 18, 19 e 20 anos, fogem da tropa (nem sempre por medo). Vão para França e outros países Europeus, onde alguns já tinham familiares ou amigos, que lhe serviam de orientação e sustento nos primeiros tempos. Da minha terra foram muitas dezenas que tomaram esta atitude, assim como em toda a zona fronteiriça do País, como é a minha aldeia. Eu próprio cheguei a dar guarida, numa casa dos meus pais, durante uma semana, a 5 jovens naturais do Porto que estavam por ali de passagem, e que na hora de nos despedirmos me confidenciaram que estavam de abalada para o estrangeiro, para fugir à tropa, isto no Verão de 1967. Havia também os que desertavam quando estavam já a cumprir o serviço militar, ou já depois de estarem mobilizados com embarque agendado para o Ultramar, na minha aldeia houve casos destes. Estas deserções aconteciam com mais frequência em jovens militares oriundos de famílias da média burguesia, que tinham recursos monetários que fizessem face ao sustento no estrangeiro, até arranjarem emprego ou poderem continuar a estudar, tirando cursos superiores, como alguns da minha aldeia fizeram. Particularizando, tenho um caso na minha família, dum tio meu, da minha idade, que com 18 anos, para se livrar do serviço militar partiu para França, onde estava bem integrado e optou em 1968 por vir voluntariamente a cumprir a tropa. Logo em 1968 foi mobilizado para Angola, onde tombou em combate no dia 04 de Fevereiro de 1969. Já eu estava na Guiné quando se realizou o funeral do meu tio.

Era insustentável para um país com os recursos que Portugal tinha, sustentar uma guerra desgastante do género desta, com três frentes, onde não havia uma razão mobilizadora, nem uma causa justa que aglutinasse os seus efectivos em torno dum ideal, que motivasse os seus combatentes à luta. Faltava o ideal e a causa era injusta, estávamos condenados. Estávamos envolvidos neste conflito há mais duma década, não havia fim político ou militar à vista… estava já tudo saturado e cansado.

FOTO 4 - Corceiro, em Lisboa, ao fim da tarde, no dia 24 de Abril de 1974, o edifício em plano de fundo é o Palácio da Justiça.

FOTO 5 - Dia 25 de Abril de 1974, em Lisboa, Corceiro com garrafa na mão na casa onde vivia mais três amigos a festejar a Revolução dos Cravos. Não tinha whisky nem champanhe, abri uma garrafa de conhaque, Pedro Domecq. Quem não se aguentou nas canelas foi o meu amigo Freitas que já não se tinha na vertical e está na cama na horizontal. Pode ler-se num papel na parede – Comemoração de 25-04-1974

Em 25 de Abril de 1974, eu vivia em Lisboa num apartamento na R. Viriato, (paralela à R. Fontes Pereira de Melo) com mais três estudantes. De madrugada, às 04:30h, tocou o telefone insistentemente, atendeu-se e era a irmã do meu amigo Freitas, que hoje deve ser médico. A irmã do Freitas trabalhava como jornalista num órgão de comunicação social, e telefonou a alertar o irmão que tinha havido uma revolução militar e a preveni-lo para não sair de casa. O Freitas ainda não tinha cumprido a tropa. Ainda não eram 5 horas, já o Corceiro, o Freitas e outro amigo, estávamos junto ao Marques de Pombal, pois do apartamento até lá eram dois minutos a caminhar. Acompanhamos durante todo o dia, na via pública, as movimentações militares, sem mais voltarmos a casa, quisemos assistir ao evoluir da Revolução dos Cravos. Palmilhámos a Avenida da Liberdade, Restauradores, Rossio, na Rua do Carmo e na R. Nova do Almada, assistimos a pilhagens em duas ou três casas comerciais, fomos para a Praça do Comércio e a culminar, ao fim da tarde, assistimos aos acontecimentos do render no Largo do Carmo.

Recordo deste dia a força aglutinadora e a impulsividade manifestada pelo povo, no apoio aos militares com os quais se misturava e queria proteger, no Rossio foi o apogeu, as floristas a abraçarem e a colocarem espontaneamente cravos nos canos das G3 dos militares, que transportavam uma arma na mão, mas guardavam dentro do peito um coração que palpitava e esvoaçava qual pomba branca a anunciar a paz, foi dum simbolismo de ensoberbecer; o povo anónimo dava as mãos e enlaçava-se, dando abraços a irmãos desconhecidos, era o comungar e saudar o novo porvir de esperança e paz, erguendo em uníssono o ramo de oliveira, simbolizando um pacto de concórdia; era uma alegria esfuziante, que só os momentos de glória dum egrégio e pacífico povo, com notável história, sabem enobrecer…

O 25 de Abril foi aquilo que todos sabemos que é! Poderia ter sido melhor? - Podia… Poderia ter sido pior? - Podia… Mas era muito urgente a mudança… É de louvar os homens que tiveram os ideais de Abril. O País estava a ficar incomportável, não havia viabilidade para o status quo

FOTO 6 - Dia 28 de Abril de 1974, ao fim da tarde, na R. Fontes Pereira de Melo, antes de chegar às Picoas. Começou espontaneamente o pessoal a aglomerar-se, já depois da Rotunda, e enquanto o diabo esfregou o olho, estruturou-se uma manifestação, com muitos militares da força aérea, como se pode ver nas linhas da frente com farda azul e boina verde. As palavras de ordem – Nem mais um soldado para o ultramar…

FOTO 7 - Dia 30 de Abril, de 1974, na parte da tarde na Ave. da Liberdade, antes de chegar à Rotunda, veja-se a destreza e o à vontade, dum pai ou avô, a passear a criança. O Sr. que está no meio do trânsito, está a distribuir panfletos para a convocação do 1º de Maio.

O 25 de Abril foi obra feita por seres humanos, com as suas virtudes e defeitos, portadores duma carga genética com as suas dominâncias, detentores das suas experiências de vida, e até limitados por contingências diversas: ideologias políticas, interesses pessoais, valores humanos, houve muitas determinantes que condicionaram o bom evoluir dos acontecimentos, e até, talvez, os seus ideólogos e operacionais não esperassem que fosse este o evoluir do rumo revolucionário que sonharam e queriam dinamizar, e que o seu querer tenha sido ultrapassado pelo progredir!?

FOTO 8 - Dia 1º de Maio, 1974, tirei esta foto ao princípio da tarde, na Alameda. Posicionei-me junto da Fonte Luminosa.

FOTO 9 - Dia 1º de Maio, de 1974, tirei esta foto ao meio da tarde, na Alameda, podem ver-se muitos militares da Marinha. Estava posicionado, para fotografar, no lado do Técnico. Veja-se o mar de gente.

Seguiram-se dias de salutar entusiasmo sibilante, aos quais tive a fortuna de assistir, que culminaram com a realização da festa do 1.º de Maio de 1974, na Alameda, nunca mais houve outra igual. Tive o privilégio de presenciar nos dias a seguir ao 25 de Abril, à progénie de manifestações espontâneas, em que o povo circundante aderia apaixonadamente à torrente da multidão, onde era regra invariável e obrigatória serem sempre gritadas, bem alto, as mesmas palavras de ordem: - Nem mais um soldado para o ultramar… Regressem do ultramar os soldados já… Para o ultramar nem mais um militar… Não à guerra no ultramar…

Estava sempre presente o Ultramar, nas preocupações do Povo.

FOTO 10 - Agosto 2010, Corceiro na Madeira, junto à cascata Véu da Noiva, na costa Norte.

A descolonização das ex-colónias foi mal negociada, foi um autêntico desastre, não se garantiram a segurança e direitos aos residentes e o que aconteceu após a entrega foi uma indignidade para o povo português e para os movimentos de libertação, que não se entendiam porque lhes faltava coesão Nacional, no caso da Guiné eram muitas as tribos (interferências e interesses em jogo etc., etc.)… O êxodo de milhares e milhares de retornados…?! Questiono-me, se perante o momento conturbado que atravessava o País, se seria possível fazer melhor descolonização? A culpa do que aconteceu, terá sido de quem negociou, ou de quem não soube atempadamente ir preparando os nativos das colónias para a autodeterminação, deviam ter acordado mais cedo, dando um rumo diferente à política ultramarina…?! Já havia muitos exemplos de descolonizações! Sabemos a aceleração com que foi feita a saída das nossas tropas, deixando ao Deus dará o destino das Novas Nações, que seguiram um rumo desastroso que descambou num caos, que foi aproveitado para vinganças vis, que provocaram o derrame de muito sangue, mas nunca saberemos o que aconteceria se fosse feita doutra maneira! Após o 25 de Abril, era dificílimo a Portugal manter-se nas ex-colónias, o desinteresse era geral, e aos Novos Países faltava-lhes formação governativa. Era complicadíssimo continuar a enviar tropas em massa e desmotivadas para o ultramar! E o que poderia acontecer? Quem estava na disposição de continuar a ir? Quem dos que estavam no ultramar não estavam desejosos e impacientes para regressar ontem? Como reagiriam os movimentos de libertação? Quem estava disponível para permanecer lá, ou ir policiar? Há muitas interrogações e dúvidas… mas são sempre os imbróglios provocados pelos horrores da guerra que conduzem a estes embaraços, a guerra é perpetuamente uma destruição do espírito humano, mas infelizmente tem muitos apologistas que por ela nutrem paixão, e que astutamente conseguem argumentar e convencer os incautos, das reais “virtudes e necessidades” que a guerra comporta… a culpa nunca querer morrer solteira. A Portugal faltou um estadista para orientar os destinos da Nação, já tínhamos muitas fontes onde nos podíamos rever e inspirar, para poder dar um rumo diferente com mais dignidade e mais ordem à descolonização…

Um abraço e boa saúde para todos.
José Corceiro

PS – As fotos 1, 2 e 3, assim como os endereços dos links foram retirados do Youtube
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 1 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7063: José Corceiro na CCAÇ 5 (17): Coincidências no dia 3 de Agosto de 1970

Vd. último poste da série de 26 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6251: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (10): Canfuja, sector de Piche, com o Jamanca e a CCAÇ 21, no rasto do PAIGC (Amadú Djaló, Alf Comando Graduado)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7063: José Corceiro na CCAÇ 5 (17): Coincidências no dia 3 de Agosto de 1970

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos , Canjadude, 1969/71), com data de 28 de Setembro de 2010:

Caros amigos, Luís Graça, Carlos Vinhal, E. Magalhães.

Tinha este artigo já redigido de forma a poder ser editado, no dia 3 de Agosto de 2010. O objectivo, com a provável edição, era prestar uma singela homenagem aos camaradas envolvidos nos acontecimentos aqui narrados, e concomitantemente recordar a data em que fez 40 anos que ocorreram esses factos. Quero particularizar, que foi o dia 3 de Agosto de 1970, o dia mais trágico que eu vivi no Teatro Operacional de Guerra na Guiné.

Não enviei o artigo para edição, porque não consegui, atempadamente, encontrar no meu espólio da Guiné, uma única foto do Furriel João Purrinhas Martins Cecílio, um dos infortunados homens que infelizmente perdeu a vida no rebentamento da mina anti-carro que deflagrou nesse dia. Visto já ter ultrapassado essa contrariedade, aqui estou eu a endereçar o artigo para publicação, caso entendam que merece.

Um abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (17)

COINCIDÊNCIAS NO DIA 03 DE AGOSTO DE 1970

São coincidências… ou é o preço a pagar pelo privilégio de se pertencer ao Reino dos Seres Vivos!? É a Vida… e nada acontece fortuitamente, provavelmente muitos o afirmarão! Outros, não sei se mais convincentes ou não, atribuirão o ocorrido ao destino que está marcado, à sina que está escrita, ao acaso, ao inevitável, ou por se estar à hora certa no lugar errado! Pese ainda, que alguns mais assertivos defenderão que é a lei natural da Vida! E dirão: Que tudo se destrói, tudo perece, tudo passa, tudo se transforma, nada se perde!

A Natureza é dinâmica!
A seu tempo todos temos a nossa hora…
O tempo não pára e diz tudo à posteridade! O Tempo dura sempre…!

Há acontecimentos marcantes, muito especiais no quotidiano da Vida de cada um de nós, que em determinados momentos nos levam a cogitar e questionarmo-nos, se realmente na nossa vida nada acontece aleatoriamente? Será que por vezes o ser humano comete o erro de tentar tirar da cabeça aquilo que lhe não sai livremente do coração? Para o ser humano atento, comum mortal, é intuitivo que fé e demonstrações matemáticas são matérias inconciliáveis..! Acreditar nos fenómenos que são possíveis e susceptíveis de análise, é objecto de estudo da Filosofia.

Foto 1 > A alegria esfusiante, do Fur Gonçalves a vibrar com o seu violão improvisado. Da esquerda para a direita a seguir ao Gonçalves: Furs. Adelino, Gil, Laminhas, Borges e Rito.

Foto 2 > A tentar gravar em suporte magnético, melodias do Cancioneiro de Canjadude. A expressão eufórica e incontida, do Alf. Sousa, a braços com a sua inseparável viola. (Ainda hoje, não só em terras Algarvias, onde reside, mas por todo o País e estrangeiro, continua ligado á arte da música e a dar espectáculos). A seguir ao Alf. Sousa, o Cap. Arnaldo Costeira (hoje Coronel na reserva) a entregar uma garrafa ao sempre discreto Fur. Perestrelo, a seguir Alf. Varela e no canto direito sentado o Fur. Vieira da Silva.

Estamos no Aquartelamento da CCAÇ 5, em Canjadude, no dia 1 de Agosto de 1970, Sábado. Logo pela manhã, depois do pequeno-almoço, veio ter comigo o meu estimado amigo 1.º cabo Enfermeiro, Carlos Alberto Leitão Dinis, e perguntou-me se tinha a máquina fotográfica carregada com o filme, e se fazia o favor de durante o dia lhe tirar uma série de fotos. Respondi afirmativamente à questão, sem nunca ter pensado que ele desejasse tantas e tão variadas poses para ser fotografado. Eu, por cautela, estou sempre prevenido com três ou quatro rolos de películas negativas virgens, de reserva, para imprevistos fotográficos. O Dinis é raríssimo tirar uma foto, muito poucos, ou talvez nenhum camarada em Canjadude terá a regalia de ter uma foto dele, que não tenha sido disponibilizada por mim. Acertámos que nos próximos dias, (tirei-lhe fotos nos dias 1 e 2 de Agosto) logo que houvesse disponibilidade, de forma a não interferir com as nossas tarefas de obrigação militar, ficava ao inteiro dispor do amigo Dinis para retratar o que ele achasse conveniente, de forma que tinha ali, praticamente um fotógrafo privado. Ele próprio começou por ir seleccionando os locais mais diversos que serviam de cenários para o enquadramento das fotos, entre os quais: aquartelamento, abrigos, refeitório, matraquilhos, enfermaria, rochas, bolanha, lavadeiras, tabanca, pilar arroz, crianças nativas, pista aérea, picada do Cheche, picada Nova Lamego, ponte do rio de Canjadude, rio, bananeiras, etc.. Mudou 4 ou 5 vezes de vestuário enquanto durou a sessão de fotos, duas vezes com roupa civil mudas diferentes, e 3 com uniforme militar distinto. Ele escolheu diferentes lugares e variadas posições para ser fotografado, e algumas vezes em condições menos propícias para a qualidade da imagem, porque as radiações solares estavam a incidir praticamente na vertical, concentrando grande densidade de raios ultra-violetas que prejudicam as reacções químicas nos negativos quando expostos à luz, ainda que eu utilizasse um filtro UV na objectiva, mas mesmo assim os contrastes e as sombras ficam muito acentuados.

Influa embora, que eu o tenha alertado para este inconveniente, pois nunca gostei de tirar fotos com Sol na vertical, (entre as 11h00 e as 14h00/15h00) que torna as tonalidades menos suaves, mas ele não se preocupou com a minúcia. Até fotos ele virado de costas para a câmara me pediu para lhe tirar. No período de tempo que andei a tirar fotos, nunca nas feições do Dinis se vislumbrou o mais ténue esboço para sorrir, ainda que aparentasse tranquilidade e paz de espírito. Eu em tom de gozo, para criar ambiente e ver se lhe arrancava um suave gracejo que fosse, para tornar o momento mais distenso, reacção que nunca consegui, dizia-lhe mangando que ele devia ter muitas namoradas para enviar fotos para todas, porque estava a obter tantas, tão consecutivamente e com tal pressa. Eu insistia e provocava-o galhofando dizendo-lhe, que era natural que ele não tivesse “pedalada” para todas as miúdas, e que me podia dispensar alguma porque eu andava carenciado. Ele determinado e impassível, algo melancólico, ainda que ostentasse um semblante sereno, embora se adivinhasse nele um pensamento distante, expôs-se para ser fotografado sempre só, sem pretender enquadrar nas fotos, outros camaradas militares, excepto uma vez nas mais de 70 fotografias tiradas durante os dois dias, praticamente gastou-se um filme de negativo de 36 exposições.

Foto 3 > Cabo Carlos Alberto Leitão Dinis

Foto 4 > Única foto que tirei ao Dinis, enquadrado com outros camaradas de Canjadude. Da direita para a esquerda: Cabos, Viriato, José Carlos Freitas (jogador do V. de Guimarães), Montóia (jogador do Leixões, de etnia Cigana, que ainda hoje faz as feiras de Matosinhos), Cóias, Dinis, Dias, não me recordo do nome do camarada que está ligeiramente atrasado entre o Dias e o Dinis, assim como não recordo o nome, do condutor, que tem a G3 na mão. O nosso atrevimento e irresponsabilidade, ao irmos para o rio junto à ponte, como se fôssemos para a praia, só com uma G3.

A máquina utilizada foi uma Olympus Pen FT, que tem a particularidade de duplicar os fotogramas negativos do filme de 35mm, nela usado, uma vez que a superfície do filme que é exposta à luz que sensibiliza os sais de nitrato de prata da película, têm o formato de 18mmX24mm enquanto o formato vulgar é 35mmX24mm. Quando se faz o disparo que abre a cortina da máquina, (o obturador) a superfície do negativo, (o fotograma) que é exposto e sensibilizado pela entrada da luz que passa pela abertura, variável do diafragma, é metade da superfície que é habitual nas tradicionais máquinas de filme de 35mm, esta minudência tem vantagens e desvantagens.

O Capitão Arnaldo Costeira, Comandante da Companhia, está de férias, estando a desempenhar interinamente as suas funções o Alferes Deodato dos Santos Gomes, que é o Alferes mais antigo da CCAÇ 5.

A actividade operacional militar em Canjadude tem sido muito intensa, havendo saídas para o mato ininterruptas, que têm provocado muito desgaste físico nos operacionais, atendendo ao estado de alagamento em que se encontram as Bolanhas que dificultam o caminhar, exigindo um esforço suplementar para se poder progredir.

Vestígios da presença do IN na nossa área não têm sido praticamente detectados, o que para alguns já é gratificante, pois já desde o dia 12 de Setembro de 1969, dentro dum mês e pouco faz um ano, que não tem havido na zona de patrulhamento da CCAÇ 5 nenhuma actividade IN.

Já praticamente há 3 meses que se mantém em rotatividade um pelotão da CCAÇ 5, quase permanentemente, a reforçar a segurança a Nova Lamego. A actividade do IN nos Quartéis das redondezas de Canjadude têm-se manifestado com flagelações aos Aquartelamentos, e nas picadas tem havido alguns rebentamentos de minas anti-carro.

Tenho acompanhado com assiduidade as diversas actividades operacionais para o mato, por toda a nossa área, que é muito abrangente e vasta, pois somos um Destacamento periférico e temos uma superfície territorial de patrulhamento, da nossa responsabilidade, cuja extensão é limitada pela linha do perímetro, cujo raio é quase constante, com 20 ou 25km, com centro em Canjadude. Confinamos a Sul com o rio Corubal, para lá do qual só forças heli-transportadas conseguem penetrar, que é a região de Madina de Boé. Surpreende-me com toda esta persistente operacionalidade nas zonas do Bormeleu, Siai, Cheche, não haver alguns contactos físicos com o IN, mesmo que esporádicos, é estranho esta tranquilidade neste amplo espaço com esta densa mata. É minha convicção, quase certeza, que o IN deve ter arraiais alojados por aqui bem perto, pois por vezes no nosso equipamento de transmissões são captadas mensagens, supostamente do IN, ouvindo-se um só interlocutor com fonia tão audível e sem ruído, que abafa outra qualquer recepção, por vezes mais parece que estão a emitir aqui ao virar da esquina.

Dia 2 de Agosto de 1970, logo de manhã cedo saiu de Canjadude uma coluna para Nova Lamego, com o pelotão do Alferes Alexandre Rodrigues Martins, com o objectivo de ir render o GCOMB do Alferes Anibal Afonso de Sousa, que já quase quinze dias que está a reforçar a segurança de Nova Lamego. É de salientar que os militares nativos destes pelotões que ficam em Nova Lamego revezadamente, têm as suas famílias e mulheres em Canjadude, e nestas circunstâncias, com os maridos ausentes, o respeito por parte das mulheres e dos homens também, fica um pouco distante e ausenta-se, todos estão conscientes disso, pois somos jovens e as gónadas funcionam, produzindo as hormonas que estimulam e desencadeiam desejos impúdicos, e há quem se desforre, fria e “cavalheirescamente”, aproveitando esta oportunidade e situação. Uns abusam por carência ou afirmação e satisfação pessoal, ou porque é uma necessidade natural que se conforta mutuamente. Outros ousam abusar, alternando com o mesmo comportamento do semelhante, para apaziguar a vingança, por terem sido também eles traídos. Além desta insegurança e tensão psicológica, acentua-se o desgaste físico, ao estar em Nova Lamego, mais nas tropas nativas, não só com a intensa actividade operacional, que é diária, mas também porque todos os militares nativos são desarranchados, e é lógico que sem a família e amigos por perto, a alimentação praticada é bem mais desajustada, ainda que alguns se agrupem e a confeccionem.

Foto 5 > Na messe de oficiaus e sargentos. Da esquerda para a direita: Furs. Mário, Antunes, Sarg. Cipriano, Furs. Rito, Silva, Alf. Gomes, Cap. Costeira, Alf. Martins, ?, e Fur. Moreira.

A coluna regressou a Canjadude ao princípio da tarde com o pelotão já substituído e integravam-na mais 3 Furriéis “periquitos”, para render outros 3 “uns felizardos”.

O Alberto Pereira Caetano, veio para render o José Fernando Silva, o João da Silva Alves, para render o Manuel Vieira da Silva e o Augusto Soares de Moura rendeu o Nuno António Pereira Rito. Coincidência, os rendidos vieram para a Guiné no mesmo barco sem se conhecerem, conheceram-se em Canjadude e foram rendidos ao fim de dois anos no mesmo dia, regressando à Metrópole no mesmo transporte. Estou a falar de rendição individual.

Foto 6 > Da direita para a esquerda: Furs. Albino, Caetano e Alves

Foto 7 > Sargentos a descontrair na Parada Augusto Gamboa, morto numa emboscada em Uelingará. Da esquerda para a direita: Furs. Perestrelo, Augusto Moura, de pé, que chegou a Canjadude a 02-08-70 e no dia seguinte teve acidente com uma mina, 1.º Paulino (já faleceu), Furs. Albino, Antunes, Germano Silva (já faleceu), Sargs. Cipriano (já faleceu), Farinha e Fur. Ramos (já faleceu).

Dia 3 de Agosto de 1970, pouco passava das 07h00 quando saiu mais uma coluna de Canjadude para Nova Lamego, embora tivesse havido ontem uma, não deu para compreender o porquê de haver hoje outra?! (Terá sido a “força oculta” para que se concretizasse a coincidência de serem rendidos os três furriéis em simultâneo, porque um deles estava integrado no pelotão que estava em Nova Lamego e era necessário ir resgatá-lo!?) Eu estou de serviço no Posto de Rádio. Os dois rolos de negativos fotográficos que já tinham sido expostos, confiei-os ao Dinis, que acompanha a coluna, pedi-lhe que os entregasse na Casa Caeiro para serem revelados e fazer fotos, assim como o incumbi que levantasse algum trabalho meu de fotografia que estivesse concluído, pois o Sr. Caeiro ou a filha fiam-me a mercadoria entregando-a sem necessidade de pagamento, que eu oportunamente farei contas.

Foto 8 > Cabo Dinis na tabanca de Canjadude, com criança ao colo.

A decisão para definir qual o pelotão que devia integrar a coluna, foi tudo menos pacífica. Por escala ordenada, devia ir o pelotão “X” e apresentaram-se os militares desse grupo prontos para cumprir essa missão, mas já próximo da acção de partida da coluna, tomou-se outra deliberação e foi outro pelotão que se preparou apressadamente para integrar a coluna. Contrário ao que é habitual e sempre desejosos de ir, ao ponto de por vezes não haver lugar para todos os civis da Tabanca, que vão por necessidades pessoais a Nova Lamego, hoje não compareceram como é frequente, para ir na coluna. O Sargento Enfermeiro, Cipriano, nativo, que tem o agregado familiar em Nova Lamego, é assíduo em acompanhar as colunas, hoje desistiu de subir para a viatura na hora da partida. No meio desta confusão toda, o Furriel Antunes, de Transmissões, que por afazeres pessoais precisava ir a Nova Lamego e como tal apresentou-se devidamente preparado e pronto para ir na coluna, eis senão, quando em cima do acto da partida surgiu um imprevisto de última hora, que o levou a desistir da viagem.

Eram sensivelmente 07h45, quando se ouviu uma violeta explosão seca e abafada, na direcção da picada de Nova Lamego. Eu era o operador de serviço de transmissões e estava sentado no exterior do Posto de Rádio, na pedra que estava junto à porta do abrigo, onde era frequente a malta sentar-se. Ao ouvir o estrondo fiquei praticamente com a certeza que tinha sido o rebentamento duma mina anti-carro, pois no dia 12 de Setembro do ano passado, ia a fazer um ano, fui testemunha “in loco” de detonação idêntica. Entro imediatamente no Posto de Rádio e tento no AN-GRC-9 e no AN-PRC-10, entrar em contacto com a coluna, que não responde às minhas insistentes solicitações. Logo de seguida aparece o Furriel Antunes e o Alferes Gomes, que substituía o Capitão Costeira que estava de férias, para saberem o que tinha acontecido. Continuo com os meios disponíveis a tentar contactar a coluna, mas todas as tentativas de comunicação se revelaram infrutíferas. Peço ajuda aos Postos de Rádio de Nova Lamego e Cabuca, (poderiam estar mais próximo da coluna, ou em condições mais favoráveis para transmissões) para tentarem captar mensagem da coluna, pois também eles tinham ouvido o rebentamento, mas todas as tentativas de contacto se tornaram vãs. Dá-se início aos preparativos para que um grupo de combate vá ao encontro da coluna... que não chegou a sair. Ainda não eram 08h30, alguém disse que se estavam a ouvir os motores de viaturas já próximo do Aquartelamento. Passados, um minuto ou dois, surgem duas viaturas da coluna, transportando uma, 9 feridos, alguns dos quais com muitíssima gravidade, e dois mortos, entre os quais o 1.º Cabo Enfermeiro, Carlos Alberto Leitão Dinis, que ainda não tinha 4 meses de Guiné e o Furriel Atirador, João Purrinhas Martins Cecílio, colocado em Canjadude em 28 de Maio de 1970 depois de ter regressado ao Teatro Operacional da Guiné, para completar a comissão de serviço, após uma ausência operacional, motivada por uma evacuação devido a doença contraída na CCAÇ 2464, Companhia da qual fez parte e que foi mobilizada para a Guiné, em Fevereiro de 1969. Deixou 4 filhos órfãos, ainda crianças.

Foto 9 > Esta foto foi-me amavelmente cedida pelo nosso tertuliano António Nobre, tirada na CCAÇ 2464, onde o Fur. Cecílio iniciou a comissão na Guiné até ser evacuado por doença. Só no regresso da evacuação se apresentou na CCAÇ 5. Da esquerda para a direita: Padeiro(?), Furs. António Nobre, João Purrinhas Martins Cecílio (já falecido), Moura (já falecido) e Peixoto.

Foto 10 > Cabo Dinis junto ao filão das rochas de Canjadude.

Foto 11 > Confaternização no abrigo de transmissões. Chegada do Carlos Augusto dos Santos Pereira, que veste camuflado. Da esquerda para a direita: Fur. Antunes, Cabos, Alex, Pereira, José Carlos Freitas, Cóias e Lúcio.

Foto 12 > Da esquerda para a direita: Cabos TRMS Silva, Pereira e Lúcio.

A viatura que accionou a mina, em Uelingará, foi a viatura de transmissões, ficando a parte da frente toda destruída, assim como os aparelhos de comunicação. O AN-GRC-9 libertou-se das amarras e foi projectado a dezenas de metros, assim como as baterias que ficaram todas desfeitas, foi essa a razão porque não se pôde comunicar com a coluna. Por norma a viatura de transmissões ocupa quase sempre a terceira posição, a contar da frente, o mesmo acontece quando se leva ou recupera pessoal das operações do mato. Neste dia, vá lá o diabo saber porquê, a viatura ia em segundo lugar e accionou a mina. Atendendo ao estado em que a viatura ficou, parte da frente toda inutilizada e às projecções de corpos provocadas pelo impulso do rebentamento, foi um autêntico milagre não ter havido mais mortos e feridos. O Furriel Cecílio, que tinha dois meses de CCAÇ 5, foi um dos mortos e ocupava o lugar na viatura ao lado do condutor, tendo a mina rebentado no rodado direito da frente, ou seja por baixo da posição por ele ocupada. Sempre que ia, esse lugar era destinado ao Furriel de Transmissões, Antunes, mas neste dia, que precisava de ir a Nova Lamego e só não foi, como era seu desejo, devido a imprevisto de última hora.

Estranha coincidência, foi também a rapidez, nem meia hora tinha passado após a chegada das viaturas com os acidentados, quando chegou o “Homem Grande” da Tabanca de Uelingará, a apresentar os pêsames das mortes havidas ao Alferes Gomes! Como foi tão célere a vir, a caminhar com o peso da idade, 8 a 9km de distância e tinha já conhecimento do acontecido, quando a Tabanca de Uelingará não ficava junto à picada onde se deu a tragédia?!

Foto 13 > Viatura acidentada na mina no dia 03-08-70.

Foto 14 > Corceiro junto da viatura acidentada.

Um dos feridos graves, com múltiplos traumatismos, alguns cranianos, é o 1.º Cabo de Transmissões Carlos Augusto Santos Pereira, com mês e meio de Guiné; outro ferido, é o Furriel Augusto Soares de Moura, com poucos dias de Guiné, que não tem ainda vinte e quatro horas de permanência em Canjadude, pois chegou ontem na parte de tarde para render o Furriel Nuno António Pereira Rito, que por coincidência também este sofreu traumas provocados pelo rebentamento duma mina, no dia 12 de Setembro de 1969, onde eu estava presente, na mesma localidade de Uelingará, terra que se está a transformar em lugar fatídico para a CCAÇ 5, pois também neste sítio perderam a vida numa emboscada à coluna onde seguiam, dois militares, em 14 de Dezembro de 1967, o Alferes Augusto Manuel Casimiro Gamboa (no sítio onde pereceu está o nome e data da morte do Gamboa, gravado em sulcado, no tronco de uma árvore, desconheço o autor, assim como está também gravado, noutro tronco, na parada que tem o seu nome, em Canjadude) e o 1.º Cabo (salvo erro o nome é) José Ferreira Alves.

Os feridos foram evacuados. Comoveu-me intensamente toda a tragédia deste fatídico dia, mas particularmente a morte do Dinis, assim como o estado politraumático, do Carlos Augusto dos Santos Pereira, de Transmissões, que estava bem consciente da gravidade do seu estado, com ferimentos diversos. Nunca mais soube como foi o evoluir da sua saúde e o percurso da sua vida. O Augusto Moura, que foi um dos acidentados evacuados, além dos traumatismos somáticos, tem sintomatologia de trauma psíquico, pois está com amnésia parcial, não expressa no diálogo memória recente. Esteve cerca de seis meses em tratamento para recuperar e normalizar o conhecimento e a memória dos factos que aconteceram neste dia. Durante cinco meses, circulou entre Bissau para consultas e tratamentos médicos e Canjadude. Acabou por ser evacuado para a Metrópole passados quase seis meses após o acidente. Foi operado no HMP em Fevereiro de 71 e permaneceu na Metrópole durante nove meses, em consultas e tratamentos médicos. Acabou por regressar à Guiné e foi colocado em Bolama a dar Instrução Militar. Por coincidência, também o Furriel Nuno Rito, que o Augusto Moura rendeu, perdeu a memória que nunca mais recuperou, relativa aos acontecimentos do dia em que rebentou a mina na viatura na qual ele esteve envolvido. Quer um quer o outro ficaram com sequelas permanentes para toda a sua vida devido aos ferimentos e aos efeitos no organismo provocados pelo impacto do rebentamento que projectou a massa dos seus corpos, provocando uma acção de compressão e descompressão que afectou alguns órgãos do seu corpo. O Rito, sobretudo, ficou com graves problemas ao nível da coluna vertebral, que se têm agravado progressivamente, temendo ele que possa acabar o resto dos seus dias numa cadeira de rodas. Quer o Rito quer o Moura, felizmente, tiveram um percurso profissional razoável, consonante com a relatividade das suas aspirações e aceitaram resignados os desígnios da vida imposta, com menos qualidade, fruto das mazelas provocadas por acontecimentos que não lhe são imputáveis, sem nunca se terem interessado por esboçar a mais leve tentativa de accionar processo para pedir ao Estado Português uma pensão monetária compensatória, que os ajudasse a dar mais qualidade e conforto à vida quotidiana, de forma a ajudar a suavizar as máculas físicas adquiridas no teatro operacional de guerra, para o qual foram chamados e obrigados a ir, ainda que em defesa da Nação como é corrente dizer-se. Conformados. Pacientes, contentaram-se com a sorte que a vida lhes reservou e estruturaram a felicidade e o seu “modus vivendi” à sua maneira.

Foto 16 > Cabo Dinis a caminhar no destacamento de Canjadude.

Foto 18 > Cabos Carlos Augusto Perreira, com cerveja na mão e João Monteiro, junto da entrada para o refeitório em Canjadude.

Havia que tratar os feridos e homenagear os mortos. Foi elaborada uma escala de forma a garantir continuamente a presença de militares junto dos defuntos. Todos em sinal de respeito, admiração, estima e dor, vestimos farda limpa e própria para estar na enfermaria a velar os nossos estimados camaradas que nos deixaram.

Eu estou de serviço das 18h00 às 22h00 no posto de rádio, e foi-me atribuído o horário de presença na enfermaria, junto dos defuntos, entre as 17h00 e 18h00 e as 22h00 e 23h00. Às 17h00, quando entro na enfermaria, vi logo, em cima duma pequena mesa junto a algumas embalagens de medicamentos, o embrulhinho com os dois rolos de negativos fotográficos que eu tinha confiado ao Dinis para entregar na casa Caeiro, rolos que eu julgava já perdidos. Ainda bem que o não foram, para a imagem do Dinis ficar connosco. Presumo que o Dinis ao preparar a sacola de enfermagem com os diversos utensílios e medicamentos para seguirem na coluna, por distracção se esqueceu e deixou ali os rolos, que assim voltaram à minha posse e mandei revelar. Às 22h00 saio de serviço do posto de Rádio e dirigi-me para a Enfermaria, para mais uma vez homenagear com a minha presença e fazer a minha despedida dos camaradas falecidos.

Cheguei à Enfermaria havia breves segundos, pois ainda não eram 22h05. Precipitadamente desencadeia-se pavorosa flagelação, que mais pareceu que nos apanhou a todos de surpresa, pois já tínhamos neste dia a nossa dose de suplício. Impulsionados pela necessidade de protecção, todos os que estavam na Enfermaria, cuja estrutura física era frágil, de paredes de adobe e cobertura de placa zincada e exposta ao fogo IN, saímos apressadamente cada qual em sua direcção para encontrar meio para defesa e local de abrigo. A flagelação manteve cerca de 20 a 25 minutos, sempre a ribombar com detonações de morteiro, RPG 2; 7 e Kalashnikov, abrandando progressivamente quando o nosso morteiro 81mm, localizado na Tabanca, lado Nascente, Sul, iniciou os disparos, pois a posição deste espaldão era privilegiada para se poder ver a localização donde partia o fogo do IN. Este estava entrincheirado no filão das rochas e nos troncos de árvores existentes, devido à acção de desflorestação circundante ao Destacamento, lado nascente. Veja-se por favor o Poste - P6822.

O inimigo, ao flagelar Canjadude, estava posicionado um pouco distante do arame farpado, e, ou por falta de habilidade, colocação, ou visão, os seus disparos não provocaram a menor mossa física, não houve ferimentos humanos nem danos materiais de espécie alguma.

Dia 4, logo de manhã saiu um GCOMB para patrulhamento e reconhecimento, à zona envolvente donde tinha partido o ataque, eu estive presente. Havia vestígios de sangue em diversos locais, sendo expressiva a quantidade em dois pontos distintos. Foram deixadas no terreno algumas munições e quatro carregadores de arma ligeira, mas material pouco significativo.

Dia 5 de Agosto de 1970, logo de manhã cedo, saímos para uma operação comandada pelo Alferes Anibal de Sousa, cujo objectivo era seguir os trilhos utilizados na debandada do IN após a flagelação. Estive integrado nessa operação. Os cursos de água têm um generoso caudal, todos eles, as Bolanhas estão todas alagadas, assim como as picadas, o que dificulta muito a actividade operacional no mato, somos obrigados a caminhar dentro de água muito tempo, com as consequências nefastas que isso acarreta. Grosso modo, o IN utilizou na chegada e na retirada o trilho que liga Canjadude a Ganguiró, local onde foram detectados um emaranhado serpenteado de trilhos, presumindo-se que criados propositadamente com a finalidade de nos confundir, para não podermos utilizar uma só pista identificadora, do rumo em que o IN prosseguiu.

Optou-se por um trilho que pareceu ser o mais consistente, que nos conduziu para a zona do Siai, local onde o trilho começou a ser labiríntico, um autêntico enrolado de quebra-cabeças. A morfologia do terreno, no Siai, apresentava relevo muito irregular e de difícil acesso, pelo que a progressão nestas condições e seguindo o sentido do trilho, oferecia muita perigosidade, permitindo ao IN emboscar-nos. Optou-se por abandonar o trilho e patrulhar a área adjacente. Não foram detectados vestígios de presença humana. Será provável que o IN utilize o local do Siai para fazer a cambança do Corubal e desenvolver a sua actividade de guerrilha no sector Sul da região de Nova Lamego. Regressamos a Canjadude dia 6, com agravantes dificuldades na progressão, devido aos terrenos estarem todos encharcados, nos quais a progressão exige muito esforço físico, provocando muito cansaço corporal, e complica a detecção dos trilhos de penetração do IN.

Nos factos do dia 3 de Agosto, houve muitas coincidências que para mim é natural que sucedessem.

Os acontecimentos do fatídico dia 3 de Agosto, (era previsível que algo adviesse, aniversário da revolta no cais de Bissau, Pidjiquiti, era uma data comemorativa para o IN e como tal queriam marcar território, eu pelo menos estava um pouco receoso, e outros mais experientes mais previdentes estariam,) deram azo a muita especulação, como de resto é hábito com tudo o que não queremos que aconteça, há sempre profetas da desgraça a apontar o dedo e a culpa não quer morrer nunca solteira! Houve vozes veladas que tiveram o atrevimento de afirmar que no Aquartelamento alguém tinha conhecimento que a mina existia e que a flagelação ia acontecer. Conhecimento é uma coisa, intuição é outra. Ora, estes boatos geraram uma certa instabilidade e desconfiança entre os militares. Também houve vozes, na altura, de mentes férteis e imaginativas, que afirmavam que em Uelingará pairava a maldição dum espírito vingador, cujo feitiço punidor, só amainava e se purificava quando dizimasse todos os metropolitanos de Canjadude. Outras vozes ainda mais fecundas, afirmavam convictamente que bastava analisar os nomes e sobrenomes dos envolvidos nas tragédias de Uelingará para se concluir qual seria a próxima vítima a tombar, porque o supliciado escolhido, obedecia a uma sequência ordenada por nomes e sobrenomes emparelhados, que se iria repetir. “Mais parecia que havia candidato para destronar as profecias de Nostradamus”.

Em tempos materializou-se uma operação militar, ao alvorecer, à Tabanca de Uelingará, onde todas as habitações foram viradas do avesso, mas nada foi encontrado. No dia 17 e 18 de Agosto, realizou-se a operação “Grão Torcato” que cercou a Tabanca de Tumbum Sincho, onde foram detidos dois elementos da população, que geraram suspeitas, nada mais foi detectado, eu não integrei esta acção.

Não sei a história que terá chegado à metrópole, sobre o que ocorreu em Canjadude neste profético e maldito dia 3 de Agosto de 1970, porém, um amigo de infância, dum dos desditosos falecidos neste dia (o Dinis), que é membro do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, logo que se apercebeu que eu fui da CCAÇ. 5, e por acaso contemporâneo com os factos, apressou-se a pedir-me informações sobre o caso, porque lhe tinham contado uma história macabra e absurda sobre os acontecimentos desse dia, que eu imediatamente os contradisse, porque estavam desfasados de toda e qualquer realidade do que efectivamente tinha sucedido.

Coincidências da Vida, dirão alguns! O destino, o acaso, o inevitável, o que tem que ocorrer tem muita força, o que é passível de acontecer, acontece mais cedo ou mais tarde, todos têm a sua hora certa, Deus tarda mas não falha, afirmarão outros…!

A Vida é muito breve e é tão delicada e complexa que por vezes poderá até dar-se a coincidência, que ao estarmos a prevenirmo-nos da morte, podermos estar a caminhar para deixar a Vida…! A Vida é um prodígio assaz efémero na existência de cada um de nós, que temporalmente nada mais representa, que o milésimo dos milésimos do período de tempo, (a caminhar para o infinito) que é o tão pouco tempo que nos sobra da morte! Mesmo antes de sermos Vida, (gâmeta) já participámos em renhida e desenfreada competição para alcançar uma meta, que foi disputada por milhões e milhões de concorrentes, para um só ser o premiado, que recebeu o troféu que lhe outorgou a conquista do direito à Vida. Com todo o mérito, cada um de nós pode bem alto Gritar: - EU FUI O VENCEDOR ELEITO, SELECCIONADO ENTRE MUITOS MILHÕES E GANHEI O DIREITO A SER VIDA…! Mas por vezes, valerá a pena o GRITO, se a Vida é tão Efémera …?!

SÓ SÃO COINCIDÊNCIAS QUANDO NÃO HÁ MANIPULAÇÃO HUMANA

Um abraço e boa saúde para todos.
José Corceiro
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7037: Recortes de imprensa (30): A guerra do José Corceiro, CCAÇ 5, Canjadude, 1969/71 (Correio da Manhã)

Vd. último poste da série de 27 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6901: José Corceiro na CCAÇ 5 (16): O depoimento do Armando Oliveira Alves, ex-Alf Mil, Brá, Cheche, Canjadude, 1967/69 (José Corceiro)