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sexta-feira, 15 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23170: Humor de caserna (48): o major art José Joaquim Vilares Gaspar, o "Gasparinho", visto por Salgueiro Maia: loucura ou contestação do sistema?

1. Trancrição de um excerto do poste P3262 (*), da autoria do nosso saudoso amigo, Leopoldo Amado (1960-2021), historiador guineense,  vítima da pandemia de Covid-19:


(...) O exemplo mais sonante de loucura, traço muito comum à literatura de guerra colonial, é-nos dado por Salgueiro Maia, ao referir-se à caricata figura do major Gaspar, cuja irreverência abeirava-se da loucura, aliás, motivo pelo qual acabou ser hospitalizado:

(...) o major Gaspar vai comandar o CAOP 2 em Mansabá, onde, dando boa conta do recado, é solicitado para se deslocar a Bissau, à reunião semanal do Com-Chefe, onde deveria ser salientado o seu compor­tamento. Só que a coluna que, vinda de Farim, o devia transportar a Bissau nunca mais chegava. 

Farto de esperar, avança para Mansoa só com o condutor, percorrendo um itinerário onde eram frequentes as emboscadas, pois passava ao lado do Morés. À sua chegada a Mansoa, umas centenas de elementos da população agitam-se, pe­gando nas suas mercadorias com vista a ocupar lugar na coluna. Aí, o major Gaspar acha conveniente mandar parar o jipe. A população acerca-se e ele explica: 

«Meu povo, permaneçam mansos, porque a coluna ainda não vem aí, só vem o Gaspar.» 

Continua só em direcção a Bissau. Começa por visitar os seus amigos páras à entrada da cidade, depois o seu amigo director do Hospital Militar, os seus amigos comandos, etc. 

Entra em Bissau feliz e, desejando dar saída à sua alegria, descobre que o único sítio da Guiné onde havia uma peanha para um polícia dirigir o trânsito tinha um PSP guineense, que o major Gaspar considerou estar a fazer mal o seu trabalho. 

Fez parar o jipe ao lado da peanha e fez sair o polícia do sítio e, de pistola-metralhadora ao pescoço, o major Gaspar foi dirigir o trânsito. Lá, como noutros sítios, os condutores, apesar de na maioria serem militares, não eram obe­dientes, e assim o nosso amigo fartou-se de desobediências. Tanto, que atirou uma rajada por cima de uma camioneta da engenharia militar que não lhe obedeceu. 

Continuou em funções, mas surge mais uma camioneta, do Depósito de Adidos, que também não lhe obedece, e aí vai o resto do carregador. 

O Palácio do Governo, onde se encontrava o general Spínola, distava uns 400 m em linha recta, pelo que os disparos eram nítidos e originaram que a polícia do Exército fosse chamada ao local.

Postas perante a realidade, as entidades competentes determi­naram a baixa à neuropsiquiatria do major Gaspar. Mas alguns, suficientemente conhecedores da maneira de ser do «doente», con­seguiram autorização para o director do Hospital Militar conven­cer o major a descansar uns dias no Hospital, onde os amigos o visitaram com assiduidade, criando talvez o único período de ver­dadeiro descanso e convívio que este homem teve ao longo de vários anos de guerra e de guerras com o sistema. 

As histórias do major Gaspar foram para muitos combatentes o escape natural nas vicissitudes da vida em campanha; quem o conheceu guarda dele a imagem do lutador pela dignidade e pela justiça, a certeza de que a sua luta foi imortal (...) ”[19] )**)

[ Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Realce a amarelo, para  efeitos de publicação deste poste no blogue: LG]
________

Nota do Leopoldo Amado:

[19] Maia, Salgueiro, O Acaso, In Capitão de Abril – Memórias da guerra do Ultramar e do 25 de Abril, Editorial Notícias, pp. 56 e 57.
___________

Notas do editor:


sexta-feira, 9 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22354: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte II: Ficha técnica, prefácio de Leopoldo Amado, lendas balantas (pp. 1-14)



Lendas balantas - ilustração do pintor guineense Ady Pires Baldé, pág. 11. 

In: Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


1.  Transcrição das págs. 1 a 14 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


Capa do livro. Ilustração de
Augusto Trigo


J. Carlos M. Fortunato > 
Lendas e contos da Guiné-Bissau


Nota ortográfica

As palavras que surgem nos textos em letra itálica, 
tratam-se de termos ou expressões que não são usados 
em português.

Os textos apresentados não incluem palavras alteradas pelo novo acordo ortográfico, a fim de o livro ser compatível com o antigo e com o novo acordo ortográfico.








Contracapa do livro. Ilustração de Augusto Trigo



Ficha Técnica


Título: Lendas e contos da Guiné-Bissau
Autor: Joaquim Carlos Martins Fortunato

Ilustrações:
Capa e contra capa - ilustrações do mestre luso-guineense Augusto Trigo, pai da pintura guineense e grande ilustrador, a sua obra é uma referência
Página de abertura - ilustração do pintor guineense Ady Pires Baldé
Lendas balantas - ilustração do pintor guineense Ady Pires Baldé
Lendas bijagós - ilustrações do pintor guineense Ady Pires Baldé
Lendas mancanhas - ilustrações do pintor e escultor português José Hilário da Silva Portela
A lenda de Sundiata Keita - ilustrações do mestre Augusto Trigo
A lenda de Djanqui Uali - ilustrações do mestre Augusto Trigo
A lenda de Alfa Môlo - ilustrações do mestre português José Ruy, um dos maiores ilustradores portugueses
A lenda da canoa papel - ilustrações do pintor guineense Lemos Djata;
Contos - ilustrações do mestre Augusto Trigo.

Revisão: Luísa Barbosa
Paginação gráfica do miolo: João Filipe Feitor Pais
Edição: Ajuda Amiga/MIL/DG Edições
Impressão e acabamento: VASP DPS
1ª Edição: Fevereiro de 2017

Depósito legal: 419793/16
ISBN: 978-989-8661-68-5

2017 Copyright © Joaquim Carlos Martins Fortunato
Reservados todos os direitos, de acordo com a legislação em vigor

Ajuda Amiga – Associação de Solidariedade e de Apoio ao Desenvolvimento
ONGD - Organização Não Governamental para o Desenvolvimento
Site http://www.ajudaamiga.com

Índice

Nota ortográfica

3

Prefácio

7

Prólogo

9

Lendas balantas

11

Lendas bijagós

15

Lendas mancanhas

23

A lenda de Sundiata Keita

29

A lenda de Djanqui Uali

43

A lenda de Alfa Môlo

49

A lenda da canoa papel

55

Conto - A lebre e o lobo no tempo da fome

59

Conto - O camaleão ganha a corrida ao lobo

63

Conto - O casamento do lebrão

65

Conto - O hipopótamo dá boleia ao lobo

69

Conto - O leão e o javali no tempo da sede

73

Conto - O lobo e a lebre vão à pesca

75

Conto - O lobo que queria comer os filhos da lebre

79

Conto - O menino e o patu-feron

81

Breve história do Império do Mali

85

Breve história do Império de Cabú

89

Bibliografia

93

Notas Finais

95


Prefácio

Foi com redobrado prazer e honra que acolhi o privilégio de ter sido convidado pelo meu amigo Carlos Fortunato para prefaciar o seu livro “Lendas e contos da Guiné-Bissau”, de resto, um livro em que se entrecruzam dois campos de pesquisa, em cujas intercessões torna-se possível divisar a constatação de que, infelizmente, persiste ainda um enorme muro de desconhecimento e de incompreensão que adejam África e, mais especificamente, sobre os guineenses e a Guiné-Bissau, donde a razão de ser do livro que agora o Fortunato dá à estampa, com o claro fim de reduzir os fossos de incompreensão existentes.

Com efeito, apesar de a longevidade deste período temporal ser relativamente longa, por nele perpassar o colonialismo e o pós-colonialismo, antecedidos ambos por um outro longo período de presença litorânea e comercial dos europeus em África, iniciada ainda no século XV, apesar disso tudo, como dizíamos, ainda não se proporcionaram, mesmo nos dias de hoje, formas mais clarividentes e mais racionais (entenda-se inteligíveis, eficientes e mesmo eficazes,) de propiciar um mais vasto interconhecimento sobre os guineenses e a Guiné-Bissau, os quais curiosamente personificam, pelo menos na obra em questão, a África. E a esta opção do autor, convém que se diga, não é alheia nem a sua vivência na Guiné e nem a sua ligação profunda com os guineenses e a Guiné-Bissau (dir-se-ia, a sua África), concorrendo tudo neste seu livro, para alicerçar uma visão de compreensão e entendimento do “outro” civilizacional.

Aliás, neste livro, para além de ser patente e inequívoca a simbolização de África pela via da personificação da Guiné-Bissau e dos guineenses, torna-se também curioso a aferição da forma como o autor, deliberadamente, procede a transposição biunívoca entre um mundo da realidade vivida e experimentada (assaz estudada e, por isso, imensamente publicitada), e, essoutra, menos conhecida, mas nem por isso menos importante, mas prenhe de lendas e mitos nos quais também se entrecruzam umampostulação teórica e empírica estribada na efabulação e na qual pontuam – numa harmoniosa triangulação explicativa – os ensinamentos que dão corpo a profunda sabedoria popular, em suma, uma espécie inteligibilidade ética e racional negligenciadas e mesmo desprezadas, mas igualmente cosmológicas e mesmo ontológicas na interpretação do autor.

E é justamente sobre essa abissal dimensão do desconhecimento, que o autor nos propõe combinações curiosas de inteligibilidade alternativas, sumamente criativas como antídotos subsidiários em prol de uma compreensão mais simples e, porventura, mais solidária, discorrendo sintomaticamente os esteios temáticos, curiosamente, por narrativas e modalidades literárias que, longe de pretenderem subestimar a cientificidade das abordagens comuns sobre África, também privilegiam histórias transmitidas pelos griots (uma espécie de embaixadores andarilhos da cultura), para além do fabulário, dos mitos, dos mitos fundadores, das lendas, dos enigmas e outras formas de expressão cultural igualmente genuínas e que podíamos, legítima e cumulativamente, apelidar de “estruturas mentais”, parafraseando o Philippe Ariès, estudioso francês que, à semelhança de Michel Foucault, seu compatriota, logrou colocar em relevo a importância do estudo das mentalidades.

Esta é, a nosso ver, a escolha essencial que o autor privilegiou nesta linda obra em que, na verdade, a interpretação do real e/ou a sua representação (verdade ou crença) é frequentemente feita a partir dos sentidos e do conhecimento adquirido, numa roda vida de indagação incessante sobre o que é real, de facto, pois que na aceção do autor, na medida em que as nossas explicações, estribadas ou não na cientificidade das coisas ou na sabedoria popular, afiguram-se mais como um conjunto de normas do que evidências, na justa medida em que um facto ou um ato é-nos sempre apresentado – tal como uma certa cosmovisão africana – através de um campo enorme de intrincados contextos, passíveis sempre estes de suscitar inúmeras escolhas interpretativas, a partir de interface cultural que jaz entre a aprendizagem e o desejo de melhor conhecer e de melhor explicar as coisas, os fenómenos e a própria cultura.

Nesta despretensiosa obra do Fortunato, sobressai, com efeito, uma narrativa em que, por via de regra, a verdade ampara toda uma narrativa próxima da realidade, a partir de um inextricável e enorme manto de esplendor cultural e de grandeza histórica.

Leopoldo Amado 
[1960-2021]

Dir. Geral do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa



Prólogo

Conheci a Guiné-Bissau em 1969, quando ali prestei serviço militar, e uma parte de mim lá ficou, obrigando-me a lá voltar, e ligando-me a ela para sempre, como uma segunda pátria.

A Guiné-Bissau é um país cativante, pois o guineense faz de cada visitante um amigo, recebendo como mais ninguém o faz.

A Guiné-Bissau é o ponto de encontro de muitas culturas, e isso dá-lhe uma enorme riqueza humana e cultural. As lendas e os contos são uma pequena parte dessa riqueza.

A razão de ser do presente livro é, preservar o passado e promover a compreensão intercultural, mostrando alguns momentos de grandeza da história da Guiné-Bissau, alguns dos nomes que a marcaram e um pouco da sua cultura.

As lendas e contos apresentados neste livro, são histórias que continuam a ser contadas à volta da fogueira ou cantadas pelos artistas, povoando o imaginário de quem as ouve. As recolhas das lendas e dos contos foram feitas ao longo dos anos, em contactos que tive na Guiné-Bissau, e em Portugal junto dos imigrantes guineenses.

Este livro foi escrito a pensar nos jovens, e tem por isso uma escrita simples e muitas imagens. O estudo do período histórico onde se desenrolam as lendas, permitiu acrescentar informação adicional, complementando e enquadrando um pouco as mesmas.


Cabe-me por fim agradecer aos que empenhada e entusiasticamente colaboraram desinteressadamente na construção desta obra. Sem eles, ela não teria sido possível.

A todos, o meu muito obrigado.

O autor [Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga]




Lendas balantas

Segundo uma lenda balanta, durante a criação do Mundo, Deus colocou os primeiros balantas junto ao rio Mansoa, na tabanca (aldeia) de Mancalã, perto da cidade de Mansoa. Os balantas eram ali felizes e prosperavam - arroz, milho, feijão, óleo de palma, mangas, cajus, limões, nada faltava aos balantas.

Com as suas enormes pás os balantas lavraram as bolanhas (1), construíram diques e ouriques, e o verde encheu os seus arrozais.

Os espíritos malignos espreitavam, e viam com inveja a felicidade dos balantas, pois Deus ao criar o Mundo colocou na terra espíritos bons e espíritos maus, afastando-se e deixando os homens à sua sorte.

Junto ao rio Mansoa, vivia um espírito maligno, o qual com inveja da felicidade dos balantas fez um dia transbordar a água do rio, o que destruiu as suas casas e inundou com água salgada as suas plantações.

Foram assim os balantas obrigados a abandonar as suas terras, e a espalharem- se pelo mundo.

Esta é a lenda, que explica a razão de os balantas se terem separado, dando origem a vários subgrupos.

A dispersão dos balantas por diversas regiões, segundo o historiador Carlos Lopes (2), ocorreu a partir da região do Óio, na qual Mansoa se inclui, existindo assim uma certa convergência com o que é referido na lenda.

Os balantas teriam partido do Óio, à procura de outros terrenos adaptados ao seu tipo de rizicultura, acabando por se instalar num território mais vasto, que vai desde Casamansa até ao rio Corubal.

O nome da tabanca de origem dos primeiros balantas varia consoante, a pessoa que conta a lenda.

&&&

A organização tradicional da sociedade balanta, sempre foi pouco hierarquizada, dado não aceitarem a existência de reis ou outras figuras semelhantes.

A única figura tradicional que representa o poder é o chefe da tabanca, o qual ouve o conselho dos homens grandes.

A organização dos balantas e a sua força, derivam dos seus sentimentos de igualdade, solidariedade e unidade. Não existem classes ou castas, nunca tiveram escravos ou servos e não aceitam que um membro seja evidenciado ou destacado.

O subgrupo dos balantas-mané foge à regra do que foi dito anteriormente, pois durante um breve período de tempo possuíram reis, mas a tirania e crueldade do último rei levou-os a regressarem à organização tradicional, convictos que uma só pessoa nunca deveria ter tal poder.

Os balantas-mané também chamados de balantas-bejaa (3), são balantas com ligações à etnia mandinga, e a sua cultura mostra essa ligação.

Os balantas-mané estão concentrados no sul do Senegal e na zona de fronteira da Guiné-Bissau.

Grandes trabalhadores, os balantas destacam-se também pelo seu espírito guerreiro. A palavra “balanta”, é uma palavra de origem mandinga, que significa “aquele que resiste”, foram assim designados face à sua resistência ao domínio mandinga.
 
&&&

Na cultura balanta o valor individual é minimizado, por isso não destacam os seus heróis ou grandes líderes, pois todos os membros da sociedade são importantes.

Apesar do que foi dito anteriormente, apresenta-se a seguir uma breve história, de um nome que se destacou.

Na tabanca balanta de Kone, perto de Bula, nasceu um menino muito franzino, mas que, apesar do seu pouco peso e tamanho, era resistente.

Um dia, sem ninguém perceber porquê, um porco agarrou-o pela roupa com os dentes e largou a fugir para o mato com o menino.

As mulheres apontavam para o porco e gritavam:

- Kumba Yalá, kumba Yalá - em balanta, o porco é chamado de kumba,  Yalá era o dono do porco.

Veio gente acudir aos gritos de kumba Yalá. Todos corriam atrás do porco do Yalá, mas este continuou a correr sem ninguém o conseguir fazer parar, e acabou por desaparecer no mato, deixando para trás os seus perseguidores.

A sua mãe N´Tutituti já desesperada pensava o pior, mas, depois de muito procurar o menino foi encontrado ileso, assim como o kumba do Yalá, que estava perto dele, e que afinal só o tinha querido levar a “passear”.

A partir desse dia, as pessoas que passavam pela tabanca perguntavam pelo menino do kumba Yalá.

E assim, seguindo a boa tradição balanta, em que são os acontecimentos que devem dar o nome às pessoas, ficou o menino com o nome de Kumba Yalá (4).

O menino cresceu, jogou futebol no Louletano, licenciou-se em filosofia, tornou-se um poliglota, um político, e no ano 2000 tornou-se no 8º Chefe de Estado da Guiné-Bissau. O nome de Kumba Yalá sempre o acompanhou, mesmo quando se converteu ao islamismo e mudou de nome.

Figura polémica e marcante da política guineense, Kumba Yalá, era também conhecido como o homem do barrete vermelho, do qual nunca se separava.

(Continua)

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Notas do autor:

(1) Bolanha - terreno pantanoso.

(2) Balantas - pag. 63 Kaabunké - Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais - Carlos Lopes.

(3) Reino Balanta - pag. 133 do Texto “Agricultura e Resistência na
História dos Balanta-Bejaa”, de Cornélia Giesing.

No seu estudo sobre a identidade dos balantas-mané Cornélia Giesing refere o seguinte:

“Os Bejaa tinham instituições monárquicas, cujo centro se localizava entre a margem sul do rio Cacheu e Armada, em Baiabo (Faja, Jaa) e, juntamente com Kasa em Casamansa, formavam um Reino que é associado aos Banhuns e aos Mandingas (Kasangas), cuja capital Birkana, foi destruída por volta de 1830 pelos Bejaa ....”

O historiador Mamadú Mané refere igualmente a luta dos balantas-mané, mas com uma visão diferente:

“Na Média Casamansa, os Balantas conseguiram suplantar em parte os Mandingas e aí estabeleceram, por volta de 1830, a sua hegemonia sobre o reino baynunk do Kasa de cuja capital, Birkama, se apoderaram. É o nascimento do Balantakunda, que não é um Reino, mas uma zona de ocupação”, pag. 29 do texto “O Kaabu” de Mamadú Mané.
´
Balantakunda, significa lugar balanta, pois a palavra kunda na língua mandinga significa lugar.

(4) Kumba Yala - história corrente entre os balantas daquela zona, confirmada pelo próprio Kumba Yalá ao autor.


[Adaptação, revisão/fixação de texto e inserção de fotos e links para efeitos de edição deste poste no blogue: LG]

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2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga: 

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Nota do editor:

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21807: In Memoriam (384): Leopoldo Amado (1960-2021), Professor e Historiador guineense, membro da nossa tertúlia desde 2005 (Carlos Vinhal / Luís Graça / Patrício Ribeiro)

IN MEMORIAM

Leopoldo Amado (1960-2021)
Professor e Historiador guineense


Notícia da agência Lusa, difundida pela SIC Notícias, hoje às 9h16, reproduzida aqui com a devida vénia:

Morreu historiador guineense
 Leopoldo Amado

 
O professor e historiador guineense Leopoldo Amado, 61 anos, morreu no domingo em Dacar, no Senegal, vítima de doença, disse esta segunda-feira à Lusa fonte do Governo e anunciou que o corpo será transladado ainda hoje para o funeral.

Leopoldo Amado desempenhava o cargo de comissário da Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO) para a Educação, Ciência e Cultura, desde 2018.

Nascido em Catió, no sul da Guiné-Bissau, Leopoldo Amado era um conhecido historiador e investigador sénior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) do qual chegou a ser diretor-geral.

Enquanto comissário da CEDEAO, tinha como grande objetivo, para os próximos anos, "melhorar a qualidade do ensino" na Guiné-Bissau para que pudesse competir com os demais países da organização.

A CEDEAO é composta por Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo.


********************

1. CV do Dr. Leopoldo Amado (até 2013), com a devida vénia, à Associação das Universidades de Língua Portiguesa (AULP)

. 1976 – 1979 – Trabalhou como professor primário em Canchungo e Bissau;

. 1979 – 00 – Trabalhou como professor do Ensino Básico Complementar na Escola “Justado Vieira”, Guiné-Bissau”;

. 1979 – 1980 – Trabalhou, em comissão de serviço, como redactor principal da Revista do Ministério da Educação da Guiné-Bissau;

. 1980 – 81 – Trabalhou como professor do Liceu Regional de Bafatá, onde desempenhou a função do Presidente do Conselho Técnico;

. 1986 – 88 – Foi bolseiro de investigação do extinto Instituto de Cultura e Língua Portuguesa (actual Instituto Camões), tendo nessa qualidade produzidos estudos sobre a Literatura Colonial Portuguesa;

. 1988 – 89 – Trabalhou na Embaixada de Angola em Portugal como assessor do Departamento Cultural, com as funções específicas de redactor principal da Revista “Angolé, Artes & Letras;

. 1989 – 91 – Trabalhou como investigador permanente do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa da Guiné-Bissau), onde actualmente é investigador associado;

. 1991 – 00 – Trabalhou como consultor nas pesquisas tendentes ao zoneamento da Guiné-Bissau, pela UICN – União Internacional para a conservação da natureza;

. 1991 – 00 – Trabalhou como Consultor da USAID no estudo sobre “Mercado de Castanha de Caju” na Guiné-Bissau;

. 1991 – 93 – Trabalhou como Director Comercial do “Geta-Bissau”, na altura a maior empresa privada da Guiné-Bissau;

. 1994 – Passou a desempenhar as funções de comentador político junto à imprensa guineense e internacional, designadamente junto a Rádio Difusão Nacional, Rádio “Pindjiguiti”, Rádio “Bombolom”, Diário de Bissau, (Guiné-Bissau) “RDP-África” (Portugal), Rádio Renascença Internacional (Portugal), RTP África (Portugal), Voz de América, Rádio das Nações Unidas e BBC;

. 1994 – 96 – Desempenhou na Guiné-Bissau as funções de Director do mensário “Baguera”;

. 1994 – 95 – Trabalhou na Guiné-Bissau como consultor da Radda Barnen (ONG sueca) na elaboração do estudo sobre “A situação das crianças fulas, mandingas, balantas e papel”;

. 1994 – 96 – Trabalhou como Coordenador de Projectos da AMIC – Associação dos amigos da Criança: associativismo; jardins-de-infância; Infra-estruturas escolares e sociais; monitorização acções comunitárias de desenvolvimento (educação saúde e actividades produtivas); seguimento E avaliação de Projectos.

. 1994 – 96 – Trabalhou como consultor da UNICEF e da Radda Barnen, dirigindo várias acções de formação de formadores em Bissau e no interior do país, em matéria de organização comunitária, gestão participativa e Convenção das Nações Unidas sobre o Direito das Crianças;

. 1994 – 96 – Trabalhou na Avaliação do Programa trienal da UNICEF-BISSAU;

. 1995 – 97 – Desempenhou as funções de Director da Revista “Tcholoná”, única Revista Cultural então existente na Guiné-Bissau;

. 1995 – 97 – Trabalhou como Coordenador de Projectos da Liga Guineense dos Direitos Humanos;

. 1996 – 00 – Trabalhou como consultor da PLAN INTERNATIONAL no âmbito da Planificação Estratégica e Programação do novo ciclo de acções e Projectos dessa ONG internacional;

. 1996– 00 – Trabalhou em Bordéus e Paris como consultor da Editora Nathan e École International de Bordeaux na elaboração, como co-autor, do livro Anthologie Littéraire de l’ Afrique de l’ Ouest;

. 1996 – 00 – Trabalhou como consultor da UNICEF no exercício de Planificação Estratégica por objectivos e Programação do um novo ciclo de acções e Projectos;

. 1996 – 00 – Trabalhou na Guiné-Bissau como consultor na Planificação Estratégica por objectivos para o FNUAP, onde teve responsabilidades pelo sector “Advocacy/Plaidoyer”;

. 1996 – 00 – Trabalhou como professor de Literaturas Africanas de expressão portuguesa na Escola Normal Superior “Tchico Té” em Bissau;

. 1997 – 2000 – Desempenhou as funções de Vice-presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos;

. 1997 – 00 – Produção, realização e apresentação de inúmeros programas radiofónicos de interesse público e pesquisa histórica: Rádio Difusão Nacional da Guiné-Bissau e “Rádio “Pindjiguiti”;

. 1997- 00 – Trabalhou como consultor da Plan International/Bissau na Avaliação do Programa Nacional “O Sistema de apadrinhamento de crianças da Guiné-Bissau”;

. 1997 – 1998 – Trabalhou como consultor da UNESCO, desempenhando as funções de Investigador do SPHAC (Projecto de Salvaguarda do Património Histórico da África Contemporânea): os casos da luta de libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde, com sede na cidade da Praia, Cabo Verde;

. 1998 – 00 – Trabalhou como consultor da Amnistia Internacional em Moçambique (Maputo, Beira, Nampula, Nacala e Nacala-Porto) e Joanesburgo (África do Sul), na elaboração do relatório de 1998 sobre os direitos Humanos em Moçambique e na África do Sul;

. 1999 – Após o conflito armado de 1998 na Guiné-Bissau, trabalhou na área de Projectos como consultor contratado da AMIC (Associação dos Amigos da Criança) e da LGDH (Liga Guineense dos Direitos Humanos);

. 1999 – 2001 – Assumiu as funções de Coordenador do Projecto SPHAC da UNESCO (Projecto de Salvaguarda do Património Histórico da África Contemporânea), de que resultou a elaboração do livro “Uma Luta, Um Partido, Dois países”, de Aristides Pereira, ex-Presidente da República de Cabo Verde;

. 2001 – 2005 – Prelector de várias conferências, seminários e colóquios na Guiné-Bissau, Portugal, Brasil, Moçambique, Cabo Verde, Senegal, Guiné-Conakry, Angola, Brasil, Moçambique, Togo, Nigéria, Costa de Marfim e outros países;

. 2003 – 2007 – Secretário Executivo da Guineáspora – Fórum Mundial de Guineenses na Diáspora;

. 2005 – 2006 – Consultor contratado da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) onde realizou um inventário crítico (comentado) do espólio documental, bibliográfico e arquivístico relativo aos 10 anos da organização;

. 2005 – 2006 – Participação na Guiné-Bissau no Exercício de Avaliação do Projecto “Compreender e ajudar as crianças Talibés”, projecto desenvolvido em parceria pela AMIC (Associação dos Amigos da Criança e a PLAN INTERNACIONAL;

. 2008 – Professor convidado de História Contemporânea de África no Curso de verão em Cambrilis, promovido pela Universidade Rovira i Virgili, Tarragona, Espanha;

. 2008 – Arguente principal nas provas de dissertação da tese de mestrado de Antero Monteiro Fernandes, intitulado “Guiné e Cabo Verde: da Unidade à separação”, defendida em Abril de 2008 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto;

. 2008 – 2010 – Chefe de Departamento de História da Universidade de Cabo Verde;

. 2010 – 2011 – Presidente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Cabo Verde;

. 2011 – 2012 – Investigador do CES (Centro de Estudos Sociais) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra;

. 2012 – Arguente principal nas provas de dissertação da tese de doutoramento de Maria Anabela Ferreira da Silveira, intitulado “Dos nacionalismos à guerra de libertação angolanos – 1945/1965”, defendida publicamente em Junho de 2012 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto;

. 2013 – “Quem é o inimigo? Anatomias de guerras revolucionárias: uma análise da Guiné-Bissau “-comunicação apresentado na oficina recentemente organizado pelo CES (centro de estudos sociais, Universidade de Coimbra) quem é o inimigo? Anatomias de guerras revolucionárias”, de Janeiro de 2013;

. 2013 – Consultor/Expert para Guiné-Bissau para o novo projecto de avaliação global da democracia (variedades de democracia – V-Dem) do departamento de Ciência Política da Universidade de Gotemburgo e a Kellogg Institute, University of Notre Dame), Janeiro de 2013. (...)

********************

2. A notícia apanhou-nos a todos de surpresa. O nosso editor Luís Graça enviou esta manhã à tertúlia a mensagem que se segue:

Amigos/as e camaradas: 

Mais uma triste, brutal notícia que chega à Tabanca Grande... Morreu o Leopoldo Amado (, historiador, guineense de Catió, nascido em 1960). Foi um dos nossos primeiros tertulianos, tendo-nos ajudado a "construir a ponte" com a Guiné-Bissau e a sua história recente... 

Entrou para a Tabanca Grande em 7 de setembro de 2005...

Guiné 63/74 - P159: Tabanca Grande: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia

Tem valiosa colaboração no nosso blogue... 

Alguns de nós foram ao seu doutoramento, aqui em Lisboa, em 28 de maio de 2007.



Depois seguiu a sua vida... Estive com ele em março de 2008, bem como o Julião Soares Sousa, e vários de vós, no Simpósio Internacional de Guiledje (março de 2008)... Foi colaborador íntimo do Pepito na organização da temática do Simpósio... Encontrei-o, pela última vez, há uns anos, na Feira do Livro de Lisboa...

Era um homem extremamente culto e afável... Um grande lusófono e humanista... E patriota. 

 É uma grande perda para todos nós, portugueses e guineenses... Sei que tinha família em Londres. Para eles a nossa solidariedade na dor.

Àqueles de vós que o conheceram melhor, gostava de pedir um pequeno depoimento para publicação no blogue.

Mantenhas.
Luís Graça


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3. Outra notícia, igualmente triste, chegou-nos esta tarde por intermédio do nosso amigo Patrício Ribeiro através desta mensagem:

Luís,

As más noticias correm rapidamente.

Quando o conheci pela primeira vez em Bissau, no Restaurante Jordani, preparava-se para lançar o Livro sobre a História das "Guerras Internas" e Colonial, das últimas décadas, na Guiné.

Brinquei com ele, e disse que não acreditava que ele o conseguisse editar, pois muitos estavam a escrever sobre o assunto, mas nunca conseguiam publicar ...

Quando mais tarde tive a possibilidade de o ler, foi uma grande surpresa... ainda hoje funciona, para mim, como o livro de História da Guiné recente.

Infelizmente a mãe dele também faleceu este fim de semana, conforme informações que recebi hoje de Bissau.

Perdemos mais um filho da Guiné, um grande intelectual.

Abraço
Patrício Ribeiro


4. Notícia posterior do nosso camarada Paulo Santiago:(que é engenheiro técnico agrícola, com bons amigos em Bissau):

Acabei de falar (faço-o várias vezes) por vídeo chamada com um meu colega de Bissau, grande amigo do Leopoldo Amado.

Tanto a mãe,como ele, foram vítimas do Covid. O Leopoldo esteve internado na UCI em Bissau, posteriormente transferido para Dakar, onde acabou por falecer.

Que descanse em paz.

Cuidem-se.


Santiago.

26 de janeiro de 2021 às 11:58


5. A tertúlia e os editores deste Blogue associam-se à dor da família do Dr. Leopoldo Amado, não só pela sua perda mas também pela morte da senhora sua mãe. As nossa mais sentidas condolências. 

OBS: - O Dr. Leopoldo Amado tem uma vasta colaboração no nosso Blogue, além de outras referências ao seu trabalho enquanto historiador.

Tem 88 entradas que podem ser acedidas pelo marcador Leopoldo Amado

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segunda-feira, 9 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20716: Notas de leitura (1271): “Bacomé Sambu”, por Afonso Correia; edição de autor, Lisboa, 1931 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Dentro do inventário que Leopoldo Amado fez ao período ascensional da literatura colonial guineense, ele faz uma chamada de atenção a este livro apodando-o de paternalista e moralizador, já que a personagem Bacomé Sambu aparece como um produto acabado das regas da civilização dos brancos. Não contestando a base paternalista, acho que Afonso Correia nos legou uma obra com variados méritos: é a primeira vez, no século XX, que se dá a conhecer Cacine, o povo Nalu, os seus usos e tradições, as contendas religiosas advindas do islamismo; Afonso Correia é manifestamente crítico dos "branquinhos", os diretos exploradores dos indígenas.
Estamos em 1931, dera-se a pacificação, Cacine era uma parcela recentíssima da Guiné Portuguesa e Afonso Correia desvela vícios e impreparação da nossa administração colonial. Nada mau para conhecer com um certo grau de isenção essa nova porção do Império.
E goste-se ou não Bacomé Sambu é o primeiro romance escrito por um branco sobre a Guiné.

Um abraço do
Mário


Bacomé Sambu, o primeiro romance sobre a Guiné

Beja Santos

Chama-se “Bacomé Sambu”, o seu autor é Afonso Correia, é apresentado como romance negro, trata-se de uma edição de autor, Lisboa, 1931, capa de Alfredo Cândido. Em Guineidade e Africanidade, Leopoldo Amado estuda este fenómeno da aurora da literatura colonial guineense em torno de Bolama e o aparecimento de periódicos como O Comércio da Guiné. Amado refere o paternalismo dessa literatura, a sua inserção num período de pacificação e de instalação da administração colonial, são narrativas literárias limpadas de exotismo, fascínio da selva, uma literatura pontuada por situações de primitivismo, feitiçaria, embates religiosos. Não se consegue apurar quem foi Afonso Correia, porém, um dos exemplares que se pode comprar online tem a sua dedicatória para Armando Cortesão, muito provavelmente Correia foi funcionário colonial, percebe-se facilmente que não fala de ânimo leve do palco em que se desenrola o seu romance, a região de Cacine, terá mesmo conhecido a outra margem do rio, na Guiné Francesa.

Atribuo uma certa importância a esta obra. Logo quando nos diz (o que era inteiramente verdade naquela época) que “A Guiné Portuguesa, preciosidade africana que o mar beija com tanta sofreguidão, não possui uma história esclarecida da sua colonização, nem abundam elementos escritos que habilitem o observador imparcial a fazer a resenha da sua existência de quase cinco séculos”. E adianta outros pormenores sobre a vida colonial e os seus preconceitos: “O povo selvagem encastelava-se no isolamento das tabancas, entregue aos seus destinos bárbaros por muito tempo, mas onde havia uma civilização a seu modo, uma civilização cujos ensinamentos bons ainda hoje podem servir de lição a muitos homens arquicivilizados”.

O que quer que Afonso Correia tenha feito na Guiné, é manifestamente crítico da composição da administração e explica porquê: “Quando os militares graduados deixaram os postos de comando e regressaram à metrópole, os serviços administrativos ficaram entregues a elementos civis. Quem eram esses elementos? Soldados rasos de ontem, passados à reserva, com umas calças de cotim branco e um chapéu de palha. Nada mais, além de uma compleição psicológica afeita a todas as possíveis brutalidades”. Mas ajuíza que nem todos os civis foram maus nem todos o são felizmente. Aliás foi um desses bons administradores que originou a fatura deste romance, pelo seu acrisolado patriotismo.

O romance Bacomé Sambu desenrola-se em Cacine, terra de Nalus. Chegaram uma nova autoridade, ele pôs ao seu serviço particular “um pretito dócil”. Deram-lhe um nome diferente, Bacomé, enquanto ele estudava e aprendia as regras dos brancos, à sua volta dardejavam-lhe os comentários mais ácidos: “Não vês que um preto nunca pode chegar a branco? Este livro não te muda a cor e o teu pior destino, a tua mais horrível condição, como a nossa, é essa cor negra, eternamente negra”. Mais tarde, o administrador teve de sair de Cacine, “por motivos a que não era alheia a trica indígena do fabrico dos brancos, a trinca dos aventureiros”.

Bacomé já está em litígio com os usos e costumes da sua tabanca de Nalus, irá refugiar-se na selva, esta é o melhor aconchego dos mártires. Maravilham-no as belezas que dali se avistam até ao Tombali, o fritambá, a onça, a selva é espaço de formação: “É o cadinho onde se depuram sentimentos agrestes e onde se forma o carácter, no contexto exclusivo da Natureza. Viveu na selva, mesmo por momentos, é tatear o mistério, desvendar as incógnitas do Além, chegar ao paraíso”. A tabanca de Bacomé, o seu berço natal é Cametobã, ele foge para a selva porque não se quer sujeitar às regras do fanado e por lhe ter sido negada a rapariga mais formosa da tabanca. O régulo Queta manda-o procurar no mato, em vão, Bacomé atravessa o rio Cacine e chega ao contacto com uma família francesa cujo chefe se chama Antoine Dumont, “tem as faces inchadas, cor de rabanete e ostenta uns louros e fartos bigodes farfalhudos”. Tinha dois filhos, um corajoso caçador profissional e uma linda estampa da selva. O francês fala-lhe no macholi, o poderoso irã dos Nalus. Desperto pela curiosidade, Bacomé vai até à tabanca de Cabudu onde o respetivo régulo lhe propõe uma prova de resistência, irá procurar defuntos. Regressa triunfante e recebe como prémio uma bela mulher. Toma a decisão de voltar à sua terra natal.

Neste ponto da obra Afonso Correia introduz novos elementos que nos ajudam a interpretar o que seriam as grandes questões que se punham à administração naquele período da pacificação, ainda na década de 1920. Há uma crítica explícita aos mouros, que riscam da vida indígena todos os naturais extintos do trabalho, é impensável que alguém possa trabalhar nos campos com aquelas indumentárias próprias para dias de festa. E escreve-se claramente que “o fanado, o macholi e o mauritanismo são os três maiores tornados que devassam a loira seara da vida forte”. O romancista aproveita para criticar a duplicidade religiosa do régulo Queta, um alarve que namoriscava as fórmulas de Maomé sem esquecer as práticas do feiticismo primitivo. Bacomé, pelo seu grau de civilização, torna-se um educador muito apreciado pelas crianças, diz-lhe abertamente: “O rei Queta que vos ensina a derrota que sofreu quando, há anos, abandonou o seu chão para ir provocar os fulas. Estes, segurando as armas fornecidas pelos brancos, aplicaram-lhes um grande castigo”.

Faz-se uma exposição sobre o fanado e o batuque, assiste-se a uma cerimónia fúnebre do rei Camará, régulo vizinho. Bacomé diz às crianças que “os homens são todos iguais ao nascer, seja qual for o colorido da pele que o irã lhes dá. Há brancos e branquinhos, estes são os que vivem à custa dos brancos, andam no mato a farejar os negócios, comem-nos tudo”.

Afonso Correia conhecia seguramente ao milímetro este território, diz-nos que os Nalus de Cacine procuravam o território francês para as suas relações comerciais, económicas e cíveis, mas também esclarece que não procurava a autoridade francesa procurava sim os Nalus, seus irmãos, os sossos, seus aliados e aparentados. Afonso Correia discreteia entusiasticamente sobre os encantos da parte mais setentrional da Guiné, exalta a produtividade agrícola, aquelas terras davam milho, feijão, amendoim, coconote, borracha, arroz, todas as culturas hortícolas dos países brancos. E não ilude os gravíssimos erros da administração que fustigava os indígenas em vez de os acarinhar.

E ficamos-lhe a dever uma impressiva discrição de Cacine:
“Cacine, ao tempo, era um pequenino burgo indígena, sem ruelas, sem becos, um largo terreiro a embranquecer-lhe a face, algumas colheiras, uns débeis pezitos de coqueiros, dois barracões velhos, esburacados, cobertos de zinco que semelhava largos crivos de regadores, quando a chuva tamborilava sobre ele; a branca e pequena casa do secretário e o casarão abarracado, de madeira velha, com resguardos exteriores de zinco pintado a negro, onde se instalava, opípara e majestosamente, o “comandante Espinha”. Uma varanda erguida a toda a roda do casarão, com pavimentos de cimento armado, desenhos e cores de asfalto, duas bonitas laranjeiras a esconderem as arestas angulares da frontaria, uma cozinha estreita, mas severa de cortes, uma casa de banho, improvisada, um jardinzito amigo e terno, rosas a abrirem-se, brisas do rio a mordê-las, pássaros a debicarem nas pétalas, o rio largo, a ponte estreita e curta, barriga de pedregulho e cimento, quebrada com o longo e insistente martelar das águas salgadas”.

Admito que Bacomé Sambu não tem a qualidade literária que vai surgir, em 1934, com Auá, o romance premiado de Fausto Duarte e incensado por Aquilino Ribeiro. Mas não deixa de ser um retrato impressivo desse Sul da Guiné que até há dezenas de anos era território francês cedido como contrapeso à perda do Casamansa. Mais uma razão para se ler os comentários críticos, a denúncia da exploração e até da religiosidade trazida pelos mauritanos, ao arrepio dos usos e costumes dos Nalus.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20707: Notas de leitura (1270): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (48) (Mário Beja Santos)

sábado, 7 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20708: (D)o outro lado do combate (58): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte V (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)


Inácio Soares de Carvalho [Naci,
Nacy ou Nassi Camará,
nome de guerra]
[foto: arquivo da família
]

Rafael Barbosa [Zain Lopes,
nome na clandestinidade]
 [foto de Leopoldo Amado,
Bissau, 1989]





Com a prisão de ambos, em narço de 1962, o PAI / PAIGC fica decapitado, na Zona 0 (Bissau) (*). Ao Naci Camará foi "fixada residência" no Campo de Chão Bom, Tarrafal, Santiago, Cabo Verde.  Zain Lopes ficou em Bissau, com a "obrigação" de se apresentar todos os dias na sede da PIDE...



Carta de Amílcar Cabral para Nacy [Nassi ou Naci...] Camará, com data de 1 de abril de 1962,  reagindo com muita emoção à notícia da prisão de Rafael Barbosa [Zain Lopes] e outros dirigentes do PAI [PAIGC] da Zona 0 [Bissau]... e dando instruções aos militantes que escaparam...

O destinatário, o Inácio Soares de Carvalho,  já não chegaria a ler esta carta, uma vez que também ele caira, quinze dias antes, em 15/3/1962, nas mãos da PIDE...  Foi um golpe duríssimo para Amílcar Cabral e para o seu partido, o PAI (mais tarde, já em 1962,PAIGC), que ficou decapitado, pelo menos na Zona 0 (Bissau) (**). Rafael Barbosa era o presidente do comité central, e figura de prestígio entre os mais jovens.

De entre as 10 ações que o secretário-geral, a partir de Conacri, preconiza, destaque para a nº 5:

"Levar o povo - todos os trabalhadores de todos os ramos -  a não fazer nada para os portugueses, a não trabalhar, a não pagar impostos, a desprezar os colonialistas. Começar a matar os agentes da PIDE. (sic")

Citação:
(1962), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37408 (2020-3-6) (Com a devida vénia...)


Fonte:
Portal Casa Comum
Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 04609.055.004
Assunto: Notícias sobre a prisão de Zain Lopes , Momo e Albino. 
Instruções em relação à prisão dos referidos camaradas.
Remetente: Amílcar Cabral
Destinatário: Nacy Camara
Data: Domingo, 1 de Abril de 1962
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência dactilografada 1962-1964.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral


1. Recorde-se o que escreveu aqui  Leopoldo Amado (historiador e nosso grã-tabanqueiro: tem 86 referências no nosso blogue, )  a propósito destes acontecimentos de março de 1962, que foram um duro revés para o PAI (sigla reformulada em finais de 1962, em que passou a ser PAIGC)(**):

(...) "O estabelecimento da sede do PAI em Bissalanca data de 1959, tendo funcionado até Fevereiro de 1962, altura [, na madrugada do dia 13 de março de 1962,] em que foi detectada e tomada de assalto pela PIDE com a ajuda de elementos do Exército português, tendo aí sido presos Rafael Barbosa, Momo Turé, Paulo Pereira de Jesus e outros elementos proeminentes do PAI surpreendidos em pleno sono. 

"Com a sede do PAIGC tomada de assalto pela PIDE e preso Rafael Barbosa, seu principal animador, foi desmantelada a rede clandestina do PAIGC em Bissau. 

"A alguns nacionalistas foram fixadas residência em Chão Bom, Tarrafal, excepto Rafael Barbosa que a troco de "colaboração", foi-lhe fixada a obrigatoriedade de se apresentar todos os dias na sede da PIDE em Bissau. Foi apreendido na sede do PAIGC imenso material de propaganda que incluía inúmeros panfletos, correspondências de Amílcar Cabral, para além de armas." (...)

Muitos destes factos, que hoje pertencem à Hustória dos nossos países (Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde),  são, ainda desconhecidos da grande maioria dos nossos leitores.


2. Continuação da publicação de excertos do manuscrito   "Memórias da Luta Clandestina" (entretanto publicado, na Praia, capital de Cabo Verde,e lançado, no passado dia 30 de janeiro) (***). 

A reprodução desses excertos, no nosso blogue,  foi-nos devidamente autorizada por Carlos de Carvalho, filho de Inácio Soares de Carvalho. 



 Inácio Soares de Carvalho (1916-1994)


Nasceu na Praia em 29 de Abril de 1916. Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa da colónia portuguesa. 

Trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, desde 1939, até ser detido pela PIDE em 15/3/1962. 

Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG – Movimento para Libertação da Guiné, por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.

 Inácio Soares de Carvalho, que nunca viveu na clandestinidade, contrariamente ao Rafael Barbosa, será preso pela primeira vez pela PIDE, na filial do  BNU em Bissau, onde trabahava há mais de duas dezenas de anos.  É então deportado,  para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas), aonde chega no início de setembro de 1962, numa leva de 100 presos, guineenses. Três anos depois, em 16/10/1965 e transferido para colónia penal da ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós.

Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau, até conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974.  Há uma escassa meia dúzia de documentos no Arquivo Amílcar Cabral com o seu "nome de guerra", Nassi ou Naci ou Nacy Camará. 

Pertencia à "secção de informação e controle" do PAI (sigla original do PAIGC)  em Bissau, ele e o Rafael Barbosa (c. 1926-2007), reportanto diretamente a Amílcar Cabral, que vivia em Conacri. Em outubro de 1961, Rafael Barbosa, de etnia papel (Zain Lopes, na clandestinidade), é nomeado Presidente do Comité Central do PAIGC. 

Nos final dos anos setenta, Inácio Soares de Caravalho regressa à sua terra natal, Praia, Cabo Verde, e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em dezembro de 1994, sem ter visto publicadas as suas memórias políticas que comecçou a escrever, "após incessantes insistências dos filhos", e que deu por concluídas em 1992. 

"Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC." 

(Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné, complementadas por LG.)

É possível haver um lançamento do livro em Lisboa. Em Cabo Verde, a edição é de autor e teve vários patrocínios.


3. Excertos do livro "Memórias da Luta Clandestina" - Parte IV (*)

(Continuação) 


A PIDE descobre a Base do Partido na Zona 0  (**)


No dia 11 de março de 1962, um domingo, o Pedro Ramos  teve a ousadia e o descuido de nos introduzir na Base o seu colega e amigo de infância, Carlos, mais conhecido por “Cacai Boca”. Esse facto acabou por constituir nossa desgraça.

Efectivamente, após o "Cacai" ter saído da Base, a sua primeira preocupação, como um “Bom Português”, foi dirigir-se imediatamente ao nosso inimigo e denunciar-nos. Estamos todos certos de ter sido ele, pois, tendo saído da Base no Domingo, 11, logo na madrugada do dia 13, terça-feira, surpreenderam Rafael Barbosa, Pedro Ramos, Momo Turé, Paulo Pereira de Jesus e Jorge da Silva, proprietário do lugar onde tínhamos instalada a Base. 

Pedro Ramos conseguiu fugir, dando um forte golpe a um soldado que o tinha segurado. Os outros foram todos presos e levados para a cadeia.  Pedro Ramos conseguiu ainda alertar o Albino Sampa que dormia numa casa que se situava um pouco mais afastada. Assim, os dois conseguiram fugir, tentando nessa mesma madrugada me contactar, o que era obviamente impossível. Quando amanheceu, logo cedo, apareceu em minha casa um jovem a dar-me a triste noticia de que prenderam o Rafael [Barbosa] e os outros colegas que dormiam com ele na Base.

No dia 13 de março de 1962 , cerca das 9 horas da noite, apareceram-me lá em casa o Albino Sampa e o Pedro Ramos. Com a porta fechada e a minha mulher de vigilância durante todo o tempo em que estivemos reunidos, contaram-me então como tudo se passou e começamos a buscar soluções para sairmos da situação difícil em que nos encontrávamos.

[...] Aproveitei para fazer um comunicado para o nosso Líder, narrando-lhe os últimos factos ocorridos; determinei também que avisassem todos os responsáveis e militantes para retirarem imediatamente para fora das fronteiras da Guiné, porque cedo ou tarde a PIDE chegaria a eles também; caso fossem apanhados, seriam barbaramente maltratados e estariam na contingência de perderem a vida. Esta minha decisão, enquanto Responsável de Segurança, era para evitar todo o mal que podia vir a acontecer. Também aproveitei para lhes dar um pouco de dinheiro para as despesas que teriam na fuga.


A terceira leva de prisão de dirigentes 


Foram presos o Menezes [Alfredo Menezes d’Alva] e o João Barbosa, primo do Rafael; poucos dias depois, levaram o Rosendo. 

Com estas prisões, tudo paralisou de novo, pois, os três companheiros presos tinham muita influência no desenrolar de nossa luta clandestina. Como devem compreender, eu estava mesmo desesperado e desanimado com a situação.

No dia seguinte às prisões, fui ter com a D. Irene [Fortes, esposa do Fernando Fortes ] e contei-lhe o sucedido, mas ela notou na minha cara que mesmo eu mostrava desânimo com o acontecido. Ela então com gesto de coragem falou comigo de forma brusca:

- O Sr. Inácio tem que ter coragem e saber enfrentar todos obstáculos que nos depararem.

Amigos, quando uma mulher diz a um homem assim, por mais fraco de espírito que fosse, teria que ter coragem e reagir. Depois de contar ao Rafael a conversa que tive com a D. Irene, ele então como homem decidido disse-me que realmente é assim mesmo que tem de ser, é preciso não desencorajar, nem desanimar; a luta é assim mesmo.

Dali então, ainda mais encorajado, me empenhei totalmente para o desenvolvimento de nosso trabalho, contando sempre com o firme apoio dessa mulher que,  mesmo tendo seu marido preso, nunca se desencorajou. Foi seguramente das primeiras firmes e corajosas mulheres que desde a primeira hora incorporou os ideais de nossa luta de libertação. Ela, por seu lado, enquanto o marido esteve preso, teve sempre o apoio e encorajamento de seu cunhado, o Alfredo Fortes [1].

Tendo encontrado o lugar seguro e dava-nos grande confiança.


A primeira prisão de Nassi Camara 


No dia 15 [de março de 1962], antes das 8 horas da manhã, apareceram dois agentes da PIDE na Gerência do Banco [, BNU]. Esses agentes foram falar com o nosso Gerente, Sr. Arruda, a explicar-lhe que foram à minha procura, mandados por um Inspector da PIDE, o Costa Pereira. 

O Gerente mandou-me chamar com o Saco Cassama, servente do Banco. Ao passar pela secção das Correspondências, ele alertou-me que estavam lá dois brancos que lhe parecia que eram agentes da PIDE. Quando me apresentei ao Gerente Arruda, ele apontou-me os dois homens,  dizendo que precisavam de mim. Estes convidaram-me para os acompanhar.

[...] Assim foi a minha primeira prisão, no dia 15 de Março de 1962, uma 5ª feira.


1ª passagem pela Ilha das Galinhas 


Na madrugada de 1 de setembro [de 1962], foram buscar-nos em Mansoa para levar à ilha das Galinhas.

Via João Landim [no rio Mansoa] , fomos levados no porão do barco "Formosa". Chegamos à ilha das Galinhas cerca das 16 horas. De seguida, fomos levados para o acampamento, onde já se encontravam outros presos oriundos da Zona Sul.

Na noite de 1 de setembro, dormimos todos nós presos concentrados num pavilhão grande. Naquela noite tiraram dois irmãos e foram matá-los a tiro. Só nós, que vivemos na pele as atrocidades cometidas pelos salazaristas, podemos contar o sofrimento que passamos, nessa altura da luta.


Da ilha das Galinhas para destino desconhecido


No dia 2 de setembro, de manhã cedo, tiraram-nos num total de 100 presos e encaminharam-nos para o Porto da Ilha das Galinhas, onde tínhamos desembarcado no dia anterior; meteram-nos no porão do mesmo barco "Formosa", com o rumo à Estação de Pilotos em Pontom; de seguida, meteram-nos no porão do vapor "África Ocidental" com destino desconhecido por nós. 

Só viemos a saber onde estávamos quando chegamos ao Porto do Tarrafal [em Santiago, Cabo Verde] onde nos mandaram sair de porão como animais de carga. Passamos muito mal durante todo o caminho. 

[Revisão / fixação de texto, para efeitos de edição neste blogue / notas dentro de parènteses retos: LG]

(Continua)
________________

Nota de Carlos de Carvalho

[1] Alfredo Fortes, natural da Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, era na altura Chefe da Alfândega de Bissau. Na Guiné, foi também Presidente do grande clube desportivo UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau).

Após a independência, desempenhou as funções de Embaixador de Cabo Verde na Holanda. Foi Deputado pelo MpD [Movimento para a Democracia] na II República. Morreu na sua ilha natal nos anos 90.
________________

Notas do editor LG:

(*) Listagem das zonas do PAIGC (cada uma com o seu responsável):  

Zona 0 - Bissau; Zona 1 - S. Domingos; Zona 2 - Farim; Zona 3 - Gabú Norte; Zona 5 - Gabú Sul; Zona 6 - Bafatá Norte; Zona 7 - Bafatá Sul; Zona 8 - Fulacunda; Zona 9 - Bissorã; Zona 10 - Cantchungo; Zona 11 - Bedanda; Zona 12 - Bijagós; Zona A - A determinar (Documento manuscrito, s/d, Arquivo Amílcar Cabral / Casa  Comum / Fundação Mário Soares)

(**) Vd, poste de 25 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P569: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

(***) Vd. postes anteriores da série >

5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20705: (D)o outro lado do combate (57): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte IV (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

3 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)

29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)