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sábado, 22 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20673: Fotos à procura de... uma legenda (124): o meu pai era um homem que cumpria a lei que proibia armas de guerra a civis... A tal pistola metralhadora FBP deve ter-lhe sido emprestada por alguém para a pose fotográfica (Lucinda Aranha, escritora)




Guiné > s/l > s/d  > c. 1950/60 > O empresário de cinema Manuel Joaquim dos Prazeres, também caçador... Usava carabinas de caça, mas não armas de guerra... 

Fotos (e legenda): © Lucinda Aranha (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legemdagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagens (duas) da nossa amiga e grã-tabanqueira, escritora, filha do Manuel Joaquim dos Prazeres, o homem do cinema ambulante no nosso tempo, na Guiné, Lucinda Aranha, autora de uma biografia ficcionada do pai,  a que chamou "romance" ( "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim"-Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.)


Sexta, 31/01/2020, 20:39:
Luís,

(i) Relativamente a armas de guerra, quer o Faxina quer o Daniel Levy nunca ouviram falar em tal, só lhe conhecem [, ao meu pai,] as armas descritas no meu livro. Ambos vão falar com grandes amigos do meu pai para confirmarem se alguma vez o viram com tais armas. Envio 2 fotos com a célebre carabina [, reproduzidas acima];

(ii) Envio a carta do Carlos Geraldes,  escrita a um cunhado meu antes de eu ser aceite como tabanqueira e o conto "O Dia de S. Cinema": naa altura abandonei a ideia deste meu último livro , tendo escrito então "No Reino das Orelhas de Burro" [, será publicado um poste aparte com esta carta e este conto do nosso saudoso Carlos Geraldes (1941-2012), de Viana do Castelo;

(iii) Envio a notícia do "Eco de Cabo Verde",  de 9 de Setembro de 1934, sobre a paragem do zepellin sobre Santiago, em 2 de Setembro , ou seja, no domingo anterior à saída deste número do jornal [, também a publicar em poste aparte];

(iv) Envio 3 fotos que penso serem de uma sessão de endoutrinação levada a cabo pelo exército e autoridades locais [, presunivelmente em "chão fula", talvez região de Gabu ou região de Bafatá]. Não consegui que ninguém soubesse exactamente do que se trata, mas como aparecem militares talvez no blogue descubram [, igualmente a publicar mais tarde].

Beijos, Lucinda

Sexta, 21 de fevereiro de 2020, 10:50
Luís,

A propósito da arma com que o meu pai aparece na fotografia do poste P20601 (*), consultei vários amigos. Falei com o Carlos Freitas que confirma ser uma G3 BP [, ou melhor, pistola  metralhadora FBP,  portuguesa, da Fábrica Braço de Prata]  mas nunca viu o meu pai com uma arma de guerra nem nunca ouviu falar em tal.  É sua opinião que lhe fora emprestada para a fltografia. 

O Pereira pensa o mesmo, acrescenta que tinha 2 carabinas de caça, uma com mira telescópica, uma delas italiana e Flaubert.

Diz ainda que o meu pai era um homem que cumpria a lei que proibia armas de guerra a civis. O Daniel Levy, o Faxina, o Peralta subscrevem a opinião de que a arma foi emprestada psra a fotografia. 

Quanto à máquina de projectar, o Pereira, que foi um dinamizador e membro da admnistração da UDIB, embora não ligado ao cinema, pensa que seria igual à da UDIB porque tinham um acordo, trocando filmes. 

Como te disse, o Carlos Geraldes fala nela e até ao momento é fonte única. Não sei se há algum espólio , embora duvide,

Sobre o clube mas já agora vou perguntar ao Tony Tckeca.

Já conseguiram alguma pista sobre as fotografias dos militares [, em sessão de "psico"]?

Saudades, Lucinda

2. Resposta do editor Luís Graça:

Lucinda, obrigado pelo teu empenho, dedicação e honestidade intelectual na tentativa de esclarecer a questão da arma de guerra que o teu empunha numa das fotos que publicaste no teu livro (*)...

Mss não se trata de uma G3, espingarda automática com que fizemos a guerra colonial, e equipou o exército português até há meses...Trata-se, sim, em princípio,  de uma pistola metralhadora FBP [, Fábrica Braço de Prata]. 

O que dizes sobre o assunto, recolhendo testemunhos de amigos dele, pode bater certo: seria um arma de algum administrador ou chefe de posto, emprestada ao teu pai para a fotografia... O exército usou pouco esta arma, a FBP (, a não ser logo no início em Angola...). Estava distribuída às forças militarizadas (PSP, etc.), incluindo possivelmente a polícia administrativa da Guiné (, uma hipótese a confirmar)...

Vou publicar os teus esclarecimentos, começando pela questão da arma de guerra... Em casa, em Lisboa, quando vinha de férias no tempo da chuva, o teu pai nunca vos falou de armas de guerra... Já tinhas confirmado isso. Então, a arma em questão podia bem ser de algum algum amigo, e ele tinha muitos entre os  administradores e chefes de posto, espalhados pelo mato... (**)

Quanto ao Carlos Geraldes, terá  um tratamento à parte, bem como as fotos dos militares que mandaste há 3 semanas atrás...  Por outro lado, gostava de saber se  tens alguma informação adicional sobre o comerciante Mário Soares [M. Santos, para o Carlos Geraldes), que vivia em Pirada ?... Ele era amigo do teu pai... Era um homem influente, com boas relações com o Senegal (e também com  os dois lados da guerra, as NT e o PAIGC)... Já li algures, que ele ficou inclusive mais um ou ano  dois na Guiné, após a independência... Vou fazer uns postes sobre ele, a partir do material (incluindo fotografias), de que dispomos...
______________


quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20606: Fotos à procura de... uma legenda (117): ainda a marca e o modelo da pistola-metralhadora do "Manel Djoquim", o homem do cinema ambulante que, mesmo em plena guerra, tinha fama de ir a todos os sítios...



Mapa da Guiné > s/d > c. 1975 > Povoações, assinaladas com um retãngulo onde o Manuel Joaquim dos Prazeres teria ido, uma ou mais vezes, com o seu cinema ambulante, ao longo de 3 décadas (entre 1943 e 1970). 

Perguntei à autora qual o "signifiacado" deste mapa da Guiné (, pós.independência, pela toponímia: Cachungo, Quebo, Gabu...). As principais povoações estão assinaladas com um retãngulo... A minha hipótese era  seren sítios por onde o "Nequinhas" tinha passado com a sua carrinha... Mas será que ele chegou mesmo a ir a Cabuca e a Madina do Boé ? Esta última parecia-me de todo improvável, no tempo da guerra... Até porque só particamente tropa e meia dúzia civis... A tropa não o deixaria lá ir... A estrada era um cemitério de viaturas destruídas por minas e emboscadas... Até Nova Lamego e daí até à fronteira norte (, Pirada, por ex.) ainda vá, até meados de 60...


Fonte: Adapt de Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, pp. inumeradas [6-7].



Guiné > s/l > s/d > c. 1960 > Não há dúvida que se trata de uma "arma de guerra" e não de caça, uma pistola-metralhadora, talvez a portuguesa FBP m/948 ou m/963... Era uma arma para "defesa pessoal"...  Uma situação que a família desconhecia. De qualquer modo, as opiniões divergem sobre a marca e o modelo da arma:  a portuguesa FBP, as americanas M3 e Thompson, a belga Vigneron, a israelita Uzi... Já foram aventadas várias hipóteses... De qualquer modo, as fotos disponíveis, a cores, do arquivo da família não deixam ver a totalidade da arma e a sua resolução é fraca...

Foto (e legenda): © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Portugal > Caldas da Rainha > RI 5 > Janeiro de 1969 > Visita do então Presidente da República, Américo Tomás: na foto, passando revista a um guarda de ronda... Em primeiro plano, ao centro, o 1º cabo miliciano César Dias, membro da nossa Tabanca Grande, ex-fur  mil sap inf, CCS/ BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71). Os cabos milicianos, Morais e Dias, empunham pistolas metralhadores Uzi, de fabrico israelita.

Foto (e legenda): © César Dias (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Comentários dos nossos leitores:

(i) Valdemar Queiroz (*):

(...) Tanto a FBP, a Uzi e a Vigneron com o percutor fixo na cabeça da culatra facilmente disparavam 'sozinhas'. Acontecia várias vezes, com um simples bater com a coronha numa mesa, haver rajadas descontroladas.

Na guerra da Guiné, julgo que não eram utilizadas em operações e apenas seriam utilizadas em desfiles militares.
´
Parece que estas armas, de pequeno porte e munições derrubantes,  de 9 mm, eram mais utilizadas por forças da polícia. (...)

(ii) César Dias (*):

Nas Caldas [, no RI 5,] os Cabos Milicianos usaram a UZI na guarda de honra ao Presidente da República [, Américo Tomás], em Janeiro de 69, mas não me lembro do modelo.


(iii) Luís Graça:

Aparentemente não há registo do mais pequeno "incidente", na estrada ou nas tabancas, com a velho Ford do Manel Djoquim nem com a sua pessoa... O Ford ostentava, nas portas, um dístico pintado, "Cine-Guiné" (, segundo o testemunho de Carlos Geraldes, carta de Pirada, 3/1/1965) (**).

Será que este "tuga" conseguiu passar incólume pela guerra ? Mas, é bom lembrar, as minas e as emboscadas não tinham "código postal"...

Há, naturalmente, algumas lendas e alguns mitos criados à sua volta... A verdade é que ele só baixou às "boxes" em 1971... Deve ter percebido que o seu tempo estava a chegar ao fim... Mas é um caso absolutamente notável de coragem física, de determinação, de resiliência, de amor à Guiné... Por isso lhe chamo o "último africanista".

Segundo os testemunhos dos amigos seu tempo e dos registos da família, em cerca de três décadas,  dos anos 40 a princípios de 70, o Manuel Joaquim dos Prazeres teria batido  toda a Guiné, de Norte a Sul e de Oeste a Leste... No mapa (adaptado) que a Lucinda Aranha publica, no seu livro, os sítios assinalados  (com um retângulo) vão de Varela a Campeane,  de Caió a Cabuca, de Pirada a Buba, de Bambadinca a Mansabá, de Farim  a Madina do Boé...

O nosso saudoso Carlos Geraldes (1941-2012), que conheceu em Pirada, na véspera do Natal de 1964, escreveu sobre ele:

(...) "Conhecia todos os trilhos da Guiné e tratava quase toda a gente por tu, completamente à vontade e com a maior franqueza. Numa época de guerra como esta que estamos agora a travar, cheia de emboscadas, minas e selvajaria, nada parece deter este velho descendente dos conquistadores de antanho. Não há recanto nenhum da Guiné que ele não conheça e vai a sítios onde a tropa até tem medo de passar ao lado." (...)

O Carlos Geraldes, alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66), não fala em nenhuma pistola-metralhadora, que o Manuel Joaquim  deve ter adquirido (, mas não sabemos como...) na altura o início da guerra... (Enfim, uma questão que a Lucinda Aranha nos prometeu elucidar, recrrendo à memória de amigos do pai, do tempo da Guiné,  que ainda estão vivos...).

Mas pode perguntar-se: qual então o significado da exibição de uma arma de guerra, uma pistola-metralhadora, que não servia para caçar ?  Era também uma "insígnia" que podia  ter várias leituras: para a PIDE e a tropa e para o PAIGC... mas também para os amigos e até para a família em Lisboa..


2.Perguntei à autora qual o "signifiacado" deste mapa da Guiné (, pós-independência, pela toponímia: Cachungo, Quebo, Gabu, Boé...). 

As principais povoações estão assinaladas com um retãngulo... A minha hipótese era  serem sítios por onde o "Nequinhas"(, nomi ho ternurento pelo qual era tratado no seio da família em Lisboa...)  tinha passado com a sua carrinha...

Mas será que ele chegou mesmo a ir a Cabuca e a Madina do Boé ? Esta última parecia-me de todo improvável, no tempo da guerra... Até porque havia só particamente tropa e meia dúzia civis, até à sua retirada em 6/2/1969...

A tropa não o deixaria lá ir a sítios como Madina do Boé... A estrada era um cemitério de viaturas destruídas por minas e emboscadas... Até Nova Lamego e daí até à fronteira norte (, Pirada, por ex.) ainda vá lá, até meados de 60... A questão é que este mapa não aparece no livro com  uma legenda apropriada...

Resposta da Lucinda Aranha (15/1/2020):

(...) Luís, não sei se o meu pai ia, durante a guerra colonial , às localidades que mencionas mas várias testemunhas me disseram que ele até dava cinema aos guerrilheiros e, sobretudo, tenho o testemunho dele próprio segundo o qual podia andar por toda a Guiné que ninguém lhe fazia mal. Inclusivamente enfurecia-se com as diculdades que o governo da Guiné, militares, até a Pide, lhe punham no sentido de parar a sua actividade.

Quanto ao mapa, reconheço que é bastante impreciso até porque, por lapso da editora, saiu sem a legenda e confesso que não me apercebi atempadamente. Por outro lado, tive muita dificuldade em encontrar um mapa mais consentâneo com a época. Desconhecia então que a Tabanca Grande tem um bom acervo de mapas,  como me disse o Carlos Vinhal.


Efectivamente, os rectângulos assinalam os lugares por onde o meu pai andou, embora vários amigos pessoais- o próprio genro do Esteves, o sr Pereira - me tenham afiançado que praticamente eu devia assinalar todas as localidades do mapa. Optei por assinalar apenas as que me apercebi, pelos vários testemunhos, que eram fiáveis. (...).



terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20602: Manuscrito(s) (Luís Graça) (178): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte III

1. Notas de leitura:


Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.


 Continuando a nossa leitura do "romance" ou "biografia ficcionada" do homem dos sete ofícios que foi o Manuel Joaquim dos Prazeres, que nasceu (1901) e morreu (1977) em Lisboa, mas cuja decorreu, em grande parte, em África, em Cabo Verde e na Guiné.(*)

A autora chama "romance" ao seu livro, em parte para contornar as dificuldades que é escrever sobre alguém que nos é tão próximo: o pai, a mãe, a ama, as irmãs, os amigos de casa... É mais simples dizer-se que é um conjunto de histórias de vida, que giram à  volta da figura do "africanista" Manel Djoquim, e das "matriarcas" da família, a Julinha, sua segunda esposa, e a "vovó Nené", a ama das filhas e depois cozinheira, vinda da Praia, Santiago, para Bolama e depois, já a seguir à II Guerra Mundial, para  a casa de Lisboa.

Nomes de figuras mais íntimas (irmãs, cunhados, amigos e seus descendentes...) foram em parte trocados, para evitar suscetibilidades. Mas a nós, aqui, o que nos interessa são as andanças, por terras da Guiné,  do "Manel Djoquim" (, como era conhecido o "homem do cinema", lembrou à autora nosso irmãozinho Cherno Baldé....).

Não vou dizer que é um "livro escrito a quatro mãos". mas tem, sem favor, algumas "dedadas" dos nossos amigos e camaradas da Guiné, do Valdemar Queiroz ao Carlos Geraldes, do Cherno Baldé ao Vital Suane (nomes, de resto, que são citados no livro, pelos seus contributos).

2. Um dos nossos camaradas que conheceu o "velho" Manel Djoquim foi o saudoso Carlos [Adrião]  Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66).  A Lucinda Aranha tentou contactá-lo quando estava a escrever o livro mas ele já tinha tendo morrido, em Viana do Castelo,  em 5 de janeiro de 2012, vítima de ataque cardíaco, aos 70 anos, conforme foi noticiado no nosso blogue (**).

O Carlos Geraldes é citado no livro,  a pp. 85, mas eu não encontrei essa crónica a que ele teria chamado "O dia de S. Cinema",  alegadamente publicada no nosso blogue e também em "O Aurora do Lima". Não encontrei essa, mas encontrou outra, que, espero, tenha sido do conhecimento prévio da Lucinda Aranha. Vamos aqui republicar a parte que nos interessa, em que o Geraldes conheceu, em carne e osso, o "Manel Jaquim", em Pirada, sempre ansiosamente esperado no mato, e de que lhe falavam tanto o chefe de posto coomo o comerciante "M. Santos" (, ou seja, o célebre Mário Soares, de Pirada, por muitos considerado um "agente duplo").  Trata-se de uma das suas cartas, datada de Pirada, 3 de janeiro de 1965, e que é um verdadeiro regalo literário:


Pirada, 03 Jan. 1965

(...) 
Mas, ah! É verdade! Também tivemos cinema por cá! Foi no dia antes da véspera de Natal.

De repente, precedido por uma multidão de miúdos em grande chinfrineira, apareceu na entrada da aldeia, uma grande carripana, um daqueles Ford-T, quase pré-histórico que, ostentava um pomposo dístico, pintado nas portas: “Cine-Guiné”. Ao volante, um velhote de chapéu à colonial na cabeça acompanhado por um negro.

Num abrir e fechar de olhos juntou-se uma pequena multidão que o saudava entusiasticamente enquanto ele estacionava aquela estranha traquitana mesmo no centro da aldeia. Imperturbável saiu e logo se dirigiu para uma das lojas comerciais onde parecia já ser esperado.

Era o Manel Jaquim, o famoso homem do cinema ambulante, de quem o M. Santos e o Chefe de Posto já tanto nos tinham falado que quase o considerávamos como uma personagem lendária.

Convidado a instalar-se em nossa casa, não se fez rogado, erguendo um leito de campanha, com o respectivo mosquiteiro, mesmo no meio do nosso quintal. Ao jantar, revelou-se um indivíduo muito patusco, conversador e filósofo. Apesar de já ter uma idade avançada [, 64 anos...], parecia irradiar uma impressionante força anímica.

Fiel ao velho estilo colonial, de largos calções de caqui azul-escuro, chapéu de cortiça, olhar felino, revelando uma sabedoria de velha raposa, o Manel Jaquim é um sobrevivente de outras eras e aventuras, ao estilo dos filmes de Tarzan e da macaca Cheeta, da nossa meninice.

Conhecia todos os trilhos da Guiné e tratava quase toda a gente por tu, completamente à vontade e com a maior franqueza. Numa época de guerra como esta que estamos agora a travar, cheia de emboscadas, minas e selvajaria, nada parece deter este velho descendente dos conquistadores de antanho. Não há recanto nenhum da Guiné que ele não conheça e vai a sítios onde a tropa até tem medo de passar ao lado.

Rápida e metodicamente montou a velha máquina de projectar de 16 mm, completamente portátil, relíquia que afirmou ter comprado aos americanos, como salvado da guerra do Pacífico e à qual dedica toda a atenção e carinho.  Aproveitando a largueza do nosso quintal, montou ali mesmo a sala de espectáculo, com um enorme lençol branco a fazer de ecrã (que chega para o formato Cinemascópio). 

A toda a volta do recinto colocou uma série de fios com lâmpadas eléctricas. A energia para tudo aquilo é fornecida por um pequeno, mas potente, gerador a gasóleo que também trazia com ele. Na entrada, pendurou meia dúzia de cartazes a anunciar a sessão de cinema para hoje, do Cine-Guiné. À noite o nosso quintal até parecia a Feira Popular.

Empoleirado em cima de uma enorme caixa que, também lhe servia de cofre, mestre Manel Jaquim, com uma impressionante carabina de caçar elefantes, pousada nos joelhos, começou a cobrar os bilhetes aos clientes que acorriam em massa.

Preços: 4$00 para os pretos; 10$00 para os soldados; 25$00 para os comerciantes e oficiais, mesmo para aqueles que, como nós, tinham emprestado o recinto. Cada qual providenciava o assento que lhe fosse mais cómodo ou sentavam-se mesmo no chão. Era engraçado observar a fila de clientes que se ia formando à porta do cinema, todos com os mais variados bancos e cadeiras à cabeça.

O filme, “Hércules e a Rainha ]da Lídia" [ 1959, com Steve Reeves], era mais um daqueles pastelões italianos sobre temas mitológicos mas que, curiosamente, faz sempre as delícias destas plateias, a quem o astuto Manel Jaquim procura contentar.

Apesar de a maioria dos espectadores ser analfabeta e também não perceber nada do que os actores diziam, inacreditavelmente todos pareciam entender a trama, não desviando os olhos ecrã, vibrando entusiasticamente com as proezas do grande herói da mitologia grega. [O filme pode ser visto aqui, legendado, em versão integral, no You Tube
. Sinopse: Hércules vai a Tebas para ajudar o Rei Édipo a encontrar uma saída democrática e decidir qual de seus filhos herdará o trono. Mas o herói bebe da "Fonte do Esquecimento" e perde a memória, ficando prisioneiro da perversa Rainha Ônfale, da Lídia.]
Quando veio o final, aplaudiram maravilhados. (...)

3. Ficamos a saber, pelo Carlos Geraldes, os preços de alguns bens de consumo corrente que se praticavam em Pirada, de acordo com a sua Carta de Pirada, 15 de outubro de 1964:

(...) "A carne de 1.ª é a 150$00 o quilo e as bananas, de excelente qualidade, custam 10$00 cada grupo de 4. As galinhas variam entre 10$00 e 15$00 cada e os cabritos 50$00." (...)

Não esconde, por outro lado, a sua admiração pelo comerciante Mário Soares, um homem "providencial" que resolve tudo e tem tudo, até uma máquina de projetar filmes chamar. Éo M. Santos, na correspondência publicada no blogue: "Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem." (****)

(Continua)

____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

24 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20588: Manuscrito(s) (Luís Graça) (177): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte II

14 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20558: Manuscrito(s) (Luís Graça) (176): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte I

(**) Vd. poste de 3 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13022: Em busca de... (241): Fotos e histórias do cinema ao ar livre e do empresário Manuel Joaquim dos Prazeres, que deambulou pelo território entre 1943 e 1972 (Lucinda Aranha, filha e escritora)


(...) Em tempos, encontrei no vosso site umas crónicas escritas pelo Carlos Geraldes, uma das quais se intitula 'O Dia de S. Cinema'.

Entrei então em contacto com o Diamantino Pereira Monteiro que pôs o meu cunhado José Filipe Soares, que fez o serviço militar na Guiné, em contacto com o Geraldes. O caso é que sou filha do Manuel Joaquim, o personagem dessa crónica que tinha um cinema ambulante com o qual percorreu toda a Guiné entre 1943/70.

Era minha intenção escrever uma biografia do meu pai, projecto que então abandonei porque tinha entre mãos um outro livro que entretanto foi editado pela Colibri. Finalmente, a biografia do meu pai está praticamente acabada, mas não consigo resposta do Carlos Geraldes e também não o encontro como vosso seguidor. Faço-lhe, no entanto, referência no livro assim como ao vosso site. Espero não haver problema.

Também gostaria de poder contar com o vosso apoio, quaisquer informações, divulgação.

Muito obrigada,

Lucinda Aranha Antunes (...)


(***) Vd. poste de 3 de setembro de 2009 >Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

(****) Vd. poste de  28 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20601: Fotos à procura de... uma legenda (116): afinal, o "Manel Djoquim" andava armado,no mato, com uma pistola metralhadora, facto que a família desconhecia... Resta saber a marca e o modelo: é mais provável que fosse a portuguesa FBP m/948 ou até m/963


Foto nº 1 A
Foto nº 1

Foto nº 2 A


Foto nº 2 

Guiné > s/l > s/d > Não há dúvida que se trata de uma "arma de guerra" e não de caça, uma pistola metralhadora, talvez a portuguesa FBP m/948 ou m/963...  Ou a americana M3 (1942), a famosa "grease subgun" ? As opiniões dividem-se... Thompson não parece, pelo punho em madeira...E M3 também não, que os americanos (General Motors) desenvolveram na II Guerra Mundial, mais barata que (e, por isso, substituta de) a Tommy Gun, a Thompson m/927 (, esta, sin, eternida, na Lei Seca, pelo famigerado Al Capone)... Procurámos melhorar a resolução das fotos acima (Fotos nºs 1 e 2) que, por serem a cores, devem ser dos anos 60.


Fotos (e legenda): © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Angola > 1961 >Angola > 1961 > Desfile de tropas > O António Rosinha, furriel miliciano, aparece aqui em primeiro plano, assinalado com um X... O alferes, que vem à frente, e os três furriéis, imediatamente a seguir, empunham pistolas-metralhadoras FBP (Fábrica Braço de Prata) (1)... As praças, brancas e negras, usam a velha Mauser...Mas, diz o Rosinha, "essas FBP estavam inoperacionais em geral, porque as poucas que existiam em Angola eram da instrução, e com tanto 'monta e desmonta' as molas de recuperação já não actuavam. Mas a mim não me fez diferença, pois que, tirando a carreira de tiro, nunca fiz fogo a não ser à caça. Nem fiz nem ouvi. Vivi 200 dias por ano em toda a Angola, durante os 13 anos de guerra, menos a tropa, em barracas de campanha." (*)

Foto (e legenda): © António Rosinha (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não, não estamos aqui a discutir o "sexo dos anjos"... Se efetivamente for uma FBP m/948 ou até m/963, a pistola-metralhadora que empunha o "Manel Djoquim", a questão agora que se põe é a de saber como é que ele a arranjou (**) ...

Tratava-se de uma arma de guerra, distribuída apenas aos graduados do exército e  às forças militarizadas... O António Rosinha usou-a em Angola, como furriel miliciano, não como civil...

Temos de admitir a hipótese de, na Guiné, ter sido distribuída aos comerciantes e demais empresários (madeireiros, etc.), para defesa pessoal... Possivelmente no início dos anos 60, quando há cada vez mais indícios de "subversão": destruição de linhas telefónicas, sabotagens de pontes, raptos e assassínios de civis, incluindo comerciantes, etc. E,  se sim, quem dá ordem para distribuir armas de guerra aos civis ?

Não era arma para a caça de onças e crocodilos... Para esse efeito, o nosso homem tinha que ter uma ou mais caçadeiras de grosso calibre... Enfim, daqui a uns dias, a Lucinda Aranha poderá esquecer esta questão, da FBP, que é nova, para ela... E ficou de nos mandar cópia das imagens que tem nas pp. 80/81, com melhor resolução...

De qualquer modo, obrigado aos nossos leitores pelas diversas achegas..

PS - Mandei à Lucinda Aranha, hoje, às 12h49 a seguinte mensagem: "

"Lucinda: não há dúvida que o teu pai tinha uma arma de guerra, uma pistola-metralhadora...Há disputa, entre os nossos leitores, sobre se é uma FBP m/948 ou m/963 (portuguesa) ou uma M3 (americana, do tempo da II Guerra Mundial)... Que idade é que teria aqui o teu pai nestas fotos [, que reenvio, editadas] ? Devem ser fotos, a cores, dos anos 60... Portanto, ele já teria 60 e picos"..

2. Comentário de Lucinda Aranha, com data de hoje, às 16h43:

Apesar de a família desconhecer, tenho de me render à evidência. Como disse, o meu pai nunca fez serviço militar mas, eventualmente, quis uma arma que lhe desse mais segurança. Ele nasceu em 1901, portanto rondava 60 e pouco quando a guerra começou. O Pereira [, o genro do Esteves,] foi para a Guiné por volta de 1956, vamos ver o que ele dirá.

Uma forma de resolverem as vossas dúvidas era contactarem as relações públicas do exército. Eu contactei por  mail as relações públicas da marinha a propósito da fotografia do jogo de futebol na Praia [, pág. 44: uma equipa de futebol da marinha alemã em visita a Santiago] e o sr Costa Canas foi excelente, não só identificou a nacionalidade dos oficiais como mandou fotografias com os fardamentos dos oficiais alemães. Penso que deviam tentar.

Lucinda

3. Pistola-Metralhadora FBP (m/948, m/963 e m/976) (**)

 A FBP é uma pistola-metralhadora de 9 mm,  desenvolvida a partir de um desenho concebido pela primeira vez, em 1940, pelo maj art Gonçalves Cardoso. Coma a 2ª Guerra Mundial, o desenvolvimento da arma ficou em "stand by". É preciso esperar pelo pós.guerra para que o 948 o projecto de uma pistola-metralhadora portuguesa,  entretanto modificado e melhorado, entre em fase de produção.

Como a sigla sugere, a arma foi produzida na Fábrica do Braço de Prata, em Lisboa, em 1948. Foi adoptada para o serviço como m/948. Nessa altura, o  Exército Português apenas dispunha da Steyr m/938, uma pistola-metralhadora moderna mas em pequena quantidade. 

As primeiras FBP foram entregues,  numa primeira fase às unidades da metrópole, seguindo para as colónias as armas consideradas obsoletas.   Em finais dos anos 1950, a principal pistola-metralhadora usada nas colónias era a Steyer 9mm m/942.  A FBP vinha apenas em  segundo lugar. 

Fachada da antiga Fábrica de Braço de Prata
hoje um "centro cultural privado"
Foto: Cortesia da CM de Lisboa.


"Foi buscar a mola telescópica à alemã MP40 e a culatra amovível em aço, à americana M3 (Grease Gun). Inovador e único em pistolas-metralhadoras, foi a inclusão na m/948, de um grampo fixo debaixo do cano para suporte de uma baioneta Mauser".

A arma era distribuída apenas a  oficiais e sargentos das Forças Armadas e a Forças de Segurança. No início da guerra colonial, era a principal pistola-metralhadora nos primeiros tempoos da Guerra de África. Era manobrada sobretudo  pelo comandantes dos pelotões (alferes) e das secções de atiradores de infantaria (furríéis e sargentos). 

Também era  usada pelas unidades de defesa das instalações militares. Acaba por ser susbtituída pela    G3, que passa a equipar toda a secção de atiradores-

 "Nessa altura, a FBP foi relegada para as forças de segurança de instalações ou para unidades de recrutamento local e acabou por ser gradualmente substituída pela Uzi calibre 9 mm e pelas versões de coronha retráctil ou encurtada da G3 m/961".

Funcionamento:

(i) Arma automática, de tiro semiautomático e automático, de funcionamento por inércia.

(ii) A pistola-metralhadora FBP apresenta uma culatra cilíndrica. A abertura da câmara, retardada pela acção conjunta da massa da culatra e da mola recuperadora, dá-se no instante seguinte à saída do projéctil à boca. 

(iii) O percutor encontra-se fixo na culatra. Após a recuperação, esta só inicia o seu movimento de avanço quando o gatilho é pressionado. 

(iv) A alimentação efectua-se por acção da mola do depósito. Um extractor de garra com mola efectua a extracção do invólucro no movimento de abertura da culatra. A ejecção verifica-se quando a base do invólucro encontra, ao nível da caixa da culatra e sobre a base, um ejector fixo. 

(v) Um problema recorrente nos modelos iniciais tinha a ver com o sistema de segurança, o que originava alguns acidentes com as armas que, por exemplo, começavam a disparar ao receberem uma pancada forte (devida, por exemplo, a uma queda acidental) e só paravam quando o carregador estava vazio. 

Especificações técnicas:

Peso: 3,77kg (descarregada); 4,50kg (carregada) 
Comprimentos: Total - 807 mm (coronha esticada); 64 mm (coronha rebatida), Cano - 251mm - Calibre: 9 mm Parabellum
Tipo de Acção: Blowback (sistema de acção que dispensa o sistema de travamento da culatra. Devido à expansão dos gases da “explosão” do cartucho que se encontra no cano da arma, o ferrolho é impulsionado para trás, a mola recuperadora absorve a energia passada ao ferrolho, provocando a seguir o retorno do ferrolho para frente, colocando um novo cartucho na câmara)
Cadência de tiro: 500 tpm
Velocidade de saída: 390m/s 
Alcance: Útil – 50m; Efectivo - 100m; Máximo - 300m
Sistema de suprimento: Carregador de 32 munições
Mecanismo de segurança: Imobilização da culatra
Arrefecimento do cano: Pelo ar.

Variantes:

Limitações da FBP: a  versão original só fazia fogo em tiro automático. Com a versão melhorada, a FBP m/963, introduzida em 1961, passou também a fazer tiro semiautomático. 

Já depois de finda a guerra colonial, é desenvolvido, em 1976,  um modelo melhorado do m/948: a FBP  m/976  dispões de uma manga de refrigeração no cano, o que torna a arma mais precisa e fácil de controlar.

Temos, pois, 3 modelos:

(i) FBP m/948: versão original, com capacidade limitada a tiro totalmente automático;
(ii) FBP m/963: versão introduzida em 1963, com capacidade acrescida de tiro semiautomático;
(iii) FBP m/976: versão desenvolvida em 1976, com uma manga de refrigeração envolvendo o cano que, acidentalmente, também melhorou a precisão da arma. 


(***) Vd. 23 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

Guiné 61/74 - P20598: Fotos à procura de... uma legenda (123): O caçador e empresário de cinema Manuel Joaquim dos Prazeres, o "nho Manel Djoquim" (1901-1977) andaria no mato... com uma pistola-metralhadora FBP m/948 ou m/961 ?


Foto nº 3 > Guiné > s/d > s/l > Uma das armas que o Manel Djoquim usava para caçar ... Uma carabina de caça, uma caçadeira, adaptada, com carregador de 10 munições. (Detalhe de foto inserida no livro "Manel Djoquim, o homem do cinema", de Lucinda Aranha (2018), pp. 80-81.



Foto nº 2 > Guiné > s/d > s/l > Uma das armas que o Manel Djoquim usava para caçar...crocodilhos e onças. De novo a carabina de caça,  caçadeira, adaptada, com carregador de 10 munições [Vd. foto nº 3].



Foto nº 1 > Guiné > s/l > s/d  > É provável que o Manel Djoquim, sobretudo depois do início da guerra, passasse a usar, também, para defesa pessoal, esta pistola metralhora que parece ser uma FBP m/948. Mas a Lucinda Aranha nunca lhe ouviu falar em armas de guerra. O pai, de resto, não fez o serviço militar. Mas percorreu toda a Guiné, de lés a lés, antes e durante a guerra, pelo menos até 1970/71...

Fotos (e legendas): © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



I. Diversos comentários ao poste P20558 (*) e mensagens chegadas por email, relacionadas com o tema:

(i) Valdemar Queiroz:

1ª. fotografia (*): O Sr. Manuel Joaquim está com uma espingarda metralhadora e, se era utilizada como caçadeira, matava a caça de rajada. (...)

24 de janeiro de 2020 às 02:25

(ii) Tabanca Grande

Caros leitores, vamos lá descobrir que arma era esta... Está identificada e descrita no livro, na página 71...

A mecânica, os carros, a caça e, mais tarde, a fotografia são paixões que o acompanham na Guiné... Caça onças e crocodilos... cujas peles depois vendia...(Hoje, seguramente, teria outra consciência ecológica e conservacionista, como o nosso camarada Patrício Ribeiro, que vive na Guiné ha mais de 4 décadaas...).

24 de janeiro de 2020 às 07:09



(iii) G.Tavares:

A arma parece-me ser uma pistola metralhadora FBP.

24 de janeiro de 2020 às 09:31



(iv) Luís Graça

Ou será uma carabina de caça adaptada pelo Manuel Joaquim... Marca e calibre ? Estava na moda, na época. Estamos a falar do pós-guerra, anos 50, antes do início da guerra colonial.

24 de janeiro de 2020 às 12:03


(v) Valdemar Queiroz:

Rectifico: A arma é uma pistola-metralhadora FBP 9 mm, de coronha recolhida.

 24 de janeiro de 2020 às 12:56

(vi) Antº Rosinha:

Naqueles tempos uma das actividades com mais sucesso em África era ser mecânico de automóveis, (camiões, tractores, máquinas), ser mecânico, ou ter uma oficina com mecânicos, ou ser muito "habilidoso" com maquinismos.

As viaturas exigiam uma manutenção tão cara, que o mais difícil não era dinheiro para a aquisição da máquina, o mais difícil era a sua manutenção.

Isto tudo também devido ao tipo de estradas, picadas, que nem é preciso explicar.

O Manuel Joaquim tinha uma oficina e era apaixonado por carros, estava nas suas sete quintas.

Dizia-se: uma camionete velha, uma caçadeira, uma linda mulata...é o paraíso na terra.

Foi uma pena ter vindo a guerra e todas as grandes ambições, e vejamos no que deu, acabou-se o paraíso na terra.

24 de janeiro de 2020 às 13:00


(vii) Tabanca Grande

Rosinha, mais à frente falaremos da "grande ansiedade" com que era esperado o Manel Djoquim, nas terras do interior da Guiné... 


Ele, era de facto, o homem dos "sete ofícios", tendo mãos milagrosas para tudo o que era "mecânica": geradores, automóveis, camionetas, motores, armas... Às vezes estava no Sul e chamavam-no, do Norte, algum administrador ou chefe de posto, para ele vir depressa consertar... o gerador!...

Os administradores retribuíam-lhe depois estes "pequenos grandes favores" com hospitalidade e apoio (logística, publicidade, cipaios...) à realização das sessões de cinema... Não admira por isso que fosse recebido em festa por todo o lado, da administração às populações: "A la Manel Djoquim i na bim" [Vem aí o Manuel Joaquim!].

24 de janeiro de 2020 às 14:48

(viii) Tabanca Grande


Valdemar e G. Tavares:

A FBP era uma arma de guerra, uma pistola-metralhadora... Vulgarizou-se com a guerra de África / guerra do ultramar / guerra colonial.. Não me parece que, nos anos 50, pudesse andar nas mãos de civis... Pelo pelo menos, antes dos acontecimentos de 1961,em Angola...

Além disso, na sua 1ª versão [FBP m/948], só fazia tiro de rajada...

Diz a Wikipédia:

(...) FBP é uma pistola-metralhadora projectada no final da década de 1940 por Gonçalves Cardoso, Major de Artilharia do Exército Português, combinando as funcionalidades da MP40 alemã e da M3 americana. O resultado foi uma arma de confiança e com baixos custos de produção. (...)







Guiné, Região do Oio, Olossato, 1963. CART 527 (1963/65).
Fur mil António Medina, equipadode pistola metralhadora FBP,
m/948 ou m/963.  É natural de Cabo Verde,  ilha de Santo Antão.
Vive nos EUA.

A arma acabou por ser produzida pela Fábrica de Braço de Prata (FBP) em Lisboa, com cuja sigla foi baptizada.

A arma foi utilizada em combate pelas Forças Armadas Portuguesas durante a Guerra do Ultramar. A sua utilização nesta guerra levou à verificação que a sua capacidade de fazer apenas tiro automático levava a um grande desperdício de munições [, FBP m/948]. Como tal, em 1961 foi introduzida uma versão aperfeiçoada com capacidade acrescida de tiro semiautomático [FBP m/963]. (...)

4 de janeiro de 2020 às 16:00

(ix) Valdemar Queiroz

Luís: A caríssima Lucinda Aranha incluiu, no seu livro 'O Homem do Cinema', fotografias cá da minha pessoa (ena, até já apareço em livros) em Contuboel e fez o especial favor de me o enviar, autografado. O meu neto Zee (mar, em neerlandês)farta-se de mostrar o livro com a foto do avô 'a ver filmes na selva'.


FBP m/948. Origem: Portugal. Fonte: Wikipedia (com a devida vénia...)

Quanto à arma da 1ª. foto [acima], é sem duvidas uma FBP m/48 ou m/63, igualzinha à que aparece na imagem do P5690 (**). 

A arma transformada, referida no pag. 71 do livro, deve ser uma adaptação, com um carregador de 10 balas, numa carabina de caça.


Este nosso blogue Tabanca Grande e Camaradas da Guiné é também feito de todos estes extraordinários episódios passados na Guiné que nós conhecemos quando lá estivemos, infelizmente, na guerra.

Não façamos deste blogue apenas de noticiários dos sempre agradáveis e saudosos Encontros/Almoçaradas da rapaziada, ou de arrepiantes noticias de necrologia dos nossos queridos camaradas falecidos.(...)

24 de janeiro de 2020 às 18:14



(x) Tabanca Grande

Ok, ótimo, a Lucinda é impecável...

Pedi-lhe para esclarecer a marca, o modelo, o calibre, o ano da carabina. 


Na pág 71, ela diz que o pai "andava sempre armado", tendo : 

(a) uma "Flaubert" [?], "uma carabina para atirar ao alvo"; 

e (b) uma caçadeira,calibre 12, automática, com um carregador de cinco cartuchos, mas em que ele modificou "todo o sistema (os carregadores, as molas)", ficando com a possibilidade de dar "10 tiros seguidos"... (pág. 71).

Não percebo nada de armas de caça... Mas, nas pp. 80/81, aparecem mais fotos com estas armas [, vd. acima, fotos nº 3 e 2]...


24 de janeiro de 2020 às 19:47



(xi) Alcídio Marinho

A arma que se vê em cima do para-lamas, parece ser uma Thompson, arma usada no tempo de Al Capone, que podia utilizar carregador ou tambor.


(xii) Valdemar Queiroz

A nossa pistola-metralhadora FBP e a americana Thompson m3 são primas direitas.

Julgo que a nossa foi projectada/fabricada com uma 'autorização' da Thompson.

A nossa tem o punho em madeira e a entrada do carregador ligeiramente diferente, a Thompson é toda feita em ferro.


A famosa m3, cacibre 45, de 1942  (USA).
Criador: George Hyde. Não oconfundir
com a Thompson...
Fonte: Cortesia de Wikipedia.
Julgo que a esta Thompson não era adaptado o tambor/carregador.

E não sabemos como o Sr. Manuel Joaquim adquiriu a nossa, por ser arma de guerra, ou então a Thompson, por ser de algum gangster americano.

(xiii) Lucinda Aranha

25 jan 2020, 20h50

Luís,

Vejo que efectivamente gostaste do livro pelo empenho que tens demonstrado, o que muito te agradeço. 

Quando escrevi o livro, tive a preocupação de não ferir susceptibilidades, tendo-me as minhas irmãs pedido para que os nomes fossem alterados; segui o mesmo critério para algumas das outras personagens que aparecem no livro de modo a não ferir descendentes. (...)

Sobre as dúvidas a propósito das armas do meu pai, o que sei é que nunca ouvi falar que tivesse uma metralhadora mas as armas que referi no livro, entre elas a dita Flaubert, que adaptou. 


Várias fontes me falaram destas armas, sendo a mais fidedigna e importante o genro do Esteves [, da Casa Esteves, Bissau] , o sr. Pereira, pelas relações de grande convívio e amizade. Aliás, assim que puder, já combinei encontrar-me de novo com ele para tentar esclarecer as dúvidas que tens posto a propósito do Esteves e do meu pai. 

Não percebo nada de armas mas o meu pai era um espírito muito inventivo e não me espantaria que a vossa metralhadora fosse a dita Flaubert com a cartucheira adaptada e, eventualmente, que o braço mais comprido seja uma pega. 

Nas pp 80/81 do livro, lá está a dita de novo, embora reconheça que não tem nenhuma pega. 

Quanto a toda a parafernália de que ele se fazia acompanhar, disse-me uma outra fonte, o sr. Faxina, que se encontrava, pelo menos até há alguns anos, no quintal do Tita Orelha. Creio que este senhor já morreu, mas há um filho, que talvez seja tabanqueiro, com quem nunca consegui falar. Eventualmente, seria ele quem melhor te podia esclarecer. 

Gostei muito do poste sobre o zepelim. Quanto à data exacta da ida do meu pai para Cabo Verde. não consegui apurá-la com toda a exactidão, 1922 é a minha proposta. 

A concretizar-se o encontro da Lourinhã, teremos muito para falar. (...)

Quanto à venda do livro, pode-se sempre encomendar na FNAC, mas tenho em meu poder vários livros e gostava de os vender. Basta que os interessados me contactem para o meu mail [ lucinda.aranha@gmail.com ], que eu enviarei o(s) livro(s) pretendido(s) pelos CTT
 contra reembolso ao preço de 12,50 euros (já com os portes incluídos).

PS- Há efectivamente uma relação entre "No Reino das Orelhas de Burro" e "O Homem do Cinema",  embora este último não seja um prolongamento do anterior. 


Quando escrevi "No Reino...",  já pensava escrever um livro sobre o meu pai mas ainda não tinha os contactos indispensáveis para o poder fazer. "No Reino..." é um caderno de agravos ( se me é permitida a terminologia da revolução francesa) em defesa dos direitos dos animais. Tenho muito gosto em te oferecer um exemplar assim como do "Melhor do que Cão é Ser Cavaleiro", uma espécie de romance da cavalaria escrito por duas das minhas cockers. (...)



Guiné > s/ l> s/d >

O  "Manel Djqouim" com uma pistola-metralhadora
FBP, Thompson ou M3 ?... Detalhe.
Foto: Cortesia de Lucinda Aranha
(xiv) Elísio Esteves de Oliveira [nosso leitor e camarada, nascido em Angola, ex-oficial miliciano de infantaria, CTIG, 1963-1965]

sábado, 25/01, 23:06


Boa noite, Luís,

Cá está de volta o chato picuinhas - mas na foto que acompanha o post Guiné 61/74 - P20588: Manuscrito(s) (Luís Graça) (177): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte II (*), a arma que nho Djoquim empunha não é uma caçadeira, mas sim uma portuguesíssima {pistola metralhadora] FBP m/948... 


Topa o encaixe para a baioneta sob o cano, o carregador e a corcova entre o carregador e o resguardo do gatilho.

Um Alfa Bravo e um bom ano,
Esteves







(xv) Lucinda Aranha

26 de janeiro de 2020, 19h50:


(...) Como te disse, quer o falar de novo com o Pereira [, o genro do Esteves, de Bissau.] que me deu as informações mais detalhadas e mais fiáveis sobre a vida do meu pai na Guiné e sobre o Esteves, inclusive sobre as armas. 


Gostava também de falar ao Parente cujo irmão mais velho chegou a caçar com o meu pai mas não acredito que ele possa responder às vossas dúvidas. Falei com o meu cunhado que combateu na Guiné e ele também acha que pode ser uma pistola metralhadora. O irmão, que esteve na marinha, também na Guiné, põe a hipótese de ser uma pistola metralhadora FBP de 9mm ( feita em Braço de Prata).

Volto a dizer que nunca ouvimos lá por casa falar em G3 ou metralhadoras. Será que com a guerra colonial comprou alguma dessas armas para se defender? Para se exibir? Ele nunca fez o serviço militar, mas era farrompeiro a propósito das suas caçadas.

De qualquer modo, acho que ninguém caça com semelhantes armas.

Ontem,andei à procura de outras fotos com armas mas não encontrei o mail que mandei à editora. Esta semana vou procurar os originais e logo te envio mais fotos. Talvez fosse melhor esperares por estes elementos que, quem sabe, poderão ajudar a esclarecer dúvidas. (...) (***)

_____________


sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20588: Manuscrito(s) (Luís Graça) (177): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte II


Guiné > Algures > s/d > Manel Djoquin, com o seu icónico velho Ford, de matrícula G-804, a sua caçadeira e um dos seus ajudantes locais... (Dizem que um deles terá sido o Kumba Yalá, quando jovem... Nasceu em Bula, em 1953 e morreu em Bissau, em 2014, aos 61 anos; foi presidente da república, entre 2000 e 2003).

Foto (e legenda: © Lucinda Aranha (2014) . Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A vovó Nené


A Julinha


Cabo Verde > Santiago > Praia > s/d > c. 1930 > Manuel Joaquim dos Prazeres éra um apaixonado por carros e corridas de carros.. E tinha, em sociedade, uma oficina de reparação de automóveis, a Auto Colonial, na Rua Sá da Bandeira (vd. pág. 29)


Guiné > s/l > s/ d (c. 1950 > O Manuel Djqoquim, numa das suas poses "cinematográficas" (v. pág. 80)

Fotos e legendas (2016): página do Facebook, Lucinda Aranha Antunes - Andanças na Escrita (Com a devida vénia...).


1. Notas de leitura:

Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.

A autora chama "romance" ao seu livro de memórias da família (*)...Na realidade, é um conjunto de histórias de vida, à volta da figura do "africanista" Manel Djoquim, e das "matriarcas" da família, a Julinha, sua segunda esposa, e a "vovó Nené", a ama das filhas e depois cozinheira, vinda da Praia, Santiago, para a casa de Lisboa, onde viveu mais de 60 anos, perfeitamente adotada e integrada na família (cap 1, pp. 9 e ss.; e cap 5, pp. 58 e ss.).

Esclareceu-nos a autora, Lucinda Aranha, a mais nova das filhas do Nequinhas e da Julinha, já nascida em Lisboa: "Efetivamente nunca fui à Guiné ou a Cabo Verde. Para mim,  embora o livro gire à volta do Manel Djoquim, é um livro de mulheres onde dominam as 2 matriarcas. Este trio constitui as 3 personagens mais importantes." (*)

Na contracapa pode ler-se:

"A busca de uma vida melhor. O encontro com a aventura e o desconhecido. A liberdade de uma nova terra. Os encontros e os desencontros de uma vida amorosa"...

Na Guiné andava sempre armado...
Era uma inveterado caçador (pág. 71)
Esta nossa amiga, que nunca viajou, fisicando falando, até Cabo Verde e à Guiné-Bissau, acabou por
escrever um livro que é também uma "hino de amor" àquelas duas terras por onde andou, viveu, amou, trabalhou o seu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres (1901-1977). E um "hino de amor" aos seus pais, aos amigos dos seus pais, às suas manas, à sua ama, escrito de resto com delicadeza e inteligência emocional para não ferir suscetibilidades, até porque há muitas pessoas vivas: as irmãs, os amigos, os seus descendentes... Daí a autora chamar "romance" a este livro.

O livro tem 13 capítulos e 169 pp, onde o crioulo se mistura, saborosamente, com o português. Mas todas as falas ou expressões em crioulo têm tradução, em nota de rodapé, como a fala da vovó Nené (Maria Mendes, no romance): "C'uzas di vida, sima Deus crê. Mim nasci lá lundji, badia di pé ratchado e vem vivi e ve morri cum sinhóra e sus filhu fèmia em Lisboa" ["Coisas da vida, como Deus quer. Nasci longe, vadia de pé rachado e vim viver e morrer com a senhora e as filhas em Lisboa".] (p. 58).

Falando do feitiço de África, tudo começou, por Cabo Verde, onde Manel Djoquim, chega, em 1922, instalando-se na Praia onde começa por trabalhar, como mecânico, na Central Elétrica. Em 1930, casa-se com Tonha, "filha da terra" (pág. 33)., de quem tem duas filhas e um rapaz. 

A alfacinha Julinha, 11 anos mais nova, , aparecerá mais tarde, na viragem dos anos 30 (pp. 45 e ss.). Desta relação,  nascem, na Praia, duas irmãs da Lucinda... Em 1944, a família ruma até Bolama, onde nasceu uma terceira filha... Em 46, a Julinha e as filhas, mais a ama cabo-verdiana,  regressam a Lisboa, onde nasceu  a Lucinda.

Nascido em Lisboa, em 1901, em plena "belle époque" (, que só o era para uma minoria privilegiada da alta nobreza e da burguesia em ascensão...), Manuel Joaquim terá visto em África uma tripla oportunidade para a sua vida... Na época, África estava longe de ser um "destino comum" para os portugueses que procuravam uma "vida melhor", longe da  metrópole, e dos tempos difícdeis do pós-guerra, mas também a "aventura" e o "desconhecido", a par da "liberdade" e dos "amores".. O Brasil era então,  de longe, o grande destino da emigração portuguesa.

Território português durante séculos, povoado por escravos e por europeus,  Cabo Verde não foi, mesmo assim, objeto de grandes memórias escritas por parte das gentes metropolitanas que naquelas ilhas se fixaram ou lá viveram durante uns largos tempos. Daí também o interesse adicional deste livro, com apontamentos e fotos interessantes sobre o quotidiano da vida na Praia, onde o Manel Djoquim viveu, mais de duas décadas,  entre 1922 e 1944. (1922 é uma data aproxiamda, em rigor a autora não sabe o ano exato em que o pai se ficou na Praia.)

Mais sorte terá tido, nesse aspeto,  o Mindelo, na ilha de São Vicente, cidade aberta,  cosmopolita, e que teve sobretudo o privilégio de ter, durante décadas, o Foto Melo, um estúdio fotográfico que atravessou um século (1890-1992), tendo documentado praticamente toda a vida (política, militar, económica, social, cultural...), a demografia e  a geografia  da ilha...

"O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim", dado à estampa em 2018, parece-nos ser, de algum modo, um desenvolvimento do livro anterior da autora, "No reino das orelhas de burro" (Lisboa, Colibri, 2012, 106 pp.), baseado também nas estórias  de homens e bichos que povoaram a sua infância (***)...

Na obra, agora em apreço, a autora baseou-se numa exaustiva pesquisa documental (escrita e fotográfica), recorrendo ao arquivo da família mas também e sobretudo às suas recordações de infância, adolescência e juventude  (o pai morreu quando ela estaria já  à beira dos 30), bem como a entrevistas a familiares e amigos do pai e da família, do tempo de Cabo Verde e da Guiné. Pai que é uma personalidade complexa e contraditória, conservador, puritano, moralista, mas também anticlerical, aventureiro, inimigo das corridas de touros e do fado,  e em termos político-ideológicos um admirador de Salazar tanto quanto de Amílcar Cabral...

A autora consultou igualmente a escasssa imprensa local, dessa época, "O Eco de Cabo Verde" (, com início em 1933) e o "Arauto", primeiro semanário e depois diário, que se publicou em Bissau, de 1943 a 1968. Teve, também, verdade se diga, uma boa ajuda dos nosso blogue e dos nossos camaradas e amigos que ainda conheceram o Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, durante a guerra... pelo menos até 1970/71... (A PIDE/DGS e as autoridades militares acabaram por impedi-lo de deambular livremente pelo  mato, com a sua carriplana, alegando razões de segurança; e isso foi "o princípio do fim": em 1973 tem um AVC,  já em Lisboa, e morre quatro anos depois, precisamenre em 25 de dezembro de 1977.)

A "morabeza" cabo-verdiana  está muito bem retratada no capítulo II ("Na cidade da Praia" (pp. 28-44).  Há ali personagens (amigos da tertúlia do Manuel Djoquim) que mereceriam um outro deenvolvimento num romance de maior fôlego: são homens (, não entram aqui mulheres...) das relações de amizade e convívio do futuro homem do cinema...(que, de resto, coneça aqui,  na Praia, a sua carreira de empresário de cinema, prosseguida depois , em 1944, em  Bolama,  onde se fixa, a convite da Associação dos Bombeiros locais, para dar sessões de cinema ao livre, com documentários sobre a II Guerra Mundial). (**).

"Além de mecânico da Central [Elétrica], de dar uma mãozinha na Marconi, fizera-se sócio da oficina-garagem do Pires [, a Auto Colonial,], abrira uma casa de comércio, dessas que vendem um pouco de tudo, dedicara-se à projecção de filmes.

"Ademais lucrava com a comodidade de a Central ficar  perto do cinema, o Teatro Africano, rebatizado  Cineteatro Virgínio Vitorino pelo Estado Novo, que desconfiara do nome primitivo, censurando as veleidades autonomistas africanas.

"A sala  era-lhe subalugada pela Cãmara, que administrava também a luz. Morava então na rua  Serpa Pinto, mesmo junto ao cinema e à Central, numa casa com quintal, árvores e fruta-pão e bananeiras e muito espaço para a criançada que ia nascendo e para os cães e os gatos de que gostava de se rodear.  A casa comercial e a oficina ficavam na rua Sá da Bandeira, a rua mais larga da cidade"  (pág. 23).

Numa terra assolada por secas cíclicas, a fuga à fome, à morte e à pobreza fazia-se muitas vezes emigrando para a Guiné e também para São Tomé e Príncipe. Para os cabo-verdianos,  a vida na Guiné era-lhes mais fácil, "ou não fossem mais estudados,o que lhes garantia bons cargos, posições de chefia" (p.33).

Este e outros temas eram pretexto para a cavaqueira, tal como a chegada á ilha de  exilados políticos, quer ainda no tempo da República como depois durante a Ditadura Militar e o Estado Novo: o coronel  Fernando Freiria ou o médico militar Carlos Almeida, são dois exemplos citados.

Também teve eco, naquela tertúlia,  a "grande escandaleira [que] foi o ataque ao crioulo e aos mulatos no 1º Congresso de Antropologia Colonial realizado no Porto, em setembro de 34. O dr. Luís Chaves, conservador do Museu Etnológico, cheio de zelo ariano, defendendeu que os mestiços eram seres inferiores, degenerados, incapazes de produzir obras literárias" (p. 37)... Com isso, amesquinhavam-se grandes escritores crioulos como o Fausto Duarte, autor do romance "Auá", que ganhara justamente o 1º prémio do 1º Concurso de Literatura Colonial, e em defesa do qual veio a terreiro o Juvenal Cabral, pai do Amílcar Cabral, nas páginas de "O Eco de Cabo Verde".

Depois de 1936, há outro motivo de conversa,  a abertura  da "colónia penal" do Tarrafal, na ilha de Santiago  (p. 41). E, e ainda antes de (e durante)  a guerra, as histórias dos alemães que, apesar da neutralidade do governo de Salazar, não se coibiam de ir a terra, desembarcados dos submarinos que patrulhavam o Atlântico, quer ´para se reabastecerem quer para fazerem jogatanas de futebol com a miudagem... (pp. 41/42).

Mas o acontecimento mais marcante desta época, pelo insólito, foi a passagem do zepelim, em 1934...

No livro "O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim" (Alcochete: Alfarroba, 2018),
Lucinda Aranha faz referência a este memorável evento nos termos seguintes termos:

" (...) mas nada os fez [ao Manel Djoquim e amigos de tertúlia]  dar tanto à língua como o espetácul nunca visto do zepelim que, na manhã de 12 de junho de 34, pairou sonre o céu  da Praia, em espera de um passageiro alemão que resolveu ìr às comprars de sedas e outros artigos japoneses na casa Serbam. Foi um embascamento que os fez abandonar casa e trabalho " (...) (pág. 34)

Recorde-se que o zepelim era um grande dirigível, rígido,com carcaça metálica, de tecnologia e fábrico alemães, usado para travessias do Atlântico na década de 1930.


Cabo Verde> Ilha de São Vicente > Mindelo >  S/ d > A foto ilustra a passagem dum zepelim mas não tem datas.  Foto do álbum de Ângelo Ferreira de Sousa (1921-2001), pai do nosso camarada Hélder Sousa, natural de Vale da Pinta, Cartaxo, ex-1º Cabo n.º 816/42/5 da 4ª Companhia do 1º Batalhão de Infantaria do  R.I. 5,  despois integrado no RI 23... A foto tem a data de 18 de Outubro de 1943 e na legenda refere ser 'recordação de S. Vicente'. O original é "foto Melo". (****)

Foto (e legenda): © Hélder Sousa (2009). Todo os direitos reservados. [Edição e Legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

É uma raridade esta foto: ao que parece, dataria de 1937, ano e que o Mindelo foi sobrevoado por um dirigível que pretendia abrir uma carreira entre a Europa e o Novo Mundo, o LZ 129 Hindenburg, de fabrico alemão, origulho do regime hitleriano:

(...) Reza a História, que o dito aparelho, uma das grandes apostas à época para o transporte de passageiros, adoptando os mesmos tipos de luxos dos grandes 'Paquetes Transatlânticos' que estabeleciam as ligações entre os três continentes, Europa, África e Américas, fez só uma viagem ligando os dois continentes. Partiu da Velha Europa para o Novo Mundo - o continente Americano, tendo passado sobre Cabo Verde.

"Mindelo ficou na sua rota e Tuta [Guilherme Melo] registou esse momento, único! O aparelho passou sobre a Ilha de São Vicente, tendo largado três sacos de 'Mala Postal' - a forma complicada como se dizia correio - e teve um fim trágico ao aterrar em Lakehurst nos USA [, em 6 de Maio de 1937].

"Para os arquivos, fica mais esta imagem, só possível em Mindelo, pelo manancial de informação que corria na ilha, por causa dos cruzamentos dos cabos submarinos do Telégrafo Inglês e da Italcable (Italianos) e do seu movimentado Porto, também à época local de passagem obrigatória para os barcos que cruzavam o Atlântico Sul" (...)". 
Fonte: sítio Mindel Na Coraçon

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 14 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20558: Manuscrito(s) (Luís Graça) (176): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte I

(**) Vd. postes de 10 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14238: Fotos à procura de ... uma legenda (51): Manuel Joaquim dos Prazeres, empresário de cinema e caçador, Cabo Verde (1929/1943) e depois Guiné (1943/73)... Fotos da Praia, ilha de Santiago, Cabo Verde, com amigos (Lucinda Aranha)

(***) Vd. poste de 15 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12991: Tabanca Grande (433): Lucinda Aranha, filha de Manuel Joaquim dos Prazeres que viveu em Cabo Verde e na Guiné entre os anos 30 e 1972, e que era empresário de cinema ambulante

(****) Vd. poste de 9 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4926: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, S. Vicente, 1943/44 (Hélder Sousa)