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quinta-feira, 9 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19767: (In)citações (130): As Comemorações de Abril, A Memória e a História (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679)

Com a devida vénia ao fotógrafo Alfredo Cunha


1. Por proposta de José Marcelino Martins e concordância do autor, aqui deixamos este extenso, mas interessante artigo de opinião sobre as Comemorações do 25 de Abril de autoria de José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71).

Originalmente publicado no seu facebook em 5 partes, por ser um pouco longo, optamos por publicar tudo de uma só vez aqui no Blogue.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 1

1 de Julho de 1972. De Lisboa para Bissau, um meio aéreo da FAP transportou três capitães, a saber: Jorge Golias e Matos Gomes, oficiais do QP, e José Manuel Barroso, miliciano, este com destino ao Gabinete de Informação e Comunicação do ComChefe.

Golias viria a publicar um livro, no qual afirma que os três estabeleceram uma interessante conversa sobre a condição política e militar que afectava o ultramar português. Chegados a Bissau comprometeram-se a reunir e alargar as conversas a novos camaradas, o que terá acontecido. O autor reivindica para o mencionado encontro a génese do golpe militar.
Sobre as razões apressadamente reunidas para justificação da insubordinação militar: democracia, desenvolvimento e descolonização não fez qualquer referência.

Naquela época - 1972 - a situação militar nos territórios ultramarinos podia caracterizar-se assim: controlada na Guiné e em Moçambique; dominada em Angola.

Naquele tempo, a Guiné era um pequeno território com cerca de trezentos mil habitantes, de escassos recursos e infraestruturas, onde se vivia uma economia de guerra. A política "Por Uma Guiné Melhor" parecia dar resultado e as massas apoiavam o regime. A guerra movida pelo IN era descontrolada e tanto afectava as NT como a população condicionada às minas, aos assaltos e às flagelações. Eram os portugueses que lhes prestavam o auxílio possível sempre que afectadas. Angola e Moçambique, pelo contrário, apresentavam notáveis índices de desenvolvimento e crescimento económico e social, entre 8 e 10% na costa oriental, e 20% em Angola. Eram sociedades em rápido processo de educação e modernização, tanto de equipamentos públicos como empresariais, e altamente exportadoras.

A metrópole registava índices de crescimento económico de cerca de 7%, e crescia em todos os domínios, salientando-se a melhoria dos salários, que então permitiam maior desafogo, melhoria na habitação - quando se desenvolveram grandes urbanizações em Oeiras, Amadora, Sintra, Loures, Almada, Barreiro, para só falar na cintura de Lisboa. Havia muita capacidade de absorção de mão-de-obra, nos serviços, na indústria e na função pública. Os automóveis particulares aumentavam exponencialmente, as casas para além de electrodomésticos, passavam a contar com televisão e gira-discos. O Algarve, embora mal servido de acessos, já era destino de férias de muitos nacionais. O fim-de-semana à inglesa generalizara-se, e começava o modelo americano, com folga de dois dias. Politicamente assistira-se à regularização dos esquemas da segurança-social, CGA/MSE e CNP.
O País vivia em equilíbrio económico-financeiro, com elevadas reservas em ouro e divisas, e sem dívidas ao estrangeiro.

Entretanto dava-se a revolução sexual, e a luta da mulher pela igualdade de direitos, acompanhava a luta de salário igual para trabalho igual. A mulher saía de casa e dirigia-se para o trabalho em condições idênticas às dos homens. Vulgarizava-se o uso da mini-saia, das roupas cingidas e dos generosos decotes. Na praia também era adoptado o biquini, e a mulher prosseguia o caminho da independência pela sedução. As jovens mulheres de alguns capitães também se enquadravam nesta onda, e eram frequentes as intrigas que afectavam os casais, ou os maridos mobilizados em África.

Em 1973, com o recrudescimento da guerra na Guiné, a que os poderes político e militar não deram resposta adequada, a situação sofreu perturbações. Os militares exigiam mais equipamentos e mais contingentes, a que Caetano não respondia, nem evitava esse mal-estar institucional, chegando ao ponto de propor a entrega do poder aos militares, que rejeitaram. Apesar de sobre a questão ultramarina, Espanha França e Alemanha darem apoios políticos a Portugal, e os EUA revelarem maior compreensão às teses portuguesas, o Governo mostrava-se tolhido. Outras nações, pontualmente, também se associavam com apoios.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 2

Em 26 de Dezembro de 1971 Spínola despediu-se de um contingente militar que regressou à metrópole. Discursou como habitualmente, e referiu que os "traidores" estavam na retaguarda. Não os mencionou, mas é fácil inferir que se dirigia a elementos do Governo Central. Já andava às turras, e a partir de 1973 parecia querer tudo, para combater o que antes parecia ter controlado, o IN.

Entre aquelas datas deu bastas provas de querer vir a ser Presidente da República. Desdobrava-se em entrevistas e fomentava reportagens. Parecia um senhor da guerra, um líder incontestado. No entanto, tenho dele amargas recordações, como as que deram ocasião ao assassínio de três majores, um alferes e uma praça. Foi muita e grave a ingenuidade do General. Não ficou por aí. Ambicioso, deixou-se seduzir pela ideia de invadir Conakry, o que seria natural num acto de guerra contra o IN. O auto-proposto Comandante e criador da ideia, é que não soube combater a outra ideia de promover um golpe de estado noutro país, o que não teria sido mau de todo, se não tivesse havido tantas fugas de informação que ditaram o falhanço quase total da operação invasora. Eram ambos muito ambiciosos e descuraram aspectos essenciais. Queriam a glória de engalanar a História de Portugal, mas os resultados foram fracos e poderiam ter sido piores, conforme o testemunho de um importante e destacado participante (não o cito por estar vivo). Mas o ComChefe ainda deu mais provas de desnorte, fechando, reabrindo e voltando a fechar aquartelamentos; permitindo novos aquartelamentos com a água à distância (v.g. Guilege e Bajocunda); mandando tapar as valas de protecção a Pirada com o argumento de que aquela era uma região pacífica e controlada, embora poucos dias após tenha ocorrido um milagre a favor das NT em resultado da invasão da localidade durante uma projecção de cinema.

Spínola também não foi capaz de controlar o erário, pela criação de equipas de auditoria para disciplina da quadrícula, promoção ao bem-estar físico e moral da tropa. Foi um ver se-te-avias, com os maus resultados que se adivinham, embora os relatórios, de baixo para cima, mencionassem sempre o elevado moral do pessoal. Mentira!
O General também parecia estar a jogar em dois campos: com o prestígio internacional, que o obrigava a mostrar aceitação pelo "politicamente correcto", e com a desculpa da insuficiência de meios para a defesa daquele torrão pátrio. Foi quando, com os outros comandantes-chefes, rejeitou a tomada do poder proposta por Caetano.

Com o aparecimento dos Strela - mísseis terra-ar que provocaram alguns estragos iniciais, acentuou-se o sentimento de perturbação e o desejo de muitos militares pelo abandono do território. A guerra era feita em grande parte pelos milicianos, e os capitães em geral procuravam a segurança dos aquartelamentos. Havia dignas excepções, mas eram isso mesmo excepções. Com isso, alastrava a falta de liderança sobre o pessoal, com a consequente quebra da disciplina. S.Exa. também elegia os favoritos e os trastes, por vezes com critérios de pouca compreensão e aceitação. Na transição de 73 para 74, face à acumulação de erros que pareciam dar vantagem ao IN, já o MFA levava adiantada a sua vocação de protesto, e avançava à luz-desarmada com a sua campanha de abandono dos territórios africanos.

Todos sabiam. Sabia a PIDE, os altos comandos militares e o Governo.
Ninguém, nem os mais moralistas, se empenharam na defesa de quantos se bateram pela Pátria, metropolitanos e africanos, dando do País a imagem de cobardia e traição que desqualifica os povos. Entretanto, formara-se no exterior, o Partido Socialista, que em 25 de Abril teria 20 a 30 militantes, conforme refere Rui Mateus na sua obra "Contos Proibidos".
Pouco antes, PCP e PS assinaram um pacto de cooperação contra o Governo e por um novo regime pretensamente democrático.

Em resultado da luta dos movimentos de libertação contra o designado colonialismo português empurrados pela miopia e desinteresse ocidental para os braços da URSS, os anos decorridos, as diferentes circunstâncias que afectavam os mobilizados, e a intensificação da luta na Guiné, dariam lugar ao chamado Movimento dos Capitães, que derrubaria a ditadura do Estado Novo. Esse movimento "pacífico", sem oposição e sem objectivos políticos claros, alegadamente provocado por razões de natureza corporativa - o governo derrogara a lei relativa à progressão dos capitães milicianos, e pela derrota psicológica dos militares portugueses que levaram ao abandono dos territórios, daria lugar a um período de enorme perturbação e ruína, quer em termos materiais, quer em termos morais e anímicos, de que o País ainda sofre, com consequências impossíveis de avaliar, como tentarei mostrar numa terceira parte. A glória da miséria estava para chegar.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 3

A guerra de África que assolou os territórios portugueses a partir de 1961, ocorreu em plena "guerra fria", período dominado pela rivalidade das duas grandes potências, ambas interessadas na expansão e domínio das regiões sob as suas influências. Os EUA contavam desde a 2.ª GGM com parte ocidental da Europa, a mais desenvolvida, com algumas regiões asiáticas, a Oceânia e as américas, com excepção da pequena Cuba. Por seu lado, a Rússia dominava os países da Europa oriental sob a URSS, como se todos esses povos comungassem do mesmo entusiasmo. Ainda estendia influências noutras regiões asiáticas, e, enquanto beneficiária estratégica da Conferência de Bandung, mostrava-se a maior colaboradora dos novos países afro-asiáticos que saíram dos diferentes regimes coloniais. Acolhia e formava os jovens dos movimentos emancipalistas, que também instruía e municiava. A África era a sua principal área de influência, e território de conhecidas reservas minerais.

Em 1973 formou-se o Partido Socialista, que logo foi acolhido pela Internacional Socialista, uma organização de países de índole social-democrática, em geral desenvolvidos e instruídos. Entre eles, avultava a Suécia, onde Olof Palme mostrava toda a vontade de acabar com os regimes coloniais, e exercia grandes pressões para que os territórios naquela condição colonial, ascendessem às respectivas independências. Quer isto dizer, que um teórico esforçava-se para libertar o mundo "colonizado", sem dele mostrar ideias coerentes sobre as multidões que se propunha libertar, nem as circunstâncias em que essas regiões viviam e conviviam. Os territórios de influência anglófona, francófona, italiana e espanhola, logo consubstanciaram pelo abandono o slogan dos "novos ventos da história", que deram origem a novos países ditos progressistas, porque acolhiam-se à área de influência russa. O PS de então tinha beneficiado da generosidade de Palme, Brandt e Janitschek - 1.º Ministro austríaco, quer em meios políticos, quer em apoios financeiros, que se prolongaram por vários anos. Donde, politicamente, os socialistas portugueses não poderiam afastar-se com notoriedade, e ficavam vinculados à ideia da descolonização, sem que essa fosse ou não debatida como a melhor solução para africanos e portugueses. Por esta ocasião, cerca de metade do contingente militar que combatia os movimentos era proveniente dos recrutamentos locais, o que também poderia ter sido entendido como uma demonstração de vontade desses militares para continuarem portugueses. Condição que verifiquei mais de vinte anos depois, quando fiz deslocações ao interior da Guiné e de Moçambique, onde era abordado calorosamente por indivíduos da minha geração, que ainda se reivindicavam de portugueses, e exibiam cartões de identificação civis e militares. Portanto, os socialistas em geral, nacionais ou estrangeiros, estavam vinculados a uma ideia teórico-política sobre a descolonização, também ela representativa de interesses próprios de sobrevivência. De qualquer modo, era intolerável a intromissão desses países nas orientações internas de outros, para mais membros comuns da EFTA.

Na metrópole, entretanto, dava-se continuidade ao projecto de Sines, que pretendi consagrar a "zona do escudo" face aos eventuais boicotes externos, mas tinha virtude de desenvolver o País com vista à auto-sustentação económica. Foi um projecto muito arrojado, que ficou a meio caminho dos objectivos, e poderia ter estimulado a novos desenvolvimentos.

Entretanto, Spínola regressara à metrópole em nítido conflito com o Governo, e deixou no ar, fruto da sua ambição, a ideia de que poderia apadrinhar o movimento dos capitães.
Enquanto isso, os principais órgãos de comunicação-social davam à luz muitas notícias de sinais contrários à política prosseguida, muitas vezes com origem em fontes ou jornalistas comprometidos, que a censura não detectava ou não podia neutralizar. Também os estudantes aumentavam o banzé sobre o destino próximo da mobilização para a guerra, que efectivamente já durava em demasia. Havia, pois, uma predisposição para uma mudança, pese embora que não se sabia para quê.
A par disso, a população branca nas colónias aumentava significativamente, porque os desmobilizados tinham encontrado ali excelentes oportunidades profissionais e para organização das suas vidas. Muito longe iam os tempos coloniais, apesar da estratificação social característica de povos nos inícios do contacto com a civilização. Crescia o número dos casais mistos, e consequentemente dos filhos mulatos. Também a Administração e empresas empregavam muitos funcionários e gestores, em ambiente de grande harmonia. Dizia-se de Angola, que seria um novo Brasil.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 4

Em 1974 Caetano estava abúlico e o Governo tinha a noção de estar a prazo. Digamos que fazia a gestão corrente, desejoso de ser substituído.
"Em Maio de 73 promoveu-se na Guiné a primeira tomada de posição colectiva de grande notoriedade. Foi a propósito do chamado Congresso dos Combatentes do Ultramar, uma iniciativa de antigos oficiais milicianos, apoiada pelo Governo", que na Guiné teve resposta negativa. Em 17 de Agosto, em Bissau, o alargado grupo de capitães antes referido, reuniu para análise de um carta a enviar às altas instâncias políticas e militares. Era em tom duro, e foi amenizada em virtude de várias opiniões, o que gerou a intervenção de Golias, que disse ter sido tão suavizada, que parecia uma carta de amor, e acrescentou, que também deviam ter discutido a guerra, que só poderia ser resolvida com o fim do regime, o que se conseguiria com uma revolução. Estava dado o mote. A carta foi enviada e assinada por cerca de cinquenta oficiais, mas as autoridades não reagiram, melhor, promoveram os capitães mais antigos. Quando Bettencourt Rodrigues tomou posse, já o Movimento dos Capitães estava lançado. Conforme descreve Golias, em finais de 73, Matos Gomes regressou de férias na metrópole e carregava uma pilha de livros "Por Uma Democracia Anticapitalista", de Sottomayor Cardia, que revendeu a preço de custo. Foi esse livro que pôs muitos capitães em contacto com a política, uma espécie de manual escolar que lhes permitiu sentirem-se preparados para a revolução. Golias, ingenuamente, ainda acrescenta o estímulo da leitura de "Textos Políticos", de Cabral, e evidencia uma frase inspiradora: "os nossos povos fazem a distinção entre o governo colonial fascista e o povo de Portugal: não lutamos contra o povo português". E fez fé! Também os portugueses nunca lutaram contra o povo espanhol, guerrearam contra o exército e a cavalaria de Espanha.

Quando Spínola publicou "Portugal e o Futuro", embora estribado pelas teses caetanistas do estado federativo, suscitou grande controvérsia entre os "duros do regime", os intelectuais abertos à liberalização das relações com o ultramar, os chamados europeístas, e a imensidão de patetas que gostam de pronunciar-se sobre o que não sabem, e não têm outros interesses específicos.
Por essa ocasião, e pelo indisfarçável andar da carruagem, Kissinger referiu que a tendência comunista para alcançar o poder em Portugal, seria um castigo bastante para a leviandade dos portugueses, mas preocupado com o resto da Europa do sul, onde os comunistas tinham atingido posições relevantes, deslocou-se a Moscovo para breve conversação sobre a partilha do mundo.

Entretanto, na metrópole já o "movimento" reunia muitas dezenas de oficiais, ingénuos e desconhecedores de como se governa uma nação, pelo que trago à lembrança um episódio pífio de um batalhão que se recusara a embarcar para Guiné, e seguira fraccionado em diferentes levas. Em Fevereiro de 74, o comandante desse batalhão urdia o seu plano para capturar o ComChefe e o Estado-Maior. Note-se, porém, que na política os serviços de informação e contra-informação desempenham importantes papéis, e em Março de 74 chegou a constar o boato de um plano do PAIGC para invadir a Guiné, coisa palerma, tendo em conta que eles seriam 5 a 6 mil guerrilheiros, e só a tropa de recrutamento local, que integrava companhias, pelotões e pelotões de milícias andariam pelos 20 a 25 mil elementos, incluindo um bom número de tropa especial. Houve portanto, um trabalho de desmoralização e desqualificação em relação ao inimigo, que fez exorbitar o desespero da tropa, e o desprezo pelos portugueses de cor.
Apesar de tudo, e decorrente de passagens narradas, Portugal talvez vivesse o período histórico de maior esplendor, pois crescia económica e financeiramente, modernizava-se em equipamentos e infraestruturas, e não tinha dívida externa, salvo a que respeitou a um sindicato bancário que financiava a obra de Cahora Bassa.


AS COMEMORAÇÕES DE ABRIL, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA - Parte 5

Em 1974 ainda não havia MFA nem Programa. Segundo Sanches Osório, o Movimento dos Capitães tinha características exclusivamente profissionais: "eram apresentadas reivindicações que assentavam nas remunerações e que afectavam o prestígio dos oficiais do quadro permanente". Nunca tive oportunidade de conhecer as razões que afectavam o prestígio desses oficiais. Talvez as intrigas familiares que surgiam no meio castrense, e de que fui testemunha.

Em Fevereiro o Gen. Spínola publicou "Portugal e o Futuro". O marcelismo criou ilusões em sectores da oposição do que resultaram cisões. Era uma expectativa de primavera política, mas que esteve sempre condicionada aos duros do regime. Quer dizer, Caetano não foi capaz de provocar, não digo a ruptura, mas uma nova orientação no horizonte nacional, muito menos no que à guerra dizia respeito. Fez brandas reformas sociais, de que se destacou a regulamentação da Previdência e das relações laborais; e imprimiu algum dinamismo a projectos de industrialização e desenvolvimento. Mas os ultras do regime estavam interessados em persistir e torciam o nariz às mudanças. O livro de Spínola abordava com riqueza de argumentos o tema ultramarino, de vincada inspiração de Caetano, mas a corrosão da sua influência e a situação quente que se vivia, não lhe terá permitido apoiar o General, que por sua vez, confiava demais nos seus alegados méritos, e terá dado à estampa com o objectivo de alcandorar-se como favorito à presidência da República. Apesar de relevantes obras em curso tanto na metrópole como no ultramar, e do progresso económico e social constatados, o Governo foi incapaz de se impor, quer pela moralização do sistema, quer pela determinação dos militares em acabarem com a guerra, ainda que satisfeitas algumas exigências, se para tal fosse necessário. O azar, é que os militares já estavam decididos pela derrota consubstanciada pelo abandono de terras e gentes em África. Depois houve o episódio da apresentação da "brigada do reumático", a que faltaram os dois mais prestigiados generais, respectivamente Chefe e Vice-Chefe do EMFA. Nova e importante derrota para o regime, e impulso precioso para os capitães.

E chegou o dia, mais condizente com um filme de ficção, do que com a realidade revolucionária e perigosa que alguns militares gostam de fanfarronar.
Até o MFA pareceu apanhado de surpresa, dada a falta de confiança evidenciada pelos que ficaram a aguardar os acontecimentos, mas, principalmente, pela ausência de um Programa definitivo sobre o método e os objectivos do golpe, o que só viria a concretizar-se meses mais tarde na sequência de diversas alterações ao texto revolucionário. "As ligações políticas do Movimento dos Capitães foram realizadas pelo Maj. Melo Antunes o qual estava estreitamente ligado, através da CDE, ao Dr José Tengarrinha. Tudo leva a crer, assim, que o tom que foi dado às manifestações populares de apoio ao Movimento foi orientado pelo MDP/CDE, com conhecimento de Melo Antunes", cfr Sanches Osório.
Segundo o mesmo autor "o MFA estaria apenas unido em dois objectivos comuns: derrubar o Governo, e caminhar para o progresso e a justiça social. A forma de alcançar esse progresso e essa justiça social é que não foi analisada na altura". O MFA até ao dia D sabia que os portugueses não queriam para o ultramar uma política de terra queimada. Mas logo surgiram os adeptos do abandono imediato do ultramar, prova flagrante de que não tinham a mínima percepção, nem dos interesses envolvidos, nem das obrigações decorrentes da soberania, muito menos das condições que permitiam ao País viver com desafogo para o desenvolvimento que se registava. Apenas reproduziam "slogans" característicos da luta anti-colonial, o equivalente a terem bebido do IN a justificação para o seu acto revolucionário. Tal pobreza daria de imediato lugar a conflitos internos e à confusão no desenrolar da actividade revolucionária, tantas vezes criminosa.

Soares, líder de um mini-partido apoiado por centrais sindicais suecas e por uma fundação alemã, chegou em júbilo e apoiado por milhares ainda por converter. Cunhal chegaria a seguir, mais formal e recebido por Soares, que parecia conceder-lhe o lugar de primeiro combatente contra o velho regime. Todavia não se mostraram cooperantes na construção democrática por um estado digno e sadio. Ambos viriam a integrar o 1.º Governo Provisório, um grosseiro equívoco para um País pertencente à NATO. Depois, apesar da contenção da organização comunista que aproveitou as oportunidades, o processo terá sido condicionado pelo acordo entre Kissinguer e Brejnev sobre o destino português, estabelecido em Moscovo algum tempo antes.

Fontes:
"O Equívoco do 25 de Abril", de Sanches Osório;
"Revolução e contra-Revolução em Portugal (1974-1975)", de Armando Cerqueira;
"Contos Proibidos", de Rui Mateus;
"A Descolonização da Guiné-Bissau e o Movimento dos Capitães", de Jorge S. Golias, para além de reflexões minhas e de outras leituras
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19707: (In)citações (129): Feliz e santa Páscoa, com um abraço transatântico do nosso camarada da diáspora luso-americana José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19103: Notas de leitura (1109): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
O autor e seguramente a equipa que com ele colaborou em "Livro Negro da Descolonização" procuraram legitimar o princípio da autodeterminação do Ultramar português como a coisa mais lógica do mundo, a despeito do pusilânime Marcello Caetano ter recusado a consulta popular que teria levado à derrota dos movimentos de libertação.
Na Guiné, tudo seria simples, far-se-ia um referendo, até havia a FLING, o Movimento Democrático da Guiné e a Liga Popular dos Guinéus, e havia a temível força africana, muitíssimo superior ao PAIGC, eram favas contadas. E é com este raciocínio simplório em que as unidades militares portuguesas queriam retirar prontamente, em que a pressão internacional para reconhecer a República da Guiné-Bissau na ONU no princípio do Outono era enorme, não merecem uma só palavra, assim se faz História confundindo desejos com realidades. E já não falo nos disparates avançados sobre a situação militar.

Um abraço do
Mário


Livro Negro da Descolonização, por Luiz Aguiar (2)

Beja Santos

Poder-se-á questionar qual o grau de utilidade de aqui se referir um livro intitulado “Livro Negro da Descolonização”, tendo por autor Luiz Aguiar, Editorial Intervenção, 1977, em que se propunha uma tese hoje varrida do esquecimento: em 1974, já não tínhamos colónias, tínhamos territórios autodeterminados que aguardavam uma consulta popular que relegaria para o caixote do lixo da História os movimentos de libertação.

Se se tiver em conta que nesse mesmo ano de 1977 se escreveu um livro intitulado “África - Vitória Traída” em que um conjunto de oficiais-generais dava como demonstrado que tudo estava a correr de feição nas frentes militares até à chegada do MFA, e que no nosso tempo anda um tenente-coronel aviador a procurar legitimar que o Estado Novo se via forçado a combater em parcelas africanas a que tinha direito e que a guerra que desenvolvíamos era indiscutivelmente sustentável, não se podem iludir os diferentes matizes ideológicos dos ramos ultranacionalistas.

Na tese maior de o “Livro Negro da Descolonização”, como praticamente em todos aqueles oriundos da cepa ultranacionalista, nunca cabe uma reflexão sobre o nacionalismo africano e a luta anticolonial, há um completo silêncio sobre o pano de fundo da busca de identidade dos povos coloniais. Mas, reconheça-se, este livro de Luiz Aguiar e seus parceiros de escrita trazia uma modificação da lógica quanto aos deméritos da descolonização: não se escamoteavam os erros do passado, introduzindo uma varinha mágica: a vontade de autodeterminação irmanava nativos e radicados nos territórios chamados “províncias ultramarinas”. É uma tese que reconhece o princípio da autodeterminação que consta da Carta das Nações Unidas o que, veladamente, contraria a tese do Portugal de Minho a Timor. O que se seguiu ao 25 de Abril, diz Luiz Aguiar, foi uma política incapaz que contrariou e impediu que o processo de descolonização, iniciado em 1961, entra-se numa sequência racional, na sua fase derradeira – a autodeterminação de facto, abalando os alicerces a cupidez dos movimentos de libertação.

Mas não se deixa de pôr pessoas no banco dos réus, de Mário Soares a Melo Antunes, movem-se críticas acerbas a Spínola e a Galvão de Melo. Tecem-se considerações simplificadoras do tipo a Guiné foi entregue ao PAIGC através do Acordo de Argel, devia-se ter feito consulta popular, embora não se explicando como depois do reconhecimento da República da Guiné-Bissau e de como se alterara radicalmente o quadro político da Guiné face ao Direito Internacional.

Luiz Aguiar e quem o acompanha nega a existência de áreas libertadas na Guiné, e explana uma reflexão curiosa sobre refugiados:  
“A maior parte dos que buscaram refúgio nos territórios vizinhos não o fez por qualquer solidariedade com o PAIGC, mas, sim, solicitados por laços tribais que não tinham sido afectados de maneira sensível pelas fronteiras convencionais. Verificou-se, após a entrega da Guiné ao PAIGC, que os refugiados, na sua quase totalidade, não quiseram regressar à Guiné. A estes acresceram, porém, muitos outros. Segundo o jornal senegalês Le Soleil, dos 60 mil refugiados que deviam existir no Senegal antes da independência passou-se para 120 mil, de onde se conclui que o êxodo continuou”.
E o autor continua:  
“Com este êxodo de guinéus para os territórios vizinhos – 60 mil para o Senegal e 20 mil para a Guiné Conacri – a população da Guiné portuguesa ficou reduzida a 480 mil habitantes. Quando da chegada do General Spínola, admitia-se que cerca de 10% tivesse aderido ao PAIGC. Pode-se dizer que o PAIGC era um partido sem representatividade significativa na província – e com pouca possibilidade de a vir a adquirir”.
Dá-se como testemunho o doutor Baticã Ferreira que depois do 25 de Abril liderou o Movimento Democrático da Guiné, ele teria pedido às autoridades portuguesas que supervisionassem uma espécie de eleições primárias para saber de que lado se encontrava o povo e o PAIGC teria conseguido apenas cerca de 2% dos votos. E o autor procura uma explicação, a de que a população temia o colonialismo cabo-verdiano:  
“Percorrendo a lista dos dirigentes da actual Guiné, constata-se que o ministro da Economia, Vasco Cabral, é cabo-verdiano, o ministro da Justiça, Fidélis Cabral, é filho de cabo-verdianos, o ministro da Educação, Mário Cabral, é cabo-verdiano, o Procurador-Geral da República, João Cruz Pinto, é cabo-verdiano, o primeiro-ministro, Francisco Mendes, é cabo-verdiano, o ministro da Defesa, é cabo-verdiano. Este domínio pelos cabo-verdianos foi reforçado pelo acesso a posições importantes dos antigos chefes de posto e funcionários ultramarinos naturais de Cabo Verde e que estavam colocados na Guiné, como aconteceu com Fernando Fortes, Alfredo Fortes, Miranda de Lima, Waldemar, Filinto Barros, Coutinho, Telmo, Eduardo Fernandes”.
O leitor pode avaliar o chorrilho de disparates desta lista.

Para Luiz Aguiar, o PAIGC fazia incursões e dispunha de permanência temporária na Guiné. As flagelações eram contra tropas em movimento, o que é de risota, as temíveis flagelações eram ao cair da tarde e durante a noite e em destacamentos fixos. Vem depois a tese mirífica que o PAIGC nunca conseguiu desalojar os soldados portugueses dos seus campos fortificados nas regiões fronteiriças. Quem informou Luiz Aguiar informou mal, foram abandonadas posições por insustentabilidade, recorde-se Mejo, Sangonhá, Cacoca e Gandembel, ali perto do Corredor de Guileje.

Segue-se uma referência à força africana, 20 mil guinéus que constituíam unidades de Comandos, Fuzileiros, Marinheiros, Milícias e Guardas Rurais (?), formando um conjunto aguerrido. Nem uma só referência às companhias de caçadores africanos. O autor questiona se o PAIGC teria prosseguido na sua atividade se não tivesse havido uma transigência por parte dos representantes do Estado português ao subscrever o Acordo de Argel. E responde dizendo que teriam morrido muito menos guinéus de que os milhares que foram fuzilados pelo PAIGC. Os guineenses, diz o autor, sentiam-se bem com a obra de desenvolvimento impulsionado por Spínola: as vias de comunicação, os aeroportos, a assistência médica à população, a infraestrutura do ensino, a preparação técnica.

Porventura para mostrar como a Guiné estava madura para consultas populares e se autodeterminar de vez, o autor dás-nos o rol das associações políticas existentes depois do 25 de Abril: o Movimento Democrático da Guiné, com o Dr. Baticã Ferreira à frente, a FLING (bastante representatividade junto dos guinéus emigrados no Senegal), a Liga Popular dos Guinéus que na apregoada fase de passagem do colonialismo à autodeterminação aceitara colaborar com a Acção Nacional Popular. Diz o autor que tudo implodiu com o Acordo de Argel.

Urgindo pôr termo a esta leitura sobre a descolonização, recorda-se que os autores também falam de Cabo Verde, de S. Tomé e Príncipe, de Timor (é curiosamente o capítulo mais desenvolvido), e de Moçambique. As considerações finais de Luiz Aguiar e parceiros prendem-se com a violação do princípio da autodeterminação violado pelos acordos de descolonização homologados por um vasto número de personalidades, são todos eles os que colaboraram no processo que devem ser responsabilizados. Desta forma vaga e genérica se deixa o leitor ultranacionalista mais do que desorientado. Falamos, é certo, de 1977, hoje tais teses não apoquentam ninguém, como se sabe.
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Notas do editor

Poste anterior de 8 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19082: Notas de leitura (1107): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (1) (Mário Beja Santos)

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segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19082: Notas de leitura (1107): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,

O "Livro Negro da Descolonização", surgido em 1977, ao tempo em que se apostrofava o apocalipse da descolonização, introduzia um elemento novo, hoje completamente abandonado pelos teóricos do ultranacionalismo: tinha-se ultrapassado depois do processo de desenvolvimento operado fundamentalmente em Angola, Guiné e Moçambique, a parti de 1961 a fase colonial, vivia-se o estádio da autodeterminação onde Marcello Caetano recusava a consulta direta às populações. Tivesse havido consulta e outro galo cantaria, diz Luiz Aguiar e todos aqueles que contribuíram para estas mais de 700 páginas profusamente documentadas. A tese foi varrida por múltiplos acontecimentos, jaz numa gaveta da História, mas convém não a esquecer e o que pretensioso ela encerrava, mesmo em 1977.

Um abraço do
Mário


Livro Negro da Descolonização, por Luiz Aguiar (1)

Beja Santos

“Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar, Editorial Intervenção, 1977 é o primeiro documento ideológico em que os ultranacionalistas se apresentam com uma tese sobre os caminhos da autodeterminação ultramarina que teria sido atraiçoada por apressados descolonizadores. São mais de 700 páginas e com muita documentação consultada. Não custa crer que Luiz Aguiar é um nome fictício para uma equipa que trabalhou afincadamente em torno de uma tese. Qual? Diz-se claramente no prefácio:

“Examina-se a situação na Guiné, Angola e Moçambique e mostra-se que, em 1961, além de subdesenvolvimento, havia ainda nestes territórios, colonialismo. A solução, para homens sensatos, não era, porém, a demissão, mas, a partir do muito de altamente positivo que representara a soberania de Portugal, buscar uma sociedade em que não houvesse colonialismo e, paralelamente, levar o efeito, em ritmo acentuado, um processo de desenvolvimento. Mostra-se que estes objectivos foram alcançados antes do 25 de Abril e que em 1974 seria fácil validar a obra realizada, através da vontade das populações destes territórios, validamente expressa”.

Ao longo de todo este longo documento, como aliás é peculiar no pensamento ultranacionalista, não existem tendências mundiais, não houve ventos da História, passa-se à margem do pensamento anticolonialista, houve descolonização apressada para entregar territórios autodeterminados a potências estrangeiras, mormente ao imperialismo soviético.

A tese é seráfica: os erros do colonialismo estavam ultrapassados graças ao trabalho ingente iniciado em 1961, chegara-se a uma fase madura de autodeterminação, mas os atropelos revolucionários inverteram a vontade as populações, permitiram a chegada de poderes tirânicos que estragaram a obra feita.

Segue-se a exposição de factos e a apresentação dos responsáveis, com Mário Soares, Almeida Santos, Melo Antunes, entre outros, no topo. Mas a equipa que dá pelo nome de Luiz Aguiar não deixa de zurzir Spínola e até Galvão de Melo. Não estava previsto no documento-base do MFA descolonizar. E cita-se, não sei com que grau de convicção, o reconhecimento do direito de autodeterminação dos povos coloniais da Carta das Nações Unidas. Afinal, por uma interpretação enviesada da Lei 7/74, de 27 de Julho, passou-se rapidamente do reconhecimento da autodeterminação para a concessão de independência sem consulta das populações. Um dos autores procede a uma vasta leitura jurídica para chegar a tal interpretação.

Spínola não é poupado, cita-se abundantemente o que escreveu em “Ao serviço de Portugal” em que o antigo presidente deplora os largos milhares de mortos, a demissão de unidades militares que se recusavam a combater, o fuzilamento de militares leais à bandeira portuguesa, as teias de cumplicidades entre as cúpulas marxistas da revolução e os militares subversivos. Luiz Aguiar trata-o como um político incapaz, um transigente que abriu a porta aos piores despautérios e a entrega das populações a grupo comunitários.

Mas voltemos à ideologia da autodeterminação em curso. Luiz Aguiar procura demonstrar que não havia exploração dos preços das matérias-primas, como a copra, o amendoim, o algodão ou o sisal, que se ultrapassara o quadro vivido no Estatuto do Indigenato e que Marcello Caetano tivera sérias responsabilidades por não ter compreendido que devia ter havido consulta popular para reduzir a pó os “movimentos de libertação”. O autor diz mesmo que uma década após a eclosão do terrorismo em Angola, os radicados no Ultramar entendiam que já estava ultrapassado o período da colonização, havia que recorrer a uma consulta às populações com base num homem/um voto. Esses radicados no Ultramar teriam recebido com entusiasmo o 25 de Abril, supondo que chegara a hora da autodeterminação.

Numa tentativa de balanço sobre a “descolonização” passa-se em revista o que se passou em Angola, na Guiné, Moçambique e outras colónias. Vejamos como interpretam a situação da Guiné. Luíz Aguiar e a sua equipa estão bem documentados, insista-se. Fala-se na visita dos três membros do Comité de Descolonização da ONU que visitam as “áreas libertadas”, em 1972.

Esses três membros chegam à Guiné Conacri e partem para a região fronteiriça em 1 de Abril, não longe de Guileje, reúnem-se com Pedro Pires, entram em território da Guiné e fazem uma longa marcha na direção Noroeste, atravessam rios por pontes primitivas e perigosas. A 3 de Abril chegaram ao setor de Balana, uma base do exército do PAIGC, quartel-general do Comissário Político. Deixaram a base em direção ao setor de Cubucaré, passam perto do quartel de Bedanda. Em Cubucaré ficaram duas noites, visitaram a escola e pessoas que viviam em 14 aldeias; ao amanhecer de 7 de Abril chegaram à base do Comissariado Político da Região Sul e daqui seguiram para a Guiné Conacri.

Luiz Aguiar faz a seguinte interpretação desta missão: deslocaram-se a pé, mormente pela calada da noite em regiões de floresta e pântanos; o quartel-general do Comissariado Político era constituído para várias tendas e barracas, e este relatório comprova que as pretensas regiões libertadas não eram mais do que áreas onde o PAIGC tinha conseguido a adesão de uma parte da população, onde tinha refúgios, mas onde não exercia a soberania.

E Luiz Aguiar acrescenta que a situação militar na Guiné tinha melhorado a partir de 1968, o direito das populações à autodeterminação levava seguramente a que estas escolhessem outra solução que não a proposta pelo PAIGC. E explana quanto à situação militar no 25 de Abril. Diz ele que se podia afirmar que a guerra na Guiné estava ganha, embora isto não fosse tão evidente como em Angola.
E escreve-se:

“Tinha-se levado a efeito uma descolonização autêntica e estavam garantidas todas as condições para que, através de um processo autodeterminativo, a nossa presença na Guiné não pudesse continuar a ser contestada pelos defensores do direito dos povos à autodeterminação – muitos dos quais vieram depois a mostrar que apenas lhe interessava o avanço da estratégia soviética. Estava criada uma situação que nos permitia submeter a resolução do problema à prova real, que nos dava toda a capacidade de argumentação quando, em face da persistência da actividade guerrilheira, deixássemos de ter como invioláveis os seus refúgios além fronteira”.

Vale a pena recapitular o que traz de novo este pensamento ultranacionalista: nunca se fala no império colonial português, fala-se que o colonialismo dera lugar a um quadro propício à autodeterminação, o que tinha faltado a Marcello Caetano, por ser pusilânime, fora ter recusado a consulta direta para validar a autodeterminação. Políticos oportunistas, militares subversivos e agentes do imperialismo soviético estragaram tudo.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19073: Notas de leitura (1106): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (54) (Mário Beja Santos)

domingo, 15 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16955: Manuscrito(s) (Luís Graça) (110): Relembrando os nomes de dois portugueses para quem tenho uma palavra de apreço cívico e de gratidão, Mário Soares (1924-2017) e Catanho de Menezes (1926-1985)... bem como as eleições legislativas de 26/10/1969 e o meu voto em branco, em Bambadinca...


Fundação Mário Soares (FMS) > Mário Alberto Nobre Lopes Soares (1924-2017)  > Imagens > Foto; Lisboa, rua dos Fanqueiros, sede da CEUD - Comissão de Unidade Democrática, 25 de outubro de 1969, na véspera das eleições legislativas para a Assembleia Nacional: da esquerda para direita, Raul Rego (1913-2002), Joaquim Catanho de Menezes (1926-1985) e Mário Soares (1924-2017)

(Com a devida vénia à FMS)


1. Em 3 de agosto de 1968, Salazar tinha caído da cadeira, no Forte de Santo António, no Estoril. Em 27 de setembro o seu antigo delfim, Marcelo Caetano,  vem substituí-lo na Presidência do Conselho de Ministros. 

Nos primeiros meses de 1969 há ainda quem acredite na "primavera marcelista" e nas propostas de renovação da elite política dirigente... Estou na tropa, nas Caldas Rainha, no RI 5, a fazer a recruta,  e a pensar, desde os 14 anos de idade, desde 1961, na "minha" guerra do ultramar... O que me haveria de  calhar em sorte? Angola, Guiné, Moçambique? Venha o diabo e escolha... E, sobretudo, há uma questão, de longa data, que me persegue, a mim, tal como a outros jovens da minha geração, e que é um "problema de consciência": qual a legitimidade daquela guerra? e até quando aquela guerra que vai exaurindo vidas e cabedais?... Em 1961, tive a premoniçãpo de que aquela guerra ia sobrar para mim, mas estou longe de sonhar que iria parar à Guiné...

Cheguei a  Bissau a 29 de maio de 1969. A 2 de junho ia rio Geba acima, numa LDG, a caminho do leste... Depois de passar menos de dois meses no CIM de Contuboel, a dar instrução a tropas africanas, sou colocado em  Bambadinca, no setor L1, eu e os meus camaradas da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12...

Em Bambdinca  eu recebia, por assinatura, o Comércio do Funchal e o Notícias da Amadora, dois jornais ligados à "malta do reviralho"... Nem sempre chegavam regularmente ao meu SPM... Julgo que edições houve que terão sido apreendidas, mas já não posso confirmar... Era uma imprensa feita por gente nova, e que desafiava o sistema, sabendo inclusive fintar os "coronéis", os homens do "lápis azul" que faziam a censura (agora rebatizada "exame prévio"), o mesmo é dizer, decidiam o que os portugueses podiam ler (na imprensa escrita), ouvir (na rádio) e ver (na televisão)...

Recordo-me, em Bambadinca,  das eleições, já distantes, de 26/10/1969, em pleno "consulado marcelista", em que concorriam duas listas da oposição democráticas, a CDE e a CEUD, contra a lista oficial do partido único, a Acção Nacional Popular, herdeira da União Nacional.

Estava na Guiné, em Bambadinca, há já cinco meses... Tenho bem presente essa data porque numa companhia de cerca de 60 militares metropolitanos da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, só eu, o capitão de infantaria Carlos Brito e o alentejano José Manuel Quadrado (1947-2016), 1º cabo apontador de armas pesadas, é que estávamos recenseados nos cadernos eleitorais. (Posso estar aqui a cometer uma injustiça, omitindo mais alguém, mas julgo que não, embora os restantes graduados do quadro, os dois segundos sargentos,  também devessem, em princípio, estar recenseados; um deles, o sargento Piça, de quem me tornaria grande amigo, tratava-me bonacheiramente como "o soviético" por ser do "reviralho")...

Creio que o candidato pelo círculo da Guiné era o Pinto Bull, acusado na época, pelo PAIGC, de ser um "colaboracionista"... Morreu já em 2005, de certo modo injustiçado. Na época, no meu diário, acusei-o, apressadamente, de ser um Tchombé.

Nas eleições legislativas de 1969, votei em branco, claro, mas votei. Os resultados foram, naturalmente "desastrosos" para os democratas: a lista oficial da ANP arrecadou cerca de 88% dos votos (981.263 votos, menos de um milhão), a CDE cerca de 10,3% e a CEUD 1,5%... Ah!, havia ainda a Comissão Eleitoral Monárquica (que teve pouco mais de 0,1%)... Os votos inválidos foram também da ordem de um milhar (0,09%),

Em, suma, ao todo, votaram cerca de 1 milhão e 115 eleitores (62,5% do total dos recenseados nos fraudulentos e desatualizados cadernos eleitorais do Estado Novo, que eram pouco mais de 1 milhão e 800 mil. Compare-se esse nº com, o total de recenseados, para as primeiras eleições livres, a seguir ao 25 de Abril, as eleições para a Assembleia Constituinte: mais de 6,7 milhões de eleitores!


2. Não tenho a certeza de quando me recenseei, se em 1968, quando fiz 21 anos, ou se ainda em  1965, quando a oposição democrática levantou, pela primeira vez, o "tabu da guerra colonial"... Caiu o Carmo e a Trindade, foi um terramoto!... A oposição democrática retirou-se da corrida nesse ano já distante de 1965 (, o mesmo acontecendo em 1973).

Participei, nessa época, com 18 anos, a nível local, na minha primeira campanha eleitoral que foi abortada logo pela desistência da oposição, e o terror da repressão. Convivi, nessa época, com alguma regularidade com o sempre combativo e corajoso Catanho de Menezes, advogado da família do Humberto Delgado, amigo íntimo de Mário Soares, e futuro cofundador do PS, em 1973, precocemente desaparecido depois do 25 de Abril e hoje miseravelmente esquecido: tem apenas o nome de uma avenida na minha terra, Lourinhã...

Na biblioteca dele, no solar da família, no Toxofal, tinha acesso, pela primeira vez, em 1965, a títulos da imprensa estrangeira como o Le Monde ou o Nouvel Observateur ou as obras, em português e francês, que foram importantes para a minha formação cívica e intelectual. Adorava lá ir, ao Toxofal, "saber as últimas", ler os jornais e, mais do que isso até, ter acesso a uma biblioteca completa de uma velha e conceituada família republicana. Os livros forravam as pedras de alto a baixo, do gabinete de trabalho do Catanho de Menezes,  e era isso que me fascinava, até mais do que as notícias da "resistência antifascista" ...

Muito raramente temos aqui falado destes factos, e nomeadamente da campanha eleitoral" de 1969 (mas também das "eleições" de 1965 e de 1973)... Penso que temos esse dever de memória, porque para alguns de nós essas campanhas eleitorais e a pouca liberdade que era dada momentaneamente às "oposições"  foram uma verdadeira escola de educação cívica, cidadania e formação da consciência política...

Confesso que nunca vi o Mário Soares no Toxofal de Baixo, nem o Catano de Menezes me convidaria para estar com ele ou com outras figuras gradas da oposição democrática... Eu era ainda um "miúdo", em 1965, e havia fortes preocupações com a segurança... Tinha acabado, uns meses antes, de dar o nome para a tropa...

Nem sei se alguma vez o Mário Soares foi à Lourinhã, a não ser em campanha eleitoral, em 1969. Sei que a CEUD fez uma sessão no cinema local, em outubro de 1969.O presidente da Câmara Municipal de então, o João "Paradas", como a gente lhe chamava, tinha sido aluno do Colégio Moderno, e portanto amigo ou conhecido do Mário Soares. Homem da confiança do regime, teve no entanto o "fair play" de assistir à sessão de propaganda da CEUD numa sala que não levaria mais do que 200 lugares sentados. Soube, mais tarde, que futuros destacados militantes socialistas locais, do 26 de abril, ficaram então escondidos na "casa da máquina de projeção", ouvindo as intervenções de Mário Soares, Catanho de Menezes e demais candidatos da CEUD..

Mesmo em outubro de 1969, no "outono" do marcelismo, nem toda a gente se sentia livre para dar a cara... Era preciso coragem física e moral... E essa qualidade, estes dois homens, aqui evocados, Catanho de Menezes e Mário Soares, sempre a tiveram... Lembro-me do dia em que estive, como meu amigo José António, em Toxofal, em setembro de 1965, na véspera do Catanho Meneses e o Mário Soares partirem para Espanha para se inteirarem do caso Humberto Delgado. Ambos serão presos pela PIDE.

Depois de ir para a tropa e para a guerra, nunca mais vi nem contactei o Catanho de Meneses. Veio o 25 de abril e as suas diversas encruzilhadas, fui para Lisboa, nunca mais estive com ele, entretanto já dirigente do PS.

Nunca fui um homem de partido(s), mas tenho uma dívida de gratidão, tanto para com o Catanho de Menezes, meu conterrâneo, umas das primeiras pessoas com quem, em 1965, discuti os aspetos políticos da guerra colonial, bem como para com Mário Soares, enquanto português, e combatente pela liberdade. Disse isso, de resto, à sua  filha, no velório da sala do capítulo dos Jerónimos. E o que lhe transmiti era sincero, não era retórica.

Foram dois homens que a política e a amizade uniram: a única vez que estive pessoalmente com Mário Soares, foi numa exposição fotográfica sobre a guerra colonial, na sede da sua fundação; fiz questão então de lhe falar no nome do meu conterrâneo (e amigo), o Catanho Menezes, que o Mário Soares muito estimava e admirava.
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CATANHO DE MENEZES (1926 – 1985)

(i) Joaquim José Catanho de Menezes nasceu em 11 de Julho 1926, em Toxofal de Baixo, concelho da Lourinhã;

(ii) era filho de Hyde Odila Ribeiro Catanho de Menezes e do advogado João Catanho de Meneses, que foi ministro da Justiça e do Interior em dois governos da I República;

(iii) era também sobrinho do coronel Hélder Ribeiro, deputado e ministro de várias pastas durante a I República;

(iv) licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa, e exerceu advocacia nesta mesma cidade, ao mesmo tempo que geria a  exploração agrícola da família no Toxofal de Baixo, Lourinhã;

(v) foi sempre um público e notório oposicionista;

(vi) interveio como advogado em numerosos julgamentos políticos, dos quais se destacam os casos do 11 de Março e do "Golpe de Beja";

(vii) participou activamente na candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República (1958), tendo pertencido à sua comissão de juventude;

(viii) nas eleições para a Assembleia Nacional de 1961, 1965 e 1969, apoiou activamente as listas da oposição democrática: em 1965, foi candidato na lista da oposição por Lisboa;  em 1969, destacou-se no âmbito da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), pertencendo à sua Comissão Coordenadora;

(ix) foi preso pela PIDE em setembro de 1965, quando se dirigia para Espanha, com Mário Soares, J. Pires de Lima e Raul Rego, para acompanhar o processo de inquérito aberto pela justiça espanhola sobre o assassinato do general Humberto Delgado;

(x) aderiu à Acção Socialista Portuguesa (ASP); e virá a ser um dos fundadores do Partido Socialista (PS), em Bad Munstereifel, na Alemanha, em abril de 1973;

(xi) após o 25 de Abril de 1974, foi membro da Comissão Nacional e do Secretariado Nacional do PS (1974);

(xii) foi também deputado à Assembleia da República, na legislatura com início em 1976;

(xiii) faleceu em Lisboa a 3 de Junho de 1985;

(xiv) tem o seu nome numa das artérias principais da sua terra, Lourinhã.

Fontes;

 Fundação Mário Soares > Casa Comum> Arquivos > Joaquim Catanho de Menezes

Facebook > Antifascistas da Resistência > 15 de setembro de 2015 > Catanho de Menezes (1926-1985)
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Nota do editor:

Último poset da série > 8 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16932: Manuscrito(s) (Luís Graça) (109): Pôr do sol em “trompe l´oeil”

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16945: In memoriam (275): Adeus Mário e nobre Soares (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703)



1. Em mensagem datada de 10 de Janeiro de 2017, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, BissauCufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos este artigo de opinião para publicação:


Adeus Mário e nobre Soares

Foi-se embora, fica a História e o seu julgamento. Se foi o coveiro do Portugal Africano, desempenhou-se com a dignidade, porque nem fora autor da morte nem quem lhe abriu a cova. E superou-se como político e estadista – o grande dos maiores obreiros da transformação do Portugal imobilista no Portugal democrático e progressista.

Naquele tempo eu pensava que a solução dos problemas que assoberbavam o país recaía sobre os portugueses do interior, na oportunidade da “Primavera marcelista”, esperançadamente nutrida pelo ideário da então Ala Liberal da Assembleia Nacional. Os partidos Comunista e Socialista (este formado recentemente na Alemanha) pareciam-me organizações externas ao país, formatadas por emigrantes políticos, geralmente fugidos ou a isto ou àquilo. Como mal informado, enganara-me.

Desembarcado na Estação de Santa Apolónia, Mário Soares pareceu-me um demagogo, revolucionário oportunista, retórico mobilizador e radical, que ultrapassava pela esquerda o Partido Comunista e os movimentos da extrema-esquerda. Só comecei a interessar-me pela sua personalidade por altura do Congresso do PS, em meados de Dezembro de1974, alertado pelo apoio declarado dos países comunistas à facção do católico e progressista Manuel Serra contra a facção do socialista e laico Mário Soares. Isso levava água no bico e, então, comecei a perceber a sua luta pela liberdade e que o seu populismo era manobra táctico em se posicionar ante “o povo como o peixe para a água” – a grande arma táctica dos partidos comunistas.

E os acontecimentos confirmaram essa razão. Adiante.

A “Descolonização exemplar”, o maior desastre nacional após Alcácer Quibir, tema tão caro às centenas de milhar de portugueses, pela sua dádiva da juventude, saúde, integridade física e da própria vida, na condição de militares, a lutar para que Portugal não fosse corrido da África a tiro e como sendeiro, após 500 anos de estar nela como leão, teve a responsabilidade de Mário Soares? Alguma, certamente – mas de grau muito inferior à do anterior regime e, sobretudo, à da “Comissão Coordenadora do Programa do MFA”, que se lhe antecipou a conspurcar a substância de liberdade e de democracia desse movimento militar, na sua trajectória de se transformar em partido armado!

Mário Soares apresentou-se na Cova da Moura ao MFA e assumiu o Ministério dos Negócios Estrangeiros comungando as ideias e princípios da autodeterminação por eleições livres, inclusivas, e das suas independências por tratados. Mas quando partiu para essa missão, já o MFA se lhe antecipara, em oferecimento da retirada, do abandono, ao PAIGC, à FRELIMO e ao MPLA – porque nos queriam correr a tiro! Imaginemo-nos na sua situação negocial, a ouvir o contínuo zumbido do MFA de “despache-se, senão a tropa rende-se” e, no caso da Guiné – a caixa de Pandora que esse movimento militar abriu para esse desastroso desfecho – a cassete em contínuo de José Araújo e Pedro Pires: - Negativo! Vão-se embora! Vão-se-embora!

Na senda dos republicanos – o pai fora ministro das Colónias da I República - em 1966 Mário Soares ainda preconizava uma discussão do Minho a Timor, sobre o Ultramar – como todo o português, de espírito óbvio. Passou a advogar as negociações que conduzissem às independências africanas com a entrada de Marcelo Caetano – pela sua intuição de o salazarismo não poder subsistir sem Salazar.

Em 1974, partiu para as negociações com esse pressuposto. Cedeu aos factos consumados e seguramente que terá feito o melhor que pôde; depois, voltou-se a enfrentar o futuro, generosamente, sem recriminações aos seus actores, preocupado em aliviar-lhes a negrura desses factos acontecimentais. E como primeiro-ministro e durante os seus 10 anos como PR não foi a Cuba, em romagem a Fidel Castro…

Ganhou direito a um lugar no olimpo dos Grandes Portugueses.

Manuel Luís Lomba
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16910: In memoriam (274): José Augusto Machado (1949-2017), ex-fur mil at, CART 2715 (Xime, 1970/72); vivia em Caneças, Odivelas. O velório é hoje na igreja de Casal de Cambra, Sintra, e o funeral é amanhã às 15h00 (Benjamim Durães)

domingo, 8 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16932: Manuscrito(s) (Luís Graça) (109): Pôr do sol em “trompe l´oeil”


Lisboa > Beira Tejo > 5 de novembro de 2011 > Pôr do sol no Atlântico, no momento em que passava um porta-contentores na linha do horizonte... Uma foto feliz, tirada no estuário do Tejo, em Belém, junto ao Museu do Combatente (Forte do Bom Sucesso)...

Foto (e legenda): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados




Pôr do sol em “trompe 

l´oeil”

por Luís Graça

À memória do meu compatriota Mário  Soares  (1924-2017)




Cai o sol no lado errado e frio do mundo,
Entornando a lata de tinta do pintor,
E aquele vermelho não é raiva, é dor,
Não há teleobjetiva que veja fundo.


Passam veleiros de corsários na lonjura,
Enquanto em terra as mulheres esconjuram naufrágios,
E a história, antes de o ser, é feita de presságios,
E da tensão entre liberdade e escravatura.


Passam navios negreiros em contraluz,
E aquela verde e rubra pintura em tela
Não é o mapa do meu país, é uma estrela,
Morta, é um buraco negro que não reluz.


Nada como a morte para branquear a vida,
Com a cal viva da vala comum da história,
Para uns o céu,  a imortalidade ilusória,
Para milhões,  a campa rasa que tudo olvida.


Pouco importa que o tempo nos sare as feridas,
O que nos acabrunha é a nossa pequenez,
É  o sol pôr-se pela infinitésima vez,
Indiferente às dores de alma por nós sofridas.


Praia da Areia Branca, 7 de janeiro de 2017
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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16925: Manuscrito(s) (Luís Graça) (108): Com o Eduardo Jorge Ferreira, o Jaime Bonifácio Marques da Silva e outros amigos da Tabanca do Oeste, cantando as janeiras em Pereiro, nas fraldas da serra de Montejunto

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15683: (De)Caras (28): Rescaldo da Sessão evocativa do 20 de Janeiro de 1973: Colóquio “Quem mandou matar Amílcar Cabral?”, organização da Embaixada da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de hoje, 28 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos
Envio a notícia sobre a sessão evocativa do assassinato de Amílcar Cabral, por iniciativa da Embaixada da República da Guiné-Bissau

Um abraço do
Mário


Sessão evocativa do 20 de Janeiro de 1973: 
Colóquio “Quem mandou matar Amílcar Cabral?” 

Beja Santos


A Embaixada da República da Guiné-Bissau organizou no sábado 23 de Janeiro um colóquio subordinado ao título “Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?”, exatamente o título do livro escrito na década de 1990 pelo jornalista José Pedro Castanheira. Para além deste jornalista e escritor foram convidados Julião Soares Sousa e José Luís Hopffer Almada como comentadores e eu fui convidado como moderador. A sessão decorreu num dos auditórios da Universidade Lusófona(1).

José Pedro Castanheira caraterizou a sua investigação, no âmbito dos 20 anos do assassinato de Amílcar Cabral, enunciou as diligências e os contactos efetuados. Foi o primeiro investigador a ter acesso aos arquivos da PIDE. Observou que ainda não é absolutamente seguro saber quem mandou matar o líder do PAIGC, comentou que procurou entrevistar Joaquim Chissano, presente no tribunal internacional reunido em Conacri, o antigo dirigente da FRELIMO informou-o que este assunto será matéria de um dos seus volumes de memórias. Igualmente recebera a anuência de entrevista do professor Silva Cunha, não se concretizou, resta saber se é possível consultar a sua documentação pessoal que está depositada na Universidade Portucalense. Referiu-se às quatro hipóteses postas pelo complô: a exclusivamente interna; a da responsabilidade das autoridades da Guiné-Conacri, obviamente com a anuência de Sékou Turé, a hipótese de ingerência dos serviços secretos franceses e a operação montada pela PIDE, com recurso a descontentes do PAIGC. Concluiu que qualquer uma destas hipóteses continua em cima da mesa até se revelarem fontes conclusivas, ocorre dizer que todos estavam interessados neste desfecho.

Julião Soares Sousa referiu-se ao assassinato como um crime geneticamente interno. Há imensa neblina nos dias que precedem o assassinato, está presentemente a estudar a correspondência desse período de Amílcar Cabral, há por exemplo uma carta dele para Sékou Turé sobre recolha de fundos do PAIGC, algo enigmática, ao tempo o PAIGC recebia apoios que não justificavam uma campanha de recolha de fundos. Há outros documentos perturbadores que falam de tentativas de negociação sobre as quais ainda há provas pouco consistentes, para interpretar possíveis contactos entre Spínola e o PAIGC. Alpoim Calvão também procurou contactar altos dirigentes do PAIGC. Não são conhecidos quaisquer números sobre interrogados e participantes, considera que terão sido ouvidos em interrogatórios mais de 300 pessoas e condenados cerca de 30 participantes. Há outros elementos intrigantes para os quais é necessário obter resposta, por exemplo tinha sido constituída uma frente para a libertação da Guiné em Conacri, quer Sékou Turé quer Amílcar Cabral tinham informações concretas desta iniciativa. O que lhe ocorre dizer, para além do que está escrito no seu livro "Amílcar Cabral, Vida e Morte de um Revolucionário", continua a investigar os acontecimentos da época, informou que Agostinho Neto também fizera parte do tribunal internacional e analisa agora a documentação produzida pela delegação jugoslava. Na sua opinião, o assassinato é uma agregação de vontades, algumas delas dispersas, provocou uma resposta coesa do PAIGC que modificou os termos da guerra de guerrilhas, a partir dos acontecimentos de Maio, o PAIGC ficou dono e senhor das iniciativas militares introduzindo esquemas da guerra convencional para os quais as forças armadas na Guiné não tinham resposta e aceleravam a resposta das próprias forças armadas portuguesas, desencadeando o 25 de Abril e a resposta singular do MFA na Guiné.

José Hopffer Almada entendeu que é um outro ângulo da questão que continua a pedir um esclarecimento cabal: a unidade Guiné-Bissau-Cabo Verde e o próprio Movimento Reajustador, encabeçado por Nino Vieira, que se traduziu pela quebra sem apelo nem agravo dessa unidade, fulcro do sucesso da luta de libertação na Guiné.

Tal como estava previamente acordado, os elementos da mesa conversaram. Referi que há mais bibliografia significativa que fala do assassinato ou da sua interpretação, caso das obras de Leopoldo Amado, Tomás Medeiros, António Tomás e Daniel Santos. Não há um só documento nos arquivos da PIDE que permita aproximar uma diligência da polícia política no assassinato, os documentos que existem são informações de djilas que funcionavam quase como agentes duplos, e vêm referidos no livro de José Pedro Castanheira. No dia 21 de Janeiro de 1973, António Fragoso Allas enviou uma apreciação do assassinato, atribuiu a conhecidas discórdias entre cabo-verdianos e guineenses, o responsável da PIDE em Bissau só podia ter enviado esta apreciação por não estar envolvido. Mário Soares, na Cova da Moura, perguntou a Spínola, quando este o convidou para ser ministro dos Negócios Estrangeiros, qual o envolvimento direto ou indireto do general no assassinato de Amílcar Cabral, ao que o general respondeu que ninguém na Guiné, sob o seu mando, tinha interferido nas desinteligências internas do PAIGC, não existira qualquer plano para assassinar Cabral, aliás este seria o único interlocutor possível para negociações com o PAIGC. Castanheira lembrou que fora o único jornalista a entrevistar Ansumane Mané, no decurso da guerra civil, e que à pergunta sacramental de quem mandara matara Cabral, Ansumane reportara uma conversa havida com Nino, este estava profundamente comovido mas não descartara claramente a hipótese do seu envolvimento no complô. E, como se sabe, na última entrevista concedida Aristides Pereira ao jornalista José Vicente Lopes, o antigo presidente do PAIGC atribuía responsabilidade direta a Osvaldo Vieira mas insinuou que Nino Vieira não estava alheio ao complô.

Seguiu-se um debate vivacíssimo e após três horas de convívio o moderador referiu que se tinha começado a sessão entre a neblina e o nevoeiro e se concluía entre o nevoeiro e a neblina…
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Notas do editor

(1) Vd. poste de 20 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15642: Agenda cultural (458): Conferência, sábado, 23, às 16h, na Universidade Lusófona, Campo Grande, em Lisboa, sob o tema "Quem mandou matar Amílcar Cabral?: Da investigação à atualidade dos factos". Oradores: José Pedro Castanheira, jornalista; Julião de Sousa, historiador; José Luís Hoppfer de Almada, analista político; moderação: Mário Beja Santos; organização: Embaixada da República da Guiné-Bissau; apoio: RDP África

Último poste da série de 31 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15561: (De)Caras (27): As últimas perdas de 2015: a minha mãe, uma amiga do Fundão e o camarada António Vaz (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1971/74)

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13696: Notas de leitura (639): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
O embaixador João Rosa Lã conheceu a Guiné nos primórdios do multipartidarismo.
É um observador mordaz, tanto usa a ironia fina como a farpa envenenada. Discreteia sobre o processo eleitoral, a subsidiodependência, mostra-nos um Nino Vieira tirado das peças mais virulentas de Shakespeare, cruel e timorato, em confronto com os camaradas da luta de libertação, prendendo-lhes até familiares. Passa em revista a nossa cooperação, desvela episódios anedóticos, não terá gostado do país mas amou as gentes.
Até hoje.

Um abraço do
Mário


Embaixador João Rosa Lã na Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

Em livro recentemente dado à estampa, intitulado “Do Outro Lado das Coisas, (In) confidências Diplomáticas”, o embaixador João Rosa Lã descreve ao pormenor a sua missão na Guiné-Bissau nos anos de 1993 e de 1994, período que correspondeu às primeiras eleições livres e democráticas que o país conheceu. Repare-se que Nino Vieira e o PAIGC não eram adeptos fervorosos da democratização, foi o termo da Guerra Fria que lhes exigiu a organização de processos eleitorais transparentes e pluripartidários, se acaso não aderissem teriam consequências funestas na cooperação oferecida pelos países desenvolvidos. Nino recorreu a todas as astúcias e manobras dilatórias com o processo eleitoral, temia os resultados das eleições livres, sabia sofrer quebra na popularidade e via em ascensão o Movimento de Bafatá e o PRS, ligado a um jovem demagogo, Kumba Yalá. Apercebendo-se que as manobras dilatórias se tinham tornado insustentáveis, Nino recorreu a Portugal, pediu ajuda ao Secretariado Técnico de Apoio aos Processos Eleitorais - STAPE. Toda a oposição apoiou. Nino Vieira fez uma comunicação pública comprometendo-se a respeitar as regras democráticas. A ONU designou o antigo presidente da Comissão Eleitoral que tinha organizado as eleições em Angola, Dr. Onofre Martins dos Santos, para dirigir toda a operação de fiscalização.

O STAPE veio a revelar-se eficaz. Enquanto esta máquina era posta em funcionamento, Nino Vieira angariava novas forças de segurança, os “Ninjas”, um elemento desestabilizador e que podia conduzir a um fiasco eleitoral. As eleições aconteceram, Nino Vieira não conseguiu a maioria absoluta, teve que ir a uma segunda volta com Kumba Yalá. Mas o PAIGC manteve uma larga maioria de assentos, o Movimento de Bafatá ficou em segundo lugar e o PRS em terceiro. E o diplomata comenta: “Apesar das chuvas intensas e das dificuldades nas comunicações terrestres, com o auxílio das duas lanchas LDM, que oferecêramos à Marinha guineense, e dos helicópteros dados pelos soviéticos, que a todo o momento ameaçavam cair, a segunda volta realizou-se sob fiscalização internacional. O ato eleitoral decorreu na maior calma, mas sem grande entusiasmo popular. As pessoas estavam cansadas, os candidatos tinham esgotado os seus argumentos e a chuva, imensa, desmobilizara muita gente”. Vencedor, Nino mantinha-se silencioso, Kumba tinha lançado foguetes antes da festa, muitas forças da oposição temiam confrontos, a situação tinha-se tornado explosiva já que os partidários de Kumba tomaram conta das ruas da capital, festejando a vitória. Finalmente Nino fez uma declaração presidencial, a oposição, em parte relutante, aceitou os resultados.

Para segunda prioridade da sua missão, Rosa Lã pretendia o reforço da posição portuguesa, sentia-se o rolo compressor da influência francesa, e comenta: “Historicamente, a França, como potência colonizadora da África Ocidental, dificilmente aceitava a presença portuguesa num território que pertencia, em sua opinião, a uma zona da sua influência exclusiva”. Os diplomatas franceses faziam tudo para bajular a elite política, não havia projeto de cooperação que não incluísse uma prebenda, ao tempo a administração guineense tinha um número impressionante de Peugeots. Os problemas não acabavam aqui, Bissau, sempre a sonhar com milagres, queria substituir o peso pelo franco CFA, como veio a acontecer. Os franceses também tudo fizeram para afastar a TAP e para que a TAGB fosse integrada na AIR-AFRIQUE, operação que falhou porque esta última abriu falência. Rosa Lã, além de mordaz é por vezes chocarreio, como exemplifico: “O comportamento do embaixador francês merece uma referência especial. O homem viera desesperado para Bissau, depois de lhe terem prometido a missão em Reiquejavique, na Islândia. Descendente de uma família islandesa, o embaixador adorava o frio e a escuridão. Na sua residência, moderníssima, toda de vidro feita, com um gigantesco pé direito, mais parecendo uma gare de aeroporto, punha a temperatura ambiente a níveis dos da Islândia. Quando tínhamos a desdita de nos deslocarmos até lá, víamo-nos obrigados a vestir roupas de inverno, incluindo cascol e casaco grosso. Dava o homem a desculpa de que a aparelhagem do ar condicionado ficara mal dimensionada e ele era obrigado a ter aquela temperatura em casa”. E é igualmente impiedoso com a falta de coluna vertebral na política externa, a Guiné-Bissau vendia despudoradamente o seu reconhecimento diplomático aos Estados que dele necessitassem e mais pagassem: “Periodicamente, Bissau abria relações com o Estado e cortava com o rival. Passados uns anos, denunciava esse reconhecimento e recuperava as relações com o outro. E assim sucessivamente, desde que essa mudança desse lugar a uma compensação conveniente”. Rosa Lã desce por vezes ao nível do pátio e soalheiro, fala expressamente em Vasco Cabral sempre a pedinchar subsídios ou bilhetes de avião para Lisboa, era a imagem descarada da subsidiodependência.

O diplomata passa em revista as jóias da cooperação como o projeto do Quebo, uma experiência piloto em que fazia investigação sobre novas espécies e culturas a introduzir: “Quando saí da Guiné, o projeto derrapava e os abutres das cooperações concorrentes tentavam absorvê-lo. Apesar de todas as vicissitudes por que a Guiné-Bissau passou, ainda hoje aquele projeto se mantém e continua a ser o melhor projeto em matéria agrícola, da nossa cooperação em África”. Amante da pequena história e da historieta picante, descreve Mário Soares num almoço oferecido às delegações dos países lusófonos, após a cerimónia de posse de Nino Vieira, Soares deliciava-se vagarosamente com digestivos e charutos, fazendo pagar a Nino a indelicadeza da véspera, em que o deixara à mesa para ir acompanhar ao aeroporto o chefe de Estado do Senegal. Os últimos meses da sua estadia deram para perceber como o governo de Saturnino Costa caminhava para o colapso, faltava combustível, havia um surto de cólera, as tensões político-militares cresciam. Saído de Bissau, foi encaminhado para São Bento, tornou-se assessor diplomático do primeiro-ministro Cavaco Silva, de quem não esconde a admiração e a colaboração dada até para a sua candidatura presidencial. Rosa Lã não voltou a África, a não ser em viagens meteóricas. O povo guineense e o seu lindo sorriso ficaram-lhe no coração, di-lo abertamente.
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 3 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13685: Notas de leitura (637): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13691: Notas de leitura (638): Algumas considerações às perguntas deixadas por Rui A. Ferreira no seu livro "Quebo - Nos Confins da Guiné" a propósito da retirada do Guileje (Coutinho e Lima)

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13532: Notas de leitura (626): Mário Soares e a descolonização da Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
O historiador David Castaño é autor de um livro recente sobre o papel de Mário Soares na revolução portuguesa.
No artigo ora em análise, Castaño procede a exame o ideário dos oposicionistas ao regime de Salazar e a evolução operada em Soares sobretudo após a criação da Ação Socialista Portuguesa.
Descreve os equívocos, ilusões e crispações vividos logo no arranque do I Governo Provisório e como foi evoluindo o sentir da descolonização da Guiné, negociações que Soares acompanhou do princípio ao fim e que foram, aliás, as únicas negociações em que Soares agiu como principal negociador português.

Um abraço do
Mário


Mário Soares e a descolonização da Guiné

Beja Santos

A revista Relações Internacionais R:I publicou no seu número de setembro de 2012 o artigo intitulado “Abrindo a Caixa de Pandora: Mário Soares e o início da descolonização”, por David Castaño, investigador do ISCTE e do IPRI, doutor em História Contemporânea e autor do livro “Mário Soares e a Revolução”, Publicações Dom Quixote, 2013. Dá-nos uma grande angular da evolução do pensamento de Soares acerca da do património colonial, clarifica o confronto entre Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros e Spínola, presidente da República, e descreve toda a intervenção de Soares na descolonização da Guiné, aliás a única em que interveio.

Primeiro, em 1960, Soares é um dos redatores do Programa para a Democratização da República, documento que registava o ideário da oposição “democrática, republicana, liberal e socialista”. No tocante à política ultramarina, este sector de oposição reclamava “a imediata institucionalização da vida democrática, sem discriminação racial ou política, para todos os territórios e todos os povos”. Indicavam-se várias medidas destinadas à criação de elites locais, entre outras. Ou seja, estava-se ainda longe de falar em autodeterminação e de independência. A proposta foi rapidamente ultrapassada com os acontecimentos de 4 de fevereiro de 1961, em Angola. Neste novo contexto, estes oposicionistas defendiam que o problema ultramarino era essencialmente político, havia que “reencontrar na paz – nunca na guerra – o caminho do diálogo entre as populações”. Um segmento expressivo da oposição cerrou fileiras em torno da defesa da África portuguesa. O livro de Frantz Fanon, entretanto, abalava as gerações mais jovens, a guerra da Argélia tornava-se-lhes claro que chegara a hora de dar um novo rumo às colónias. A Ação Socialista Portuguesa, a partir de 1964, condena política colonial da ditadura, reclama “o direito à autodeterminação e à independência das populações submetidas à nossa soberania”. Em 1970, numa conferência em Nova Iorque, Soares defendeu que a democracia era “incompatível com o prosseguimento da guerra colonial, e defende o fim da guerra". Estas declarações foram um dos motivos que o conduziram ao exílio.

Segundo, à chegada a Lisboa, na Estação de Santa Apolónia, Soares declarou que uma das prioridades imediatas passava por assegurar o “respeito pelos princípios de autodeterminação”, referiu-se aos contactos que durante o exílio tivera com líderes dos movimentos africanos alertou para o perigo do desenvolvimentos de movimentos separatistas brancos. Spínola pede-lhe para efetuar uma viagem pelas principais capitais europeias a fim de explicar o sucedido em Portugal. Durante esse périplo, Soares apercebe-se que quase todos os líderes europeus pressionam os contactos com os movimentos de libertação. Já ministro dos Negócios Estrangeiros, reúne-se com James Callaghan, primeiro-ministro da Grã-Bretanha. Castaño escreve: “Soares defendeu que a prioridade era a Guiné. Era necessário alcançar um cessar-fogo, separar a questão de Cabo Verde e preparar-se a realização de um referendo quando se realizassem as eleições em Portugal. Em sua opinião, Portugal não podia reconhecer imediatamente a Guiné-Bissau pois não existia um mandato popular nesse sentido já que o Governo em funções tinha origem num golpe militar, pelo que só depois de realizadas eleições em Portugal e consultados os guineenses se poderia dar esse passo”.

Tinham-se iniciado em Londres negociações com uma delegação do PAIGC, Soares acreditava que se ia conseguir um acordo de cessar-fogo, a troca e a libertação de prisioneiros, estabelecer-se-ia a retirada de tropas portuguesas e alguns pontos do território, seguir-se-iam negociações para implementar o princípio da autodeterminação, Soares contava igualmente com a boa vontade da OUA do bloco de Leste. Só que as negociações não evoluíram como o ministro português perspetivara. Os negociadores do PAIGC mostraram-se rígidos, recusaram e consideraram muito grave a proposta de consulta às populações, recordaram que o Estado da Guiné-Bissau já era reconhecido por 84 Estados e que em breve a Assembleia Geral das Nações Unidas podiam admiti a Guiné-Bissau e mais recordaram que a Assembleia Geral já tinha adotado uma resolução em que condenava Portugal pela ocupação ilegal de uma parte do território. As negociações foram interrompidas. No resumo das conversações de Londres, o chefe da delegação do PAIGC, Pedro Pires, anotava que os negociadores portugueses reconheciam que os seus soldados já não queriam combater. A pressão internacional crescia, os países africanos e os países escandinavos defenderam junto de Mário Soares que Portugal deveria reconhecer, sem qualquer tipo de consulta, o Estado da Guiné-Bissau. Mas Spínola mantinha-se intransigente, queria a realização de consultas populares. E Soares parte para Argel, o PAIGC mantém a sua postura intransigente. Soares mudara entretanto de posição, ele que se revelara defensor da realização de um qualquer tipo de consulta, mesmo para o caso guineense, deixava claro que passara a ser partidário do reconhecimento imediato da Guiné-Bissau. “Numa reunião dos ministro dos Negócios Estrangeiros dos países da NATO, realizada em Otava, nos dias 18 e 19 de junho, Soares informou Callaghan que o caso guineense era peculiar e que a independência poderia vir a ser alcançada sem a realização prévia de uma consulta popular”. Soares reúne-se com Kurt Waldheim, secretário-geral da ONU, e expõe-lhe francamente as diferentes posições em jogo, Waldheim defendeu que se devia fazer uma distinção entre a situação da Guiné-Bissau que já tinha a independência reconhecida.

Terceiro, é a descolonização e as suas vias possíveis que vai precipitar a crise política que levará à queda do primeiro-ministro, Palma Carlos, defensor da aprovação de uma constituição provisória que claramente reconhecesse o princípio do direito à autodeterminação. Os acontecimentos sucediam-se em turbilhão, Waldheim é confrontado com o pedido de adesão da Guiné-Bissau às Nações Unidas, Soares é informado pelos mais variados canais diplomáticos que a maioria esmagadora dos Estados aprova a ideia. O MFA da Guiné intervém, no início de julho aprovara uma moção em que se defendia que “a realidade político-social da República da Guiné-Bissau e do PAIGC” não era “compatível com o seu enquadramento nos limites de uma autodeterminação pela via de um referendo ou qualquer outro processo semelhante”, exigia-se que o Governo português reconhecesse “imediatamente e sem equívocos a República da Guiné-Bissau e o direito à autodeterminação e independência dos povos de Cavo Verde”. Spínola apercebe-se que não tem margem de manobra e promulga a Lei 7/74, que irá ficar a ser conhecida como a lei da descolonização. No início de Agosto, Waldheim chega a Lisboa. No comunicado final da visita, o Governo português declarava-se pronto a reconhecer a República da Guiné-Bissau como Estado independente e disposto a celebrar imediatamente acordos com a República da Guiné-Bissau para a transferência imediata da Administração. A 8 de agosto as negociações foram retomadas em Argel e no dia seguinte os representantes de Portugal e do PIAGC alcançaram um protocolo de acordo. A 26 de agosto, novamente em Argel, assinou-se o acordo e ficou agendado para 10 de setembro o reconhecimento da Guiné-Bissau.

Estas foram as únicas negociações em que Mário Soares agiu como principal negociador português. A partir de julho, com a chegada do major Melo Antunes ao governo como ministro responsável pela descolonização, o MFA tomou as rédeas do processo.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13524: Notas de leitura (625): “Che Guevara: La clave africana, Memorias de un comandante cubano, mebajador en la Argelia postcolonial”, por Jorge Serguera (Papito) (Mário Beja Santos)