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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25204: Notas de leitura (1669): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (13) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Não vale a pena determo-nos muito tempo sobre os primeiros meses da governação de Spínola, são bem conhecidas as suas diretivas, as admoestações e castigos a oficiais de superiores removidos para a metrópole, a sua estrondosa exposição no Conselho Superior de Defesa Nacional onde aludiu à probabilidade de um colapso militar, tendo recebido, como contrapartida, alguns milhões para o seu programa Por Uma Guiné Melhor e alguns recursos militares. Os autores dão conta de que a retirada de quartéis na zona Sul e Leste suscitou um novo quadro de atuação para a Zona Aérea, as chamadas ZLIFA conheceram uma substituição praticamente semântica, se bem que continuasse a existir, em poder do PAIGC, sistemas de defesa antiaérea operacionais, particularmente na zona Sul. Aqui se faz um sucinto relato deste período inicial da governação de Spínola.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (13)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 4: “A pedra angular”


Muitos autores já se debruçaram sobre o diagnóstico feito por Spínola, passados os três primeiros meses desde que chegara à Guiné em maio, deixou relatórios bem incisivos e dirá mesmo na reunião do Conselho Superior da Defesa Nacional que poderia estar iminente um colapso militar. Não esconde que o PAIGC tomara a iniciativa militar, estava mais motivado, cada vez mais bem armado e que controlava um conjunto impressionante da superfície do território. Terá mesmo provocado um sobressalto nos altos-comandos quando alertou para que tal colapso iria criar “uma onda imparável de apoio aos movimentos de libertação”, suscetível de levar Angola e Moçambique à independência. Ao formular a sua estratégia para evitar tal colapso, o Governador e Comandante-chefe advertiu que a guerra revolucionária que se enfrentava na Guiné tinha que ser totalmente invertida com a conquista das pessoas, não podia haver uma abordagem puramente militar, mas sim “uma solução genuína, clara e decisiva através da revolução social, com programas que concretizassem as justas aspirações do povo”. A peça central deste seu programa foi designada “Por Uma Guiné Melhor”.

O governo de Marcello Caetano abriu os cordões à bolsa, vieram meios para a construção de aldeamentos, mais escolas, postos médicos, estradas e portos. Aumentou o número de matrículas escolares, surgiram empreendimentos infraestruturais, intensificou-se o apoio à agricultura e surgiram os Congressos do Povo, era um compromisso de Spínola para dar à população uma aparência de representação política. Através deste conjunto de programas, Spínola esperava privar o inimigo de razões para mais adesões a apoio a luta armada.

Entrou em marcha a operação dos reordenamentos, Spínola pretendia que estes novos aldeamentos separassem fisicamente a população que aceitava a soberania portuguesa da que apoiava o PAIGC, e assim também se privaria estes insurgentes de fontes de informação, alimentação e de locais de presença temporária. Igualmente foi implementada uma campanha psicológica para que as populações participassem neste conjunto de reformas. Mas não havia ilusões, tais programas não obstavam a que se dinamizasse uma mentalidade ofensiva e para tal o novo comandante-chefe determinou mudanças nas Forças Armadas. A princípio, Spínola norteava-se com uma economia de recursos, dada a improbabilidade de muito mais reforços, provocou mudanças na quadricula, procurando gerar a concentração no dispositivo militar, foram retirados efetivos militares de locais junto das fronteiras com a República da Guiné e na área do corredor de Guileje, bem como no Boé; obviamente que este abandono de posições abriu espaço, tanto no Sul como no Leste a uma maior presença dos grupos insurgentes. Amílcar Cabral fez questão de anunciar que a retirada destas posições portuguesas era o prenúncio para vitórias de decisivas. Mais tarde, Nino Vieira veio vangloriar-se de que podiam avançar muito mais quilómetros sem avistar o inimigo.

Para tirar partido de que estavam em curso grandes mudanças político-militares, Joaquim da Silva Cunha, Ministro do Ultramar, visitou a Guiné durante nove dias em março de 1970, foi uma sucessão de eventos cuidadosamente planeados para se mostrar o andamento do programa Guiné Melhor e também para mostrar ao Governo que havia uma ampla liberdade de movimentos em toda a Província. Com efeito, o ministro visitou diferentes partes do território, apareceu a ser saudado com entusiasmo em todos os lugares. E mesmo quando Silva Cunha foi a Madina do Boé, quartel de onde as forças portuguesas se tinham retirado em fevereiro, o helicanhão sobrevoava a visita meramente propagandística do ministro, como observou o Coronel Kruz Abecassis, o ministro partiu e o PAIGC regressou. A retirada de guarnições periféricas criou desafios e oportunidades para a Zona Aérea, ficou delineado de forma mais clara áreas seguras de áreas contestadas. Com a redistribuição das forças de superfície, Spínola apelou à Força Aérea para compensar os setores mais vulneráveis com apoio de fogo oportuno e expandiram-se áreas reservadas, tanto como zonas exclusivas de intervenção aérea ou de intervenção de artilharia móvel ou de forças aerotransportadas.

Schulz, com a concordância da Zona Aérea estabelecera a chamada Zona de Livre Intervenção da Força Aérea (ZLIFA) e Spínola implementou novos procedimentos, introduzindo o conceito de Zona de Intervenção do Comando-Chefe (ZICC), foram criadas sete ZICC, mais ou menos correspondendo às chamadas regiões “libertadas” do PAIGC ou territórios desocupados recentemente pelas forças terrestres portuguesas e onde agora a Força Aérea poderia atuar por ordem direta do comandante-chefe, sem necessidade de coordenar as suas operações com os comandos locais. As ZICC permitiam à Zona Aérea a agir rapidamente quando surgiam informações que necessitassem respostas imediatas.

Para gerir de forma mais eficiente os meios aéreos que estavam atribuídos à Zona Aérea, Spínola dividiu conceitualmente, os ativos, uns dedicados a apoio direto às unidades (logística, ligação, reconhecimento e apoio de fogo), e outros como componente aérea da manobra do comando-chefe. Spínola atribuía uma grande importância a esta componente dada a precariedade dos percursos terrestres e a sua limitada capacidade de reagir em tempo útil – era a “pedra angular“ da sua estratégica. Spínola enfatizava que o objetivo não era o da aniquilação do inimigo, ele precisava de tempo para alcançar objetivos primários do seu programa socioeconómico e, portanto, a Força Aérea desempenhava um papel crucial de apoio logístico e informações de ataque ou assalto e até de retaliação nas áreas transfronteiriças. Spínola foi confrontado pela retoma da guerra pela supremacia aérea. Em 28 de setembro de 1968, um par de Fiat lançara foguetes para silenciar “armas pesadas não especificadas” que tinha disparado contra eles durante uma missão de reconhecimento armado perto de Guileje. Três meses mais tarde, em 6 de janeiro de 1969, quatro Fiat atingiram uma ZPU-4 de 14,5 mm que estava a apoiar um ataque do PAIGC ao quartel de Gadamael, no extremo norte da Península do Quitafine. Veio-se a saber mais tarde que a arma antiaérea fora destruída e danificadas armas pesadas, todo o pessoal que operava a arma antiaérea morrera, as tropas portuguesas que foram inspecionar o terreno recuperaram a mira ótica da ZPU-4.

Embora se tenham registado incidentes esporádicos noutros lugares da Província, o ambiente antiaéreos mais intenso permanecia no Sul, particularmente no Quitafine. Em finais de 1968, um par de Fiat que patrulhavam esta região avistaram uma ZPU-4 na abandonada aldeia de Cassebeche estava cercada por cinco ou seis armas antiaérea de 12,7 mm. Dadas as dificuldades até então sentidas em destruir armas antiaéreas apenas mediante ataques aéreos, Spínola ordenou um ataque de forças paraquedistas para garantir a eliminação da ameaça após uma série de ataques aéreos. O Comandante-chefe determinou que a operação fosse adiada na esperança que o PAIGC ainda concentrasse mais meios adicionais de defesa aérea na região, o elemento surpresa ficou à espera de uma nova data, sabia-se estar em presença de um inimigo alertado e bem-preparado.

Uma escola primária a funcionar em zona de soberania portuguesa. O programa Por Uma Guiné Melhor privilegiava a educação (Arquivo da Defesa Nacional)
Ministro do Ultramar na sua visita à Guiné em março de 1970, imagem efetuada na região do Gabu (Coleção António de Spínola)
Imagem tirada durante a retirada do aquartelamento de Madina do Boé, em fevereiro de 1969, veem-se em primeiro plano Spínola e a seu lado o Coronel Hélio Felgas, Comandante do Agrupamento de Bafatá (Coleção Álvaro B. Geraldo)
Zonas de intervenção do Comandante-chefe, agosto de 1970 (Matthew M. Hurley)
Poster de propaganda evocativo da viagem de Silva Cunha à Guiné, em março de 1970 (Coleção José Matos)

(continua)
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Notas do editor:

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Último post da série de 19 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25189: Notas de leitura (1668): "Amílcar Cabral e o Fim do Império", por António Duarte Silva; Temas e Debates, 2024 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25203: Efemérides (429): Foi há 50 anos, em 22/2/1974, que saiu o livro de Spínola, Portugal e o Futuro um livro que se tornou um "best-seller", que toda a gente comprou e que poucos leram e entenderam, mas que abalou um regime...


Capa do livro, cortesia da Visão (2009)

1. Há 50 anos,  a 22 de Fevereiro de 1974, era publicado  o livro Portugal e o Futuro, do General António de Spínola sob a chancela da editora Arcádia, Lisboa, e por iniciativa do editor Paradela de Abreu.

Nele se defendia, no essencial, a ideia de que a solução para o "problema ultramarino" passava por outras vias que não a sorte das armas, e nomeadamente a solução política, com a concessão de progressiva autonomia para as "províncias ultramarinas", integradas numa espécie de "Commonweath" lusófona tardia (a chamada "tese federalista").

O livro não foi censurado, e a alguma comunicação social, sujeita à censura ("Exame Prévio"), pôde noticiar o seu lançamento. (Portugal continuava a ser um "país amordaçado" desde 1926, mas jornais como a "República" e o "Expresso" deram cobertura ao evento, transcrevendo inclusive alguns excertos; no "Diário de Lisboa", por seu turno, não há uma única linha sobre o acontecimento, nas edições de 22, 23 e 24 de fevereiro de 1974.)

Marcello Caetano, apesar da irritação do Ministro do Ultramar e da clara oposição do Presidente da República, Américo Tomás, não quis impedir a saída do livro (receoso das repercussões que a notícia da proibição poderia ter, a nível nacional, nomedamente entre os militares, e sobretudo a nível internacional) que foi autorizada pelo nº 1 da hierarquia militar, o CEMGFA, o gen Costa Gomes. 

O livro, de 248 páginas, tornou-se um best-seller. Mais de 300 mil exemplares foram vendidos, num ápice, dentro e sobretudo fora do circuito normal do mercado livreiro. Toda a gente o comprou. Mas poucos leitores, na época, terão tido a pachorra de o ler de fio a pavio e de entender e analisar as suas propostas (de algum modo, tardias, desfasadas e confusas) para pôr fim à "guerra de África" e repensar o regime... 

Confesso que eu fui um deles. A obra era um estopada. E estupidamente não me aprecebi da sua importância naquele momento da nossa História. Hoje dou a mão à palmatória. E prometo ir ao sótão  limpar-lhe o pó. 

É daqueles livros que se vende ainda hoje nas feiras de velharias, em saldo, a preço de um euro ou menos. Mesmo assim foi seguramente um dos livros que abalou uma época e um regime, e  ajudou a acelerar o caminho para o 25 de Abril. (Os oficiais das Forças Armadas, mais conservadores,  cautelosos, reservados, mas descontentes com a sua carreira devorada por uma guerra interminável), acabaram também por aderir às "teses spinolistas"; o livro deu-lhes respaldo moral e disciplinar para o seu descontentamento e até revolta, como aquela que, logo a seguir à demissão de Spín0la e Costa Gomes, foi ensaiada no dia 16 de março de 1974, o chamado "golpe das Caldas".

Recorde-se (porque a memória é curta) que, a 17 de janeiro de 1974, Spínola fora nomeado vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, por sugestão de Costa Gomes (CEMGFA). U cargo criado só para ele,  considerado um herói da guerra de África e com muito prestígio... Menos de 2 meses, a 15 de março, os dois generais serão afastados dos seus cargos (o topo da hierarquia militar) devido à recusa em participar na manifestação de apoio ao Governo e à sua política ultramarina, cena que ficou conhecida como a "brigada do reumático".

A demissão de Spínola e Costa Gomes (que teve amplo eco nos jornais da época, apesar da censura), acabou por ser um tiro de ricochete, isolando, desautorizando e fragilizando ainda mais o Govermo de Marcello Caetano que  já em 28 de fevereiro havia apresentado um pedido de demissão ao Presidente da República, Américo Tomás (que obviamente o recusou). 

Já antes, no dia do lançamento do livro, em reunião com Costa Gomes e Spínola, Marcello Caetano terá oferecido de bandeja o poder aos dois generais (que obviamente recusaram o presente envenenado).

Ao que se sabe hoje, Spínola oferecera um exemplar autografado a Marcello Cateano e pediu a sua autorização para o publicar, como mandavam as regras (sendo um militar no ativo, e n.º 2 da hierarquia militar, o vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas). No dia 20 de fevereiro de 1974, o professor e primeiro-ministro acabou de ler o livro. Confessaria, mais tarde, nas suas memórias, que o golpe militar que ele pressentia e temia há meses, já estava em marcha e era imparável. 

Há 15 anos atrás, o jornalista Luís Almeida Martins publicou, a propósito desta efeméride, na revista Visão,  (edição nº 833, de 19 a 25 de Fevereiro de 2009) um artigo com o título (irónico), "Portugal e o passado", e que termina com este parágrafo:

" (...) Poucos dias antes de morrer, a 13 de agosto de 1996, com 86 anos, [Spínola] foi visitado no Hospital da Estrela por Nino Vieira, presidente da Guiné-Bissau e antigo comandante do PAIGC. Ao sair do quarto, Nino trazia uma lágrima no olho. Os guerreiros têm uma conceção própria da vida e da morte. Não sabem é ler o futuro, como o livro de Spínola demonstrou à saciedade"... 

Curiosamente, Nino voltaria a referir este episódio, na audiência que concedeu, doze anos depois, em 6 de março de 2008 (a um ano de ser brutalmente assassinado), a um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guiledje, em que eu estava presente, e que registei.

De qualquer modo, o livro "Portugal e o Futuro" abalou Marcello Caetano e o seu regime, defendia, ha 15 anosm  o jornalista da Visão;

"Pela primeira vez, um oficial-general atrevia-se a discordar da doutrina oficial"... 

E não era um oficial qualquer. 

(...) O homem do "pingalim e monóculo" ganhara uma "aura castrense talvez só suplantada pelas de Mouzinho de Albuquerque e de outros chefes militares das campanhas coloniais da viragem do século. Dando uma no cravo e outra na ferradura, combatia a guerrilha, enquanto, de pingalim na mão, organizava congressos dos povos guineenses e delegava poderes nas autoridades tradicionais. O seu monóculo tornou-se lendário. Alcunharam-no de 'Caco' e tinha uma corte de admiradores de camuflado que bebiam as suas palavras" (...).
 
O alcance efectivo da obra de Spínola e da sua tese do federalismo e do "diálogo" com os movimentos nacionalistas africanos, a começar pelo PAIGC (como solução política para uma guerra que não poderia ter solução militar), ainda é hoje objecto de discussão e controvérsia  entre especialistas, historiadores e antigos combatentes (como é o nosso caso).

De qualquer modo, importa sobretudo sinalizar a efeméride, mais uma vez. Ao fim e ao cabo, Spínola foi o comandante de muitos de nós, entre 1968 e 1973... e a ninguém deixou indiferente, pela positiva ou pela negativa, a sua figura, a sua conduta, o seu pensamento, a sua estratégia, o seu percurso. Um lugar na História da nossa Pátria ninguém lho tira.
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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25196: Efemérides (428): Homenagem aos Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar do Concelho de Resende - Freguesia de Anreade, no dia 13 de Abril, pelas 15h00 e S. Romão de Aregos, no dia 4 de Maio, à mesma hora

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25189: Notas de leitura (1668): "Amílcar Cabral e o Fim do Império", por António Duarte Silva; Temas e Debates, 2024 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2024:

Queridos amigos,
Impõe-se um esclarecimento, antes de mais, este texto que ponho à vossa consideração seguiu igualmente para alguns órgãos da imprensa regional, entendi que tinha aqui pleno cabimento fazer referência, nos mesmissimos termos, de um livro que, estou certo e seguro, durará décadas até que venha uma outra investigação tão potente de um olhar diferente, talvez mais original. Há livros assim, como a biografia política de Salazar, de Filipe Ribeiro Meneses, demorará muito tempo investigar-se mais e melhor, como a biografia de Hitler, da autoria de Ian Kershaw, ou a de Churchill, de Martin Gilbert. Mas quanto a biografias de Amílcar Cabral, cometeria a mais grosseira injustiça não referir outros trabalhos como o livro premiado de Julião Soares Sousa, as biografias de António Tomás, Oscar Oramas, ou as Memórias de Aristides Pereira e Luís Cabral, não esquecendo uma obra de consulta obrigatória de Leopoldo Amado, as entrevistas que fez para o livro de Aristides Pereira intitulado "O Meu Testemunho".

Um abraço do
Mário



Aqui se revela o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral

Mário Beja Santos


Publicado no ano do centenário do nascimento de Amílcar Cabral, temos finalmente uma biografia escrita por um investigador português que é simultaneamente um livro de história, de política e de direito, em torno de um líder revolucionário africano que criou o PAIGC, que deu voz aos movimentos nacionalistas africanos de língua portuguesa nos areópagos internacionais, admirado pelo seu pensamento original, pelos seus dotes diplomáticos e como estratega militar. O seu nome está associado à construção de duas nações, à renovação do pensamento revolucionário à escala mundial e ao determinante contributo que deu à queda da ditadura e à descolonização portuguesa: "Amílcar Cabral e o Fim do Império", por António Duarte Silva, Temas e Debates, 2024.

Devo fazer uma declaração de interesse: o autor honra-me com a sua amizade desde longa data, fui sentindo, pelos anos fora, como esta escrita lhe ia pulsando da investigação, credora de um olhar completamente distinto de outras obras de cariz biográfico.

 Posso afirmar, sem a mínima hesitação, que se trata de uma investigação memorável, tem uma moldura biográfica tão distinta que põe esta obra ao nível dos ensaios biográficos que resistem aos caprichos do tempo. O autor tem um currículo firmado, de grande qualidade científica, que inevitavelmente o catapultou para este exercício que comporta uma conclusão que certamente assombrará muitos leitores: ao delinear um modelo praticamente idêntico numa colónia em guerra fazer uma consulta popular que culminaria numa declaração unilateral de independência, nunca Cabral imaginou que tal processo iria, a breve trecho, escancarar as portas à descolonização portuguesa. Como o próprio autor declara:

“Concluo que a declaração unilateral de independência do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, como ato e prova da soberania e da autodeterminação interna e externa, foi, pelo seu êxito e impacto no fim do colonialismo português e apesar de formalmente posterior ao seu assassinato, o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral.”

É um longo itinerário discursivo onde cabem as primeiras reuniões dos movimentos unitários contra o colonialismo português, a reunião de Bissau em setembro de 1959, os primeiros opúsculos e memorandos, como o PAI/PAIGC se foi afirmando à escala internacional, a preparação da luta e os apoios à formação de quadros, os primeiros relacionamentos com a ONU, a consolidação do pensamento ideológico (a constituição da vanguarda, o papel da pequena burguesia e da massa camponesa); a convulsão no Sul da Guiné, a partir do segundo semestre de 1966, a Operação Tridente, o Congresso de Cassacá, o crescimento imparável da guerrilha, os assentamentos em território colonial, o apoio cubano, Schulz, Spínola; a formulação de Cabral de que a luta de libertação nacional é um processo cultural, libertador, um regresso à identidade; as preocupações de Cabral em estabelecer pontes para a organização de um quadro jurídico que levasse à aceitação internacional, uma gestação que preludia a decisão de tomar a iniciativa de fazer uma declaração unilateral de independência; o reconhecimento de Spínola de que não se podia ganhar militarmente a guerra e a proposta de medidas que os órgãos de soberania recusaram; a ofensiva político-diplomática culmina em 1972 com a visita da missão especial da ONU, em Abril, a eleição da Assembleia Nacional Popular, a última tentativa de Spínola de negociar um entendimento, recusa de Marcello Caetano; e chegamos ao assassinato do líder revolucionário e o autor observa: 

“O PAIGC ficou sem cabeça, pois não havia ninguém capaz de o substituir, especialmente na discussão de ideias, na definição de grandes objetivos e na diplomacia. Morto, Cabral deixava pronto o processo de independência da Guiné-Bissau, um programa mínimo conseguido, um programa maior para aplicar e uma unidade orgânica com Cabo Verde por concluir.”

O autor disseca os antecedentes de declarações unilaterais de independência e como Cabral foi preparando uma recetiva atmosfera internacional. Em 1972, obtém apoio soviético para deter uma arma que leve a guerra a um patamar mais elevado – os mísseis terra-ar, que farão destruições a partir de março de 1973, e deixaram as forças portuguesas em polvorosa. 

Numa reunião de chefias em 8 de junho com o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, tomou-se a decisão de retrair o dispositivo português, o objetivo era consolidar um reduto que pudesse garantir uma solução política. 

“Em reunião com Costa Gomes e os ministros da Defesa, do Ultramar e da Marinha, Marcello Caetano pôs a hipótese de preparação a retirada progressiva das tropas, para não prolongar um sacrifício inútil, designando um oficial-general para liquidar a nossa presença, ao que Costa Gomes terá retorquido ser possível a defesa militar enquanto não aparecesse a aviação.”

E temos o legado de Cabral: o II Congresso do PAIGC (julho de 1973), a cerimónia no Boé, em 24 de setembro, a proclamação da Constituição, a decisiva resolução 3061 da ONU, de 3 de novembro, a admissão da Organização da Unidade Africana, também em novembro; o acordo de Argel, a 26 de agosto de 1974; as iniciativas para a descolonização e independência de Cabo Verde, e a assunção da nova república; e o caminho para o desastre da unidade Guiné-Cabo Verde, a governação de Cabral, o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, a cisão partidária.

“O Estado da Guiné-Bissau nasceu frágil e rapidamente entrou em colapso. Bissau tornou-se uma cidade-Estado e devorou a luta de libertação nacional. A revisão constitucional de 1980, destinada a consolidar a unidade Guiné-Cabo Verde, trouxe o fim do regime. No início da década de 1990, ambas as Repúblicas transitaram para a democracia representativa e pluralista. Em 1998, uma rebelião militar originou uma guerra civil e a Guiné-Bissau derivou para Estado-falhado. Sob a tutela das FARP, o PAIGC manteve-se no poder. Assumira-se sucessivamente como um partido político autónomo, binacional e clandestino, um movimento de libertação nacional, um Partido-Estado, a força dirigente da sociedade, um partido nacional, o partido único e um partido político democrático. Embora com sobreposição destas diferentes naturezas, estatutos e funções, ainda sobrevive; não passa de uma mescla, dotada de uma sigla antiquada, equívoca e desgastada. Em Cabo Verde foi substituído por um partido herdeiro e novo, o PAICV.

Com Amílcar Cabral, seu ideólogo e líder, o PAIGC ficará na história como o movimento de libertação nacional que alcançou a independência associada da Guiné-Bissau e de Cabo Verde que contribuiu decisivamente para o fim do império colonial português. Política, diplomática e juridicamente, o momento transcendente foi a declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau, o maior feito revolucionário de Amílcar Cabral, fundador do PAI primordial e PAI das Repúblicas irmãs da Guiné-Bissau e Cabo Verde, pelas quais deu a vida.”


De leitura obrigatória, documento da maior exigência para a consolidação das relações luso-guineenses, devia ficar nas mãos de todos os investigadores de estudos africanos em Portugal e na Guiné-Bissau, e ser alvo de estudo continuo dos estabelecimentos escolares da Guiné-Bissau e Cabo Verde. Tenho sérias dúvidas que esta abordagem venha a ser ultrapassada nas próximas décadas.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25176: Notas de leitura (1667): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (12) (Mário Beja Santos)

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25130: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte I: A visita do CEME, Gen Paiva Brandão, em finais de janeiro de 1974


Guiné > s/l > s/d > c- 1973/74 > O gen Bettencourt Rodrigues graduando um milícia  (Fonte: CECA, 2015,  pág. 341)  (imagem reeditada, LG).


Guiné >Região do Gabu > Boé > Madina do Boé > 16 de novembro de 1973 > O jornalista alemão, da Reuters,  Joachim  Raffelberg, e o Gen Bettencourt Rodrigues, governador-geral e com-chefe que, a partir de 21/9/1973, substituiu o carismático Gen António Spínola.

Fonte: página do Facebook do antigo jornalista da agência Reuters, Joachim Raffelberg, chamada Raffelnews, Serviço comunitário, encontrámos esta "preciosidade", que faz parte de um álbum sobre Madina do Boé, com fotos (legendadas em inglês), inseridas em 29 de janeiro de 2018, incluindo recortes de jornais portugueses (Diário de Notícias e Diário de Lisboa) que reproduziram a notícia da agência noticiosa portuguesa, ANI, dando conta de uma visita de jornalistas estrangeiras, de helicóptero, à antiga Madina do Boé, acompanhados do gen Bettencourt Rodrigues, o então novo comandante-chefe do CTIG.
  (*)


Guiné > Bissau > Aeroporto >  28 de janeiro de 1974 > O CEME, Gen Paiva Brandão, recebido com honras militares à sua chegada. Fotograma de vídeo (3' 16'') da
RTP Arquivos 
Sinopse: "Chegada do Chefe do Estado-Maior do Exército à Guiné-Bissau, recebido pelo Governador e Comandante-chefe, e altas individualidades civis e militares; visita ao Quartel-General e reunião de trabalho sobre a situação administrativo-logística do Exército." imagem editada e reproduzida  com a  devida vénia...)


1.  Todas as épocas, todas as guerras, todos os regimes, todos os chefes têm a  sua 23ª hora... Muitos de nós, antigos combatentes, já não estávamos lá no CTIG, quando o gen Spínola bateu com a porta a Marcelo Caetano e foi substituído pelo gen Bethencourt Rodrigues. Este foi o último governador e comandante-chefe do CTIG: a sua história efémera passa-se entre 29 de setembro de 1973 e 26 de abril de 1974. Quem já não estava lá, tem direito a saber como foi a  23ª hora deste militar com carreira brilhante que acabou por fechar um capítulo da história de Portugal com 500 anos. 

Da Carta de Comando do Comandanmte-Chefe das Forças da Guiné, consta o seguinte no que diz respeito ao "cessar das operações": 

 (...), Salvo ordem expressa do Governo da Nação, as operações que houver de executar serão conduzidas até ao completo restabelecimento da ordem, da segurança e, sendo caso disso, da plena soberania em todo o território da Província, se necessário, até ao esgotamento dos meios de combate. (CECA, 2015, pp. 405/406)

Vamos reunir aqui memórias e histórias desse período que culminou com o 25 de Abril de 1974.  

E o primeiro momento que escolhemos foi  o da visita do CEME (Chefe do Estado Maior  do Exército), gen Paiva Brandão em 28/29 de janeiro de 1974, ao CTIG,  e  o da "reunião de trabalho" que se realizou a 29, às 18h30, hora que na Guiné era já da hiena...

É uma reunão algo "surreal" esta em que o gen João de Paiva de Faria Leite Brandão, político do regime (foi deputado na Assenbleia Nacional em 3  legislaturas), de visita ao CTIG, fez uma reunião de trabalho com  o Com-Chefe gen Bethncourt Rodrigues e seus colaboradores mais próximos...  Estamos a menos de 3 meses do 25 de Abril de 1974.

É uma reunão em que o representante do poder político-militar de Lisboa traz uma "mão cheia de nada" face às necessidades do teatro de operaçóes e da adminmistração civil...  Uma reunião em que se discutem "peanuts"...  

Repare-se: não há (ou vai faltar) arroz, gaz butano, ferro e asfalto,,,, mas também pessoal para abrir o CAOP3, bem como muniçóes 8,9 cm (bazuca) e 14 cm (obus)... A África do Sul é agora o nosso "Pai Natal"... Há subunidades sem cobertura legal: caso das africanas CCAÇ 20 e 21,,, O Com-Chefe vai assobiando para o lado e promovendo milícias...

Faz-se vista grossa das tremendas implicaçóes políticas, militares, estratégicas, diplomáticas e legais (face ao direito internacional) da declaraçáo unilateral da independència da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, pelo PAIGC.  

Faz-se tábua rasa do profundo mal-estar que já grassa nas FA, bem como do clima de descontentamento e até conspiração no seio das FA , bem como da escalada militar: o PAIGC dispõe de armamento superior ao  das NT (morteiro 120mm, foguetão 122 mm, peça de artilharia 130 mm, míssil Strela, novas minas A/P e A/C, etc.),

As carèncias de material (e nomeadamente de munições), as dificuldades de transporte marítimo e os constrangimentos orçamentais ficam bem patentes nesta minuta da reunião que agora publicamos, com a devida vénia (CECA, 2015, pp. 482/483),


João de Paiva de Faria Leite, "2º barão de São Lázaro",  nasceu em Guimarães, Polvoreira, na Casa de Carvalho d'Arca, em 19/08/1912 e morreu, aos 85 anos, em 04/12/1997 (Fonte: Geneall)

2. CECA (2015) > Aspetos da atividade operacional: Guiné (1971/74) > Cap IV - 1974

(...) "No final do mês de Janeiro, o Chefe do Estado-Maior do Exército, General
João de Paiva de Faria Leite Brandão, acompanhado de 2 Oficiais do
CEM, visitou o TO da Guiné (...) Em 29 de janeiro realizou-se uma reunião de trabalho
com o Cmdt-Chefe das FAG" (pág. 454)

Não há detalhes da visita. (vd. aqui notícia, na RTP da chegada ao aeroporto de Bissalanca, em 28 de janeiro: vídeo de 3' 16'', infelizmente sem som). A CECA (2015) publicou em anexo (nº 1) a ata da reunião.

Anexo n° 1 - Visita do CEME - Reunião de Trabalho (pp. 482/483)

Datal / Hora: 29 Jan74 18h30

Oficiais presentes:

- Gen Paiva Brandão

- Gen Bethencourt Rodrigues

- Brig Leitão Marques

- Cor CEM Rodrigues Figueira

- Ten-Cor CEM Franco Charais

Assuntos:

a. - Situação de Unidades do TO sem cobertura legal

O Gen B. Rodrigues mais uma vez levantou o problema da existência de Unidades do TO sem cobertura legal, indicando as seguintes unidades:

- CCaç 20 e 21, totalmente africanas;

- Comp. Eventual de Cuntima.

Foi definido não haver encargos de pessoal metropolitano para estas unidades, tratando-se de legalizar a sua constituição e orçamentar a respectiva despesa.

O assunto foi anotado pelo Cor Figueira.

b. - Orçamento para 1975

Seguidamente, o Gen P. Brandão explicou superficialmente o planeamento a efectuar para se definir o Orçamento de Defesa para 1975.

Em março, o SGDN (Secretariado-Geral da Defesa Nacional) solicitará a todos os Comandos-Chefes uma informação sobre as forças atribuídas a cada TO.

Os Comandos-Chefes no período de 1 a 15 de abril informarão quais as forças orçamentadas existentes no TO (Ex., Marinha e FA) e outras necessárias.

No período de 15 a 30  de abril, a Junta de Chefes de Estado-Maior trabalha as respostas recebidas e estabelece um sistema de forças para todo o espaço nacional, o qual é submetido posteriormente à apreciação do Conselho Superior Militar.

O trabalho da Junta de Chefes de Estado-Maior leva em conta as possibilidades orçamentais.

c. Transmissões

Seguidamente o gen B. Rodrigues falou sobre o material de transmissões em aquisição para a Guiné, com base numa informação pessoal do brig S. Grade. Os oficiais de EM presentes disseram já ter recebido indicações no Agr Tm, tendo sido especialmente focado o aspecto de substituição de 60 "AVP-1" por material "ERET", mais adequado ao TO da Guiné.

O assunto vai ser apresentado também em carta pessoal ao brig S. Grade.

d. Substituição do Cmdt CAOP 2

Seguidamente, o gen B. Rodrigues referiu a necessidade urgente de ser nomeado um dos Oficiais propostos (2) para o CAOP 2, em virtude do cor Telo dever recolher à Metrópole até  1 de abril de 74. O assunto foi anotado pelo cor Figueira.

e. Formação do CAOP 3

Seguidamente, o gen B. Rodrigues referiu ser necessário que o CAOP 3, pedido desde nov73, fosse constituído com brevidade e enviado para o TO.

O cor Figueira apresentou a informação da 3ª Rep/EME, da qual consta não ser possível nomear a maioria do pessoal antes de jul74.

Existem também problemas de verbas mas o gen P. Brandão disse serem de fácil solução.

Dado que o prazo de constituição do CAOP 3 em jul74 não satisfaz as necessidades imediatas do TO, foi sugerido que o EME estudasse uma nomeação por fases e enviasse uma proposta para o Cmd-Chefe, a qual seria trabalhada face ao recurso a pessoal já existente em Unidades.

Admitiu-se ser possível arrancar desde já com uma solução de compromisso, a qual seria melhorada até agosto de 74 à medida que fosse nomeado o pessoal em falta.

f. Material a receber no TO

Seguidamente, o ten-or Charais informou;

(i) estar para ser desembarcado do N/M "Cabo Bojador" já em Bissau o seguinte material:

- 4 obuses 14 cm

- 10 morteiros 8, 1 cm

- 20 morteiros 60 mm

(ii) estar para ser remetido no próximo transporte o seguinte material:

- 6 obuses 10,5 cm

- 4 a 7 peças 9,4 cm


g. Aproveitamento de material

Seguidamente, o ten-Cor Charais informou existir disponível em depósito material de 7,5 cm montanha (obuses italianos de montanha), com um lote de 6000 granadas que poderia ser fornecido para o TO. 

Dado o peso deste material e as suas dimensões, este pode ser transportado via aérea para Nova Lamego, Aldeia ormosa, Cufar e talvez Farim, o que dá grande flexibilidade ao seu emprego. O seu alcance permite bater o morteiro 82 mm lN, cobrindo uma lacuna do nosso morteiro 8,1 cm.

O assunto ficou de ser estudado no Cmd-Chefe e CTIG e enviada uma proposta ao EME com as conclusões.

h. Transportes

Seguidamente, o  gen B. Rodrigues focou a carência de transportes marítimo
para a Província
, na qualidade de Governador dizendo que em larga medida as dificuldades existentes resultavam da utilização pelo ME de grande parte da tonelagem disponível nas carreiras periódicas quinzenais, com prejuízo de carga civil (ou por incompatibilidade das cargas ou por insuficiência de tonelagem).

Mais disse, ter apresentado o assunto ao Snr Ministro do Ultramar para solução urgente de transporte para a Província de arroz, gaz butano, ferro e asfalto, necessidades prementes por esgotamento das existências locais.

Foi sugerido que o ME efectuasse o fretamento de 1 navio logístico entre os transportes de tropas, ficando assim a tonelagem das carreiras normais mais liberta para o transporte civil.

O ten-cor Charais disse não conhecer o assunto mas parece-lhe que as verbas disponíveis não comportavam o fretamento de um navio.

Nada ficou decidido. Para ser accionado no âmbito militar terá de haver
uma proposta ao SGDN ou EME.

i. Diversos

Depois da reunião, o ten-cor Charais informou o brig Leitão Marques que:

- a Metrópole não podia produzir em breve prazo granadas 8,9 cm e
teríamos restrições no seu fornecimento;

- as munições de 14 cm disponíveis eram de um lote à ordem do SGDN
e só seriam fornecidas com autorização superior (Lote Can);

- a África do Sul tinha uma encomenda de munições de 14 cm mas 
estas não estarão disponíveis brevemente na Metrópole. [... ]

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.]

Fonte: Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 482/483  (Com a devida vénia...).
__________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 28 fevereiro de  2021 > Guiné 61/74 - P21956: Facebook...ando (60): o gen Bettencourt Rodrigues, em 16 de novembro de 1973, em Madina do Boé, com dois jornalistas alemães, para verem "in loco" o sítio onde o PAIGC teria alegadamente proclamado a independência unilateral

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25031: Historiografia da presença portuguesa em África (402): Sarmento Rodrigues, o definidor da colónia guineense, pô-la no mapa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Outros antes de mim, e com incontestável competência reconheceram a importância da governação de Sarmento Rodrigues que governou a Guiné num momento de viragem da política colonial. Por exemplo, merece toda a atenção o ensaio que António Duarte Silva dedicou à personagem e ao período, recomenda-se a leitura: https://journals.openedition.org/cultura/586. O governador impõe-se pelo programa de trabalho, pela vontade de congregar esforços, sabe ao que vem, respeita os projetos em andamento deixados pelos antecessores, cumulam-no de ofertas, ele agradece e traça mais projetos, de tal modo que o seu sucessor, Raimundo Serrão, no essencial concluiu-lhe a obra. Percorreu a Guiné de uma ponta à outra, diz-se maníaco pelas árvores e pelas plantas, está cercado de gente muito competente, e à Guiné chegam num quase turbilhão especialistas em medicina tropical, um eminente geógrafo, figuras proeminentes da investigação tropical, geólogos, jornalistas, a Guiné saiu do torpor, aparecem escolas, hospitais, fontanários. Alguma coisa de muito sério aconteceu, quando Sarmento Rodrigues regressa à Guiné em 1955, na comitiva de Craveiro Lopes, a propaganda do regime não esconde que ele é figura triunfante, as populações não o esqueceram, ele tinha posto a Guiné no mapa.

Um abraço do
Mário



Sarmento Rodrigues, o definidor da colónia guineense, pô-la no mapa

Mário Beja Santos

Não é por puro acaso que escolhi a governação de Manuel Sarmento Rodrigues como o termo da viagem antológica dos textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. É visto como uma escolha inédita, o ministro que o nomeia não os conhece, o futuro governador é um homem que não esconde a sua independência, é um crente nos valores do Império, conhecido pelo rigor e pelo pragmatismo. E de uma seriedade que já não se usa, quando toma posse em 15 de março de 1945, já sabe a dimensão das tarefas que tem pela frente, e dirá em público que começará por acabar as obras de quem o antecedeu. Nesse ato de posse, não lhe falta o desassombro: “Se me disserem que na Guiné tudo está por fazer, não devemos espantar-nos.” E fala do património deixado pelos seus antecedentes, a Guiné entrara numa nova via de desenvolvimento: “O ministro enfrenta um vasto programa de melhoramento na Colónia para a realização dos quais já começaram a trabalhar os organismos superiores do Ministério. Habitações, saneamento, águas e hospitais; pontes, portos, obras hidráulicas, aeroportos, farolagem; missões científicas de geodesia, hidrografia, zoologia, antropologia, botânica, medicina, etc.; desenvolvimento do serviço missionário, na parte religiosa e na parte do ensino indígena; defesa militar da Colónia; assistência às atividades económicas; ensino dos indígenas em agricultura, pecuária e artes e ofícios; e outros.”

Já está em Bissau, vai ser empossado, avisa a classe política, os funcionários, os militares, os empresários. Reafirma o que dissera ao ministro Marcelo Caetano: “Temos uma vasta lista de obras projetadas para um período que desejaríamos que fosse bastante curto. Coloco à frente as construções por acabar e que pretendo arrumar: Palácio, Sé, capelas de Catió, Bafatá, Canchungo, Mansoa e Gabu, moradias projetadas para os funcionários em Bissau, o monumento ao Esforço da Raça, edifício da Praça do Império, cuja origem quase se desconhece e outras tentativas dispersas pela colónia, aguardando que as acabem.”

Faz questão de dar ampla publicitação ao que diz aos administradores, quer transparência, respeito pelos direitos dos indígenas, eles devem ser acompanhados pela administração, não esconde ser um humanista e diz: “Nada de estatísticas rosadamente falsas, nem problemas a que se volte a cara para não os resolver. É preciso que tudo seja são e posto à luz do dia.” Isto é afirmado em 4 de novembro de 1946. É um obcecado pelo trabalho, tem uma informação atualizada sobre tudo o que se está a fazer em prol do desenvolvimento, desde fontanários a campos de futebol, escolas e creches, desenvolvimento agrícola, sente-se atraído por novas espécies e novas culturas, como dirá em 1947: “Plantámos este ano muitos campos de cajueiros. Haveremos de prosseguir no mesmo ritmo para o próximo ano, pois que bem se viu ser fácil conseguir que as plantas vinguem. E dentro de alguns anos será uma nova riqueza que existirá na colónia. Deve ser mania minha a defesa e expansão das árvores, sobretudo de fruta. Mas creio que muito pior seria consentir na sistemática derruba, feita a qualquer pretexto.”

Há textos em que podemos apreciar como o governador domina na perfeição os dossiês, veja-se este conjunto de documentários que ele profere no Concelho de Governo em 8 de fevereiro desse ano. Aborda as instalações dos serviços públicos em Bissau; a propósito da conclusão do Palácio do Governo alude à transferência de serviços; aguarda-se dinheiro para pôr de pé o museu e a biblioteca; não esconde as imensas obras que se impõem, elenca um vasto conjunto de postos administrativos, secretarias das administrações, residências dos administradores; aguarda os estudos para a construção da ponte do Impernal, há reparações de envergadura nas pontes de Bolama e Mansoa e uma verdadeira reconstrução da ponte de Bafatá; ainda não é possível criar a ligação do Norte com o Sul da colónia, conta poder adquirir jangadas a motor; virá em breve a Missão Hidrográfica; prevê-se para 1948 um novo local acostável para os navios de longo curso, no porto de Bissau; seria em breve publicado o Regulamente dos Serviços de Saúde da Colónia, prevê igualmente para breve a resolução das águas em Bissau e também em Bolama; impõem-se uma redistribuição das forças militares; aborda a necessidade de se revolucionarem os métodos agrícolas, fornecer aos indígenas melhores sementes; aborda as vacinas para os animais, pretende que se aumente a rede telefónica, quer mais bibliotecas. E termina: “Quando vim para esta colónia, chamado do serviço onde me encontrava, não foi certamente para aqui estar e durar. Não tenho intenção de durar, de assistir placidamente ao desenrolar lento da vida, assim de atuar num ritmo veloz. Conto que ao sair desta colónia não tenho onde me acusar de deixar qualquer coisa feita. A obra que surgir será de todos, e que eu não sirva senão para os animar na confiança nas suas capacidades.”

Não esconde em todas estas circunstâncias que é um cultor do detalhe, que não lhe escapa a visão de conjunto, veio com a incumbência de mudar hábitos de civilização e por vezes refere que sente desconsolo: “Alguns régulos do Gabu pediram e levaram carros. Não tendo podido acompanhar-lhes as atividades, nem sei como os têm utilizado. Se consideraram apenas agradar-me pessoalmente levando-os para apodrecerem ociosos, enganam-se. No entanto, eles já eu vi circulando-o numa estrada, carregando arroz. Mas em que estado! As rodas laqueantes, uma delas sem cavilha, outra com ela metida ao contrário! As autoridades têm o dever de olhar para estas coisas, de ensinar e acompanhar o indígena. Estes simples engenhos precisam de ser estimados, conservados, reparados, multiplicados, tudo no local, com os recursos locais, visto que com outras não foram eles feitos.”

Sempre que é oportuno esclarece que muito do que se está a fazer é obra dos seus antecessores: “Não são iniciativas minhas. Tudo tinha sido começado ou projetado pelos meus ilustres antecessores.” Sarmento Rodrigues era seguramente um homem influente, a sua obra impressionava e ele não esconde que em Lisboa se lhe abriam os cordões à bolsa, e di-lo publicamente:
“Quando no fim de 1945 estive na metrópole, obtive tudo, vim cheio de dádivas para a Guiné. O Ministério da Guerra ofereceu-me um avião Tiger e os dois mil contos do Fundo de Defesa Militar do Império. O Ministério da Marinha deu-nos todo o material de guerra para armar a Polícia de Segurança Pública. Do Ministério das Colónia, então, não houve facilidade que não fosse concedida, por todos os seus departamentos.
O Gabinete de Urbanização Colonial esteve durante um longo período a trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, elaborando projetos que nos têm permitido desenvolver as obras que todos conhecem e que nunca poderiam ter execução sem eles.”


É uma governação que decorre em tempo vertiginoso, ao abandonar a coordenação da Guiné deixa um museu, o boletim cultural que continua a ser uma referência, todas as obras encetadas pelos seus antecessores foram concluídas, estão em curso iniciativas que irão dominar a atividade do seu sucessor, Raimundo Serrão. Sarmento Rodrigues procura apagar-se, enquanto todos lhe batem as palmas pela sua dinâmica de governação, dirá em jeito de despedida: “As obras que todos vemos nada valem por si; apenas significam que num dado momento houve, sobre esta terra escaldante, um grupo de homens que viveu em harmonia para as construir.” Recorda o leitor que quando ocorreu a visita do presidente Craveiro Lopes em 1955 Sarmento Rodrigues fará parte da comitiva e as reportagens publicadas não puderam esconder que era em toda a parte recebido com aplauso, não houvera antes governador como ele, traçou uma trajetória para a cultura, para o ensino, para uma miríade de infraestruturas, fez criar hospitais, estimulou boas relações com as colónias vizinhas.

E nesta vertigem aconteceu que a Guiné passou a figurar no mapa do império como terra de oportunidades, a Guiné passou a ter um lugar no mapa e até na História, ele aproveitou intensamente as comemorações em 1946 do quinto centenário da chegada à costa da Guiné; e cruzaram-se com a mesma intensidade cientistas e homens de letras que deixaram relatos inapagáveis; o desenvolvimento humano dos indígenas guineenses deu um passo em frente, atacou-se as doenças do sono e outras doenças tropicas, abriram-se postos sanitários. Dir-me-ão que nem tudo foi róseo, é verdade, o ensino não conheceu o mesmo dinamismo que o das infraestruturas, continuaram a faltar recursos humanos. Mas o fundamental é que este governador deixou uma semente de exigência e nada mais voltou aos tempos da pura exploração e do aleatório do trabalho forçado.

Manuel Sarmento Rodrigues
Um torneio internacional de futebol em Bissau do tempo do governador Sarmento Rodrigues
Fotografia de Bissau em 1945, imagem retirada do Arquivo Científico Tropical, com a devida vénia
Travessia do rio Impernal, 1945, imagem retirada do Arquivo Científico Tropical, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25007: Historiografia da presença portuguesa em África (401): Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24618: Notas de leitura (1612): Guiné, Operação Irã (maio de 1965) e Operação Hermínia (março de 1966), no fascículo 2 de "As Grandes Operações da Guerra Colonial", textos de Manuel Catarino; edição Presselivre, Imprensa Livre S.A. (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
É meritório, há que o reconhecer, a divulgação em fascículos, com acesso ao grande público, e numa linguagem acessível, de acontecimentos relevantes como foram grandes operações da guerra colonial. Quando me atirei à tarefa de estudar com um pouco de minúcia os acontecimentos que antecederam a chamada luta armada e depois a luta armada propriamente dita, entre 1963 e 1965, isto num projeto editorial que teve como base a história do BCAV  490 feita por um poeta popular, e assim chegámos os dois à feitura do livro "Nunca Digas Adeus às Armas", Húmus Edições, 2020, detetei que a generalidade da historiografia sobre a guerra da Guiné passa como gato pelas brasas pelos aspetos fulcrais tanto da atividade operacional desenvolvida no período como no contexto dessa luta armada, os dois comandantes-chefes, e nomeadamente Arnaldo Schulz, lançaram as bases da ação psicológica, da formação de milícias e companhias de Caçadores, projetos de desenvolvimento e algo mais que merecia o respeito e consideração por quem estuda a guerra.

Mas o mantra é muito superior à realidade e quem escreve que a guerra se agravou entre 1963 e 1968 e mais adiante dirá que a partir de 1970 a guerra nunca mais deixou de se agravar não dá pelas injustiças que profere, uma delas até é cometida com tiros no pé, como esta "Operação Irã", de maio de 1965, e esta "Operação Hermínia", de março de 1966, que desdizem cabalmente de que não se respondia taco a taco, enfrentando o inimigo. Bem curiosamente, há agora quem escreva que mesmo no período da governação Spínola a tropa dos aquartelamentos limitava-se a andar ali à volta, quem verdadeiramente tinha atividade operacional eram as tropas especiais, outro mantra, falando por mim, não me ofende quem quer, na chamada zona libertada do Cuor eu percorria quatro quintos a qualquer hora do dia e se a mais não me afoitava era por não dispor de recursos, com aquelas operações de tabancas em autodefesa fui sendo sangrado de várias secções de pelotões de milícia, em vão protestei. Mas isso é uma história que a historiografia nem se preocupa em estudar, a precariedade dos meios.

Um abraço do
Mário



Guiné, Operação Irã (maio de 1965) e Operação Hermínia (março de 1966)

Mário Beja Santos

A série "As Grandes Operações da Guerra Colonial", surgida na década de 2010, vendia-se nas papelarias e quiosques sob a forma de fascículos, os textos pertencem a Manuel Catarino, edição Presselivre, Imprensa Livre S.A. Este fascículo 2 é uma reedição, é uma miscelânea onde para além destas duas operações a que nos iremos referir juntar-se-ão outras informações, acrescendo a descrição da Operação Tridente, acontecimentos que envolveram paraquedistas em Guilege ou que viveram dificuldades no decurso de uma operação em Cassebeche. O valor do texto é muito discutível. Dizer que a Operação Irã é uma investida das tropas portuguesas no Morés onde nunca elas se tinham aventurado é desconhecer inteiramente de operações no Morés em 1963 e 1964. Sim, o Morés era uma região de mata densa, aí se sediavam pequenas bases móveis, improvisadas infraestruturas, importantes depósitos de material. E o texto lança logo o mantra de que tudo foi agravamento do conflito desde janeiro de 1963 até 1968, é o velho e estafado refrão de que os Altos Comandos anteriores a Spínola andaram aos bonés e revelaram-se incapazes de travar a progressão da guerrilha.

Quem lê a resenha das campanhas de África, no que tange à Guiné, e é este período, ficará seguramente atónito com o texto das diretivas de comando e as ordens de batalha dos dois comandantes-chefes anteriores a Spínola, e sobretudo ao conjunto de operações efetuadas, ao seu desenlace, e à sinceridade posta nos quadros de situação, é uma linguagem que não deixa margem a equívocos de que era inteiramente possível fazer melhor com os meios disponíveis. O autor dá uma no cravo e outra na ferradura, sempre que pode deslustra quer Louro de Sousa quer Schulz e chega a dizer enormidades como:
“Schulz era um militar clássico e, como seria de esperar, respondeu classicamente à manobra do PAIGC”. O que desdiz completamente o que Schulz escreveu para os chefes de Estado-Maior General das Forças Armadas, o mesmo é dizer que chegou ao conhecimento do governo. Louro de Sousa apanhou a fase da implantação do PAIGC, tinha efetivos humildes, o sistema de informações era mais do que precário, a operação de investida no Sul tinha sido estrategicamente calculada, revelou-se fulminante, passou-se para o outro lado do Corubal, foi-se consolidando na região do Morés. Havia que prontamente responder apoiando as populações que se revelavam afetas à soberania portuguesa e à atividade operacional que foi contínua, apareceram as milícias, as tabancas em autodefesa, as tropas especiais.

A Operação Irã ocorreu em maio de 1965, foi um golpe de mão à base do PAIGC de Iracunda. Lê-se no relatório: “A CART nº 730 saiu de Bissorã em 2 de maio e no dia seguinte montou uma rede de emboscadas em proteção à CART nº 566 que executou o ataque à base central do Morés. Pelas 5h50 de 3 de maio vinte elementos vindos do Morés caíram na zona de morte, interrogado um prisioneiro deu informações sobre a base de Iracunda para onde a CART n.º 730 logo seguiu. Esta unidade seguiu prontamente para Iracunda e capturaram material, havia aqui uma escola, a CART n.º 730 sofreu duas fortes ações de fogo sem consequências”. Depois o autor escreve outro êxito, o do BCAÇ 2879, em agosto de 1969, segue-se um texto sobre os Diabólicos, o grupo de Comandos que executou a primeira ação helitransportada na Guiné, a Operação Hermínia, que ocorreu em março de 1966. O objetivo era tomar de assalto uma base de guerrilha em Jabadá. Nesta altura havia melhores meios, já tinham chegado os helicópteros Alouette III, já existiam quatro grupos de Comandos, os Diabólicos (comandados pelo alferes Virgínio Briote), os Vampiros (comandados pelo alferes António Pereira Vilaça), os Centuriões (comandados pelo alferes Luís Almeida Rainha) e os Apaches (comandados pelo alferes António Neves da Silva).
Narra o autor que a operação se iniciou à uma da tarde de 6 de março de 1966, seis helicópteros descolaram de Bissalanca em direção ao objetivo, não mais de 20 minutos de voo, a formação de seis helicópteros dividiu-se, três largaram os atacantes nas moranças a norte, enquanto os outros três foram lançados nas moranças mais a Sul. A operação durou cerca de três horas e meia, perdeu a vida o soldado António Alves Maria da Silva. O PAIGC teve baixas, fizeram-se oito prisioneiros, foram destruídos meios de abastecimento. Seguidamente Manuel Catarino descreve o aparecimento dos Comandos na Guiné, dá-nos uma tábua cronológica do país e a guerra do ano 1962, e entra-se na reedição da Operação Tridente, minuciosamente descrita, é mencionada a Operação Grifo, que decorreu em 28 de abril de 1966 e em que foi morto o capitão Tinoco de Faria que ia à frente de um pelotão de paraquedistas que saiu do aquartelamento de Mejo com a missão de montar emboscadas no corredor de Guilege. Haverá depois a descrição da Operação Ciclone II, que aconteceu no dia 25 de fevereiro de 1968, o Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 executou uma ação no Cantanhez.

Em vagas sucessivas de helicópteros, os paraquedistas foram lançados nas bolanhas de Cafal e Cafine, e tomaram de assalto as bases do PAIGC depois de combates encarniçados. Os paraquedistas sofreram cinco feridos, três com gravidade, aniquilaram um bi-grupo e aprisionaram 19 homens. O texto sobre a Operação Ciclone II é igualmente detalhado, segue-se depois um texto sobre Spínola na Guiné, os seus primeiros textos enviados para Lisboa dizendo que as tropas portuguesas estavam à beira da derrota, o autor menciona as alterações estratégicas e termina o texto com uma frase mirabolante, contrariando tudo o que disse anteriormente: “A partir de 1970, a situação militar nunca mais deixou de piorar”.

Voltamos agora a uma área específica, o Quitafine, onde o PAIGC implantara metralhadoras antiaéreas de quatro canos – as ZPU-4. Foi num voo de reconhecimento sobre este ponto do Cantanhez que se descobriu este potencial antiaéreo e logo foi dada a missão ao Batalhão de Caçadores Paraquedistas 12 para destruir o ninho de metralhadoras antiaéreas – a Operação Vulcano. Tudo começou na tarde de 7 de março de 1969, duas companhias de paraquedistas prepararam-se para atacar as posições do PAIGC em Cassebeche. Os grupos do PAIGC deram resistência e forçaram à retirada dos paras, estes tiveram que abandonar o local, depois de combater denodadamente. Mais tarde, a Força Aérea Portuguesa pulverizou estes ninhos de metralhadoras antiaéreas.

No termo deste n.º 2 de "As Grandes Operações da Guerra Colonial", faz-se uma síntese dos acontecimentos da guerra na Guiné, o desempenho de Spínola, é referida a máquina de propaganda que o cercava, fala-se na tentativa de reviravolta logo em 1968, o esforço de Spínola para negociar com Senghor e a recusa de Caetano e o papel desempenhado pelo livro que abalou o regime, "Portugal e o Futuro".

Militares num dos rios da Guiné no decurso de uma operação. Imagem extraída do blogue Capeia Arraiana, com a devida vénia
Lanchas de fiscalização "Daneb" e "Canópus" em proteção ao desembarque na ilha de Como. Imagem do livro AFONSO, Aniceto; GOMES, Carlos de Matos Gomes. Guerra Colonial. Edição: Editorial Notícias, abril de 2000
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Nota do editor

Último post da série de 1 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24608: Notas de leitura (1611): "Cabo Verde, Abolição da Escravatura, Subsídios Para o Estudo", por João Lopes Filho; Spleen Edições, 2006 (Mário Beja Santos)

sábado, 10 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24385: Recortes de imprensa (128): O último 10 de Junho celebrado no regime do Estado Novo ("Diário de Lisboa", 11 de junho de 1973)




Fonte: Casa Comum | Instituição: Fundação Mário Soares | Pasta: 06817.167.26386 | Título: Diário de Lisboa | Número: 18126 | Ano: 53 | Data: Segunda, 11 de Junho de 1973 | Directores: Director: António Ruella Ramos | Observações: Inclui supl. "Exclusivo" | Fundo: DRR - Documentos Ruella RamosTipo Documental: Imprensa  (Com a devida vénia...)

O jornal, que não se publicava ao domingo, reproduz na página 14 (e não 12) o discurso do então Chefe de Estado. Foram condecorados em Lisboa 89 militares; no Porto,86; em Cloimbra, 34; em Santarém, 46; em Évora, 4; no Funchal, 7; erm Ponta Delgada, 6; em Luanda, 8 (?) (alémd e ttrès civis africanos; e em Lourenço Marques, 59. Um major de cavalaria, dois capitães de infantaria e um alferes SG receberam em Lisboa a mais alta condecoraçáo, oficial da Ordem Militar da Torre Espada com palma. Duas companhias do navio-escola brasileiro "Custódio de Melo" associaram-se ao defile final. em que participaram mais de très mil elementos dos três ramos das Forças Armadas Portuguesas, das corporações e dos estabelecimentos militares (pág, 14).

Imfografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)
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segunda-feira, 8 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24298: Notas de leitura (1580): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Sinto-me agradecido à probidade e incisão da narrativa forjada por José Matos e Zélia Oliveira, penso que este ensaio de 200 páginas possui a matéria fundamental dos acontecimentos ocorridos entre fevereiro e abril ao nível do regime, se alguma dúvida subsistisse quanto à força motriz que desencadeou o 25 de Abril, aqui se dá pleno esclarecimento. É evidente que subsistem dúvidas, designadamente quanto ao pensamento de Caetano em ganhar tempo para resolver o problema colonial, a conjuntura mundial alterara-se profundamente em 1973, desapareceu seguramente muita documentação privada de Caetano. Fui condiscípulo do seu secretário pessoal, Alexandre Carvalho Neto, que desde a madrugada de 25 de Abril incinerou na residência de S. Bento documentação, como aliás veio esclarecido nos jornais dos dias seguintes. Nunca se apurou o que ficou reduzido a cinzas. Muitos anos mais tarde, encontrei o Alexandre na Av. da República e pedi-lhe encarecidamente que deixasse um documento sobretudo quanto fora incinerado, estava em seu poder uma revelação histórica seguramente de grande significado. O Alexandre já faleceu e desconheço inteiramente se cumpriu a promessa que me fizera.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (3)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

No dia seguinte à última remodelação ministerial, ocorre a chamada revolta nas Caldas, que teve na sua origem, e num quadro já de grande instabilidade nas Forças Armadas, a organização atabalhoada de uma marcha sobre Lisboa que acabou única e exclusivamente por contar com um contingente do Regimento de Infantaria 5, os oficiais descontentes quiseram mostrar uma posição de força. Como escrevem os autores, “o MFA não estava ainda em condições de apoiar uma revolta militar, dado que não existia ainda uma ordem de operações definitiva nem um programa político”. Nem Spínola e os oficiais que lhe eram afetos consideravam que ainda não era o momento adequado para qualquer ação, o que era correto, a polícia política já fazia vigilância de oficiais considerados revoltosos e tinha telefones sobre escuta. Também no quartel de Lamego se presumia haver movimento militar, o importante é que o ministro do Exército ordenou que todos os quartéis entrassem em prevenção rigorosa. A coluna das Caldas avançou em direção à capital convencidos de outras solidariedades. A três quilómetros de Lisboa serão notificados por gente amiga de que o golpe fracassara, nenhuma outra unidade tinha saído. Sufocada a revolta, o governo teve a ilusão de que tudo iria voltar a uma certa normalidade: “Para Caetano, o facto de ter sido apenas uma unidade militar a revoltar-se, e, para mais, por influência de oficiais externos à unidade, era positivo, assim como o facto de as restantes unidades terem obedecido às ordens do governo e de não ter havido agitação pública.” Mas há uma outra leitura, um reverso que contará para o plano de operações do 25 de Abril, Otelo pôde constatar a resposta improvisada ou a tamancada do governo e ficou com a convicção que “uma ação militar bem planeada e estruturada, com um comando centralizado venceria rapidamente qualquer resistência que o regime conseguisse mobilizar.

Os autores anotam igualmente o ceticismo do lado da oposição política portuguesa, o PCP publica um manifesto onde se lia que “o Governo e o regime não cairão por si próprios nem tão pouco por ação de umas dezenas de oficiais do exército, mesmo que corajosos e patriotas. A sublevação do 16 de março mostra-o mais uma vez”. Em 24 de abril, durante um jantar em Bona com elementos do Partido Social Democrata alemão, o ministro das Finanças disse a Mário Soares que a ditadura portuguesa estava para durar: “O Governo alemão tem informações da nossa embaixada em Lisboa, dos nossos serviços secretos, no âmbito da NATO, e informações fidedigna da CIA e dos ingleses. Todos os nossos informadores nos asseguram que a ditadura portuguesa está de pedra e cal e para durar.” Mário Soares estava convencido do contrário.

Persistem, quanto a atuações desencadeadas neste período, perguntas que ainda não obtiveram uma resposta cabal. É o caso da missão que Rui Patrício delegou no então cônsul em Milão, José Manuel Villas-Boas, para ir a Londres falar com representantes da guerrilha do PAIGC. A iniciativa deste encontro terá partido de diplomatas ingleses da embaixada britânica em Lisboa. Patrício consultou Caetano e este autorizou a ida de um emissário português à capital britânica. “Patrício explicou a Villas-Boas que Portugal estava a perder a guerra na Guiné perante uma guerrilha fortemente armada com mísseis terra-ar, e que era necessário encetar conversações com o PAIGC, que deviam ser mantidas no maior segredo. Villas-Boas levava consigo uma oferta de independência da Guiné-Bissau em troca de um cessar-fogo, mas sem referir datas específicas.” É sabido como tais conversações pressuponham outras posteriores, veio, entretanto, o 25 de Abril. Inclino-me para a tese de que se tratava de uma tentativa de ganhar tempo, creio que Calvet Magalhães, então secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros e envolvido nesta missão secreta, terá razão quando diz que o governo português aguardava receber os mísseis Redeye para usar na Guiné, o regime não entendia que o PAIGC dispunha de trunfos, desde o reconhecimento à sua independência até à chegada de novo equipamento militar que iria introduzir a matriz da guerra convencional.

É nesta atmosfera ensombrada que cresce o receio de um golpe de extrema-Direita em Portugal, Caetano ainda profere uma última conversa em família e será ovacionado no Estádio de Alvalade no dia 31 de março, fora assistir a um jogo entre o Sporting e o Benfica. Os autores elaboram uma exposição bem detalhada sobre os preparativos do 25 de Abril, não conheço algo de tão preciso, conciso e esclarecedor. Dão igualmente notícia de tentativas de conversações em França, os aviões Mirage eram dados como cruciais. A 23 de abril realiza-se o último conselho de ministros. “A 24, desconhecendo a iminência do golpe que tinha lugar nessa noite, Rui Patrício encontra-se com o embaixador francês em Lisboa para tentar desbloquear a venda de 32 caças Mirage-3 que o governo português queria comprar para usar em África, principalmente na Guiné. Na conversa que teve com o embaixador, Patrício alegou que precisava dos caças na Guiné para responder a um eventual ataque aéreo vindo da Guiné-Conacri.”

Há vários jantares de Estado na noite de 24, não há nenhuma informação alarmante que chegue ao Governo, pelas dez da noite Otelo chega à Pontinha, são emitidos os dois códigos que sinalizam o início da operação, seguem-se as movimentações militares, há várias unidades ainda reticentes, prendem-se comandantes, cerca-se o Rádio Clube Português (RCP) e a RTP. Às 4h26 da madrugada, Joaquim Furtado lê o primeiro comunicado do MFA aos microfones do RCP, pouco depois Marcello Caetano é avisado destas movimentações, Silva Pais aconselha Marcello a refugiar-se no quartel do Carmo, telefonema que foi escutado na Pontinha, Otelo sabe para onde vai o chefe do governo. Seguem-se peripécias de todos conhecidas, não deixa de ser saborosa a referência aos protestos de uma mulher da limpeza dos correios no Terreiro do Paço irada com Salgueiro Maia, tinha de ir trabalhar e ele não a deixava passar. “Ó, minha senhora, vá para casa, hoje é feriado. E para o ano também.” Dá-se o cerimonial da entrega do poder, Caetano e outros governantes seguem para a Pontinha, a eles se juntará o almirante Tomás. E, por último, dá-se a tomada da PIDE/DGS, Spínola telefona a Silva Pais e exige a rendição, este coloca-se às ordens do novo poder, pela manhã, uma comitiva de oficiais e jornalistas entrou na sede da polícia política, os ocupantes são desarmados. “Ao contrário do que seria de esperar, os arquivos da polícia política que continham milhões de fichas foram encontrados aparentemente intactos. Nas mesas de alguns agentes também encontraram algumas revistas Playboy e Penthouse, que não se vendiam em Portugal. No gabinete de Silva Pais permaneciam três quadros fixos na parede com as imagens de Américo Tomás, Marcello Caetano e Salazar. São dadas ordens para os retirar e Silva Pais prontifica-se para tal, mas o de Salazar era mais difícil por estar mais alto. Diz-se que alguém foi então buscar um escadote e o retrato de Salazar foi removido. O fim do regime estava consumado.”

De leitura obrigatória.

José Matos
Zélia Oliveira
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24288: Notas de leitura (1579): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (2) (Mário Beja Santos)