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sexta-feira, 14 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19890: Notas de leitura (1186): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (10) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se fala de quem morre e a inquietação de comunicar a perda para muito longe ou para muito perto. Vivi uma experiência que ainda não dou por terminada. Em 16 de outubro de 1969, em Ganturé, no regulado do Cuor, uma mina anticarro espatifou um Unimog 404, deixou-me imediatamente o condutor, Manuel Guerreiro Jorge, natural de Monte da Cabrita, Santana da Serra, Ourique, moribundo, foi um sofrimento que se arrastou por horas, exalou o último suspiro em Finete, o médico, David Payne Pereira, nada pôde fazer, os seus órgãos vitais tinham entrado imediatamente em falência aquando da explosão que deflagrou principalmente do seu lado.
O importante é que escrevi para o Sr. Jesuíno Jorge, procurei abafar quanto o moribundo penou, relevando as qualidades do jovem e a consternação que deixara. Imediatamente na volta do correio era-me feito um pedido terrível, descrever ao pormenor todas as vicissitudes daquela morte. O que, como se compreende, não fiz, andei à volta deixando a promessa, não cumprida, de que um dia o iria abraçar no Monte da Cabrita, esse desgosto ninguém mo tira. E aprendi igualmente que esta necessidade descritiva é muito mais universal do que eu pensara. Já em Lisboa, de visita à mãe do meu maior amigo, que morrera em Mocímboa da Praia, também ela mostrou saber todos os pormenores que antecederam a sua partida deste mundo. Continuo a ignorar o que nos leva a querer saber ao pormenor como o nosso ente querido morreu, será que encontramos alívio na aproximação, nesses últimos momentos de vida. Penso que nunca encontrarei resposta, mesmo depois de tudo quanto li e ouvi.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (10)

Beja Santos

“António dos Santos Alberto,
Conto o que me aconteceu
Foi a primeira emboscada
Que a Companhia sofreu.

A minha saída primeira
foi dia 9 de Setembro.
A hora é que não me lembro,
mas foi numa segunda-feira
o meu amigo Teixeira
disse tudo está bem certo.
Mansabá está bem perto
da pior zona dos malvados,
pois passou uns maus bocados
António dos Santos Alberto.

O comer é bem ruim
e a água é pouca também.
Não desejo isto a ninguém,
acreditem que é assim!
Tudo isto para mim,
o coração me comoveu.
O pessoal uma vez não comeu
pela demora dos cozinheiros,
eu mais que os meus companheiros
conto o que me aconteceu.

O amigo quinhentos e três
do Jeep não desceu.
Não sei como não morreu
o Farinha desta vez.
Foi a 16 deste mês,
num dia de trovoada,
caminhando pela estrada,
a seguir à serração,
jogámo-nos todos para o chão:
foi a primeira emboscada.

Íamos nós capinar
de manhã até ao meio-dia
e aquela patifaria
só nos queria era matar.
Estavam-nos sempre a espiar
mas a gente não se rendeu.
Um caso triste se deu:
na quadra seguinte contarei
todas as coisas que sei
que a Companhia sofreu.”

********************

O trovador regista nestes primeiros tempos de comissão a aspereza da adaptação, as perdas humanas, o insólito da emboscada, a comida enfadonha. O que me remete para um livro bastante singular no panorama da literatura da guerra. António Loja, que teve atividade política na Região Autónoma da Madeira e foi professor do ensino secundário, comandou a CCAÇ 1622, em local duríssimo do Sul da Guiné. Muitos anos depois do regresso, gerou uma atmosfera, no dia-a-dia do ambiente hospitalar, onde estava em pós-operatório de uma cirurgia no Hospital de Coimbra, terá o sono ressuscitado, nas pessoas que ia encontrando nos corredores, os seus companheiros de combate, europeus e africanos, mas também homens, mulheres e crianças com quem conviveu naqueles eremitérios. Quando reeditou “As Ausências de Deus” na Âncora Editora, em 2013, convidou-me a apresenta-lo, o que fiz com imensa satisfação, relevei que alguns destes parágrafos irão fazer obrigatoriamente parte de qualquer antologia que se venha a escrever sobre a guerra da Guiné, é intensíssima a carga emocional da recuperação da sua memória: aqueles dois amigos que andaram juntos na escola, que foram recrutados no mesmo ano, destacados para a mesma unidade, quase dois gémeos típicos que caíram juntos e que depois foram enviados às suas famílias em dois caixões que viajaram no porão do mesmo navio e que depois foram enterrados no mesmo cemitério, nos arredores de Barcelos; o Roncolho, um herói improvisado que um dia gritou “Ai minha mãe!” lá numa emboscada e a quem o capitão teve de dar uma estalada e que estupidamente morreu na véspera da partida, atropelado para os lados do aeroporto; as queixas da dobrada liofilizada, dos coronéis incapazes, dos momentos de depressão que assaltam toda a gente…

Oiçamos António Loja e os seus dons narrativos:
“Quando estava na guerra os primeiros soldados que morreram foram europeus. Sentíamos evidentemente a dor de ver desaparecer jovens de vinte anos, mas participar a sua morte aos seus pais ou suas mulheres era tarefa que ficava a cargo das autoridades das suas terras de residência. Para além de um processo burocrático em que se descreviam as condições em que ocorrera a morte, de colocar o corpo num caixão e enviá-lo para Bissau a fim de ser transferido para a sua terra nada mais restava ao comandante de Companhia para além de dizer duas palavras aos outros soldados na formatura da manhã e extrair da ocorrência os ensinamentos úteis para evitar a sua repetição.

Com os soldados nativos a situação era diferente. As suas famílias viviam na aldeia, junto ao quartel, e sabia ter de enfrentar a situação se houvesse algum desastre com um deles. E foi precisamente o que aconteceu quando Mutaro Jau, filho do chefe da aldeia, um velhote trémulo e débil de nome Suleimane Jau, morreu no cruzamento de Guileje. Carregámo-lo em padiola durante todo o percurso de regresso.
Quando chegámos à vista da aldeia mandei Umarú Julde Jaló, o meu temperamental guarda-costas, avisar o chefe da aldeia que queria falar com ele. Encontrámo-nos à porta do quartel-aldeia e ele estava na expetativa de qualquer coisa fora do comum. Disse-lhe, sem rodeios:
- Suleimane, o teu filho morreu em Guileje.
O homem olhou-me de um modo que nunca me permitiria descobrir se tinha ficado em estado de choque ou se representava o papel que lhe fora destinado no teatro da vida:
- Vontade de Deus, nosso capitão, vontade de Deus.
‘A vontade de Alá é infinita! Só Alá é nosso Deus! Seja feita a vontade de Alá!’. São assim os muçulmanos.
Mas será esta fé tão infinita e inesgotável? Dois meses depois, um rapazinho que em Guileje pediu para vir no carro da tropa que escoltávamos de volta a Mejo foi derrubado por um tiro durante uma emboscada inimiga.
- Quem é ele? - Perguntei eu.
- É filho do chefe de Mejo, respondeu-me Umarú, então presente, assumindo de modo pleno a sua função de meu guarda-costas.
- Quando chegarmos à aldeia vai chamar o chefe para falar comigo.
- Sim, meu capitão.

Encontrámo-nos, mais uma vez, à porta da aldeia e ele mostrou-se de novo na expectativa de qualquer coisa inesperada. Disse-lhe, ainda sem rodeios:
- Suleimane, o teu filho morreu na emboscada.
Desta vez a fé pareceu fraquejar. Deus estava ausente… O homem ficou com os olhos espantados, em evidente estado de choque. Não houve palavras, nem de fé nem de desespero, mas duas lágrimas grossas correram-lhe pela face negra e rugosa. Abracei-o.”

“As Ausências de Deus” também levantam o delicado problema da arbitrariedade das fronteiras impostas à Guiné-Bissau. António Loja viu o irreparável e destaca a intensidade das tensões desses retalhos arbitrários:
“Sambele, régulo de Contabane, no Sul da Guiné, tinha das fronteiras uma visão mais coerente que o comum dos chefes políticos africanos. E agia em conformidade, provocando embaraços políticos nas instituições internacionais, mais interessadas em manter o status quo já tornado única possibilidade de gestão do difícil problema mas que continua a levantar atritos insanáveis entre a lei tradicional e a tradição. Feito tenente pelo Exército Português, Sambele vestia sempre a sua farda de caqui amarelo e ostentava sobre os ombros a insígnia do seu posto, tinha a vantagem de lhe permitir juntar a autoridade tradicional do régulo ao prestígio de partilhar com a potência colonial, aos olhos do seu povo, uma fração da força que aquela representava.
Para nós, a ‘sua’ zona terminava na fronteira que acordáramos com os franceses, talvez setenta ou oitenta anos atrás, enquanto, para ele, a ‘sua’ zona era a do regulado tradicional, que se estendia mais para Sul, muito para além da aldeia de Mampatá Bacirgo, limite que tínhamos a preocupação de não ultrapassar. Do outro lado da fronteira vinham ataques dirigidos aos nossos aquartelamentos e às aldeias nativas. Defendíamos aqueles, enquanto Sambele e os seus caçadores nativos, a quem entregáramos uniformes camuflados e centenas de espingardas Mauser do nosso exército, cuidavam da defesa das aldeias, a que acorríamos sempre que necessário, prosseguindo os atacantes até à linha da fronteira. Para ele, o ‘seu’ território estendia-se por todo o Sul do Forreá e alcançava uma larga fatia da Guiné Conacri, pelo menos até Boké. E agia em conformidade. Pouco antes da minha chegada à Guiné fizera uma incursão no território vizinho, um ataque a algumas aldeias do seu regulado, manifestamente na Guiné Conacri.
Falei a Sambele e tentei convencê-lo a abandonar as suas reivindicações àquele território, ele replicou:
- Meu capitão, não tenho culpa que português e francês tenham feito fronteira no lugar errado. Regulado do meu pai ia muito mais longe. E eu vou lá para mostrar a minha autoridade. Assim, meu povo que vive para lá da fronteira aprende a não vir para a nossa Guiné matar nossas mulher e atacar quartel das nossa tropa”.

António Loja é admirável neste transcurso memorial, a partir de um pós-operatório, em Coimbra. Tão impressivo, e tão conhecedor daquilo que nós vivemos e que o bardo Santos Andrade aqui dedilha que a ele voltaremos numa próxima oportunidade.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 7 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19869: Notas de leitura (1184): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (9) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 10 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19878: Notas de leitura (1185): “As Papaias da Guiné”, por António Coelho Ferreira; Chiado Books, Agosto de 2018 (Mário Beja Santos)

domingo, 31 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19635: (In)citações (128): Honra ao cap pqd Tinoco de Faria (1927-1966), com quem estive na BA 12, em Bissalanca, a tomar café, uns dias antes da sua morte, no corredor de Guileje (Virgínio Briote, 1x-alf mil, CCAV 489, Cuntima e alf mil 'comando', cmdt Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67; nosso coeditor, jubilado)


Guiné > Região de Tombali > Mapa de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Guileje, Mejo o rio Tenhege, a nordeste de Mejo, em pleno "corredor da morte" ou "corredor de Guileje", onde perdeu a vida o cap pqd Tinoco de Faria.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010)




1. Comentário de Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489, Cuntima e alf mil 'comando', cmdt Grupo Diabólicos, Brá ; 1965/67 [, foto à esquerda, 1965]; nosso coeditor, jubilado; vive em Lisboa)



Conheci uma das irmãs do cap pqd Tinoco de Faria, foi ela que preparou a minha admissão ao liceu Sá de Miranda,  em Braga. 

Na Guiné mantive contacto com o capitão em Bissau e, uns dias antes da sua morte,  tomámos café na base aérea [,em Bissalanca].

Soube da sua morte no dia a seguir ao acontecimento por um médico que nos tratava da saúde em Brá e contou alguns pormenores que agora, tantos anos decorridos, não tenho vontade de falar.

Mas posso transcrever um resumo de um documento então em poder da 3ª Rep.:



(...) Guileje, capitão pára-quedista Tinoco de Faria. 28 de Abril, operação "Grifo", “corredor” de Guileje. Às 00H30 saíu do aquartelamento do Mejo o pelotão de pára-quedistas comandado pelo alferes Ferreira da Silva, seguindo nele o capitão Tinoco de Faria. 

A corta-mato progrediram até um local onde montaram uma emboscada. Às 05H00 o dispositivo ficou armado num terreno ligeiramente inclinado e que oferecia boas possibilidades de defesa. 

Às 10H00 ouviram-se disparos de armas automáticas, a uma distância considerável. Como os disparos se repetiram e pareciam mais próximos, os páras calcularam que o IN estava a fazer fogo de reconhecimento e que vinham no trilho onde o pelotão estava emboscado. Uma dezena de guerrilheiros armados e fardados de calção e camisa amarela começou a entrar na “zona de morte”, enquanto mais atrás foi avistado um grupo mais numeroso. 

Aconteceu tudo em poucos segundos. Um cão ladrou, os guerrilheiros da frente recuaram, os páras abriram fogo de imediato sobre o IN e destes, os que puderam não perderam tempo a reagir. O capitão foi atingido gravemente. Todos os guerrilheiros que abriam a coluna acabaram por ser mortos. 

Estabelecido contacto rádio com um avião DO-27, o pelotão de páras ficou a aguardar indicações com vista à recuperação e transporte para Bissau do comandante de companhia. 

Entretanto, o grupo IN aproximou-se da mata ocupada pelos páras e abriu fogo sobre estes com metralhadoras pesadas, armas ligeiras e morteiros. Durante cerca de 30 a 40 minutos o pelotão respondeu, obrigando o IN a mudar de posições, aproveitando os páras para levar o ferido para um local mais adequado à evacuação. 

O inimigo perseguiu-os,  flagelando-os à distância enquanto os páras iam ripostando enquanto progrediam na direcção do rio Tenhege. A ideia dos páras era passar o rio, depois o risco seria menor e mais facilmente evacuariam o seu capitão, cuja situação se agravava a todo o momento.

Às 12H00, atingida a orla da mata do rio Tenhege, novo ataque do IN. Cerca de 20 elementos emboscados numa mata próxima abriram fogo e, de novo, os páras responderam com fogo da MG-42 e do lança-roquetes. 

Apesar de todos os esforços, por volta das 12h00, a hemorragia interna acabou por matar o capitão Tinoco de Faria. Às 12h10 os páras retomaram a marcha. O contacto rádio com o aquartelamento de Mejo nunca se conseguiu estabelecer, talvez devido à distância e à densa arborização. O corpo do capitão Tinoco de Faria foi evacuado para Mejo de helicóptero, apenas por volta das 18h00, junto a uma das margens do rio Lijol. O pelotão dos páras, completamente esgotado, entrou em Mejo às 19h30".

Honra ao Capitão Tinoco de Faria e à CCP.(**)

V. Briote, Guiné 1965/1967
30 de março de 2019 às 19:20 


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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de março de 2019  > Guiné 61/74 - P19634: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XIX: cap pqt Luís António Sampaio Tinoco Faria (Braga, 1927 - Mejo, Guiné, 1966)

sábado, 30 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19634: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XIX: cap pqt Luís António Sampaio Tinoco Faria (Braga, 1927 - Mejo, Guiné, 1966)







1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual à esquerda], instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972. Foi cadete-aluno nº 45/63, do corpo de alunos da Academia Militar. É membro da nossa Tabanca Grande, com o nº 784, desde 7 do corrente.

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Nota do editor:

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18215: Notas de leitura (1032): “Uma Estrada para Alcácer Quibir”, por António Loja; Âncora Editora, Dezembro de 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
É com satisfação que saúdo o regresso de António Loja, autor de uma obra memorável e referência obrigatória da literatura da guerra da Guiné, "As Ausências de Deus".
Regressa com lembranças pícaras, desvelando episódios ridículos da nomenclatura militar, obrigatoriamente regressa ao corredor de Guileje e ao quartel de Mejo, aos 83 anos lá estão as memórias em carne viva.
António Loja é o exemplo acabado quando ao dever de memória, com o filtro da idade apuram-se lembranças eivadas de ternura e mantem-se hasteada a bandeira do companheirismo, neste caso é incansável a tecer louvores ao bando de irmãos da sua companhia operacional que foi do Forreá até ao Jolmete, percorrendo a estrada para Alcácer Quibir.

Um abraço do
Mário


O regresso de António Loja e o seu bando de irmãos

Beja Santos

Devemos a António Loja um dos livros mais impressivos, compassivos e inspiradores da literatura da guerra da Guiné: "As Ausências de Deus"; Âncora Editora, 2013[1]. Reincidente, temo-lo de volta com “Uma Estrada para Alcácer Quibir”; Âncora Editora, Dezembro de 2017. Desta feita, temos um rossio estuante de recordações de alguém que cumpriu por três vezes o serviço militar obrigatório, em todas essas etapas lhe assaltam a memória episódios pícaros, brutais e de grande companha. Em dado passo, ruminando sobre a guerra, ele escreve:
“Foi então que comecei a pensar em como seria constituído esse exército que preparávamos para combater na segunda batalha de Alcácer-Quibir. Tínhamos todo um país para mobilizar: do Minho ao Algarve, dos Açores à Madeira, de Cabo Verde à Guiné, de Angola a Moçambique, da Índia, de Macau e Timor, emigrantes dispersos pelo Brasil, África do Sul e Venezuela, por Paris e Bruxelas, pela Alemanha e pelo Luxemburgo; cavadores de enxada e tratoristas, condutores de autocarro e carteiristas, distribuidores de jornais e engenheiros civis, economistas e médicos, enfermeiros e amanuenses, contabilistas e feirantes, licenciados em Filosofia e Matemática, mas sobretudo muitos analfabetos.
E foi assim que partimos para África, cada um com a sua espingarda, alguns com um morteiro ou com um lança-granadas, outros mais sofisticados levaram um tanque ou um avião ou mesmo um helicóptero. Todos eles fizeram parte da força armada que combateu na segunda batalha de Alcácer-Quibir, travada entre os anos de 1961 e 1974”.

E assim se vão desenrolando episódios da sua passagem pelo RI 14, em Viseu, estávamos em 1961, coube-lhe organizar os serviços da secretaria, ali lhe apareceu o Francisco Esteves que se oferecia como voluntário, o alferes quis saber mais sobre o motivo, era bem prosaico: “É que eu casei-me há três meses e já não aguento a minha mulher. Estou farto dela e prefiro ir para a guerra”. Temos cenas dos pequenos poderes daqueles majores que comunicavam abruptamente quem era mobilizado, até ao dia em que foi bem ensinado. Vem a talhe de foice referir um telegrama que assim rezava: “Informo V. Exa. que se encontra ao dispor dessa unidade no Depósito Geral de Material de Guerra um equipamento M-201, que deve ser levantado, mediante requisição, nas próximas 24 horas”. No topo da hierarquia, para não dar parte fraca, despachou-se para baixo e a certa altura houve um sargento que quis resolver o transcendente problema do equipamento M-201, requisitou-se uma GMC, daquelas que tem 10 pneus e bebe 100 litros de gasolina aos 100 quilómetros, lá foi com um condutor com uma escolta de um cabo e seis soldados até ao Entroncamento. Ninguém tivera a veleidade de fazer um telefonema para saber o que era esse M-201. A GMC e a escolta regressaram com uma embalagem ridícula, era um vulgar filtro para a água.

Estamos agora na Guiné, o autor comanda a CCAÇ 1622, que esteve em Mejo e acabou no Jolmete, passou também por Aldeia Formosa e Teixeira Pinto. Recorda aquelas operações em que se tinha que passar a vau vários braços de rios, sentindo a sucção do lodo e quando se chegava a terra firme era-se recebido com uma tempestade de fogo. A missão, daquela vez, era atingir Chinchin-Dari, ali perto do corredor de Guileje. Emboscadas não faltaram, reagiu-se como se pôde, pediu-se apoio aéreo, houve que dar uma estalada a quem gritava a plenos pulmões: “Ai! Minha rica Nossa Senhora do Sameiro, vamos todos pró caralho”. E o antigo capitão de Mejo recorda: “Nem todos fomos para o caralho. Regressámos ao quartel com três mortos e sete feridos, carregados penosamente pelos sobreviventes, ao longo de 20 quilómetros de mato e lama”.

Porquê bando de irmãos? O autor dá a seguinte justificação: “Assim designa Shakespeare na peça Henrique V que os homens de armas que à volta do rei se associam na aventura da missão comum. Juntos correm perigos idênticos e juntos se apoiam no encontro de soluções para os problemas que enfrentam, alternando derrotas com vitórias, batendo-se cada dia com a morte. Na luta sentem-se solidários. Na solidariedade descobrem-se irmãos”. E o autor justifica-se que é o capitão do bando de irmãos, que andou por terras do Forreá, percorreu o corredor de Guileje à procura de Balantas e cubanos, deslocou-se ao longo das margens do Geba e do Cacine. E explica-se melhor: “Três meses depois de terminado o treino operacional, com deslocações a Santa Margarida e a Lamego, eis-nos embarcado no navio Uíge que nos deixou em Bissau e logo transferidos numa LDG para Buba e daí rapidamente recambiados por terra para Aldeia Formosa, onde nos instalámos para uma estadia que se prolongou por nove meses até sermos transferidos para Mejo, mais conhecida na gíria militar por colónia penal”. A soma de tudo isto eram ataques quase diários dirigidos contra o quartel, o isolamento da instalação militar que no flanco do corredor de Guileje tinha as suas deslocações por terra frequentemente emboscadas. Foi assim que se forjou o bando de irmãos naquela companhia operacional com cerca de 170 homens.

Peripécias vividas nas operações é coisa que não falta neste polifacetado registo de memórias, desde a tormenta das formigas das emboscas noturnas, o terror dos crocodilos, o cão Guileje que espetava as orelhas quando sentia no capim a presença hostil dos guerrilheiros, e não esqueceu o mais imprevisto dos ferimentos:  
“Foi uma refrega rápida. Saltámos dos carros e, lançados ao longo da picada, ripostamos com o mesmo entusiasmo da noite anterior. Entretanto, ainda rastejando e metralhando do capim onde se escondiam os guerrilheiros, senti que tinha sido atingido numa coxa depois do rebentamento de uma granada.
Chegado ao quartel chamei Brado, o sempre diligente e eficaz furriel enfermeiro, para ver o que havia na coxa que ainda sangrava. O homem desinfetou a área e fez uma incisão ligeira com o bisturi para extrair o suposto estilhaço de granada. Surpresa! Enquanto rastejara sobre o rico solo da Guiné, uma formiga furara o camuflado e, encontrando um menu mais apetitoso, começara a perfurar um túnel e iniciara a caminhada para dentro do meu corpo. O bisturi retirou-a a tempo”.

Por vezes o rossio estuante de recordações começa numa história recente e chega rapidamente à Guiné. Foi o caso de naquela conversa se falar numa antena que ia ser colocada num edifício para melhorar a rede de ligações telefónicas, logo se falou de uma antena existente nos CTT de Chaves que servia de refúgio a milhares de estorninhos. E assim se volta ao passado:  
“Disse-lhe da minha profunda emoção ao presenciar em Bolama, na antiga colónia da Guiné, um espetáculo em todo idêntico, não com estorninhos mas com morcegos que todos os dias se deslocavam aos milhares entre Bolama e a mata densa na outra margem do rio, no momento do pôr e do nascer do sol. Porque esta é uma das mais comoventes manifestações da natureza que guardo da minha passagem por aquele território guineense”.

É de saudar o regresso de António Loja à Guiné, aos 83 anos ainda está firme no seu posto de capitão daquele bando de irmãos, um exemplo para todos nós.
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Notas do editor:

[1] - Vd. postes de:

27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6477: Notas de leitura (112): As ausências de deus, de António Loja (1) (Mário Beja Santos)

28 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6483: Notas de leitura (113): As ausências de deus, de António Loja (2) (Mário Beja Santos)
e
30 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11993: Notas de leitura (515): "As Ausências de Deus", por António Loja (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18203: Notas de leitura (1031): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (17) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17919: Dossiê Guileje / Gadamael (30): O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje (2) (Coutinho e Lima)

Guiné - Região de Tombali - Guileje - Foto n.º 42 do Álbum fotográfico do Cor Inf Ref Jorge Parracho. Vista aérea, geral, do aquartelamento e tabanca.

1. Segunda parte do trabalho subordinado ao nunca esgotado dossiê Guileje/Gadamael, da autoria do nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Ref (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), enviado ao nosso Blogue em 27 de Outubro de 2017, que devido a ser um pouco extenso foi publicado em dois postes.


O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje

4. Reunião de Comandos realizada em 15MAI73

Em 15MAI73, realizou-se no Quartel-General do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, uma Reunião de Comandos, presidida pelo Sr. Comandante-Chefe, Sr. General ANTÓNIO DE SPÍNOLA, estando presentes o Sr. Comandante-Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES (viria pouco tempo depois a ser nomeado Oficial da Polícia Judiciária Militar, encarregado de me instaurar auto de corpo de delito, na sequência da Retirada de Guileje), Senhores Comandantes-Adjuntos, Comodoro ANTÓNIO HORTA GALVÃO DE ALMEIDA BRANDÃO, Comandante da Defesa Marítima da Guiné; Brigadeiro ALBERTO DA SILVA BANAZOL, Comandante Territorial Independente da Guiné; Coronel GUALDINO MOURA PINTO, Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné. Tomaram igualmente parte na reunião, o Chefe do Estado-Maior do Comando-Chefe, Coronel do Corpo de Estado-Maior (CEM) HUGO RODRIGUES DA SILVA e os Chefes das Repartições de Informações e Operações do QG do Comando-Chefe, respectivamente Tenente-Coronel de Infantaria ARTUR BATISTA BEIRÃO e Tenente-Coronel do CEM MÁRIO MARTINS PINTO DE ALMEIDA.

Nos trabalhos de pesquisa para escrever o meu livro A RETIRADA DE GUILEJE, encontrei, no Arquivo Histórico-Militar do Exército, a ACTA dessa Reunião de Comandos, com 62 páginas. Dessa acta, transcrevo o que considero mais significativo, no que se relaciona com Guileje.
 
4.1 - Da intervenção do Sr. Comandante Adjunto Operacional, Sr. Brigadeiro LEITÃO MARQUES: 
“(...). No mínimo, e disso não restam quaisquer dúvidas, o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldade de acesso (GUIDAGE, BURUNTUMA, GUILEJE, GADAMAEL, etc), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica - isto está já ao alcance das suas possibilidades militares. Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir à captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa. A dar-se este facto e aceitando que a orientação comunista prevalecerá, tal elemento será aproveitado ao máximo para desmoralizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU. Assisti ao pressionamento psicológico do povo americano por causa dos seus prisioneiros no Vietname do Norte durante quatro anos; e senti em toda a sua profundidade o efeito desmoralizador desse pressionamento, o qual, em larga medida, juntamente com o elemento económico, levou à agitação interna das massas e à capitulação, apesar de todo o poderio militar americano. 
O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante? (...). O In não perderá a oportunidade e tem experiência técnica para a aproveitar ao máximo. É aqui na Guiné onde o problema é mais agudo e o In sabe isso; o seu esforço será aqui realizado. (...)”

(Nota – os sublinhados são meus).

 4.2 - Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Informações (REP/INFO), Sr. Ten. Cor. de Infª BATISTA BEIRÃO:
“Na ZONA SUL, (...) o In ameaça directamente as guarnições de GADAMAEL e GUILEJE a partir da REP GUINÉ, para o que concentrou meio sobre a fronteira dentre os quais se destacam os carros de combate referenciados em KANDIAFARA, a cuja acção aquelas guarnições se apresentam particularmente expostas. 
(...)
No imediato, julga-se que o IN:
(...)
- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra GADAMAEL,GUILEJE e/ou BURUNTUMA, tirando partido da vulnerabilidade destes pontos a esse tipo de acções e visando o aniquilamento ou captura das guarnições.
(...)
Num futuro próximo, prevê-se ainda que o In
(...)
- tente a eliminação sistemática das guarnições mais expostas sobre a fronteira, em acções de tipo convencional.
(...)
Resta referir, a finalizar, que o quadro dispersivo do largo potencial referenciado e a elevada capacidade de manobra do In não permitem, como se desejaria, uma melhor objectivação do esforço do In atenta a fluidez com que se revelam e o quadro geral que se desenha; e apenas pode concluir-se por uma situação na qual todo o TO, sem qualquer exclusão, acaba por constituir uma vasta zona de preocupação, na qual dificilmente se podem, de momento, visualizar priorizações”.

(Nota – os sublinhados são meus)

Este último parágrafo é incoerente com o que consta nas transcrições anteriores. Vamos ver se nos entendemos: se não se podem visualizar priorizações, como se afirma as intenções do In, no imediato e num futuro próximo?

4.3 - Da intervenção do Sr. Chefe da Repartição de Operações (REP/OPER), Sr. Ten. Cor. do CEM - PINTO DE ALMEIDA
“(...). Assim, considera-se essencial: 
a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira. 
Para este reforço computam-se as necessidades em: 
Sector Sul
(...)
3 Companhias
(...)
3. (...). Se não forem concedidos os reforços solicitados (...) julga-se que será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se consideram essenciais. (...)”

Certamente que o Sr. Chefe da REP/OPER, de acordo com as transcrições feitas, tinha em mente, entre outras, a guarnição de Guileje.

5. O que se esperava que o Comando-Chefe fizesse, face ao constante na Acta da Reunião de Comandos de 15MAI73 

5.1 - Considerando as intervenções: 
- Do Sr. Brigadeiro Leitão Marques:
“(...) o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de (...). Guileje. (...). Isto está já ao alcance das suas possibilidades militares...”

- Do Sr. Chefe da REP/INFO:
No imediato, julga-se que o IN:
(...)
“- intente uma acção de tipo convencional com carros de combate contra... GUILEJE... visando o aniquilamento ou captura da guarnição...”

- Do Sr. Chefe da REP/OPER:
“a. reforçar os efectivos das guarnições mais isoladas ou às quais o In tem maior facilidade de impedir a chegada de reforços, em particular as situadas sob a fronteira”.

5.2 - O Comando Chefe, ao constatar, em 18MAI73, quando o IN iniciou as flagelações a Guileje, que se concretizava a sua intenção de um ataque em força, que conhecia desde 27DEZ72 (Relatório de Interrogatório n.º 108, referido atrás), deveria, de imediato accionar o conveniente reforço da guarnição de Guileje, conforme preconizara o Sr. Chefe da REP/OPER e não se argumente que o Comando-Chefe não tinha meios para reforçar o COP 5, porque se assim fosse revelava uma incompetência total.

Para accionar o reforço imediato, dispunha da Companhia de Paraquedistas n.º 121, que segundo as declarações do Sr. Chefe da REP/OPER, (quando ouvido como testemunha em 27AGO73, como testemunha), “encontrava-se em Bissau em descanso”, desde 20ABR73. Esta Companhia podia embarcar na noite de 18MAI, chegando a Gadamael na manhã do dia 19 e a Guileje no mesmo dia. Esteve a reforçar Guidage, desde 23 a 30MAI (mesma informação do Chefe da REP/OPER); possivelmente não seguiu para Guileje, porque já estava “prometida” ao COP 3 (Guidage)!... Além disso, estavam na Península do Cantanhez, outras 2 Companhias de Paraquedistas que, com facilidade poderiam deslocar-se directamente, por terra, para Guileje; estas Companhias foram mais tarde reforçar Gadamael. Não tenho a certeza de que se o COP 5 tivesse sido reforçado, em tempo oportuno, isso resolveria o problema. Não tenho qualquer dúvida que, se esse reforço tivesse sido accionado, não teria decidido a retirada.

O não reforço só poderá entender-se, com grande esforço de boa vontade, se o Sr. Chefe da REP/OPER, estivesse à espera das 3 Companhias, vindas da Metrópole, para reforçar o Sector Sul. Se foi assim, bem podia esperar sentado...

O Sr. Comandante-Chefe decidiu deixar à sua sorte a guarnição de Guileje, demonstrando total insensibilidade, relativamente a centenas de pessoas, cujas vidas estavam em perigo e desresponsabilizando-se da sua obrigação, passando toda a responsabilidade para o Comandante do COP 5, que teve que decidir o que fazer.


6. Conclusão 

O que se passou em Guileje, com início em 18MAI73, foi da inteira responsabilidade do Comando-Chefe e do seu Estado-Maior.

Na verdade, ao tomar conhecimento da intenção o In sobre Guileje (Relatório de Interrogatório de 27 DEZ73) e, não tendo levado em consideração essa intenção, nem tão-pouco informando desse facto o Comandante do COP 5, quando esse foi criado, permitiu que o PAIGC tivesse preparado a sua acção contra o aquartelamento de Guileje, durante vários meses (conforme se soube mais tarde), sem que houvesse, da parte das NT, qualquer iniciativa que a dificultasse. Se o Comando-Chefe e o seu Estado-Maior tivessem actuado como era sua obrigação: confirmar o conteúdo do relatório, accionar o patrulhamento ofensivo por forças especiais e informar o COP 5 (quanto mais não fosse, porque “homem prevenido vale por dois”), possivelmente não teria impedido que o IN tivesse desencadeado o ataque; este, seguramente, não teria tido a intensidade e a duração que se verificou; é esta a minha convicção.

Mesmo depois de ter solicitado por mensagem, em 20MAI às 03.20 horas, o reforço de uma Companhia de Tropa Especial e no mesmo dia, ao fim da tarde, ter apresentado idêntico pedido, pessoalmente ao Sr. General Spínola, não me foi atribuído qualquer reforço. E o que fez então o Sr. Comandante-Chefe? Para responder a esta pergunta, socorro-me do depoimento do Sr. Coronel Para Rafael Durão, quando ouvido, como testemunha em 03JUN73, no processo que me foi instaurado.

“(...). No dia 21 recebi directamente de Sua Excelência o General Comandante-Chefe ordem para manter a todo o custo o destacamento de GUILEJE, naquele local, para o que devia verificar as necessidades em meios para lá colocar os abastecimentos de toda a ordem, mais de 200 toneladas que se encontravam em GADMAEL e CACINE e outros ainda a chegar de BISSAU. Efectivamente fui nomeado Comandante da Zona Sul, ficando o COP 5 sob o meu Comando”.

O meu pedido de reforços foi ignorado pelo Sr. Comandante-Chefe e era o Sr. Coronel Durão que iria verificar as necessidades em meios. Devo referir que o Sr. Coronel Durão nunca tinha estado no Sul da Província e, além disso, a colocação dos abastecimentos em Guileje, naquele momento era secundário; o que interessava era, como primeira prioridade, aliviar a pressão do IN, além de criar as condições mínimas de vida em Guileje, que passavam por assegurar o abastecimento de água e outras funções primárias. Acresce que, tendo chegada às matas de Mejo, (mensagem da REP/INFO do dia 20MAI, às19.00 horas) o 3.º Corpo de Exército do PAIGC, admitindo a possibilidade de actuar sobre Guileje, havia grande probabilidade de o Sr. Coronel Durão, na sua deslocação apeada de Gadamael para Guileje (se fosse essa a sua intenção) ser interceptado pelo IN.

Tendo-se iniciado o ataque do IN em 18MAI, só passados 3 dias (21MAI) é que o Sr. General Spínola nomeou o Sr. Coronel Durão para resolver a situação, demonstrando assim a sua pouca preocupação pelo problema, estando em grande risco centenas de vidas humanas: militares, milícias e população de Guileje.

É também de realçar a missão que o Sr. Coronel Durão recebeu directamente do Sr. General Comandante-Chefe “para manter a todo o custo o destacamento de Guileje, naquele local”. A defesa a todo o custo significa resistir até ao último homem. É altamente discutível se, naquelas circunstâncias, face ao poderio do Inimigo, se devia exigir tal missão.

Regresso à acta da reunião de 15MAI73 (3 dias antes do início da acção inimiga), para transcrever outra parte da intervenção do Sr. Brigadeiro leitão Marques.

“Quanto às vantagens para manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir a captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa... Tal elemento será aproveitado ao máximo para desmobilizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU... O que acontecerá se tivermos de enfrentar situação semelhante?”

Se não tivesse tomado a decisão de retirar, haveria grande probabilidade de se verificar o que previa o Sr. Brigadeiro (captura de grande número de prisioneiros) e, neste caso, Guileje poderia ter sido o “Dien Bien Phu Português”.

Lembro que a Batalha de Dien Bien Phu, travada entre o Viêt Minh e o Corpo Expedicionário Francês no Extremo Oriente, entre 13 de Março 7 de Maio de 1954, foi a última batalha da guerra da Indochina.

Após 8 semanas de duros combates, as tropas do Vietname do Norte, uma força de cerca de 80.000 homens, que sofreu 7900 mortos e 15.000 feridos, venceram as tropas da União Francesa. Os Franceses registaram 2293 mortos e 5193 feridos; 11.721 soldados foram feitos prisioneiros e a maioria não sobreviveu ao cativeiro, tendo sido repatriados apenas 3290.

Comandava o Exército Popular Vietnamita o General GIAP; o Exército da União francesa era comandado pelo Coronel CHRISTIAN DE CASTRIES (nomeado General durante a batalha).

Para concluir, devo referir que o autor material da Retirada de Guileje fui eu, mas o autor moral foi o Comando-Chefe e o seu Estado-Maior.

Alexandre da Costa Coutinho e Lima
(único Comandante do COP 5, em Guileje – JAN a MAI 73)
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Nota do editor

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segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17918: Dossiê Guileje / Gadamael (29): O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje (1) (Coutinho e Lima)


Guiné - Região de Tombali - Guileje - Foto n.º 42 do Álbum fotográfico do Cor Inf Ref Jorge Parracho. Vista aérea, geral, do aquartelamento e tabanca.


1. Em mensagem do dia 27 de Outubro de 2017, o nosso camarada Alexandre Coutinho e Lima, Coronel de Art.ª Ref (ex-Cap Art.ª, CMDT da CART 494, Gadamael, 1963/65; Adjunto da Repartição de Operações do COM-CHEFE das FA da Guiné entre 1968 e 1970 e ex-Major Art.ª, CMDT do COP 5, Guileje, 1972/73), enviou-nos mais um trabalho seu subordinado ao nunca esgotado dossiê Guileje/Gadamael, desta feita com uns considerandos sobre o Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje, que devido a ser um pouco extenso vamos desenvolver em dois postes.


O Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné e a Retirada de Guileje 

1 . Antecedentes remotos 

O Sr. General António de Spínola iniciou as suas funções de Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné em 20 MAI 68. Sucedeu ao Sr. General Arnaldo Schulz, na mesma função.

O Sr. General Spínola encontrou, na fronteira Sul com a Rep. da Guiné Conacry, o seguinte dispositivo, ocupado por tropas do Exército Português:

Aldeia Formosa - uma Companhia
Gandembel - uma Companhia (destacamento em Ponte Balana)
Gadamael - uma Companhia (destacamento em Ganturé)
Sangonhá - uma Companhia (destacamento em Cacoca)
Mejo - uma Companhia
Cacine - uma Companhia (destacamento em Cameconde)

Desta forma, a fronteira Sul estava ocupada com aquartelamentos, desde Aldeia Formosa até Cacine; destes destaca-se o estacionamento de Gandembel/Ponte Balana, mesmo em cima do chamado “corredor de Guileje”, que o Sr. General Arnaldo Schulz, então Comandante-Chefe, determinara a sua ocupação em 08Abr68. 

Em minha opinião, esta decisão fora acertada, porquanto pelo dito corredor, o PAIGC introduzia cerca de 70% dos abastecimentos para toda a província. A Companhia que guarnecia essa posição é que sofreu as respectivas consequências, pois o PAIGC reagiu fortemente, desde o início, deslocando para a zona vário bigrupos, para permitir a circulação das suas colunas de reabastecimento.

Seis dias depois de ter iniciado as suas funções, o Sr. General Spínola fez uma primeira visita a Gandembel, determinando de imediato o reforço da Companhia com um Pelotão de Artilharia e outras Armas Pesadas, o que deveria ter sido accionado desde a ocupação. Mais tarde, ordenou o reforço temporário com Paraquedistas, o que aliviou, de certa maneira, a grande pressão a que estava sujeita a Companhia.

Em 28Jul68, foi publicada Directiva 20/68, em que o Sr. Comandante-Chefe determinava:
“Transferir em fase ulterior os estacionamentos de Guileje e Gandembel para Salancaur e Nhacobá, devendo proceder-se, desde já, ao estudo da localização e das vias de comunicação”.

Desta forma, o esforço de contra-penetração passava mais para Oeste, sendo constituído pelos aquartelamentos de Mejo, Salancaur (6 Kms a Norte) e Nhacobá (4 kms a Norte de Salancaur).

A intenção constante na Directiva indicada não foi concretizada e, mais tarde, o Sr. General Spínola fez uma remodelação do dispositivo militar, determinando o abandono dos seguintes aquartelamentos:

Gandembel /Ponte Balana
Ganturé (destacamento de Gadamael)
Sangonhá/Cacoca
Mejo
Madina do Boé e Beli (únicos estacionamentos da região do Boé - Leste da Província)

O Sr. Comandante-Chefe tinha toda a legitimidade para determinar a remodelação do dispositivo que entendeu, como também, obviamente, assumia a responsabilidade dessa remodelação.

No que se refere ao abandono de Gandembel/Ponte Balana, sem concretizar o que determinara na Directiva 20/68 de 28Jul68, diminuiu drasticamente o esforço de contra-penetração no “corredor de Guileje”, assim “facilitando” a vida ao PAIGC, o que, seguramente, não era essa a intenção do Sr. Comandante-Chefe. 

Ao determinar o abandono de Mejo, deixou o aquartelamento de Guileje sem qualquer apoio, dependendo exclusivamente da ligação por estrada a Gadamael. Foi pena que, enquanto esteve ocupado o quartel de Mejo, não tivesse sido explorada a ligação fluvial a Cacine, quanto mais não fosse como alternativa à ligação terrestre Guileje/Gadamael. E isso podia ser apoiado por um Destacamento de Fuzileiros, sediado em Cacine.

O abandono de Ganturé, e principalmente Sangonhá/Cacoca, deixou uma grande área sem controlo pelas Nossas Tropas, o que, mais uma vez, “facilitou” a vida ao Inimigo, permitindo se assim entendesse, o acesso directo ao Cantanhez.

Abandonando Madina do Boé e Beli, deixou a região do Boé sem qualquer presença militar portuguesa, o que foi aproveitado mais tarde, pelo PAIGC, para ali proclamar a independência, antes do final da guerra.


2. Antecedentes próximos

2.1. Aparecimento dos mísseis terra-ar 

No dia 25MAR73(Domingo), o aquartelamento de Guileje foi flagelado pelo In em pleno dia, das 13.00 às 14.30 horas, contrariamente ao que sucedera até essa data, em que as flagelações decorriam durante a noite. Tal como estava determinado, foi pedido, de imediato, Apoio Aéreo (AE) à Base Aérea n.º 12, sediada em Bissau. 

Passado pouco tempo, apareceu um Avião FIAT G-91 (de ataque ao solo); o Piloto entrou em contacto rádio e foi informado da direcção e distância estimada donde partira a flagelação, voando de seguida nesse rumo, não tendo estabelecido nenhuma ligação rádio posterior, nem tão pouco se tenha notado algo de anormal. Passados cerca de 15 minutos, apareceu o 2.º avião (a normalidade o AE era feito por dois aviões, voando em parelha), cujo Piloto foi informado do que havia sucedido com o 1.º; este 2.º avião sobrevoou a área indicada e após algum tempo, verificou que o 1.º tinha sido abatido; mais tarde constatou-se que fora atingido por um míssil terra-ar; o Piloto, apercebendo-se da situação conseguiu ejectar-se e o avião despenhou-se no meio do arvoredo. Ao ser sobrevoado pelo 2.º avião, conseguiu lançar um “very- light” , assinalando assim a sua presença. Devido ao facto de já ser quase noite, só foi possível recuperar o Ten. Pil. Av. MIGUEL PESSOA, que além do mais tinha um pé partido, devido à queda, feita a pouca altitude, no meio do denso arvoredo.

Foi este o 1.º avião FIAT G-91 abatido, como se veio a verificar por um míssil terra-ar, de fabrico soviético, fornecido pela Rússia ao PAIGC. A flagelação, em pleno dia, foi o chamariz que provocou a vinda dos aviões, que o In sabia que iria acontecer e que foi um êxito para o In.


2.2. Restrições ao Apoio Aéreo 

Face ao aparecimento dos mísseis terra-ar, o Apoio Aéreo sofreu várias restrições, como não podia deixar de ser. As Forças Terrestres passaram assim a não poder contar com a preciosa colaboração da Força Aérea, (FA) que passou a ser feita de maneira diferente, voando os aviões a uma altitude maior, empregando no ataque ao solo bombas com maior potência.

No que respeita a Guileje, a FA deixou de fazer evacuações e de prestar outros apoios, como o acompanhamento das colunas de reabastecimento Guileje/Gadamael, com um avião no ar. Resumindo, Guileje não mais viu os aviões aterrarem na sua “pista”, nem tão pouco sobrevoarem o aquartelamento, a não ser em circunstâncias especiais.


2.3. Deserção do Milícia ALIU BARI 

Em 10MAI73, o Soldado Milícia ALIU BARI saiu do quartel, sem autorização, levando a Espingarda Mauser, que lhe estava atribuída; disse a um outro Milícia que ia à caça. Quando se verificou que não voltara, o Pelotão de Milícia de Guileje saiu em patrulhamento pela estrada para Mejo, com a finalidade de encontrar o referido Milícia, por se pensar que lhe teria acontecido algo de anormal. Nesse patrulhamento, foi detectada uma mina anti-carro, com o invólucro de madeira e de modelo desconhecido, implantada pelo In; quando procediam ao despoletamento da mina, esta rebentou, provocando a morte imediata de dois elementos da Milícia - CAMISA CONTÉ e SATALA COLUBALI, dois Comandantes de Secção e dos mais válidos milicianos. 

Este triste acontecimento provocou um forte impacto negativo no moral de todo o pessoal. O desaparecimento do ALIU BARI (mais tarde soube-se que tinha sido aprisionado pelo In, junto à fonte onde se fazia o reabastecimento de água para o quartel) foi sentido pela população, porque ele podia indicar ao In o local das suas lavras, o que aumentava as suas preocupações. Para os militares também causou grande desconforto, porquanto podia fornecer informações ao In, relativamente ao dispositivo existente no quartel, bem como outras, tal como as relativas à actividade operacional.


2.4. Visita do Sr. General Comandante-Chefe, em 11Mai73 

Em 11MAI73, o Sr. General SPÍNOLA fez uma visita a Guileje. Falou às tropas, em formatura geral na pista, dizendo que se esperava um agravamento da situação, que a Força Aérea não podia executar as missões de rotina como até então mas que, numa situação difícil, apoiaria as Nossas Tropas voando mais alto e utilizando bombas mais potentes; referiu também que, no caso de feridos muito graves, seria feita a sua evacuação a partir de Guileje


3. O que o Comando-Chefe sabia sobre as intenções do Inimigo 

Na folha 608 do auto de corpo de delito que me foi instaurado (tenho uma cópia integral), pode ler-se :

EXTRACTO DO RELATÓRIO DE INTERROGATÓRIO N.º 108 271800DEC72

De: MÁRIO MAMADU BALDÉ - Sexo: MASCULINO - Idade: 25 ANOS Grupo Étnico: FULA  -Naturalidade: CACINE - Estado: Solteiro
(...)

INTENÇÕES DO IN 
(...)

a. NA FRONTEIRA: 

Refere que o IN pretende fazer um ataque com bastante força a GUILEJE, porque pretende obter uma maior liberdade de movimentos logísticos e de pessoal no corredor de GUILEJE. Para isso, ficaram em KANDIAFARA alguns elementos que vieram recentemente dum estágio de artilharia na Rússia, para fazerem reconhecimentos na área de GUILEJE e preparar esta acção.

MODOS DE ACTUAÇÃO

Os chefes sabem que as flagelações aos aquartelamentos não têm obtido resultados compensadores e por isso resolveram mandar vários elementos ao estrangeiro receber uma instrução mais adiantada de Artilharia.

Esses elementos ficam a saber trabalhar com cartas topográficas, para poderem determinar com precisão as distâncias de tiro. Aprendem também a trabalhar com goniómetros-bússolas e outros aparelhos, assim como ficam a saber através da regra do milésimo converter as correcções métricas em direcção, em correcções angulares. Estes elementos ficarão normalmente em observadores avançados durante as flagelações, ligados por telefone às bocas de fogos, dirigindo a acção e regulando o tiro. (...)”

Este documento merece-me os seguintes comentários:

- Ao que se sabe, o Estado-Maior do Comando-Chefe (nomeadamente a Repartição de Informações -(REP/INFO), não lhe “ligou nenhuma importância”, esquecendo uma regra básica das Informações, que é não desprezar nada, por mais inverosímil que pareça. A REP/INFO tinha a obrigação de confirmar ou informar o seu conteúdo, tanto mais porque, os “modos de actuação” faziam todo o sentido, nomeadamente para os Artilheiros (que não era o caso do Sr. Chefe da REP/INFO, que era oriundo da Arma de Infantaria, mas que poderia e deveria, se tivesse dúvidas (que não deve ter tido), consultar os seus camaradas sobre o assunto.

- O Comando-Chefe e o seu Estado-Maior, nada fizeram para impedir, ou no mínimo dificultar, que o IN fizesse os reconhecimentos no sentido de preparar a acção de concretizar “um ataque com bastante força a GUILEJE”.

- A REP/INFO não informou o Comandante do COP 5, que era eu, sobre o conteúdo do documento transcrito atrás, o que foi inconcebível, para não utilizar um adjectivo mais violento. Se eu tivesse sido informado, como deveria ter sido, seguramente afirmaria, junto do Sr. Comandante-Chefe, que o COP 5 não tinha meios para contrariar a intenção do In, pelo que necessitava de ser convenientemente reforçado; mesmo que não me fosse atribuído qualquer reforço, não me esqueceria do que me esperava e, com os parcos meios de que dispunha, tudo faria para contrariar o que o IN preparava, nomeadamente através de patrulhamentos adequados.

O que é certo é que, tudo o que consta no Relatório de Interrogatório n.º 108 de 27 de Dezembro de 1972 (antes da criação do COP 5), se veio a confirmar mais tarde, pelo Comandante do PAIGC, Sr. OSVALDO LOPES DA SILVA, em artigo publicado no jornal Público em 26 de Julho de 2004, (pág. 358 a 361 do meu livro), em que descreve, com pormenor, o trabalho de reconhecimento e levantamento topográfico realizado durante vários meses, iniciado no final de 1972 e que culminou com o ataque em força sobre Guileje, a partir de 18MAI73, com total surpresa da minha parte, por falta de informação, INEXPLICÁVEL, da parte do Comando-Chefe.

Ainda acerca do documento transcrito atrás, pode perguntar-se porque foi incluído no processo que me foi instaurado.

Durante o tempo em que estive preso preventivamente, fiz vários requerimentos.

Em 30 de Julho de 1973, enviei um requerimento dirigido ao Senhor General Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, solicitando, nos termos da Art.º 411.º do Código de Justiça Militar, o fornecimento de cópias de diversos documentos, constantes de uma grande lista, também incluída no citado requerimento. A consulta dos documentos destinava-se à organização e devida fundamentação da defesa e desde já das novas declarações que for autorizado a prestar no corpo de delito e era essencial para o exercício do direito de defesa.

O despacho de 2 de Agosto de 1973, do Sr. General Comandante-Chefe, foi do seguinte teor:

“Forneçam-se os elementos solicitados com os seguintes condicionamentos:
- Os documentos classificados devem ser entregues ao oficial de polícia judiciária militar para serem apensos ao auto de corpo de delito, devendo o Major Coutinho e Lima deles tomar conhecimento através daquele oficial.

- O relatório e elementos relativos à operação “Ametista Real”, não devem ser fornecidos por não dizerem respeito aos factos que estão na origem do auto de corpo de delito.

- A documentação solicitada que não se encontre já elaborada ou não tenha sido difundida pelas repartições, não deve ser fornecida por estar fora das atribuições das repartições a sua elaboração, mormente numa situação de manifesta carência de pessoal.

- Os documentos classificados já apensos ao corpo de delito, como é óbvio, não devem ser fornecidos.”

Em 08AGO73, o Sr. Chefe de Estado-Maior do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, através de uma Guia de entrega, enviou ao Sr. Oficial da Polícia Judiciária Militar (PJM), Sr. Brigadeiro Leitão Marques, 124 documentos, para serem juntos ao auto do corpo de delito, o que aconteceu em 10AGO73.

O Sr. Oficial da PJM - Sr. Brigadeiro Leitão Marques, nem sequer cumpriu o que o Sr. General Comandante-Chefe determinara: “...Os documentos classificados... devendo o Major Coutinho e Lima deles tomar conhecimento através daquele oficial”. Foi mais uma prepotência que o Sr. Brigadeiro entendeu tomar. De facto, não me foi dado conhecimento do documento referido (só o li quando tive acesso ao processo), pois se o tivesse conhecido, nessa altura, não deixaria de fazer mais um requerimento, em termos contundentes, como se impunha, a solicitar explicações sobre o assunto.

O Extracto do Relatório de Interrogatório n.º 108, transcrito atrás, era o n.º 105 lista de entrega referida. Não se percebe que, tal documento, altamente comprometedor para o Comando-Chefe e seu Estado-Maior, pelas razões indicadas nos comentários que fiz sobre o seu conteúdo, tenha sido junto ao processo. Em minha opinião isso aconteceu, pela forma negligente como foi elaborado o auto o corpo de delito, pois nem o Sr. Chefe do Estado-Maior, Int.º, Sr. Tenente Coronel do CEM do CTIG, António Hermínio de Sousa Monteny, (que autenticou a cópia daquele documento), nem o Sr. Chefe do Estado-Maior do Comando-Chefe (que assinou a guia de entrega), nem o Sr. Oficial da PJM (que ordenou a sua junção após autos), se devem ter apercebido do seu conteúdo; se alguma das entidades indicadas o tivesse feito, seguramente teria sido retirado daquela lista de 124 documentos: Com efeito, se eu tivesse sido julgado (e isso não aconteceu, apenas por ter sucedido o 25 de Abril de 1974), o meu Advogado, Sr. Dr. Manuel João da Palma Carlos, (que se deslocou a Bissau), requereu em 18 de Fevereiro de 1973 autorização para consultar o processo (o que foi autorizado), seguramente tomou conhecimento do já referido “Relatório de Interrogatório” e no julgamento não deixaria de exigir explicações sobre o conteúdo do mesmo, o que causaria grande desconforto ao Comando-Chefe e seu Estado-Maior, que seriam responsabilizados pelo que não fizeram (e deviam ter feito), no que ao tal documento dizia respeito.

Do mesmo modo se pode entender a amnistia, que permitiu o arquivo do processo e poderia não ter sido, bastando por exemplo limitar a sua aplicação a crimes cuja moldura penal não excedesse 2 anos de prisão.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16218: Dossiê Guileje / Gadamael (28): A situação de Gadamel, ao tempo da CCÇ 2796 (1970/72), que teve dois grandes comandantes, Cap Op Esp Fernando Assunção Silva e Cap Art António Carlos Morais Silva (Vasco Pires, (ex-Alf Mil Art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

sábado, 29 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15052: In Memoriam (237): Manuel Umaru Djaló, régulo de Medjo: mais um soldado que parte para o eterno aquartelamento. Foi 1º cabo do exército português, em Guileje e dava-me a honra de ser meu amigo (José Teixeira)



Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Medjo > Abril de 2015 > Manuel Umaru Djaló


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Medjo > 2 de maio de 2013 > O nosso camarada Zé Teixeira, "régulo" da Tabanca Pequena de Matosinhos, com o régulo de Medjo, numa das suas viagens ao sul da Guiné-Bissau.



Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Medjo > Abril de 2015 >  O Zé Teixeira, o Eduardo Moutinho Santos (advogado, também "régulo" da Tabanca de Matosinhos) , e o Manuel Umaru Djaló e uma das suas mulheres.


Foto nº 4  > Guiné-Bissau > Região de Tombali > Medjo > Abril de 2015 > Manuel Umaru Djaló,  o Eduardo Moutinho Santos  e o Zé Teixeira



Fotos: © José Teixeira (2015). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem dno nosso muito querido amigo e camrada José Teixeira (ex-1.º cabo aux enf CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá eEmpada, 1968/70)


Data: 28 de agosto de 2015 às 22:22

Assunto: Faleceu o Régulo de Medjo - Manuel Umaru Djaló


Mais um soldado português que parte para o eterno aquartelamento.

O Régulo de Medjo, Manuel Umaru Djaló, serviu o exército português como primeiro cabo em Guiledje na Guiné.

Acabada a Guerra, entregou a G3 e dedicou-se à sua família e à sua terra – a Tabanca de Medjo, que com o fim da guerra iniciou a sua reconstrução, depois de ter sido abandonada pelo exército português em 1968 e consequentemente pela população autóctone. [Nela vive lá hoje grande parte da população que veio de Guileje]

Homem calmo e sensato, foi reconhecido pela população de Medjo que o escolheu para seu Régulo.

Conheci-o em Guiledge em 2008. Tinha o cuidado em se identificar como Manuel Umaru Djaló, para se definir como um soldado português, combatente em Guiledge no período mais quente da guerra.

Sabia acolher com um sorriso, um abraço de carinho. Era como um irmão, igual a tantos outros camaradas de guerra com quem tenho o grato prazer de conviver.

Gostava de conversar. Voltar ao passado. Contava as suas aventuras, de guerra desapaixonadamente, tal como nós quando nos encontramos nas tertúlias das Tabancas que em boa hora começaram a proliferar por este País.

Foi para mim um privilégio conhecer o Manuel e partilhar bons momentos de convívio com ele e sua família.

Foi gratificante para mim conversar com o Manuel sobre a guerra que nos marcou a todos. Possibilitou-me uma visão diferente dessa maldita guerra – a visão de um guineense que se afirmava soldado português, passados tantos anos, e se orgulhava de ter vestido a farda e lutado ao lado dos soldados da "Metrópole".

Tinha sempre uma palavra de afeto e um sorriso para dar.

Portugal e os seus camaradas de armas estavam no seu coração.

Tive oportunidade de o visitar em abril passado e notei-o muito cansado, mas nada fazia prever o triste desenlace.

Um amigo, um irmão que parte. Portugal ficou mais pobre.  A Guiné-Bissau ficou mais pobre.

Paz à sua alma.

José Teixeira

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15029: In Memoriam (236): Luís Casanova Ferreira (1931-2015), cor inf ref, com duas comissões no CTIG (1964/66 e 1970/74) foi ontem a sepultar no cemitério do Alto de São João, em Lisboa

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14302: Recordando a Operação Revistar (Mário Vitorino Gaspar, ex-Fur Mil Art MA da CART 1659)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 11 de Fevereiro de 2015:

Caros Camaradas:

Envio-lhes a “Operação Revistar”, quando da sua preparação, mereceu decerto a atenção devida, até pela ambição do projecto. Destruição de acampamentos; capturar o chefe Nino Vieira e apanhar armamento e documentação do PAIGC. Era obra…

Enquanto a NT, principalmente os nossos Comandantes Militares, planeavam a Acção mortífera, o “nosso deles” Serviço de Informação, funcionou ao contrário. O informador “jogava com um pau de dois bicos”, toda a Guiné sabia, e mais que eu… talvez até o nome da Operação.

Grande fracasso! E como existe medo de se contar a verdade, surge a mentira. Vivi tudo isto.
Estive dias beliscando papéis no Arquivo Histórico-Militar. Encontrava um, faltava-me outro, mas reuni estes elementos. Tenho fotocópias de tudo, poderia ter escrito mais. Gostava de saber por que razão camaradas da CCAÇ 1620 não respondem aos meus mails, e um até foi mal educado, porque nem sequer lhe tinha dito quem era já me tinha respondido que “não queria comprar nada”.

Por que razão na História da Unidade da CCAÇ 1620 não falam desta Operação?

Um abraço
Mário Vitorino Gaspar




OPERAÇÃO REVISTAR

Acabado de gozar Licença na Metrópole, em Bissau só se falava de uma Operação a efectuar no Sector 2, onde a CART 1659 estava agregado em termos operacionais por ser no caso uma Companhia Independente.

Escrevi uma carta à minha mulher que “estava já farto de Bissau, porque aqui só se fala em guerra”. Sou chamado ao Quartel-General, encontrava-me hospedado no Hotel Portugal, e lá me foi dito que tinha de partir com urgência para Gadamael. Respondi que não tinha transporte nos barcos tão depressa, e disseram para ir ao aeroporto que partiria de avioneta para Gadamael Porto. 

Pouco descansei, seguimos com um Grupo para Mejo a 30 de Novembro. A CCAÇ 1591 partiu para a Operação. O ambiente, passado pouco tempo era escaldante, tínhamos conhecimento do que se ia passando. Surgiam muitos evacuados por insolações. Analisei militarmente a situação e concluí que iríamos todos os que fazíamos a segurança a Mejo, chamados a intervir na Operação. 

Comecei por escrever cartas de despedida para os familiares, namoradas e amigos. Entreguei-as em mão a um camarada Furriel Miliciano de Mejo, pedindo-lhe que as guardasse, e no caso de não regressar que as colocasse no Correio. Conhecia bem Mejo, Quartel onde estava destacada a CCAÇ 1591, comandada pelo Capitão de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete. O então Capitão Cadete já era meu conhecido do CISMI, em Tavira. Tinha sido o meu Comandante do Pelotão da Especialidade de Armas Pesadas, Especialidade que iniciara a Agosto de 1965. Ele na altura era Alferes, a famosíssimo Alferes Cadete, tão conhecido por todos os Sargentos Milicianos.

Mas a “Operação Revistar”, e segundo o que se pode ler na História da Unidade da CART 1613, destacada em Guileje, não se desenrolou de 1 a 3 e de 6 a 7 de Dezembro de 1967, já teriam sido efectuadas outras Operações Secundárias da “Operação “Revistar”, por parte da CART 1612, com Montagem de uma base de fogos em Nhacobá (com Pelotão de Morteiros 1086, Pelotão de Milícias 137 e CCAÇ Nativos). Causaram ao IN 5 feridos confirmados. As NT sofreram 1 morto, 3 feridos graves e 6 ligeiros. 

Também existem sinais da intervenção da CCAÇ 1622, Patrulhamento e Emboscada no “Corredor de Guileje” onde as NT foram flageladas à distância. Isto no dia 27 de Novembro de 1967.

A CCAÇ 1622 viria a ser a maior vítima da “Operação Revistar”, que tinha por objectivo a Acção ofensiva em diversos acampamentos do PAIGC e o aprisionamento do chefe Nino Vieira. Participaram na “Operação Revistar”, a CCAÇ 1622; CCAÇ 1591; CCAÇ 1624 e CART 1613.

No dia 3 (de dezembro de 1967), teve a Companhia, 3 feridos (um Oficial, um Sargento e um Soldado; 18 evacuados por esgotamento físico e dois por doença).

No dia 6, repete-se a Operação, e para além das Companhias que tinham estado na 1.ª Acção no terreno, foram reforçados com a minha CART 1659 e CCAÇ 1620.

Na História da Unidade da CCAÇ 1620, nem uma linha sobre a “Operação Revistar”, entretanto esteve lá.

Na História da Unidade da CART 1659 consta:

“De 1 a 3 e de 6 e 7 de Dezembro de 1967, feita a Operação Revistar, uma Acção ofensiva na Península de Salancaur, tendo as forças da CART 1659 colaborado numa primeira fase, montando segurança ao aquartelamento de Mejo. Numa segunda fase, participaram da operação juntamente com as forças da CART 1613 e CCAÇ 1591, 1622 e 1624. Os objectivos previstos não foram atingidos devido ao esgotamento físico das nossas tropas”.

Na História da Unidade da CCAÇ 1591, repetem-se as dificuldades que a NT teve ao percorrer matas fechadas, calor intenso o que provocou o agravamento do estado físico das NT. Termina dizendo que a Companhia acusou, notoriamente, as 5 noites ao relento, dormindo no chão e a falta de alimentação capaz, antes de iniciar a Operação.

Na História da Unidade da CCAÇ 1624, repete-se o mesmo, só com mais 15 evacuações (1 Oficial e 1 Sargento), não existindo condições para se concluir a Operação.

No dia 7 de Dezembro encontrei-me com o Comandante da “Operação Revistar”, o Capitão Luís Carlos Loureiro Cadete. Estranho,  por nunca nos termos encontrado, quando ia tantas vezes a Mejo e a sua CCAÇ 1591 as visitas que fazia a Gadamael Porto. Olhou-me, e reconheceu-me. Mesmo junto da bolanha, com a zona a atingir escondida, faziam-se evacuações. O helicóptero ali perto, e foi ele que iniciou a conversa. Perguntou-me o que pensava da Operação.

- Quem está a sobrevoar sobre nós a todo o momento, e que ao mesmo tempo nos localiza? -  perguntei eu.

Respondeu que era o Comandante da Operação. Falei-lhe que toda a Guiné, de certeza sabia daquela Operação, e qual a razão do Comandante da Operação não pisar terra e ver o estado de espírito das NT.. Com certeza que o PAIGC se juntara todo na Península de Salancaur. Respondeu-me que, segundo informações recolhidas,  o PAIGC tinha 20 Canhões S/R, apontados para a bolanha, bolanha essa por onde entraríamos.

Segundo o que se dizia, Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos actuariam do lado oposto da bolanha, depois de nós iniciarmos o avanço. Logo após os primeiros passos cairiam sobre nós e poucas possibilidades de sobreviver. O Capitão chamou o Comandante a terra, saiu de um helicóptero com um camuflado acabado de sair do Casão, muito gordo.

Passado pouco tempo dão-nos ordens para irmos para Mejo. Caminhada rápida. Lembro-me que nem um gole de água bebera do cantil. Perguntei a todos se tinham sede. Ninguém quis. A dentadinha na palha verde do capim era eficaz, molhava os lábios. Rindo, depois de ouvir de todos que não queriam água, despejei o cantil sobre a cabeça. Chegado a Mejo, pedi as cartas ao Furriel Miliciano, meu camarada e rasguei- as. Bebi a minha dose de cerveja. Seguimos de imediato para Gadamael.

Não se entende a razão de logo no dia seguinte o Capitão de Infantaria Luís Carlos Loureiro Cadete foi em coluna auto para Cacine, e no dia 10 embarcou com destino a Buba, via Bolama. Buba (curiosamente era a Sede do Sector 2 em termos operacionais). Foi afastado devido ao fracasso da Operação Revistar? Não sou capaz de encontrar uma outra resposta. Não conheço nenhuma rendição nestes termos.

Sobre a actividade da Força Aérea nada é focado, mas que a aviação esteve lá não me podem negar. Dias antes já actuava, e em força, bombardeando constantemente a Península de Salancaur.

Em relação aos motivos que levaram que a Operação não fosse concluída, todos falam em desgastes nas NT.

Estavam Paraquedistas, Fuzileiros e Comandos do lado contrário da Bolanha? E a aviação?

Uma Grande Operação falhada. Quem foram os culpados?

Estes também foram para mim dias horríveis, 7 dias consecutivos que não esqueço.

Nota: - Pena que o Blogue não tenha camaradas destas Companhias. Ou tem? Colaborem para tentarmos encontrar uma resposta. Assim se pode colocar a verdade na história da Guerra Colonial.

Mário Vitorino Gaspar

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14273: (Ex)citações (260): Posso afirmar com conhecimento de causa que muitos deles se sentem “guineenses de Portugal” e eu sinto-me "português da Guiné" (José Teixeira)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Medjo > 2 de maio de 2013 > O nosso camarada Zé Teixeira, "régulo" da Tabanca Pequena de Matosinhos,  com o régulo de Medjo, na sua última viagem à Guiné-Bissau.


Foto: © José Teixeira (2014). Todos os direitos reservados



Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O José Teixeira com o chefe da tabanca e a sua lindíssima filha. "Um feliz reencontro. Regresso às origens em 2005. Encontro com um Português da Guiné, antigo paraquedista, que tem uma linda história para ser contada, pelo que sofreu e como consegui iludir o PAIGC para sobreviver à chacina de antigos combatentes portugueses".

Foto (e legenda): © José Teixeira (2005). Todos os direitos reservados


1. Comentário do José Teixeira José [ ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatáe Empada, 1968/70; membro fundador e animador da Tabanca de Matosinhos]:

Em matéria de afetos, não tenho dúvidas que estamos à frente, a muitas léguas de todos os povos que acidentalmente passaram pela Guiné. Digo acidentalmente, porque na realidade só houve um povo, o português, que deixou raízes. Foram quinhentos anos de vida em comum. Houve violências de parte a parte e os últimos doze anos de convivência foram terríveis por um lado e exemplares por outro, quando tratávamos as populações que estavam do nosso lado com respeito e as defendíamos de um inimigo comum.

Confesso que quando lá voltei em 2005 pela primeira vez, ia preocupado com a possível reacção dos guineenses, afinal eu tinha sido um "tuga", mas fui desarmado logo na fronteira, com o sorriso do guarda, que me perguntou onde estive no tempo da guerra e ao saber que estive em Buba, retorquiu: "Então conheceste o meu irmão que foi soldado milícia em Buba". Confesso que me senti, de imediato, em casa, e é assim que me sinto, quando aterro em Bissalanca.

Outras vezes se sucederam. A ligação ao povo português é de irmão para irmão. Antigos guerrilheiros abraçam com mesmo calor, que antigos soldados do exército português, qualquer de nós. É evidente que as conversas são naturalmente diferentes, mas já vi mais que uma vez, antigos "turras" a analisarem, com visitantes portugueses, no terreno, sem "paixões" acontecimentos que forma vivenciados em campos opostos. E também já senti na pele e de lágrimas nos olhos o prazer de abraçar inimigos do terreno que se cruzaram comigo, analisaram comigo os acontecimentos vivenciados, pediram “discurpa” e pediram para a partir dessa data sermos “ermons”,  é gente que acabada a guerra, voltou às suas terras, fez a paz com os familiares que estavam da outra banda e continuaram a construir o futuro.






Guiné-Bissau  >  Região de Bafatá > Xitole > 1 de maio de  2013 > "O Francisco Silva  mais um antigo guerrilheiro do PAIGC, procurando localizar pontos de guerra comuns". [ Companheirop de viagem do Zé Teixeira, em 2013 (**), o Franscisco, hoje cirurgião,  esteve no Xitole, como laf mil, ao tempo da CART 3942 / BART 3873 (1971/73), antes de ir comandar o Pel Caç Nat 51, Jumbembem, em meados de 1973]

Foto (e legenda): © José Teixeira (2013). Todos os direitos reservados


As marcas que ficaram da guerra colonial estão a desaparecer ao ritmo do desaparecimento prematuro dos combatentes guineeses. Nós, portugueses,  temos uma vida mais longa. Os guineenses mais novos, naturalmente, como os nossos filhos estão insensíveis à guerra, mas o testemunho que ficou é, a meu ver, pelas experiências que já tive nas várias visitas que fiz à Guiné, extremamente positivo em relação aos portugueses. O sonho deles é vir para Lisboa.

A luta, de facto, não era contra o povo português, mas contra o regime e Amilcar Cabral conseguiu passar bem esta ideia, tendo como colaboradores diretos os nossos soldados, a começar pelo Governador Spínola que colocou o povo guineense em primeiro lugar, apesar da luta que se travava.
Recordo por exemplo as palavras do tabanqueiro Zé Belo, meu comandante, ao chegar a Mampatá. Foi mais ou menos isto. "rapazes,  se tratarmos bem esta gente, seremos bem tratados e respeitados e eu quero levar-vos todos para casa daqui por dois anos. Se receber alguma queixa da população, o desgraçado comerá com toda a justiça do RDM que eu lhe puder dar".

E ao fim de 6 meses quando fomos deslocados para Buba, a população veio despedir-se de nós junto à saída para a picada.

Foram marcas como estas que vingaram. Éramos duros e agressivos no mato. Reagíamos com violência aos ataques do inimigo, mas tratávamos bem a população que estava connosco.
Hoje, posso afirmar com conhecimento de causa que muitos deles se sentem “guineeses de Portugal” e eu sinto-me "português da Guiné". (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de 8 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14234: Sondagem: opinião "em matéria de afetos, e em relação aos guineenses, levamos hoje a dianteira a russos, chineses, cubanos, suecos e outros que apoiaram o PAIGC no tempo da guerra colonial"...