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sexta-feira, 3 de julho de 2020

Guiné 61/74 – P21136: Memórias de Gabú (José Saúde) (93): Piriquitos exploram o centro de Nova Lamego (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

Camaradas,

Viajo pelas subtis aureolas do tempo, que em minha opinião se aceita, e detenho-me perante a minha chegada por terras de Gabu. É óbvio que antiga Nova Lamego era, para todos nós, um cenário desconhecido. Neste contexto, deixo-vos com um pequeno texto que incluo no meu último livro (nono) “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu” para os camaradas se reverem com os princípios que marcaram intermináveis comissões.

Piriquitos exploram o centro de Nova Lamego
Passeio na “5.ª Avenida”

Suavizavam o ar com o odor de uma “penugem” que os então piriquitos, nome usado pela tropa mais velha para identificar os recém-chegados a solo guineense, lançavam para o infinito de um horizonte inimaginável e onde surgiam quadros pesarosos pintados pelo negro de uma incerteza. Porém, a incubação nos ovos chegava ao fim. Tínhamos avezinhas. Um esticão de asas, um apalpar no escuro, uma vertigem dos mais fracos, o vociferar dos conteúdos da guerra, o trocar opiniões sobre os estratagemas do inimigo, as emboscadas, as minas, os ataques noturnos aos quartéis, entre tantos outros motes aflorados, davam azo a uma conversa sempre indeterminada entre o grupo acabado de chegar ao Leste da Guiné.

Cenário: a “5.ª Avenida” de Nova Lamego, quais turistas a passearem-se pelas ruas chiques das grandes metrópoles americanas! Ao fundo da dita cuja (“5.ª Avenida”), eis o grupo a abancar no bar da Pensão Mar e a refrescar-se com as aprazíveis sagres. Era o princípio de uma jornada por terras de além-mar. Outras fainas se seguiriam!


Refastelados à volta de uma mesa o grupo de furriéis ressarciam-se com as cervejolas fresquinhas

A Guiné parecia apenas um sonho. Aliás, jamais me tinha ocorrido à ideia que o meu futuro militar me reservasse, como virtual conjetura, conhecer um dia a realidade da guerrilha no terreno guineense e as suas famosas bolanhas.

Falava-se da Guiné como o diabo foge da cruz. A guerra naquela província do Ultramar era terrível. Traçavam-se cenários mórbidos. A rapaziada comentava e a mensagem passava de boca em boca. Mas o destino contemplou-me e eu, tal como grande parte dos rapazes desses tempos, não fugi a esse fim. Fui e voltei tal como parti, restando resquícios de histórias que contemporizam o meu calendário de vida.

Camaradas houve, e foram muitos, que já não usufruem, infelizmente, do prazer de partilhar momentos de convívio e narrar as suas histórias de vida. Uns, morreram em combate na densidade de um mato cerrado; outros, faleceram numa emboscada; outros, encontraram a morte em ataques aos quartéis; outros, fecharam definitivamente os olhos em famigerados rebentamentos de minas anticarro e antipessoal e, ainda, há aqueles que morreram em momentos de pura infelicidade.

Desastres com viaturas militares ou armas de fogo, carimbaram o seu derradeiro fim.

Convivi com situações que me deixavam apreensivo quando em causa esteve a razão do último adeus. Momentos fatídicos, mórbidos, de camaradas que ousaram abusar do facilitismo e se deixaram cair, inadvertidamente, em fatídicos fins proibidos. Exemplifico o infeliz que encontrou a morte a limpar a arma esquecendo, entretanto, que tinha deixado uma bala na câmara e outros em estúpidos acidentes com viaturas militares, todos, ou quase todos, temos histórias desta estirpe para contar.

Olho, atentamente, para duas fotos do meu álbum – Guiné – e revejo um passeio pela “avenida” principal de Nova Lamego, nos primeiros dias em que ali “ancorámos”. O clique foi justamente dado em frente a uma casa onde residiam duas irmãs cabo-verdianas que eram professoras primárias na escola local.

Vivendo momentos de uma juventude no seu auge, alguns furriéis e alferes, andavam doidos com as meninas que, por sinal, eram boas como o milho. Recordo que a malta andava mesmo vidrada com aquele duo de airosas donzelas mestiças. Parceiros? Não lhes conheci. Passemos à frente…

O grupo de turistas, todos janotas, embevecidos com a beleza natural que os rodeava e o cheiro a África a inalar as nossas narinas, eis o grupo de piriquitos, à civil, sentados a uma mesa do bar da Pensão Mar. Um nome que nada tinha a ver com a realidade deparada. O mais indicado, na nossa conceção, seria substituir Mar por Bolanha. O mar, lá longe, nem vê-lo. A bolanha era, isso sim, o afrodisíaco mosaico constatado em terrenos circundantes, bem como em quase todo o território guineense. Mas aceitava-se a decisão do seu mentor.

África é sumptuosa no consumo de bebidas, principalmente cerveja. O calor afirma-se como um aditivo determinante pelo prazer de consulares gargantas ressarcidas. Num convívio saudável ficou uma tarde de passeio na apelidada “5.ª Avenida”, o alforge recheado de cervejas bebidas e um conhecimento mais profícuo de uma urbe onde as bajudas passeavam os seus corpos embrulhados em pedaços de panos garridos que torneavam a preceito os seus joviais e esbeltos físicos.

O militar – piriquito – apreciava e… imaginava cenários quiçá inalcançáveis. Coisas de uma juventude irreverente…


Piriquitos desbravavam o ambiente da “avenida”. Da esquerda para a direita: o Cardoso, Operações Especiais/Ranger, Eu, o Santos, Minas e Armadilhas, Freitas e o Rui, Operações Especiais/Ranger

Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. também os postes: 

27 DE ABRIL DE 2020 > Guiné 61/74 – P20909 Memórias de Gabú (José Saúde) (92): “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” (José Saúde)

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Guiné 61/74 – P20909 Memórias de Gabú (José Saúde) (92): “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


Memórias de Gabu (Antiga Nova Lamego)

“Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” 

Camaradas,

Neste constante deambular pelas escarpas da vida, sendo que a minha existência terrena é já credora de uma basta longevidade, encontro-me barricado numa trincheira avançada onde o silêncio impera por via de um inimigo invisível – Covid-19 – que traz incertezas quanto ao futuro e, sobretudo, pavor pela pandemia que por ora nos coube em sorte e que se alastra mundialmente.

Camaradas, fomos antigos combatentes na Guiné, permanecemos entrincheirados nos mais diversos pontos territoriais guineenses por culpa de um conflito armado, conhecemos situações caóticas, vivemos momentos de dor, de angústia, enfim, um rol de condições que nós, combatentes viventes, ainda usufruímos em contar.

Nesta minha última obra inseri um texto em que procurei conhecer um pouco da razão existencial sobre Gabu e da sua etnia fula que por lá prolifera. A pesquisa efetuada veio também ao encontro de um facto que sabia, isto é, a minoria mandiga por lá existente.

Deixo-vos, pois, com mais uma pequena leitura para que possamos “matar” o tempo num tempo que pressupõem uma desejada tranquilidade.
   


 Antiga Nova Lamego - Lavadeira fula

Denominada como Nova Lamego, sobretudo ao longo da guerra colonial, Gabu é uma região cujas fronteiras confinam a norte com o Senegal, a leste e a sul com as regiões de Tombali e a oeste com Bafatá. 

Recorrendo a dados históricos contemplados na Wikipédia, enciclopédia livre, Gabu foi a capital do Império Kaabu, um reino Mandinga que existiu entre os anos de 1537 e 1867 e que se chamava Senegâmbia. Antes, tinha sido uma província do Império Mali. No século XIX a etnia fula impôs a sua supremacia na região e colocou ponto final no domínio de Kaabu.

Gabu é, igualmente, a pátria do chão fula (79,6%), existindo ainda a etnia mandiga (14,2%) que se espalha por toda a zona mas numa menor escala. Foi-me dado a oportunidade em conhecer alguns dos princípios éticos de uma população que prima pela honra de uma herança que assumem como um indeclinável direito.

No plano territorial Gabu possui uma área de 9.150 kms2 e tinha no ano de 2004 uma população que se estimava em 178.318 almas, sendo, por isso, considerada uma das maiores, senão a maior, das regiões do país.

Introduzo como credível uma nota de rodapé que após a independência do país Gabu recuperou o seu nome tradicional existindo, atualmente, um pequeno núcleo urbano de inspiração colonial.

Detentora de clima tropical, quente e húmido, a região de Gabu é composta por uma população em que a doutrina praticada aponta como alvo principal a religião muçulmana (77,1%).

As temperaturas rondam normalmente os 30/33 graus durante o dia e os 18/23 à noite. As estações anuais definem-se como as das chuvas que vai de maio a novembro e a de seca de dezembro a abril. Dezembro e janeiro são considerados os mais frescos. Por outro lado a economia assenta no comércio, agricultura e pecuária.

Os usos e costumes das gentes de Gabu derrapam para primórdios éticos onde é visível uma hierarquia humana que não abdica do erário transmitido de gerações para gerações.

Redijo este tema sobre um “estágio” obrigatório nessa zona e na qual me foi proporcionado observar algo mais ao longo da minha comissão em solo guineense, embora encurtada devido à Revolução de Abril de 1974, uma vez que fui um dos cerca de 45 mil militares dos três ramos das Forças Armadas – Exército, Força Aérea e Marinha – quando por lá prestava serviço. Conheci, portanto, a guerra e a paz e um pouco das vivências tradicionais das suas gentes.

Aliás, num trivial conhecimento com os nativos que muito me estimulou, pessoas simples que viviam no interior de um adensado mato e entre as duas frentes da guerra, usufrui da possibilidade em conhecer alguns dos seus expeditos hábitos, assim como as memórias que nós combatentes incessantemente recordaremos.

Vamos pois ao encontro de conteúdos passados em pleno palco da guerrilha.

Um abraço, camaradas.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

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domingo, 12 de abril de 2020

Guiné 61/74 – P20846 : Memórias de Gabú (José Saúde) (92): A insofismável batalha dos antigos combatentes (José Saúde)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 


Memórias de Gabu

A insofismável batalha dos antigos combatentes
Contornos da guerrilha com laivos preocupantes

Somos estéreis partículas ao cimo deste imenso cosmos terrestre que precipitadamente se dissolvem num universo desigual, onde os valores humanos parecem dissipar-se no seio de uma sociedade mundana, cujas gerações atuais, e vindouras, deslizam para o perverso sentimento de um profundo desconhecimento que houve uma guerra recente onde estiveram envolvidos jovens cuja luta travada no terreno consumiu gerações.

Porém, esses fatídicos sons das armas que atormentaram centenas de milhares dos então meninos e moços, apelidados como “carne para canhão”, tendem ser escamoteadas da história e pouco ou nada se agindo para incutir nas gerações que muitos dos seus pais e avós foram rigorosamente atirados para as frente de combate sem a mínima preocupação de os dotarem com bastos conhecimentos de como atuar numa guerrilha que, para nós, se apresentava porventura desigual, sendo a luta nos campos de batalha excessivamente terrível.

Neste varandim a que vamos chamar marcial, sendo por outro lado a contextualização de dados disponíveis pelo Estado Maior das Forças Armadas nos três palcos de guerra, Angola, Moçambique e Guiné, um fórum teatral onde se retiram somente números, sabendo-se no entanto que estes poderão não apresentar-se como reais, vistos que dizem existirem outros que por força de uma razão ou outra não foram contabilizados. 

Recorrendo, com a devida vénia, ao livro “Cronologia da Guerra Colonial”, de José Brandão, concentro a minha presunção numa aprendizagem sempre infinita e centralizo-me no infeliz número de mortos e feridos que o conflito ultramarino registou entre 1961 e 1974 nas três frentes de guerra.

Aliás, estes hediondos números, bem como o texto, ficam narrados no meu último livro “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74”.

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 – P20688: Memórias de Gabú (José Saúde) (91): “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74” (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Memórias de Gabu

“Um Ranger na Guerra Colonial  Guiné-Bissau 1973/74”

Camaradas, deixo-vos aqui um de muitos textos que o meu último livro, o nono, contempla. Viagens por espaços físicos que muitos de vós conheceram. A obra, com a chancela da Editora Colibri, é tão-só uma reminiscência de circunstâncias que permanecem eternamente nas nossas memórias. Comprem o livro e rever-se-ão em cada tema narrado.

Bafatá, cidade acolhedora

Um olhar sobre o Geba

Cativava-me uma viagem a Bafatá! E foram muitas as jornadas àquela cidade guineense. Um olhar lançado sobre o rio Geba, ao cimo da rua principal, deleitava espíritos de jovens militares que, no mato, se deparavam com frequência a imensos problemas de índole diversa. A guerrilha, sempre ativa, quebrava permanentemente a monotonia de tropas dispersas por toda a região.    
Uma ida a Bafatá simbolizava uma jornada à faustosa urbe para militares entregues a um profundo isolamento. A cidade debruçava-se sobre uma das margens do leito do rio Geba, um portentoso curso de água que ao longo da guerra registou inúmeras histórias fatídicas. Bafatá era uma boa anfitriã.
As minhas idas a Bafatá baseavam-se em colunas de reabastecimentos. A estrada era asfaltada. A distância que separava as duas localidades (Bafatá-Nova Lamego), rondavam, mais ou menos, os 35 kms, julgo. Lembro-me de uma ocasião em que o major Óscar Castelo da Silva, segundo comandante do BART 6523, me pediu para o acompanhar a Bafatá. Tendo em conta a distância e o ambiente de guerra que se vivia, disse-lhe que “preparava o grupo e o meu major levava o jipe com o condutor”. Resposta: “Não, você acompanha-me, armado, e iremos os três”.
E lá nos fizemos à estrada. Confesso que a certa altura cheguei a ter receio da aventura. Havia quilómetros de mato denso. Sabia que esse trajeto, todo em alcatrão, não oferecia problemas de maior. Regressámos sem nada se registar.
Bafatá foi também um azimute traçado quando um dia subi o rio Geba. Embarquei em Bissau e ancorei no Xime. As ligações para Gabu, via aérea, complicaram-se. A guerrilha estava ao rubro. Ganhava uma imponente dimensão. Impunha-se um maior cuidado. Esperei alguns dias, comparecia nos Adidos (estrada que unia Bissau a Bissalanca) e a resposta negativa mantinha-se. Aguardavam ordens, diziam-me. Numa manhã, já desolado com a situação deparada, colocaram-me como hipótese o meu regresso ao Leste por via fluvial. Disse prontamente que sim.
Nunca imaginei uma viagem tão atribulada. A lancha da marinha – LDG – ia cheia que nem um ovo. Os negros, em grande número, transportavam consigo vários apetrechos pessoais. Nem a galinha faltou à chamada!
Ao chegarmos à zona da Ponta Varela, e com o rio a estreitar as suas margens, o comandante da embarcação mandou-nos deitar. “Nem uma cabeça a ver-se do exterior”, avisou. Os marinheiros, já feitos à dita viagem, agarraram-se às metralhadoras e fez-se silêncio. Prevaleceu, momentaneamente, o medo. O “cabo Bojador” foi ultrapassado e, desta feita, o pessoal passou isento de eventuais novidades.
Disseram-me que a zona era extremamente perigosa. Contava-se que aquela viagem já tinha conhecido contornos fatais resultantes de ataques do PAIGC a partir das margens do rio.  
A navegar já em águas fluviais mais “calmas” ancorámos no cais do Xime. Seguiu-se a viagem numa Berliet que cruzou Bambadinca, Bafatá e, finalmente, Gabu.
Bambadinca era também conhecida como a terra do tenente Jamanca, um negro de corpo franzino, estatura baixa e que comandava a CCAÇ 21. Recordo as suas virtualidades como guerrilheiro. Tive a oportunidade de com ele contactar e ouvir histórias em que o soneto da guerra agitava as curiosidades.  

 A rua principal de Bafatá com o Geba ao fundo 


Cais do Xime, 1973

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 – P20556: Memórias de Gabú (José Saúde) (90): Noites em que os estridentes sons da velha Daimler acordava o pessoal. (José Saúde)


Guiné > Região de Gabu > Carta de Nova Lamego (Escala 1/50 mil) (1961) > Posição relativa de Nova Lamego (hoje, Gabu), e as saídas para Bafatá (a sudoeste), Pirada (a nordeste) e Piche (a leste)...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Memórias de Gabu

Noites em que os estridentes sons da velha Daimler acordava o pessoal


O vigiar noturno de secções de camaradas que garantiam a segurança 


As entradas, ou saídas, das estradas que ligavam Nova Lamego a Bafatá, a Pirada e a Piche, eram diariamente vigiadas por secções de camaradas que ao longo da noite asseguravam a segurança dos companheiros que no seu santo leito descansavam as suas almas, não obstante a certeza de que ao longo da noitada estes serem de quando em vez acordados pelos estridentes sons que a velha Daimler lançava para o infinito.

Esta missão diária, obviamente estendível à competência taciturna de um breu que escondia quase sempre incertezas, competia ao sargento-dia que utilizava amiúde essa tal obsoleta Daimler para se deslocar às frentes operacionais que entretanto haviam sido destinadas para o cumprimento do dever militar.

E se a entrada de Pirada era da competência de uma secção de milícias guineenses, o mesmo não sucedia com as vigílias das estradas de Bafatá e Piche. Estas eram da competência de uma secção de camaradas pertencentes ao grupo que normalmente eu e o Rui, ambos rangers, comandávamos.

Certo, porém, é que a maior parte da noite a vigia concentrava-se maioritariamente na estrada que tinha como rumo Bafatá. No lado oposto, ou seja, na saída para Piche, precisamente onde se localizava a Fonte da Várzea do Cabo, local de abastecimento de água ao nosso quartel, as vigilâncias eram mais espaçadas.

Mas as prevenções noturnas do sargento-dia estendiam-se, também, pelos limites da povoação. Ora era para precaver alguma incursão à pista velha de aviação por parte de um qualquer endiabrado prevaricador, local onde o pessoal das antiaéreas se instalavam, ora com uma visita surpresa ao âmago do burgo civil tendo em vista o assegurar uma maior segurança à população, .

A vigilância da estrada que se dirigia a Pirada era da competência dos milícias. Aliás, a este corpo militar pertencia o Jaló, o tal soldado dúbio, pachorrento e pedinchão de que em tempos vos falei e que após a tomada do poder territorial pelo PAIGC logo gritou bem alto “aqui d’el rei” e lá se safou a uma presumível chacina de que foram vítimas muitos dos seus anteriores camaradas.

Aconteceu que uma bela noite pedi ao condutor da Damler que deixasse a antiquada máquina de guerra longe do lugar onde a secção de milícias estava de vigia, e lá fomos a pé ao encontro dos soldados guineenses que, em princípio, estariam alerta para um qualquer movimento estranho que porventura ocorresse.

Alertei para a delicada aventura, pois o breu da madrugada escondia eventuais percalços, logo impunha-se uma aproximação cuidadosa. Passos e mais passos em frente e de reação dos milícias nada. A imprevisibilidade do silêncio dava obviamente um rol de cuidados redobrados.

O certo é que chegámos ao local e qual não foi o nosso espanto quando todo o pessoal ressonava, sonhando quiçá com a paz dos anjos e nada se apercebendo da nossa aproximação. De facto tinham as armas ao seu lado, é certo, mas estas, tal como os seus “patronos”, descansavam mas ao abandono. Tive para sacar uma e pirar-me de imediato, todavia receei que o atrevimento desse presumível disparate resvalasse para o torto. Receei e “travei” a intenção que entretanto me ia na alma.

Falando baixinho com o camarada que me acompanhou eis que num repente o Jaló acordou mas assustando-se com a nossa inesperada presença logo disse: “furrié mi disculpe”! Entretanto os outros camaradas deram uma volta ao corpo e continuaram a navegar no mundo da utopia.

Claro que não houve estrilhos, apenas alertei que a situação por mim observada jamais voltaria a acontecer, pois aquela entrada da estrada que vinha de Pirada apresentava-se perigosa. Com a voz embargada o Jaló penitenciou-se e o perdão foi aceite.

Neste contexto, o assunto "morreu" ali, mas a camarata onde o pessoal da milícia dormitava apresentava-se, naquela noite, como um sublime palco onde os “anjinhos descansavam numa profunda paz”.

O Jaló atrapalhado, acordou os camaradas e botando palavra em fula, lá fez a sua palestra aos camaradas que entrementes abriram as pestanas e depararam-se com a inesperada visita do furriel numa noite em que o luar iluminava e o imprevisto merecia um cuidado literalmente redobrado.

Coisas da guerra numa Guiné onde a imprevisibilidade do instante seguinte se apresentava sempre como uma incógnita!... 

 

Um abraço, camaradas

José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

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30 DE OUTUBRO DE 2019 > Guiné 61/74 – P20293: Memórias de Gabú (José Saúde) (89): Recuperando as “traquinices” do meu camarada Dias. A sua astúcia para contornar as “armadilhas” da guerra. (José Saúde) 

sábado, 14 de dezembro de 2019

Guiné 61/74 – P20451: Agenda cultural (718): “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu” (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas, 
Para vosso conhecimento envio o seguinte texto e uma foto da capa do meu próximo livro, o nono. 


Foi apresentada a obra em Beja a 10 de Dezembro e seguir-se-á Lisboa, Casa do Alentejo, de entre outras iniciativas que já tenho programadas.

Uma ida ao Porto não está fora dos meus planos, estando a programar-se esta eventual possibilidade.


“UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/74
MEMÓRIAS DE GABU”

“UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/74 – MEMÓRIAS DE GABU” é o nono livro do meu pecúlio como jornalista/escritor e o segundo como ex-combatente em solo guineense.

A temática, agora sustentada com novos textos, sendo certo que alguns deles foram recuperados e trabalhados face ao tema tratado da  primeira edição – “GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU” -, é mais um desafio à nossa existência como antigos militares lançados à força para as frentes de combate.

Procurei, embora sinteticamente, ser o mais abrangente possível, diligenciando trazer à estampa temáticas que mexem irreversivelmente com a nossa comum presença num espaço que nos fora substancialmente cruel.

As memórias da guerra não se apagam e cada um de nós ainda hoje revive situações horripilantes pelas quais passou. Reconheço que existem camaradas que recusam abordar vivências passadas que lhe vão na alma. Respeito escrupulosamente essa forma de sentir.  

Há camaradas que procuram olvidar realidades que na generalidade todos ou quase todos conhecemos. Recusam o confronto com cenas atrozes onde foram incontestáveis guerrilheiros numa luta por vezes desigual. Fica, pois, a nossa plena aceitação.

Mas esta obra contempla, também, a presunção deste vosso velho camarada que não se esconde num templo onde as lamentações jamais deverão esbarrar num muro em que as lamúrias tendem em cair no esquecimento.

A guerra Colonial não está assim tão distante no tempo. É recente. Porém, raros têm sido os órgãos de decisão governamental, e não só, a abordar o tema que mexeu com gerações e abalou futuros que se perspetivavam risonhos.

Neste contexto, o livro aborda temáticas exuberantes no que concerne a vicissitudes de que fomos alvos por terras da Guiné e simultaneamente ao agitar gritos de revolta quando em causa se coloca o nosso próprio estatuto como antigos combatentes.

Hoje, a guerra Colonial perdeu visibilidade. Poucos são aqueles que dela falam em público, sobretudo em meios de comunicação social nacional e que por ordem analógica das coisas se deixam levar por tédios e brandos costumes. Poucos são, também, aqueles que se debruçam sobre a inequívoca veracidade onde a morte, estropiados, ou os stressados de guerra, de entre outras doutrinas que recaem sobre os climas dos pós traumáticos, designadamente, são meras personagens de um país que simplesmente os esqueceu.

O livro aborda também o tema dos abandonados. Sim, os abandonados, aqueles que ingloriamente lutaram pela Pátria, uma Pátria que não sendo aquele sumptuoso manto doutrinal que nos fora “vendido” nos bancos da escola, foi também aquela na qual todos nós nos envolvemos.

A guerra, essa desumana realidade, foi propícia a inegáveis circunstâncias que desabaram para incertezas futuras. Da guerra colonial sobram infalibilidades que há restos mortais de camaradas que por lá ficaram literalmente abandonados.

Camaradas, vale a pena através da leitura deste livro revermo-nos no tempo em que nós jovens fomos atiradas para as frentes de combate como uma mera mercadoria chamada “carne para canhão”.

O livro tem o preço de capa 16 euros, sendo o primeiro lançamento no dia 10 de dezembro de 2019, 21h30, na Biblioteca José Saramago, em Beja.

Depois seguir-se-ão outros lançamentos. Lisboa será, em princípio, o destino seguinte. Por mim estarei disponível em deslocar-me por o País fora, levando na minha “mala de cartão” um rol de experiências que são tão-só as tuas próprias experiências.

Camaradas, bebemos água da mesma fonte e comemos do pão que o diabo amassou. Digamos, em uníssono, que somos gentes e proclamamos simplesmente justiça, não obstante o universo de dificuldades até agora deparadas.   

Deixo aqui expresso que a obra “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/74 - MEMÓRIAS DE GABU” só foi possível vir a público graças aos textos que amiudadamente transcrevo no nosso blogue – Luís Graça & Camaradas da Guiné -. Este foi, para mim, uma rampa de lançamento para investir no cosmos da escrita sobre outras temáticas entretanto não abordadas, neste caso o da guerra.

Por fim, fica o meu profundo agradecimento ao Luís Graça, o fazedor do prefácio, ao meu camarada ranger Magalhães Ribeiro pela sua amável disponibilidade em me colocar os textos no blogue e a todos vocês camaradas que fazem o favor em me aturarem nas minhas eloquentes dissertações guerrilheiras, que também são as vossas, neste terreno de jogo onde fomos meros figurantes no conflito na Guiné. 

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. também os postes: 


 

14 DE NOVEMBRO DE 2019 > Guiné 61/74 – P20345: Agenda cultural (712): “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu” (José Saúde)

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Guiné 61/74 – P20345: Agenda cultural (712): “Um Ranger na Guerra Colonial Guiné-Bissau 1973/74 Memórias de Gabu” (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 


Camaradas, 
Vou apresentar a minha nova obra (o nona), em Beja a 10 de dezembro, a seguir Lisboa (Casa do Alentejo), entre outras iniciativas que já tenho programadas.

Uma ida ao Porto não está fora dos meus planos.



“UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/74 MEMÓRIAS DE GABU”

“UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/74 – MEMÓRIAS DE GABU” é o nono livro do meu pecúlio como jornalista/escritor e o segundo como ex-combatente em solo guineense.

A temática, agora sustentada com novos textos, sendo certo que alguns deles foram recuperados e trabalhados face ao tema tratado da primeira edição – “GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU” -, é mais um desafio à nossa existência como antigos militares lançados à força para as frentes de combate.

Procurei, embora sinteticamente, ser o mais abrangente possível, diligenciando trazer à estampa temáticas que mexem irreversivelmente com a nossa comum presença num espaço que nos fora substancialmente cruel.

As memórias da guerra não se apagam e cada um de nós ainda hoje revive situações horripilantes pelas quais passou. Reconheço que existem camaradas que recusam abordar vivências passadas que lhe vão na alma. Respeito escrupulosamente essa forma de sentir.

Há camaradas que procuram olvidar realidades que na generalidade todos ou quase todos conhecemos. Recusam o confronto com cenas atrozes onde foram incontestáveis guerrilheiros numa luta por vezes desigual. Fica, pois, a nossa plena aceitação.

Mas esta obra contempla, também, a presunção deste vosso velho camarada que não se esconde num templo onde as lamentações jamais deverão esbarrar num muro em que as lamúrias tendem em cair no esquecimento.

A guerra Colonial não está assim tão distante no tempo. É recente. Porém, raros têm sido os órgãos de decisão governamental, e não só, a abordar o tema que mexeu com gerações e abalou futuros que se perspetivavam risonhos.

Neste contexto, o livro aborda temáticas exuberantes no que concerne a vicissitudes de que fomos alvos por terras da Guiné e simultaneamente ao agitar gritos de revolta quando em causa se coloca o nosso próprio estatuto como antigos combatentes.




Hoje, a guerra Colonial perdeu visibilidade. Poucos são aqueles que dela falam em público, sobretudo em meios de comunicação social nacional e que por ordem analógica das coisas se deixam levar por tédios e brandos costumes. Poucos são, também, aqueles que se debruçam sobre a inequívoca veracidade onde a morte, estropiados, ou os stressados de guerra, de entre outras doutrinas que recaem sobre os climas dos pós traumáticos, designadamente, são meras personagens de um país que simplesmente os esqueceu.

O livro aborda também o tema dos abandonados. Sim, os abandonados, aqueles que ingloriamente lutaram pela Pátria, uma Pátria que não sendo aquele sumptuoso manto doutrinal que nos fora “vendido” nos bancos da escola, foi também aquela na qual todos nós nos envolvemos.

A guerra, essa desumana realidade, foi propícia a inegáveis circunstâncias que desabaram para incertezas futuras. Da guerra colonial sobram infalibilidades que há restos mortais de camaradas que por lá ficaram literalmente abandonados.

Camaradas, vale a pena através da leitura deste livro revermo-nos no tempo em que nós jovens fomos atiradas para as frentes de combate como uma mera mercadoria chamada “carne para canhão”.

O livro tem o preço de capa 16 euros, sendo o primeiro lançamento no dia 10 de dezembro de 2019, 21h30, na Biblioteca José Saramago, em Beja.

Depois seguir-se-ão outros lançamentos. Lisboa será, em princípio, o destino seguinte. Por mim estarei disponível em deslocar-me por o País fora, levando na minha “mala de cartão” um rol de experiências que são tão-só as tuas próprias experiências.

Camaradas, bebemos água da mesma fonte e comemos do pão que o diabo amassou. Digamos, em uníssono, que somos gentes e proclamamos simplesmente justiça, não obstante o universo de dificuldades até agora deparadas.

Deixo aqui expresso que a obra “UM RANGER NA GUERRA COLONIAL GUINÉ-BISSAU 1973/74 - MEMÓRIAS DE GABU” só foi possível vir a público graças aos textos que amiudadamente transcrevo no nosso blogue – Luís Graça & Camaradas da Guiné -. Este foi, para mim, uma rampa de lançamento para investir no cosmos da escrita sobre outras temáticas entretanto não abordadas, neste caso o da guerra.

Por fim, fica o meu profundo agradecimento ao Luís Graça, o fazedor do prefácio, ao meu camarada ranger Magalhães Ribeiro pela sua amável disponibilidade em me colocar os textos no blogue e a todos vocês camaradas que fazem o favor em me aturarem nas minhas eloquentes dissertações guerrilheiras, que também são as vossas, neste terreno de jogo onde fomos meros figurantes no conflito na Guiné.

Um abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em:

8 DE NOVEMBRO DE 2019 > Guiné 61/74 - P20323: Agenda cultural (711): A não perder: curso, 15 euros por 4 tardes de sábado (, 9, 16, 23 e 30 de novembro), na Livraria-Galeria Municipal Verney, Oeiras, sobre "A Herança Judaica em Portugal": (i) a antiguidade na península ibérica; (ii) sinagogas, judiarias e comunidades; (iii) a Inquisição no património mental; e (iv) Amsterdão e Nova Iorque: duas cosmopolitas comunidades da diáspora.

domingo, 18 de agosto de 2019

Guiné 61/74 – P20072: Memórias de Gabú (José Saúde) (87): A “perícia” dos condutores enviados para a guerra na Guiné. Os homens do volante. (José Saúde)

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem. 

As minhas memórias de Gabu

A “perícia” dos condutores enviados para a guerra na Guiné

Os homens do volante 

Somos, na generalidade, conhecedores do empenho que os condutores impunham numa especialidade à qual se dedicavam desinteressadamente. Sabemos o quão importante foram os conhecimentos adquiridos ao longo de uma singular aprendizagem que lhes proporcionou um contacto real com o universo da condução. Fizeram tudo o que estava ao seu alcance, isto na minha singela opinião, obviamente. Cumpriram com os seus deveres e não viraram a cara à luta, não obstante as tormentas que o rebentar de uma mina obstinasse o seu querer e naturalmente dos camaradas.

Percebi, nessa altura, que a universalidade da especialidade não era comum a todos e distribuíam-se consoante as necessidades ou a sorte que lhes coube na roda da aventura. Razão esta que me leva a viajar num tempo sem tempo e citar especificamente a honorabilidade de camaradas que conheceram, por dentro, os teores de uma guerra que nos fora deliberadamente bárbara. Padeceram com condições adversas e suportaram as agruras impostas por uma peleja que não dava folgas.

Agarrados ao volante das Berliet, veículos fabricados nas oficinas do Tramagal, ou num Unimog, veículos denominados pela rapaziada como “carros de assalto” e que em 1946 foram projetados pela Daimler-Benz na Alemanha quando a Segunda Guerra Mundial rebentou, sendo que a sua comercialização internacional regista o ano de 1951, já no pós guerra, os condutores mereceram ao largo do conflito os nossos singelos aplausos.


Visualizar a sua despretensiosa ação pela mais recôndita picada numa Guiné a ferro e fogo, sabendo de antemão que as minas anticarro eram comuns, os condutores foram camaradas que não viravam a cara à luta e lá partiam para mais uma coluna, ou para as frequentes visitas a tabancas quando o momento passava por mais uma jornada em que a chamada “psicó” ditava ordem.

É evidente que façamos uma justa destrinça entre as colunas de reabastecimentos e de transporte de pessoal, onde normalmente se utilizavam as Berliet, por vezes intercaladas com Unimog, mas sendo este último veículo usado nas idas às tabancas onde íamos distribuir os aplaudidos “mezinhos” para uma população de todo carente e que vivia isolada na mata a contas com as duas frentes de guerra.

Creio que será de bom senso não desvirtuarmos uma veracidade bem patente que se prende com o facto de uma certa inexperiência evidenciada por alguns dos condutores nos seus inícios das comissões. Aliás, pressuponho que a dita e amadurecida experiência era adquirida com o decorrer das comissões onde um melhor conhecimento do terreno ganhava estatuto.

Conheci duas situações em que o medo se apoderou do meu então jovem corpinho. Vamos aos comentários das ditas ocorrências:

A primeira aconteceu numa das visitações a tabancas localizadas na zona de Gabu. Seguia no Unimog da frente, ao lado do condutor, quando numa picada estreita o “ás” do volante deixou a “máquina de assalto” entrar pelo capim fora, sendo que a malta se vi-o às aranhas para ultrapassar o incidente deparado. Houve umas pequenas mazelas e restou, evidentemente, um tremendo susto. Depois fez-se o “reconhecimento” que a ocasião impunha e o Unimog lá prosseguiu rumo ao seu destino.

A segunda ocorreu numa tarde a caminho de Piche quando uma viatura que seguia atrás de uma outra embateu na traseira daquela que rolava à sua frente e a malta atirou-se de pronto para o chão embrenhado entre as granadas da bazuca, do morteiro 60 e as G3 que transportávamos nas mãos.

Aqui um arrepio entrou-me no corpo dado que os arranhões provocados nas minhas pernas e braços deixaram marcas a exemplo, aliás, de outros camaradas que se queixaram do mesmo mal. Mas o “acidente”, felizmente, não causou vítimas de maior a bordo. Tudo correu bem. Mas… ficou o aviso e as pequenas feridas para o saudoso enfermeiro Dinis curar.

Este curto texto visa, essencialmente, abordar o tema que enaltece a bravura comum de camaradas de uma especialidade, condução, que conheceu em paralelo momentos de horror. 

Não sei e nem tão-pouco vou lançar achas para uma fogueira alvitrando o número de condutores que terão perdido a vida na Guiné por via de emboscadas ou de minas rebentadas pelos rodados dos veículos por eles conduzidos.

Com leigo de uma matéria que não domino, deixo, porém, esse repto aos camaradas para que possamos ter uma ideia desse infortúnio, sabendo nós que o número exato das mortes na guerra guineense jamais será real. 

Fiquemos, pois, pelos algarismos virtuais. 


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.: