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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5787: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (12): Bissau, uma guerra diferente onde os rumores também voavam

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 5 de Fevereiro de 2010:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Em devido tempo deixei-te saber que tinha uns cavalinhos, à solta, no meu companheiro de muitos anos. Infelizmente, tive que me separar dele por algum tempo, e acabei por arranjar mais um companheiro.
Pior que tudo isso foi saber que, por falta de trabalho (e dou-te algum) o valor das tuas comissões baixaram bastante. Lamento!

Não poder dar o meu passeio diário pelo blogue também pesa na minha consciência. Mas tudo está bem quando acaba bem, e cá estou a contribuir com mais um história simples para a série "Memórias e histórias minhas".

Para ti e para todos os camaradas um braço muito quente do
José Câmara



Bissau: uma guerra diferente onde os rumores também voavam

Várias vezes referi que a disciplina imposta pelo comandante do AGRBIS, o excesso de trabalho, o serviço ao Hospital Militar 241 e à sua morgue, e as Guardas de Honra Fúnebres no cemitério de Bissau como sendo os componentes que mais afectaram, psicologicamente, a nossa estada em Bissau.

Houve também outros factores que, pela sua importância contribuíram para o abalo mental que, desde cedo, se começou a sentir no seio da Companhia. Refiro-me aos rumores que, desde o dia em que chegámos à Guiné, voavam em todas os sentidos, e que nos davam como certos nos lugares mais díspares do TO da Guiné. As zonas de Pirada e Aldeia Formosa eram os lugares mais visados como áreas de colocação. Buruntuma também tinha os seus adeptos. Eram zonas míticas e difíceis.

O Comandante da Companhia, Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves, bem se esforçava para dissipar os rumores. Dizia ele que nada sabia, pois não tinha sido informado. E a verdade é que não sabia mesmo, e os seus esforços acabaram por não surtirem o efeito desejado, que era o de estabilizar o estado emocional dos soldados.

A presença de um simples facto veio alterar, sobremaneira, todo o panorama dos rumores que passou a certezas entre os soldados da Companhia. A zona de Pirada era (para eles) o nosso destino. Sobre isso escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:


Carta de 25 de Fevereiro de 1971:

"Disse, em carta anterior, que no dia 19 de Fevereiro iria para o Destacamento de Nhacra ou Dugal, numa fase de adaptação. Tal não aconteceu. Outro Pelotão é que foi para lá. Assim, continuo em Brá e com o mesmo serviço.
Deve estar perto a ida para o mato. Pelo menos a Companhia que nos vem render, em Brá, está prestes a chegar. O 1.° Sargento daquela Companhia já veio instalar a Secretaria. Portanto, mais dia, menos dia, nós vamos de abalada para o mato. Não sei o sítio mas, segundo se diz, vamos para perto de Pirada."


A presença daquele 1.° Sargento foi como um bálsamo para a sanidade mental de grande parte dos elementos da CCaç 3327. O que os soldados queriam era sair daquele inferno chamado AGRBIS. E com razões de sobra.

Os rumores cessaram, e até o lugar para onde iríamos deixou de ter importância.


Aerograma de 7 de Março de 1971:

"O meu trabalho continua a desenrolar-se normalmente, não havendo nada de especial a referir. Continuamos sem saber quando iremos para o mato, nem para onde. Tudo continua no maior silêncio."

A verdade é que os dias foram-se passando. E, com eles, o descontentamento começava a apoderar-se, mais uma vez, dos soldados. Nós, a maioria dos graduados compreendíamos que a nossa guerra em Bissau era diferente, e que o perigo dos tiros era quase nulo. Mas seria isso o suficiente para apaziguar os sacrifícios desenvolvidos? A minha madrinha de guerra era a única pessoa que sabia o que me ia na alma.


Aerograma de 27 de Março de 1971:

"A vida na Guiné continua a mesma coisa, isto é, sem alterações.

Quanto à nossa situação devo dizer-te que a malta
(deveria estar a referir-me aos soldados) está para pedir ao nosso Capião para irmos para o mato. É que toda a gente está a ficar estoirada, fraca e sem vontade própria.

Para já, estive 48 horas seguidas de serviço e não gostei nada. Agora soldados que andam há um mês e tal sem descanso, como não devem estar? Dormem aos bocadinhos, andam quilómetros e quilómetros, dia e noite sob este calor tórrido. Enfim, isto para eles é um verdadeiro inferno. Eu, comparado com eles, estou no céu, acredita. Eu tive muita sorte no meio de toda esta miséria.

É certo que estamos numa zona onde não há tiros, nem barulhos. Mas pergunto eu:

- Valerá a pena tamanho sacrifício?"


Da esquerda para a direita: o Soldado Condutor Auto João Valadão (já falecido), Fur Mil José Câmara, o guineense chefe dos serviços da lavandaria do Palácio, e o Soldado João Avelar Ventura

Entretanto mais alguns dias se passaram. Era normal encaixar 48 horas seguidas de serviço: Sargento da Guarda ao Palácio e Sargento do Dia à Companhia. Normal não era fazer 72 horas seguidas. Mas acontecia, se havia impedimento de algum dos outros furriéis a qualquer serviço de escala. Na carta que escrevi à minha madrinha de guerra não faço nenhuma referência à nossa ida para o mato.


Carta de 1 de Abril de 1971:

"Há 72 horas que me encontro de serviço. Aborrecido como sempre... Ontem a coisa esteve feia, pois os soldados tentaram fazer um levantamento de rancho" - (já fiz referência a este caso, pelo que é descabido mencioná-lo outra vez).
Esta carta acaba abruptamente da seguinte forma:

"Desculpa a pequenez da carta. Mais tarde explicarei porquê".

A forma como termino a carta indica que algo de importante se passou. Nesse dia, tomámos conhecimento de que íamos, finalmente, ser rendidos em Bissau e que seguiríamos para o mato a 6 de Abril.

A Companhia de Caçadores 3327 iria assumir o estatuto de Companhia de Intervenção ao serviço do CAOP1, com sede em Teixeira Pinto. A sua missão principal seria proteger a nova estrada que estava a ser construíada entre Teixeira Pinto e Cacheu.

A Mata dos Madeiros era o nosso destino.

José Câmara
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5571: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (27): O Pai Natal das minhas netas encheu-me o sapatinho (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5508: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (11): Esta água tem pouco vinho

domingo, 20 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5508: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (11): Esta água tem pouco vinho

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 19 de Dezembro de 2009:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história palaciana.

Mais um Natal se aproxima. Para todos os camaradas aqui ficam os meus votos de um muito Boas Festas, muita saúde, e muita alegria na companhia de todos aqueles que vos são muito queridos.
Mas bom mesmo seria que todos nós pudessemos fazer Natal todos os dias do ano.

Um abraço do tamanho do Atlântico que nos une,
José Câmara




Esta água tem pouco vinho

Os camaradas que passaram pelo AGRBIS no início do ano de 1971, devem lembrar-se que o vinho servido nos refeitórios era bastante aguado e, quase sempre, mais quente que o desejável.

Uma manhã, regressado do serviço ao Palácio, o José Francisco Serpa, um florense da Ponte da Fajã Grande, soldado da CCaç 3327 e da minha Secção contava, alegremente, ao Comandante da Companhia que, como faxina de serviço, tinha levado as amostras do rancho ao Capitão, Ajudante de Campo do General Spínola. Para o seu estado hilariante tinha contribuído o facto do referido Capitão ter reconhecido que a água tinha pouco vinho.

Mal sabia eu que a história se repetiria, com consequências bem diferentes.

Dias depois, estando eu de serviço no Palácio, fiz as amostras das iguarias do dia e, com um Soldado da Guarda, dirigi-me ao gabinete do Capitão, mas este não se encontrava lá. Por indicação de um Alferes dos Serviços de Apoio, soube que o Capitão estava na Sala de Reuniões. Bati à porta que, ao abrir-se, deu para perceber que ali estava a ter lugar uma reunião de Altos Comandos Militares da Guiné, sendo o Capitão o graduado mais novo na sala.

Pedida a devida licença para entrar, o Capitão sugeriu que os graduados mais antigos provassem as iguarias do dia. Um oficial da Marinha, Contra-Almirante, se bem me recordo, limitou-se a dizer que provaria o vinho enquanto um Coronel da Força Aérea disse que provaria o peixe.

Assim começou a odisseia do dia.

O oficial da Força Aérea ao tentar espetar o garfo no peixe, teve o azar da posta dar um pequeno salto no prato e quase cair ao chão. De imediato interpelou-me se eram só cabeças de peixe que iriam ser servidas aos Guardas do Palácio. Retorqui que não tinha a certeza, mas que aquela não sendo a maior era a mais bonita que tinha vindo. Com a minha resposta arranquei uma gargalhada de boa disposição daqueles homens.

O melhor estava para vir. O oficial da Marinha provou o vinho e perguntou aos presentes se também o queriam fazer. Todos disseram que não. Então aquele oficial perguntou-me se eu costumava beber daquele vinho e se eu gostava dele. Respondi-lhe que bebia, mas que não gostava de vinho com água.

- É isso mesmo! Esta água tem pouco vinho - disse o Contra-Almirante.

Para minha surpresa, perguntou-me se eu sabia porque é que o vinho era tão aguado. Nessa altura reparei que o meu soldado chocalhava como uma debulhadora na faina do trigo lá na terra. Do Capitão apercebi-me de um pequeno sinal de cabeça a incentivar-me à resposta que saíu, essencialmente assim:

- Muito possivelmente acrescentam água ao vinho para cortarem a força do álcool. Também sei que acrescentam algum gelo que, como pode reparar, já se derreteu. O essencial seria ter jarros para vinho, jarros para água e uma terrina com gelo. Assim, cada um beberia o vinho como mais gostasse.

O oficial da Marinha de imediato deu ordem ao Capitão para informar o Coronel Santos Costa, mais conhecido pelo apelido Onze para, a partir daquele dia, passar a servir vinho, água e gelo em recipientes separados.

E assim se cumpriu. No AGRBIS passamos a beber vinho como nos aprouvesse.

No palácio, pelas experiências que eu vivi, aprendi grandes lições para os dias que se avizinhavam nas minhas deambulações pela província da Guiné, quiçá para a minha vida. Entre elas, foram marcantes a humildade e a compreensão que vi, sempre, estampadas naqueles homens que tinham a capacidade de decidir. Porque o respeito dos outros se conquista pela força do carácter, da honestidade e do exemplo, eu apreendi a respeitar aqueles homens.

Dias depois seguiria para a Mata dos Madeiros.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5469: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (10): As palmas das vitórias de uma Guerra que não era nossa

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5469: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (10): As palmas das vitórias de uma Guerra que não era nossa

1. Mensagem de José Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 14 de Dezembro de 2009:

Olá amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história da minha vivência no Palácio.
Este pequeno episódio deu-me para conhecer uma faceta mais humana do General Spínola.

Das terras geladas dos States, com votos de boa saúde para todos, e um abraço amigo,
José Câmara


Guerras palacianas: As palmas das vitórias de uma Guerra que não era a nossa

Enquanto Sargento da Guarda ao Palácio do Governador da Guiné, os meus contactos com o General Spínola foram, sempre, esporádicos.

Esses encontros davam-se quando ele se dirigia à Casa da Guarda para ali deixar, para limpeza, o seu cinturão com as cartucheiras e granadas de mão ofensivas M63 e a sua G3.

Outras vezes cruzava-me com ele junto dos portões de estrada quando ele, quase sempre na companhia da esposa, dava um passeio nos arredores do Palácio, ou se dirigia ou vinha do clube dos oficiais da Força Aérea que ficava nas redondezas do Palácio.

Sempre fiz acompanhar o meu cumprimento de continência militar ao velho General com um cumprimento civil sobretudo em atenção à esposa. O General sempre correspondia ao cumprimento com um leve sorriso. Julgo que era apreciativo desta forma de eu o(s) cumprimentar.

Um Domingo, com a noite já avançada, o encontro foi diferente.

Pelo intercomunicador do posto de sentinela que servia o portão de serviço geral recebi a informação que um estafeta dos CTT tinha uma mensagem dirigida ao Governador da Guiné. De imediato dirigi-me àquele posto de sentinela. Cumpridas as formalidades com o estafeta dos CTT, reparei que a mensagem era do tipo relâmpago. Era a primeira que me acontecia. Sabia o que tinha que fazer.

De imediato dirigi-me aos escritórios de apoio ao palácio. Para meu desepero não encontrei ninguém no escritório. Tinha a consciência da importância daquele tipo de mensagem que tinha de ser entregue, nem que tivesse que fazer o nosso General saltar da cama.

Aventurei-me nos corredores sem acender a luz na esperança de ver alguma réstea de luz por debaixo de alguma das portas. A ideia era boa, o resultado foi pobre. Decidi bater a uma das portas. Para surpresa minha a porta entreabriu-se Na minha frente estava o próprio General Spínola. Ao aperceber-se quem eu era de imediato transpôs a porta, fechando-a atrás de si.

Cumprimentei-o e disse-lhe o que me levara ali. Uma mensagem relâmpago dirigida a ele. A nossa conversa foi, essencialmente esta:

- Abra e leia - disse-me ele.

- Meu General eu não posso nem devo ler esta mensagem. É uma mensagem relâmpago - retorqui.

- Pode, pode… abra, abra… leia, leia. Sou eu que lhe estou dizendo que pode. - Disse ele um pouco impaciente.

Abri a mensagem e comecei a ler:

- O Conselho de Ministros em sua reunião de... aprovou o...

Hoje não tenho a certeza se a comunicação se referia à aprovação do Orçamento Geral da Guiné, ou apenas de um suplemento.

O General enquanto pegava na mensagem deu-me um pequeno toque nas costas e disse:

- Hoje é um dia grande para a Guiné!

Levantando a mensagem ao ar, como quem levanta um troféu, reabriu a porta e ouvi-o dizer:

- Está aqui…

Um coro de palmas ecoludiu naquela sala. Foi aí que pude reparar que o General estava rodeado pelos seus colaboradores mais directos na Guiné, deduzi.

Fechei a porta e dirigi-me à Casa da Guarda. Ia pensativo. Por causa daquelas palmas.

Afinal aqueles homens também eram capazes de exultar com as suas vitórias. Eram vitórias de um tipo de Guerra que não era a nossa, mas sem as quais as nossas vitórias seriam muito mais difíceis de obter.

Cruzei-me mais três vezes com o General: no destacamento de Bassarel, no destacamento de São João e no DA, em Brá, no dia da despedida.

José Câmara
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5434: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (16): Guileje não caiu, foi abandonado (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5356: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (9): Histórias palacianas: tiros indiscretos...

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5356: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (9): Histórias palacianas: tiros indiscretos...

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Novembro de 2009:

Olá amigo Carlos Vinhal,
Junto mais um pedaço das experiências que passei no Palácio. De propósito omito o nome do capitão nesta história. Não tenho a certeza do seu nome. Adoraria que alguém pudesse localizar ou dar informação sobre o capitão Tomás que foi ajudante de campo do general Spínola.
Uma fotografia do referido oficial, possívelmente, ajudar-me-ía a idenficar o capitão desta história.

Um abraço amigo para todos,
José Câmara


Histórias palacianas: Tiros indiscretos… ou como um capitão acabou por ser o herói da história



Para os militares que faziam serviço no Palácio do Governador, em Bissau, uma das principais regras não escritas, era a manutenção do sangue frio perante situações julgadas suspeitas. Essa regra era primordial quando, no exercício das suas funções, os militares eram confrontados com situações de cariz imprevisível. Essas situações eram tanto mais agudas durante o dia, quando a segurança era feita pelo lado de fora dos muros que circundavam os jardins do Palácio.

Entre essas situações estavam a aproximação de civis aos sentinelas, a concentração de civis nas imediações dos postos, e o barulho que os civis faziam, mesmo quando circulando nas imediações dos postos.

Nesses postos de sentinela havia intercomunicadores ligados directamente ao gabinete do Sargento da Guarda.

O povo de Bissau era, essencialmente, um povo ordeiro e, como tal, obediente das regras então impostas. Desconheço se era regra ou não, a verdade é que de uma maneira geral a população circulava nos passeios do outro lado das ruas que circundavam o Palácio. Os mais jovens, talvez por isso mesmo, nem sempre o faziam. Para além disso, junto ao posto da direita, ao fundo do jardim havia um pequeno atalho muito usado pelas populações, e que encurtava em alguns passos para quem usava a rua que confrontava com o fundo do jardim. Esse atalho desembocava precisamente em cima daquele posto de sentinela. Por isso, mesmo este posto era, em minha opinião, o mais sensível.

Num dos meus dias de Sargento da Guarda, nesse posto de sentinela, estava o soldado Rocha, possuidor de uma pequena estatura e algo nutrido que, talvez por esses factos, era mais conhecido entre os militares da companhia por Rochinha.

O Rochinha foi o primeiro soldado que, comigo, usou o intercomunicador daquele posto de sentinela. Pediu para ser substituído no posto. Quando lhe perguntei as razões do seu pedido, referiu que estava nervoso com a aproximação dos civis ao posto, e que não se sentia à vontade. Disse-lhe que não era razão para ser substituído, e que eu iria de imediato ter com ele e fazer-lhe companhia durante algum tempo. Para minha surpresa ele disse que ou era substituído ou que me iria arrepender.

Confesso que, para além da surpresa da resposta, fiquei bastante admirado com a mesma, por vir de um soldado que reputava de respeitador, e com quem tinha excelentes relações pessoais e militares. Claro que a ameaça em si não podia passar em branco, mas disso trataria depois.

De imediato saí do gabinete do Sargento da Guarda e não estranhei que alguns soldados estivessem com a arma a tiracolo, até porque o render dos sentinelas tinha sido feito ainda não havia muito tempo. Apenas se tinham passado escassos minutos da rendição, pelo que não fazia sentido nenhum que o Rochinha estivesse a pedir para ser substituído. Assim pensei.

Enquanto dava a volta para sair do jardim pelo portão de serviço e ir ao encontro do sentinela, aquilo que eu sempre temi aconteceu… Pummmm! Tiro de G3 e vinha do posto do Rochinha. O que teria acontecido? Meu Deus será que o Rochinha… não! Não queria acreditar o que o meu pensamento me dizia. Já não corria, voava. Ao chegar junto do posto de sentinela encontrei um soldado sorridente, calmo, bem disposto, bem… raios o partam, que por alguns minutos pensei que ele se tivesse suicidado.

Não lhe perguntei o que tinha acontecido. Disse-lhe que o ia substituir, que depois falaríamos. De imediato disse que não, que estava bem, pediu desculpa. Por essa é que eu não esperava. Regressei à Casa da Guarda.

Ali, à minha espera estava o Capitão, o Ajudante de Campo do General Spínola, a pedir explicações.

Contei-lhe a verdade sem nada omitir. Finda a minha explicação, ele disse-me para não esquecer de participar do soldado e de escrever no relatório a ocorrência.

Nunca tinha feito uma participação oficial, e não estava na disposição de o fazer ainda. Sentia que não podia estragar a vida inteira de um indivíduo por causa de um tiro maluco.

Foi com este pensamento que pedi ao capitão para dizer algo sobre este assunto.

Expliquei-lhe que uma Caderneta Militar suja complicava muito a vida daqueles que ficavam nos Açores, onde os trabalhos eram escassos, pois perdiam o acesso a cargos públicos tais como contínuos, jardineiros das Câmaras Municipais, cantoneiros das Obras Públicas, entre outros serviços. Para aqueles que emigravam tinham que pagar uma avultada quantia para limparem o seu cadastro, na medida em que os governos americano e canadense não aceitavam emigrantes com cadastro.

O capitão disse-me que esta ocorrência iria chegar aos ouvidos do Comando do AGRBIS e alguém teria que responder por isso. Se eu estava preparado. Respondi-lhe que era por isso mesmo que o estava informando da verdade dos factos, e que lhe pedia compreensão e ajuda.

Como muitas vezes o vira fazer, o capitão meteu as mãos nos bolsos, e assobiando uma canção qualquer caminhou em direcção ao Palácio. Após alguns passos voltou-se e disse:

- Vê lá se não volta a acontecer!

E voltou a acontecer.

O Cabo José Marcelino Sousa, meu colega de escola primária, entrou no gabinete do Sargento da Guarda sem eu lá estar e pegou na FBP para fazer o render da Guarda. Qualquer dos procedimentos era anti-regulamentar.

Quando reparei no que estava a acontecer, de imediato, dei-lhe ordem para colocar a arma no gabinete e usar a sua G3. Disse-lhe ainda que a arma era perigosa e que estava com o carregador cheio. Ele disse-me que sabia que a arma estava descarregada pois que me tinha visto fazer a inspecção à arma. E era verdade que ele tinha visto fazer a inspecção à arma. Era um procedimento que fazia sempre que entrava de serviço. Só que depois mudava os carregadores.

Nós, os sargentos da guarda, quando preparávamos a rendição da Guarda deixávamos sempre o carregador vazio na arma. Era da responsabilidade de cada um de nós preparar depois aquilo que entendíamos ser o melhor para o desempenho do nosso serviço.

O Cabo Sousa que já tinha a arma a tiracolo, ao tentar tirá-la para a ir colocar no gabinete, levou a mão à correia e… o tiro saíu direito à biqueira da bota. Por pouco não lhe furou o pé. Do mal o menos!

A correr apareceu o capitão. Antes que me fizesse qualquer pergunta, disse-lhe que não havia ninguém ferido. Confesso que pressenti no oficial um relaxar de alívio. De repente, ainda hoje não o sei se a sério se a brincar, perguntou:

- Este também vai para a América?. Ao que respondi:

- Exacto meu capitão! E não menti.

Abanando a cabeça, o capitão lá se foi em direcção ao palácio.

A 24 de Março de 1971 escrevia à minha madrinha de guerra o seginte:

“...aqui no palácio, de vez em quando, há preocupações em demasia; no entanto vai-se resolvendo tudo da melhor maneira. O pior são as situações que se tem que participar de um soldado, e isso é aborrecido, pois suja-se a caderneta do moço. Nesse aspecto tenho resolvido a coisa, e ainda não participei de nenhum. De qualquer forma uma vez será a primeira. Tenho vindo a fugir disso, mas parce-me que já não posso mais”.

Nunca mais soube do Rochinha depois do serviço militar.

Passados muitos anos soube a verdade do que aconteceu naquele dia.

Quando saí do gabinete e vi os soldados com arma a tiracolo, deduzi que a rendição tinha acabado de ser feita. Por isso mesmo não questionei o Cabo da Guarda. A verdade, é que o Cabo Sãozinho, devido ao cansaço de muitos dias sem descanso apropriado, tinha-se deixado adormecer e atrasara-se na rendição. Os soldados encobriram-no e o Rochinha também.

Neste caso, posso muito bem ter estado ao lado do tal espírito de corpo entre soldados que, muitas vezes, nem nos apercebíamos da sua existência.

O Cabo Sousa viveu alguns anos em Stoughton, MA. Entretanto, regressou à sua freguesia da Fazenda, Ilha das Flores, onde reside com a esposa.

Hoje, passados todos estes anos, ainda lembro a atitude deste capitão como uma das mais compreensíveis e saudáveis que me apraz registar. Para ele, onde quer que esteja, só me resta uma palavra: Obrigado!

José Câmara
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5259: Ser solidário (45): Falando do apoio americano aos seus Veteranos de Guerra (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 15 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5111: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (8): Guerras palacianas

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5111: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (8): Guerras palacianas

1. Mensagem de José Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 14 de Outubro de 2009:

Olá amigo Carlos,
Junto encontrarás mais um pedaço das minhas andanças pelo Palácio. Ali a guerra era diferente. Guardo muitas recordações daquelas imponentes instalações e daquilo que por lá passei.
Foram os pequenos nadas que me fizeram crescer como homem, e me ajudaram a preparar para os piores dias que a seguir chegariam.

Como sempre agradeço que faças os ajustamentos que entenderes necessário para bem do blogue.

Com votos de muita saúde para ti e para todos aqueles que fazem este blogue ser tão grande como o mundo.

Um abraço,
José Câmara


Guerras palacianas

Poucos de nós tivemos a oportunidade de servir, militarmente, no Palácio do Governador da Guiné. Ser Sargento da Guarda implicava muito mais que um servir de farda limpa e luvas brancas. Implicava muita responsabilidade, destreza, rapidez de movimentos e de pensamento, e de muita disciplina.

Nos corredores do Palácio, os Sargentos da Guarda eram surdos quando ouviam, cegos quando viam, e mudos quando tinham voz.

Em causa, para além da segurança do Governador, dos seus familiares e dos seus ajudantes, também estava a segurança daquela imponente instalação, símbolo do poder na Guiné.

Dentro daquelas instalações vivi momentos de angústia de mãos dadas com momentos de muita alegria.

Confesso que nem sempre foi fácil actuar no Palácio. Mas também é verdade que tive a oportunidade de fazer parte e apreciar factos e decisões que, de alguma forma, me fizeram acreditar que havia gente boa, justa e com capacidade de liderança.

Tentarei, dentro do possível, recordar alguns casos, entre muitos outros não menos importantes, que marcaram os meus dias no Palácio. Os casos seguintes, pela sua importância, são aqueles que melhor recordo ou escrevi algo sobre eles.


1 – A Feira de Bissau, a angústia da incerteza

A 19 de Março de 1971 escrevia, desta forma, à minha madrinha de Guerra:

Primeiramente vou dizer-te que a vida por aqui continua a ser a mesma; trabalhando com muita responsabilidade. Estou de folga mas não posso deixar o quartel. Nem eu nem ninguém, pois que entrámos de prevenção, ou se quiseres em estado de alerta. Pode haver um ataque neste próximo fim-de-semana que começa amanhã e que se prolongará até segunda-feira.

Esperamos que não aconteça nada, mas se assim não for, quando receberes esta carta já o saberás.

A razão de tudo isto é a Feira de Bissau. Está em exposição material de guerra apreendido aos turras, artigos das casas comerciais e da indústria, e ainda aspectos da lavoura.

Ontem como estive de serviço ao Palácio, aquilo ficou sob a minha responsabilidade, isto é, a segurança do Pavilhão das Forças Armadas.

Tive a oportunidade de ver tudo aquilo. É giro e é pena que exista guerra na Guiné. Não se pode gozar tudo o que há de bom por aqui que, diga-se em abono de verdade, não é muito, mas que se desenvolveria se acabasse a guerra.

Depois de amanhã volto para lá; vamos a ver se tudo corre bem
.

Bissau > Fevereiro de 1971 > José Câmara junto de uma papaieira no jardim do Palácio do Governador

A Feira teve lugar na Praça do Império. Nós, os sargentos da guarda, para além da segurança ao Palácio ainda ficamos com a responsabilidade da guarda e segurança do Pavilhão das Forças Armadas. Estavam expostas várias toneladas de material apreendido ao PAIG. Canhões sem recuo, metralhadoras, espingardas automáticas, granadas, morteiros, RPG’s, e material escolar faziam parte do espólio.

Milhares de pessoas passavam diariamente por aquele Pavilhão. A possibilidade de um ataque directo existia. Aliás fomos postos de sobreaviso. Vivi, naqueles dias, momentos de angústia e de incerteza. Tenho a certeza que os meus camaradas também passaram pelo mesmo. E tinha (mos) razões para isso.


A 24 de Março de 1971 escrevia o seguinte:

Falando da situação militar, infelizmente, tivemos cinco baixas durante a semana em toda a Guiné. Segundo os comunicado das Forças Armadas, as nossas tropas abateram 21 terroristas e apreenderams 14 toneladas de material.

Na Feira, de que falei na última carta, prenderam-se 3 terroristas armados… mas, sem barulhos. O demais vai decorrendo normalmente.

A situação da minha Companhia continua estacionária. isto é, não se sabe nada quanto à sua ida definitiva para o interior. Entretanto veio mais um Pelotão do mato e amanhã segue outro para lá
.

Segundo o que escrevi, é evidente que a apreensão dos três terroristas (era a linguagem que se usava ao tempo e seria descabido ser politicamente correcto neste escrito), foi feita sem grande alarido. Também é evidente que abordo o assunto muito superficialmente. Duas razões contribuíram para isso: sempre fui bastante comedido naquilo que escrevia para as coisas que me diziam respeito, e porque parte da minha responsabilidade como sargento da guarda era manter descrição sobre tudo aquilo que dizia respeito ao meu trabalho.


2 – Um Major de Cavalaria que perdeu o freio… ou como um capitão me protegeu

O acesso ao Palácio era feito pelo pórtico principal cuja guarda estava a cargo da Polícia Militar, e ainda pelo portão de serviço lateral também com guarda da Polícia Militar. Essas entradas, bem como os postos de sentinela ao fundo do jardim estavam providos de intercomunicadores ligados directamente ao gabinete do sargento da guarda.

Independentemente do posto de cada um, todas as forças de segurança, incluindo a Polícia Militar, a PSP e o tratador do cão-guarda, respondiam directamente ao sargento da guarda que, por sua vez, respondia ao Ajudante de Campo do Governador, na altura um capitão.

Todas as forças de segurança tinham ao seu dispor o calendário de regras a obedecer. Ao sargento da guarda correspondia lembrá-las diariamente e ter a certeza de que eram cumpridas à risca.

Entre as regras a cumprir escrupulosamente estava o acesso ao Palácio. Só entravam nas instalações, incluindo os jardins, as pessoas na posse de cartões passados pelos serviços de apoio ao Palácio. Pelo menos devia ser assim.

Os cartões tinham duas cores diferentes: o cartão verde dava acesso livre ao Palácio por parte do seu possuidor, depois de devidamente identificado quer por conhecimento próprio dos sentinelas ou de documento identificador com fotografia; o cartão amarelo (se bem me lembro era essa a cor) tinha as mesmas regras de identificação que o cartão verde, porém, os possuidores desse cartão tinham de ser acompanhados por uma praça da Guarda até ao sítio a visitar. Normalmente, o guarda era autorizado a ausentar-se a partir do momento em que os serviços de apoio tomavam contacto directo com o visitante.

Bissau > Fevereiro de 1971 – José Câmara no jardim do Palácio. Podem observar-se as belas moradias que circundavam o Jardim.

Num Domingo, pelo anoitecer, o presidente da Câmara Municipal de Bissau, um Major de Cavalaria, foi ao Palácio a pedido, segundo ele, do General Spínola. Ao chegar ao portão lateral, o sentinela de serviço reconheceu o Major. No cumprimento do seu dever, pediu-lhe o cartão de trânsito que o Major não tinha na sua posse.

Perante esse contratempo, o sentinela chamou-me através do intercomunicador, expondo o que se estava a passar. De imediato, dirigi-me ao portão lateral, onde me apercebi que o Major estava bastante alterado com o facto de ter sido impedido de entrar. Cumprimentei o Major após a identificação por conhecimento directo do sentinela. Expliquei-lhe o que se passava em relação ao cumprimento das regras de segurança, e que eu próprio o levaria até junto do nosso General, depois de consultar o gabinete de apoio.

Perante as minhas explicações, o Major teve uma reacção de todo inesperada, quando respondeu com as seguintes palavras:

- Ouça furriel, eu nunca teria a coragem de passar por cima das ordens de um sargento da guarda ou de um merda da Polícia Militar.

Não foram as palavras que me ofenderam. Foi a forma como foram proferidas. No semblante do Major percebi um sorriso de escárnio, depreciativo.

Reagi ao insulto. Passei à situação de sentido. As minhas palavras saíram secas, cortantes, e foram sensivelmente estas:

- V. Exa. com as suas palavras, desautorizou-se a entrar neste Palácio sem o seu cartão de acesso. Este Soldado, este merda como lhe chamou, não esqueça é um sentinela. Cumpre ordens. Quanto a este furriel e sargento da guarda que aqui está, tenho a certeza que preferia não sê-lo. Boa Noite!

Para o Polícia Militar disse:

- Sentinela, o nosso Major não entra aqui sem o seu cartão de acesso.

Uma continência ao Major, um passo à retaguarda, meia-volta e... dou de caras com um alferes dos serviços de apoio ao Palácio, e que estava, precisamente, à espera do Major. Tinha presenciado parte do drama e ouvido o final da conversa. Abanou a cabeça e disse-me:

- Estás à pega. Sabes o que te vai acontecer?!

Pedi para o acompanhar até ao gabinete de apoio. Lá estava o capitão, o Ajudante de Campo do General, e a quem contei o sucedido e que foi, de imediato, corroborado pelo alferes. O capitão veio até junto de mim, pôs um braço por cima dos meus ombros e deu-me um pequeno aperto de camaradagem, de amizade. Tal qual o meu pai me fizera muitas vezes.

Naquele gesto senti que estava protegido.

Mesmo assim guardei, durante muito tempo, um pequeno relatório sobre este incidente. Tinha que estar preparado para qualquer acção disciplinar. Que nunca aconteceu!

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (7): Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5030: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (7): Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam

1. Mensagem de José da Câmara (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Setembro de 2009:

Olá Carlos,
Junto encontrarás mais uma página das minhas memórias.
Como sempre faz aquilo que entenderes por bem.

Um abraço amigo com votos de muita saúde para ti e para toda a tabanca.
José Câmara


Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam

Acabada a cerimónia de recepção às forças agora chegadas à Guiné, o Comandante da CCaç 3327, Cap Mil Rogério Rebocho Alves, reuniu com todos os graduados. Nessa reunião ficámos a saber que um GCOMB iria de imediato para o destacamento de Dungal, o qual seria rendido de quinzenalmente. Para além do Grupo de Combate, uma Secção foi reforçar o destacamento de Nhacra. O objectivo era adaptar a Companhia ao mato da Guiné. Os outros dois GCOMBS e duas Secções ficariam em Bissau, tendo como principal missão a segurança de algumas instalações militares, o patrulhamento dos bairros de Bissau, das tabancas e zonas limítrofes da cidade, e os serviços próprios de qualquer quartel. A tudo isso se juntava a Guarda de Honra que, semanalmente, se fazia no cemitério na exumação dos nossos camaradas caídos pelos diferentes pedaços da Guiné. Traumatizante demais para os soldados da minha Companhia. Antes da sua guerra já tinham contacto com a morte.

As instalações, cuja segurança militar ficariam à guarda e responsabilidade da CCaç 3327, eram as seguintes:

1 – Palácio do Governador da Guiné
2 – Quartel da Amura
3 – Instalações da Rádio
4 – Hospital Militar 241
5 – O Laboratório

Naquela reunião, o Comandante da Companhia solicitou três voluntários para chefiarem os serviços da Guarda ao Palácio do Governador. Ninguém se ofereceu para este trabalho, aparentemente fácil, mas de uma grande responsabilidade. Assim, a escolha do próprio Comandante recaiu no Fur Mil de Operações Especiais, Carlos Alberto R. P. da Costa, no Fur Mil de Armas Pesadas Manuel Lopes Daniel e em mim. Nós, os indigitados para o serviço ao Palácio do Governador, ficámos ainda com a responsabilidade de fazermos um serviço de Sargento de Dia, na rotação normal, que acontecia de oito em oito dias.

O trabalho em Bissau era intenso, embora não oferecesse os perigos que o mato escondia. Para se ter uma ideia daquela intensidade, ao fim de trinta e sete dias de Guiné ainda foram encontrados três soldados sem um dia de folga. A intensidade do trabalho aliado à disciplina imposta pelo Comandante do AGRBIS transformou esta estadia em Bissau num autêntico pesadelo.

Nesta contenda inglória que foi a nossa guerra em Bissau, os únicos felizardos fomos nós, os Sargentos da Guarda ao Palácio. O nosso trabalho era, comparativamente com o trabalho dos nossos camaradas, bastante mais suave. Mesmo assim, um dos meus camaradas de serviço ao Palácio, não se livrou do castigo à ordem. O furriel viu-se obrigado a participar de um soldado adido à nossa Companhia, na altura sob o seu comando, que se ausentou do seu posto de serviço, sem a devida autorização ou substituição. Na sua primeira e única participação que fez, o furriel não indicou o artigo do RDM infringido e esse lapso foi o suficiente para que fosse castigado com cinco dias de detenção. O soldado foi punido com vinte dias de prisão.

Entrámos de imediato ao serviço (28 de Janeiro de 1971) ao Palácio, embora, os primeiros dias fossem apenas de sobreposição e sem qualquer responsabilidade da nossa parte. Tomámos o primeiro contacto com aquilo que seria a nossa responsabilidade. A nossa missão principal seria, sem dúvida, a segurança diária do Palácio, e, todo o aparato que englobava o içar da bandeira e o render da guarda ao Domingo. Nas tarefas diárias e no Render da Guarda a colaboração dos cabos e dos soldados era fundamental. O seu aprumo, destreza e rapidez em todos os processos envolvidos eram primordiais para o sucesso da missão. Acrescento, com algum orgulho, que os soldados da minha Companhia estiveram à altura da missão.

A guarda ao Palácio englobava as seguintes forças essenciais:

a) - Uma Secção de tropa regular, comandada por um Sargento da Guarda, que tinha a seu cargo os postos de sentinela ao fundo do jardim e ainda um posto de sentinela ao lado direito do jardim. A segurança era feita durante o dia do lado de fora do jardim. Com o render dos postos de sentinela às seis horas da tarde a segurança passava a ser feita do lado de dentro dos muros.
b) - Uma Secção da Polícia Militar, incluindo um sargento e um oficial, que tinha a seu cargo o pórtico principal do Palácio e o portão lateral de serviço geral.
c) - Durante a noite, entre as dezoito e as seis horas, a segurança era reforçada com um elemento da Polícia de Segurança Pública, que ficava encarregado do espaço entre a casa da guarda e do pessoal civil servente do Palácio e o edifício principal.
d) - Também durante a noite, a segurança era ainda reforçada com um cão treinado em segurança e respectivo tratador, na altura um pára-quedista, que tinha a seu cargo o patrulhamento do interior do jardim


Com a devida vénia ao autor da fotografia. Vista aérea de Bissau sendo bem visível o complexo do Palácio. 1 – Casa da Guarda 2 – Casa da Polícia Militar

Toda a responsabilidade da segurança recaía nos ombros do sargento da guarda. Cabia-lhe a implementação das regras estabelecidas. Mantinha em ordem todo o material de guerra à sua disposição: metralhadoras, munições e granadas de mão. Era responsável por encaminhar todas as mensagens chegadas via CTT, conforme o seu grau de segurança. Respondia directamente ao Oficial Ajudante de Campo do Governador sobre qualquer assunto de segurança julgado pertinente. Elaborava e assinava o seu relatório de serviço que era entregue no Comando do AGRBIS logo após a sua chegada a este complexo militar.

Durante cerca de dois meses, essa foi parte do meu trabalho, esta foi a minha Guerra em Bissau. Mantive, sempre, óptimas relações com todas as forças de segurança, incluindo os oficiais da Polícia Militar, que nunca me regatearam a sua compreensão. Encontrei no Ajudante de Campo do Governador, na altura um capitão, muito mais que um militar. Nesse oficial encontrei alguém que compreendia que nós, militares obrigados ao serviço, éramos pessoas que cometíamos erros, que falhávamos, mas que também tínhamos qualidades humanas a respeitar.

Fev71 - O Fur Mil José Câmara, Sargento da Guarda, no interior do jardim do Palácio do Governador da Guiné

Devo confessar que as boas manobras militares sempre me fascinaram. A organização, a ordem, a unidade, a beleza do movimento são, essencialmente, a base desse fascínio. Ainda hoje isso acontece.

Em Bissau, em frente ao Palácio do Governador, iria ter a oportunidade de ver essas manobras ao mais alto nível, e, eventualmente, participar nelas, quiçá a pior parte. A responsabilidade era grande, pois milhares de pessoas observavam, ao pormenor, essas manobras na praça do Império e o desfile das tropas na Avenida da República.

No Domingo de manhã acontecia ronco grande em Bissau

O atavio militar das Praças da Guarda era o fardamento n.º 2, com cordões brancos nas botas, tendo como armamento a G3. O Sargento da Guarda também vestia o fardamento n.º 2, com luvas brancas e cordões das botas da mesma cor. O seu armamento era a FBP. Durante a cerimónia o carregador na arma estava vazio. Em verdade se diga, os carregadores que estavam nas cartucheiras estavam devidamente carregados.

Postal da época da Guerra na Guiné - Aspecto do Render da Guarda

Para além das Praças da Guarda, as Forças em Parada eram, normalmente, as seguintes: dois Grupos de Combate reduzidos, nesta nossa participação, da CCaç 3327, com fardamento n.º 2 e G3, um Pelotão da Polícia Militar em camuflado e G3, e um Grupo do Destacamento de Fuzileiros Navais em fardamento branco e G3. Os Leopardos (se a memória não me falha essa era a sua sigla e sujeito a correcção) de Bissau, com os seus inconfundíveis turbantes vermelhos, eram a Banda Militar que nos acompanhavam nestas cerimónias.

Após o içar da bandeira e o render da Guarda, as forças desfilavam pela Avenida da República indo destroçar junto ao Quartel da Amura.

Postal da época da Guerra na Guiné – A excelente Banda Militar de Bissau

Nunca poderei esquecer a atenção e o respeito que os guineenses demonstravam nestas cerimónias. Novos e velhos, homens e mulheres seguiam com muita atenção todos os pormenores do içar da bandeira e do Render da Guarda. Vi muitos deles saudar com continência a Bandeira que subia no mastro, e senti o calor de milhares de palmas quando as nossas tropas acabavam as manobras em frente ao Palácio e desfilavam pela Avenida da República. Nestas ocasiões, devo confessar, não sentia que os guineenses procuravam a sua independência. Quanto muito desejavam a paz, a mesma paz que nós procurávamos. Nós éramos a sua esperança.

Foi essa atenção, respeito e calor humano que eu senti das populações da Guiné, num simples içar de uma Bandeira Nacional e de um desfile militar, que começaram a despertar em mim o amor por aquela terra mártir e a sua gente que, ainda hoje, perdura e... perturba.

José Câmara
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4935: Os Nossos Enfermeiros (4): Valioso trabalho desenvolvido pelo Fur Mil Enf Rui Esteves (CCAÇ 3327) e a sua equipa (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4906: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (6): AGRBIS, um inferno no meio da guerra

domingo, 6 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4906: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (6): AGRBIS, um inferno no meio da guerra

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, com data de 3 de Setembro de 2009:

Olá Carlos,
Depois de umas maravilhosas férias pelos Açores, cá estou com mais uma uma achega para a minha história.

Para minha surpresa encontrei, no fundo de uma caixa com coisas que há muitos anos tinhamos guardado, alguma da correspondência que então mantive com a minha madrinha de guerra, e que hoje é a minha esposa. Estava convencido que tinha queimado toda a nossa correspondência à muitos anos.
Quando lhe perguntei o que tinha acontecido, ela apenas respondeu que não tinha tido a coragem de se desembaraçar de algo que lhe era muito querido.
Parte dessa correspondência vem avivar alguns dos factos que aos poucos se íam perdendo na neblina da memória.

Haja saúde para todos.

Um abraço do tamanho do oceano,
José Câmara


AGRBIS, Um Inferno no Meio da Guerra

Grande surpresa!


Tão longe que estava de encontrar muito da correspondência que mantive com a minha Madrinha de Guerra, hoje minha esposa, ao longo da minha comissão de serviço na Guiné. Acidentalmente, encontrei o seu (nosso) tesouro, do qual manteve absoluto sigilo durante todos estes anos. Pensava que as cinzas tinham tomado conta desse espólio.

Ao reler muito do que então escrevi, as memórias avivaram-se, e darão outra tonalidade àquilo que irei escrevendo. É certo que sempre fui parco em palavras, e aprofundava muito pouco sobre o que se passava comigo. Era uma forma de estar na vida.

Na última parte que escrevi afirmava que as paupérrimas instalações de alojamento, a falta de correspondência e a dureza da disciplina estavam entre as condições que mais afectavam os militares da minha Companhia. Pouco me alonguei sobre o assunto na medida em que, ao fim de tantos anos, alguns factos foram-se perdendo na neblina da memória.

Acontece que agora posso aprofundar um pouco mais sobre o que foram os primeiros dias na Guiné. Vou servir-me exactamente daquilo que então escrevi, suprimindo aquilo que me parece supérfluo para aqui.

José Câmara nas traseiras do AGRBIS

Foto e legenda: © José da Câmara (2009). Direitos reservados.



Aerograma de 28 de Janeiro de 1971:

A minha Companhia desembarcou ontem cerca das nove horas da manhã. Pelas três horas da tarde houve formatura geral, com as demais forças desembarcadas. Tivemos a recepção oficial com a presença do próprio Governador e Comandante-Chefe General Spínola. A cerimónia foi de estarrecer, sobretudo, pela quantidade de desmaios. O calor era tremendo. Demorou até ao escurecer. Só depois fomos para os nossos alojamentos. Estes são incríveis.

Dorme-se em barracas de lona, com 5 camas para onze homens. As camas insufladas, também em lona, são muito semelhantes àquelas que levamos para a praia.

As noites são frias. Não há cobertores, pelo que nos vemos obrigados a dormir com a farda durante a noite. Em contrapartida os dias são quentíssimos e os corpos suam como torneiras a pingar.

Quanto à comida… ainda não a provei. Desde que desembarcámos temos estado a ração de combate.

A disciplina também é muita pesada, muito mais dura que no Continente ou nos Açores.

Miserável, mas verdadeiro!

Quanto à população, é difícil entender o que diz. Interessante mesmo foi a aproximação de um preto que me pediu para o ensinar a tirar a 4.ª classe.

Estas são as minhas primeiras impressões da Guiné.


A correspondência, ou melhor, a falta de correspondência foi outro problema que enfrentámos.

Para recebermos a primeira correspondência, a solução foi pedir autorização ao Comandante da Companhia Cap Mil Rogério Rebocho Alves para deixar-me ir a Bissalanca ao SPM. Com alguma reserva, ele autorizou-me, desde que eu mantivesse sigilo sobre a autorização. E era fácil de compreender. A Companhia não tinha viaturas distribuídas, pelo que teria que ir à boleia ou a pé. Em qualquer dos casos eu assumiria as consequências do que eventualmente pudesse acontecer.

Verdade seja dita que, sendo açoriano, sempre tive algum espírito aventureiro. Fiz-me ao caminho na companhia do soldado José Francisco Serpa, florense como eu, homem da minha confiança, e a quem atempadamente pus ao corrente da situação. Este soldado era um dos que mais sofria com a falta de correspondência. Para além de ser muitíssimo chegado à família, andava muito preocupado com a sorte de dois irmãos gémeos que estavam a entrar para o serviço militar. Tinham metido requerimento para amparo mas ainda não tinham obtido resposta, portanto, preocupações acrescidas para ele, não fossem todos a virem a encontrar-se no Ultramar. Por ironia do destino, foi o que veio a acontecer, dois na Guiné e um foi para Timor.

Escusado será dizer que o nosso regresso a Brá, carregados com os sacos de correspondência, foi recebido com extrema alegria por todos e alguma admiração. Tudo tinha sido mantido em segredo. Poderia acrescentar, sem medo de errar, que os soldados da minha Companhia me passaram a ver como sendo um homem de bom coração.

A alegria que eu vi estampada naqueles rostos de bebés está entre as melhores recordações que guardo da Guiné.

A minha outra recompensa foi o facto de também ter recebido a primeira carta da minha Madrinha da Guerra em terras da Guiné. Respondi-lhe assim:

Carta de 10 de Fevereiro de 1971:

Recebi a tua carta. E com ela a vontade firme em ajudares-me; acredita-me que a carta é o melhor remédio para quem, longe, anseia pela palavra de uma pessoa amiga. A carta é, para mim, alegria, dor, saudade, angústia, prazer, amor, vontade de viver. Sim, a carta é tudo isso. Ajuda a fazer desaparecer os tormentos e as angústias do dia-a-dia. É lida a correr porque o tempo voa nesse instante de leitura. A carta fala, comunica. Vem ao encontro de outra que se presta para partir. Juntam-se e animam-se.
Depois… fica a certeza de que alguém reza pela nossa protecção, nos anima, nos acarinha.


Carta de 25 de Fevereiro de 1971

Já se passaram quinze dias desde que recebi a última carta. E dos meus pais também não recebi. Até parecem combinados.

Estas duas cartas que eu escrevi exemplificam as dificuldades que nós, açorianos, tínhamos em receber correspondência. Esse aspecto agudizava-se muito mais para aqueles que eram oriundos das ilhas das Flores e Corvo, onde, no Inverno, os barcos apenas lá iam uma vez por mês caso o mar e as condições atmosféricas o permitissem. Ainda em outros casos, como o meu, tínhamos os nossos familiares emigrados nos Estados Unidos da América ou Canadá. As distâncias eram, de facto, muito grandes naqueles tempos.

A disciplina, melhor dizendo, o uso e abuso do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) martirizou e condicionou a CCaç 3327 para toda a comissão. Muitos furriéis foram decapitados da sua autoridade moral pelas punições sofridas. Ficaram-se, em parte, pela autoridade militar, forma triste de comandar tropas em qualquer cenário militar e, muito particularmente, num cenário de guerra. Acrescento que todos estes furriéis eram militares competentes, e que as punições só aconteceram porque a comandar o AGRBIS estava um militar que desconhecia, por completo, que por detrás de cada farda estava um ser humano.

Era comandante do AGRBIS o Coronel Santos Costa, o célebre Onze, e a quem me referi em escrito anterior.

Para que se tenha uma ideia do que então aconteceu, aqui fica um sumário das punições:

1 Furriel Mil com 15 dias de detenção,
1 Furriel Mil com 10 dias de detenção
2 Furriéis Mil com 5 dias de detenção cada
1 Furriel Mil com 2 dias de detenção
2 Cabos com 5 dias de prisão cada
2 Soldados com 10 dias de prisão cada
2 Soldados com 5 dias de prisão cada

Carta de 1 de Abril de 1971

Há 72 horas que me encontro de serviço. O trabalho tem decorrido normalmente. Cansativo e aborrecido como sempre.
Ontem, a coisa esteve feia. Estive de Sargento de Dia à minha Companhia. Todos os soldados presentes no refetório tentaram fazer um levantamento de rancho. O Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, obrigou-me a participar de todos os soldados da minha Companhia que não quiseram comer. Ao todo foram vinte e sete (27) participações. Podes calcular como estou, até porque os soldados tinham razão: a comida não se levava de maneira nenhuma.


Quando entreguei as participações ao Comandante da minha Companhia, pedi-lhe que não desse seguimento disciplinar até ao limite permitido pelo RDM que, se a memória não me falha, era de 30 dias, pois era minha intenção retirar as participações. Nessa altura já sabíamos que a Companhia iria seguir para o interior no dia 6 de Abril. Foi assim que vinte e sete (27) soldados escaparam a uma punição, no mínimo, de cinco dias de detenção cada um.

Recentemente tive a ousadia de pedir a um dos furriéis punidos se ainda se lembrava dos motivos da sua punição. Esta é a resposta que me deu por Email:

O castigo que tu referes foi dado num dia que eu estava de Sargento de Dia. Eu já tinha pedido licença ao Oficial de Dia para o pessoal ficar à vontade e caminhar para o refeitório. Quando já estava quase metade da Companhia dentro do mesmo, apareceu o Comandante e procurou quem era o Sargento de Dia e mandou chamar-me. Fui ter com ele. Perguntou se não o tinha visto. Eu disse que não. Voltou-se para mim e disse:

- Os soldados que vão ficar à tua ordem vão morrer todos! (e disse ainda mais alguma coisa que já não me lembro). Parece que isso aconteceu quando estávamos adidos a um batalhão no Agrbis. Vê se te recordas...
O furriel em causa foi punido com dois dias de detenção pelo simples facto de não ter visto o tal Onze. Como não viu não cumprimentou. Levou com a porrada na mesma.

Assim se praticava a (in)justiça no AGRBIS

José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4730: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (5): Os primeiros passos na Guiné

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4730: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (5): Os primeiros passos na Guiné

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 17 de Julho de 2009:

Olá amigo Carlos,
Junto encontrarás mais um pouco da minha história.
Se vires que algo possa ser ofensivo para alguém agradeço que faças o óbvio: dá-lhe o nó que eu até agradeço.
Com votos de muita saúde para esses lados do Atlântico.

Um abraço amigo,
José Câmara


Os primeiros passos na Guiné

A Companhia de Caçadores 3327 quando chegou à Guiné já tinha o seu IAO feito e sabia-se que a mesma iria ficar em Bissau durante algum tempo. Como não ia substituir nenhuma Companhia, não lhe foi dado qualquer treino operacional.

A Companhia passou as primeiras três semanas no Depósito de Adidos em Brá, tendo depois mudado para o AGRBIS onde permaneceu até ao dia 6 de Abril de 1971.
Estes dois meses revelaram-se como estando entre os piores momentos de toda a comissão.

AGRBIS > O arame farpado, as bananeiras , as papaeiras e o barro vermelho.

A adaptação ao calor da Guiné tornava-se muito difícil a que não era alheio o facto de estarmos instalados em barracas de campanha. Para quem fazia serviço de noite era impossível descançar de dia dentro das barracas. Assim cada um procurava um sítio que lhe permitisse algum descanço, missão quase impossível num local barrento e sem arvoredo.

A mudança para o AGRBIS com instalações muito boas para a época vieram minimizar as condições salubres e de alimentação. Em contrapartida a Companhia teve que enfrentar no austero Coronel Santos Costa (?), Comandante do AGRBIS e a quem tinham apelidado de O Onze, uma disciplina que ultrapassava em muito aquilo que era razoável e normal. O Coronel usou e abusou do RDM e transformou uma Companhia disciplinada num autêntico desastre, históricamente falando. Foi pena!

AGRBIS > Tanques de água

Outro factor que contribuiu para o mal estar da Companhia em Bissau, em príncipio, foi a falta de correspondência. Como afirmei anteriormente a Companhia teve o seu embarque marcado para o dia 5 de Janeiro, mas só veio a verificar-se a 21 do mesmo mês. Entretanto os militares foram avisados para informarem os familiares e aqueles com quem mantinham correspondência que a deviam mandar para o SPM da Companhia. Infelizmente o sistema do Serviço Postal Militar não foi devidamente informado de que a Companhia ficaria no DA, e a correspondência acabou por ficar congelada em Bissalanca durante algum tempo.

AGRBIS > Mensagem visiual diária da guerra – Helis a grande altitude em direçãao ao sul

Foi durante a estada no DA que teve lugar a cerimónia de boas-vindas pelo então Comandante-Chefe General Spínola. Não o conhecia! O seu discurso foi empolgante e trouxe, ao menos para mim, uma faceta nova a tudo aquilo que me tinham ensinado na Recruta e Especialidade. A guerra não poderia ser ganha se não conquistássemos a população e não a tivéssemos connosco. Isso só poderia ser obtido com respeito pelo ser humano, pelos suas tradições, pela sua forma de estar. Era, julgo eu, a base essencial da sua estratégia para UMA GUINÉ MELHOR!

A seguir às cerimónias o General teve uma reunião com todos os graduados das Forças que agora começavam a sua comissão. Mais uma vez o General no seu estilo militarista peculiar alertou para os perigos que iriamos enfrentar, e exortou-nos a respeitar os nativos, e a fazer da Guiné um pedaço de terra do qual todos nós nos pudessemos orgulhar no futuro.

Durante a sua alocução falou-nos da importância que era reservada aos diferentes postos de comando, e referiu-se especialmente aos Primeiros Sargentos das Companhias, equiparando-os às nossas mães, arrancando assim uma gargalhada geral. O General até conseguiu rir-se com as suas próprias palavras.

Confesso que mais tarde acabei por perceber o que ele então nos quiz dizer.

Foi nessa altura que o Capitão Parracho, comandante da Companhia de Caçadores 3325 entrou, tendo sido de imediato interpelado pelo General na sua falta de comparência ao príncipio da reunião. O Capitão, com o àvontade próprio de alguma experiência, respondeu que estivera a prepar as coisas necessárias à sua Companhia que iria seguir para o mato nessa noite. No meio da gargalhada e da boa disposição do momento, as palavras do Capitão tiveram o efeito de uma lufada de ar gelado. Sabíamos que o destino da sua Companhia era Guileje.

Finda a audiência entrámos nas despediadas normais daquelas ocasiões. Cada um seguiria, a partir de agora, o seu próprio destino. A madeirense 3325 ia para Guilege. A açoriana 3326 ia para Mampatá, a 3327, a minha Companhia, ficava em Bissau e a 3328 ia para Bula.

Nessa despedida estava o meu bom amigo Fur Mil Bernardino Val da CCaç 3325. Era natural da área de Viseu. Tínhamos sido camaradas de Pelotão na Recruta, marchámos lado a lado e as nossas tarimbas também eram lado a lado. Na Especialidade foi voluntário para o Curso de Comandos, o seu sonho. Acabaria tirando o Curso de Minas e Armadilhas. Encontrámo-nos no Funchal, e mais tarde em Santa Margarida. Viajámos juntos até à Guiné.

Primeiro Turno 1970 - O Instruendo Bernardino Val em Tavira. Fur Mil da CCaç 3325.

No abraço de despedida ficou a última vez que nos veríamos. O Val não voltaria.

José Câmara
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4621: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (4): A viagem até à Guiné

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4621: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (4): A viagem até à Guiné

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73 (*), com data de 29 de Junho de 2009:

Olá Carlos,
Junto encontrarás mais um bocadinho da história. Faz com ela o que nuito bem entenderes.

Com votos de muita saúde e um abraço amigo
José Câmara


A Viagem até à Guiné

Enquanto o Paquete Angra do Heroísmo sulcava os mares encapelados do Atlântico, resolvi passar pelos porões. Para mim, era uma forma simples de humanizar o meu dever: estar ao lado daqueles que mais precisavam de ajuda, fosse ela física ou emocional. Sabia por experiência própria que, em ocasiões como esta, uma palavra anímica é como bálsamo para a alma.

Infelizmente, deparei com os primeiros enjoos. Os soldados mais afoitos e dados ao mar ajudavam como podiam aqueles que mais necessitavam. Perante tal visão, o meu pobre estômago resolveu dar o primeiro sinal de alerta, e obrigou-me a recolher ao meu camarote. Embalado pelas ondas alterosas afundei-me, cada vez mais, nos delírios da mareação. Perdi, na neblina da memória, o tempo passado nesse estado horroroso de nada poder e nada querer. Assim foi, até que alguém descortinou terra. Eram as ilhas Canárias!

A partir daí, o mar como que envergonhado do que nos fizera sofrer, amansou os seus capelos e, como cordeiro manso, resolveu deixar-nos em paz. Já não era sem tempo.

Navio "Angra do Heroísmo".
Foto retirada do site
Navios no Sapo, com a devida vénia

O Angra do Heroísmo, esse sim, continuava a sua viagem, indiferente ao que se passava à sua volta e à carga que transportava. Mais uma noite e um dia, e ainda outra noite, mas que importa isso?! – pois chegaríamos a bom porto.

Até que…

Lá longe, muito longe, no pego, era possível ver-se uma linha azulada que confundia o mar e o espaço. De repente, sem saber de onde, apareceu uma fragata navegando majestosamente entre o Angra e a tal nuvem que, agora, bem podia ver-se - era terra Africana, de seu nome Guiné.

Em alto mar ainda, vindos de terra, subiram a bordo, o piloto do porto e ainda alguns fuzileiros navais. Era o primeiro contacto com homens da Guerra. Jamais poderei esquecer a visão dos seus camuflados, as G3 e as cartucheiras. Ali, à minha frente, estava a realidade daquilo que seria a minha vida nos próximos dois anos.

Finalmente, o Angra do Heroísmo, talvez cansado da viagem, lançou ferro no Porto de Bissau. Era então o dia 26 de Janeiro de 1971. Por incrível que pareça, pernoitaríamos mais uma noite a bordo. O quartel de Adidos em Brá não estava minimamente preparado para receber as tropas que agora chegavam ao teatro da Guerra.

Esta última noite, a bordo do Angra do Heroísmo, foi diferente. De longe, dali e dacolá, chegavam os sons de tiros de artilharia e de explosões. O rio Geba, indeferente ao que se passava à sua volta, parecia dormir profundamente. Melhor dizendo, a sua calma profunda parecia gozar com o espírito receoso dos periquitos que tentavam desvendar os mistérios da noite guineeense para além da escuridão.

No dia seguinte, ao desembarcar, olhei o Angra uma vez mais. Com alguma emoção. Estava longe de imaginar que seria a última que o via

A CCaç 3327 era, principescamente, instalada em tendas de campanha no aquartelamento de Adidos em Brá.

José Câmara

As tendas de campanha em Brá, onde a CCaç 3327 ficou alojada.
José Câmara é o quinto a partir da direita na linha de trás.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4577: O mundo é pequeno e o nosso Blogue... é grande (13): Encontro de dois atabancados em terras da América (José da Câmara)

Vd. último poste da série de 8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4480: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (3): Partida para a Guiné

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4480: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (3): Partida para a Guiné

1. Mensagem de José Câmara (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 6 de Junho de 2009:

Assunto: Memórias e histórias minhas (**)

Olá Carlos,
Junto encontrarás mais um pouco da história. Como sempre, para bem do blog, faz com ela o que muito bem entenderes.

Daqui do outro lado do oceano, um abraço amigo
José Câmara


Partida para a Guiné

Ali, em frente dos meus olhos, estava o n/m Angra do Heroísmo. Muitas vezes o vira ao largo da cidade da Horta. Em desafio ao povo faialense nunca amarrara à doca. Entrar nele só mesmo aqueles que fizeram viagem. E era isso que eu ía fazer: uma viagem que não tinha requisitado. Tal como todos os outros militares que iriam encher os seus camarotes e porões.

O Angra do Heroísmo, no Cais de Alcantra, em Lisboa, espera que os seus porões se encham de militares com destino à Guiné

Foto: © Juvenal Afonso (2009). Direitos reservados.


Da vistoria ao navio fiquei com uma sensação amarga que, ainda hoje, perdura: a visão dos porões preparados para cargas de toda a espécie, e que agora serviriam para o transporte de carga humana. Tinham sido limpos, mas continuavam mal cheirosos e a ventilação era paupérrima. Aqueles porões iriam servir de camarata a tropas que dariam o melhor de si mesmas nas matas e bolanhas da Guiné.

Nos Açores, vezes sem conta, tinha visto as vacas serem embarcadas e arrumadas nos porões dos barcos que, ao tempo, demandavam as terras açorianas. Agora, em plena Lisboa, apercebia-me que os nossos soldados iriam ter idêntico tratamento, e serem, assim, reduzidos à condição animalesca.

A bestialidade e baixeza de instintos das chefias militares e dos responsáveis pela governação no Portugal de então, estavam ali, na visão daqueles porões. Muito baixo tinham descido no conceito e respeito pela pessoa, pelo militar, pelo cidadão e pelo mártir da Pátria. A prova estava ali. Para ser vista e sentida pelos cerca de seiscentos militares que faziam parte daquela viagem. Uma situação que foi vivida e sentida por muitos outros, antes e depois de nós.

Pelas 8:00 horas da manhã, do dia 21 de Janeiro de 1971, começaram a chegar as primeiras tropas. Sem desfiles e sem discursos de ocasião o embarque foi acontecendo. Pouca gente a observar este embarque. Sem grandes despediadas. Compreensível. A maioria do contingente militar era formado por açorianos e madeirenses. Aqui e ali um outro lenço abanava. Pelos militares continentais que faziam parte dessas Companhias e pelos militares de um Pelotão de Artilharia. Um grupo de cães e respectivos tratadores também faziam parte do contingente.

Cerca das 13:00 o navio começou a afastar-se da doca. Aos poucos foi descendo o Tejo, rumo ao Atlântico, cujas águas encapeladas provocadas pelo tempo invernoso que então se fazia sentir, deixava antever uma viagem pouco agradável. Como se isso fosse possível naquelas circunstáncias. Para trás ficava a linda Lisboa. Por todos um aceno de esperança. Para alguns o seu último adeus!

O silêncio entre os militares era tão cortante como o frio que então se fazia sentir, aqui e ali quebrado pelas rajadas do vento forte que fazia, e pelo navio a cortar as águas do estuário do Tejo. Cada um embrenhado nos seus pensamentos.

O dia tinha sido longo e a noite já ía avançada. As emoções tinham sido muitas. Restava-me mais uma: o dia da minha partida para a Guiné coincidia com o dia de aniversário natalício de minha mãe. No meu pensamento e no meu coração dei-lhe os parabéns.

Naquele momento a escuridão da noite era a luz do vazio que me ia na alma.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4424: (Ex)citações (30): O meu pai só aprendeu as letras que o trabalho lhe ensinou (José da Câmara)

(**) Vd. último poste da série de 27 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4421: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (2): O IAO em Santa Margarida

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4421: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (2): O IAO em Santa Margarida

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Maio de 2009:

Olá Carlos,
Em anexo encontrarás a continuação da minha experiência militar.
Como sempre deixo-te à vontade para fazeres com ela o que muito bem de aprouver.
Um abraço do
José Câmara


Memórias e histórias minhas

2 - O IAO em Santa Margarida

Três apitos! Saudação tradicional de despedida dos barcos que aproavam à Ilha das Flores. A âncora começou a subir na proa do n/m Ponta Delgada. Extremeci. O coração apertou… de ternura! Por uma lágrima que quisera saborear. Comigo, bem escondido no meu coração, levava uma linda recordação.

Olhei a minha ilha uma vez mais. Relutantemente, as costas lhe fui virando…

Um aspecto da linda ilha das Flores, Açores

Juntei-me aos outros camaradas oriundos das ilhas das Flores e Corvo que, tal como eu, estavam mobilizados, e íam juntar-se às suas Companhias, incluindo a CCaç 3327. Na chegada à Terceira, um piquete militar esperava por nós. Guias de marcha em ordem, passagens confirmadas. De repente, sem esperar, o som inconfundível de calcanhares à posição de sentido. O Aspirante de serviço, com a dignidade própria de um camarada de armas, estendeu a mão num cumprimento, desejou-nos boa sorte. Jamais esqueci esse gesto simples, mas cheio de um sigificado muito especial. Afinal eramos todos irmãos.

Ao largo, majestosamente boiando na baía de Angra, o luxuoso paquete Funchal esperava por nós. Esse navio, no seu giro tradicional, passaria pela Horta, Ponta Delgada, Funchal e Lisboa. Aqui, em perfeito contraste com o que se tinha passado na Terceira, não havia piquete, estafeta ou qualquer outro tipo de apoio militar. De malas às costas lá segui com os outros militares que me acompanhavam para o Depósito Geral de Adidos. Ali deparei com outro desastre, ou melhor, com uma afronta: não sabiam da chegada dos militares, mas sabiam que íamos para Santa Margarida no dia seguinte. Desenrasquem-se, foi a palavra de ordem. Foi isso que se fez, até à hora de tomar o combóio, no dia seguinte para Santa Margarida.

12/1970 – José Câmara a bordo do n/m Funchal, em frente à cidade com o mesmo nome, a caminho do IAO

A chegada àquele campo militar trouxe um pouco de comoção. Os meus camaradas desdobravam-se a contarem as suas experiências do IAO. Porém, não foi o retrato da instrução o que mais mexeu comigo. A grande notícia no campo militar era a deserção de três oficiais mobilizados para a Guiné. O madeirense Gonçalves, Aspirante a Oficial Miliciano, Comandante do 3.º GComb da CCaç 3327, era um dos oficiais desertores. Servi, ainda na Terceira, durante algum tempo debaixo do seu comando. Considerava-o um bom oficial, e nunca pensei ser capaz (e desejoso) de dar o salto. Enganei-me! A atitude daquele oficial trouxe-me a certeza de uma outra realidade: eu nunca seria capaz de abandonar os meus soldados, que treinei e que confiavam em mim para os guiar em terras da Guiné.

O IAO não teve, em mim, quaisquer proveitos práticos. Porque cheguei mais tarde, e porque no pouco tempo que estive em Santa Margarida, não me apercebi de nada ser diferente daquilo que já se fazia no Monte Brasil, Ilha Terceira. Os exercícios com o apoio de helicópteros foi a novidade programada mas, até isso, foi cancelado. Passavamos o tempo em exercícios de ginástica e ordem unida, treinos de penetração, progressão, patrulhamentos, emboscadas, e pouco mais. O mais importante, para mim, foi a manutenção do poder físico e da disciplina militar. Foi num desses exercícios que conheci o distinto e prestigiado coronel Maçanita, Comandante do campo militar. Observou o meu Grupo durante algum alguns exercícios, fez alguns comentários, desejou-nos sorte e prosseguiu a sua vistoria.

12/1970 – José Câmara no IAO, Santa Margarida

Mas nem tudo foi monótono no IAO. Três eventos muito importantes marcaram a minha estadia em Santa Margarida: a visita ao Santuário de Fátima, as festas de Natal e Ano Novo, e o festival da Batatada entre açorianos e madeirenses.

A visita que a Companhia fez ao Santuário de Fátima, foi o evento mais importante do IAO. Para os açorianos, profundamente religiosos, essa visita acabou por ser uma autêntica peregrinação de fé cristã. A magnitude do lugar, o silêncio, o simbolismo e as manifestações de fé que constantemente se podem observar são deveras impressionantes. Nesta visita ao Santuário, com cerca de quatro contos que conseguimos juntar entre os militares da Companhia, foi adequirida e abençoada uma linda imagem do Sagrado Coração de Maria, que nos acompanhou e protegeu durante toda a comissão. Hoje, a imagem, como muitas outras imagens que fizeram comissão no ultramar, faz parte do espólio religioso da igreja de São João Batptista, que se encontra edificada no Castelo, em Angra do Heroísmo.

Outro evento importante, para nós açorianos, foi a celebração do Natal de 1970 e a passagem de ano em terras de Santa Margarida. Para muitos soldados açorianos foi a primeira vez que o fizeram longe do aconchego familiar. Foi um Natal passado com saudades, tristeza e resignação. Para mim era a segunda vez que me acontecia. Mas tive uma consolação: voluntáriamente, estive de serviço contítuo à Companhia, permitindo, assim, que os meus camaradas continentais pudessem disfrutar, mais uma vez, do calor familiar, e das alegrias próprias que embelezam a época de Natal. Nunca me arrependi de o ter feito. A minha família, naquele momento, eram os militares da CCaç 3327.

Natal 1970 – Caserna da CCaç 3327 - Armas ensarilhadas e imaginação. José Câmara junto da árvore de Natal

Natal 1970 – José Câmara (Em pé – Primeiro da direita) – CCaç 3327 - A minha família

As Companhias em exercícios de IAO eram as CCaç 3325, do BII19, Funchal e as açorianas 3326, que foi para Mampatá, a 3327 (a minha) que ficou, no príncipio, em Bissau e a 3328 que foi para Bula. Com as férias de mobilização dos graduados continentais, essas Companhias ficaram decapitadas pela ausência de commandos a todos os níveis. Apenas sargentos de dia se encontravam presentes. As relações entre açorianos e madeirenses, que usufruiam do mesmo refeitório, começaram a azedar com a recusa dos madeirenses em descascar as suas batatas.

Pelo facto de ser açoriano, julgo eu, a minha ajuda foi solicitada, para ajudar a resolver o problema das batatas, ou melhor, da recusa pelos militares madeirenses em descascar as suas batatas. Em voz bem alta, e para que não houvesse dúvidas, dei ordem para que as batatas descascadas e por descascar fossem depositadas no mesmo caldeiro, cozidas e servidas ao jantar. Seguidamente, e com os sargentos de dia das outras Companhias, saí do refeitório, e fechei a porta. Nunca soube o que se passou a seguir. Ao jantar as batatas foram servidas descascadas, havia sorrisos, e, por incrível que pareça, vi açorianos e madeirenses sentados na mesma mesa. Tenho que confessar: o Sagrado Coração de Maria tinha feito o seu primeiro milagre: tinha tornado uma ordem muito perigosa em remédio santo. Julgo que Lhe agradeci

No príncipio do mês de Janeiro o frio começou a apertar, e apareceram os primeiros flocos de neve. Os exercícios de IAO cessaram e, começamos a contagem dos dias para a partida para a Guiné. Soubemos que o embarque estava marcado para o dia 5 de Janeiro de 1971. Por razões que desconheço só veio a acontecer no dia 21 de Janeiro de 1971.

Entretanto, mais uma surpresa me estava reservada. Fui nomeado, conjuntamente com o Aspirante Francisco João Magalhães, para fazer a vistoria do barco que nos levaria à Guiné. No dia da minha partida para Lisboa o Comandante da Companhia, Cap. Mil. Rogério Rebocho Alves, chamou-me ao seu gabinete, e mandou-me por as divisas de Furriel. Excusado será dizer que, ainda hoje, o braço direito me doi de responder a tanta pala feita com a mão esquerda: o gozo normal, nestas circunstâncias, dos meus camaradas. Porém, quando em frente do espelho as vi nos meus ombros, aquilo que podia ter sido um sentimento de honra e orgulho, foi substituído pelo peso acrescido das responsabilidades que se advinhavam: comandar tropas no teatro de guerra: a Guiné!

A 19 de Janeiro eu deixava Santa Margarida com destino a Lisboa no cumprimento da minha missão: vistoriar as acomodações do n/m Angra do Heroísmo, da Empresa Insulana de Navegação, que iria fazer, segundo se dizia, a sua viagem inaugural como navio transporte de tropas. O resto da Companhia chegaria a Lisboa dois dias depois.

NAVIO ANGRA DO HEROISMO


Tipo... Navio de passageiros de 1 hélice
Construtor... Deutsche Werft A.G. (construção número 690)
Local construção... Hamburgo
Ano de construção... 1954-55
Ano de abate... 1974
Porto de registo... Lisboa
Número de registo... I 358
Indicativo de chamada... C S B P
Comprimento ff... 152,71 m
Comprimento pp... 138,34 m
Boca... 19,87 m
Pontal... 11,00 m
Calado máximo... 8,71 m
Capacidade de carga... 4 porões com capacidade para 9.019 m3 de carga, incluíndo 536 m3 de carga frigorífica
Tonelagem... 10.187 TAB, 6.230 TAL, 6.870 TPB, 13.900 T deslocamento
Aparelho propulsor... Um grupo de turbinas a vapor AEG, construídas em Berlim Ocidental, por Allgemeine Electric Gesellschft, 2 caldeiras.
Potência... 11.500 shp a 119 r.p.m.
Velocidade máxima... 19 nós
Velocidade normal... 18 nós
Classificação... +100A1 LRS
Passageiros... Alojamentos para 80 em primeira classe, 43 em turistica A, 80 turistica B e 120 em turistica C, no total de 323 passageiros.
Tripulantes... 139

Photo and Copyright Carlos Russo Belo
http://navios.no.sapo.pt/angrah.html

O resto da Companhia chegaria a Lisboa dois dias depois.
José Câmara
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4353: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (1): O início do Serviço Militar

Em tempo:
Poste rectificado em 29 de Maio por ter sido publicado originalmente com parte do texto suprimido.
As minhas desculpas ao José da Câmara
CV

sábado, 16 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4353: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (1): O início do Serviço Militar

1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73:

Junto a minha primeira história. Para ser corrigida, cortada, ou publicada se virem interesse nisso.

Com um abraço do tamanho da tabanca,
José Câmara


Memórias e histórias minhas…
Ao serviço da Pátria: a CCAÇ 3327 e PEL CAÇ NAT 56

O início do Serviço Militar


Era então o dia 29 de Novembro de 1969. A manhã acordara calma, cheia de sol, linda como a cidade da Horta, da não menos bonita ilha do Faial, Açores. Porém, uma tristeza enorme pesava em cima dos meus jovens ombros, e o coração começava a sangrar com a invasão de uma tremenda saudade: acabara de me despedir dos meus pais e irmãos que, nessa manhã, embarcaram rumo aos Estados Unidos da América.

Naquele tempo, os jovens, a partir dos 16 anos de idade, não podíam, por lei, sair do país. O auge do esforço da Guerra no Ultramar assim o exigia. Por esse motivo, naquela manhã, não pude seguir os meus familiares na rota da emigração. O meu sonho americano, como o de muitos açorianos, teria que esperar. Assim, pela primeira vez na minha curta vida, sentia-me sozinho. O serviço militar esperava por mim.

Em de Janeiro de 1970, cruzei os portões do Centro de Instrução Militar de Tavira. Nos sete meses seguintes, o Centro foi a minha casa. Lá conheci outras formas de estar na vida, criei algumas amizades. E lá senti o grande estigma da descriminação.

Findo o curso de Sargentos Milicianos, os meus camaradas continentais foram de férias, com transportes pagos pelo governo. Eu, tal como os outros açorianos e madeirenses, não tive esse direito. Fiquei por Tavira à espera de colocação.

Recruta: José Câmara, primeira linha, segundo da esquerda

Especialidade: José Câmara, segunda linha, primeiro da esquerda

Com as divisas de Cabo Miliciano, Atirador de Infantaria, fui colocado no BII19, então sediado na cidade do Funchal, Ilha da Madeira. Foi ali que, dois dias depois de lá ter chegado, recebi a notícia da minha mobilização para a Guiné. Iria juntar-me, já em rendição individual, à CCAÇ 3327, que estava em formação no BII17, Angra do Heroísmo, Terceira. Voltava, assim, aos meus amados Açores.

Quando cheguei ao BII17, a CCAÇ 3327 estava práticamente formada, e a meio da especialidade. Apenas tive que me integrar no grupo de trabalho. Finda a especialização, fui gozar as minhas férias de mobilização à ilha das Flores, freguesia da Fazenda das Lajes, terra onde nasci, e que já não visitava desde os 12 anos de idade. Tinha deixado a ilha para poder estudar no Liceu Nacional da Horta, Ilha do Faial. Os meus dez dias de férias transformaram-se, por falta de transportes marítimos, em vinte e nove dias de lazer. Mas essas férias foram muito mais que isso…Marcaram o resto da minha vida!…

Férias de Mobilização (Fazenda, Flores): Com o meus tio J. António Silveira e esposa Mariazinha

Durante as férias da mobilização conheci uma jovem de 16 anos. Falamos algumas vezes. Convidei-a para Madrinha de Guerra. Ela aceitou! Essa jovem foi o ombro onde, em sonhos, encostei muitas vezes a cabeça, e deixei escapar, em confissão, as minhas aspirações de jovem. Nesse ombro deixei rolar a maldita lágrima da saudade, ou o desespero de um dia menos bom. Nesse ombro senti o calor e o palpitar de um coração de ouro, e ouvi a voz de uma palavra amiga e de esperança. Mais tarde, nos Estados Unidos da América, voltei a encontrar a minha Madrinha de Guerra, que também emigrara para aquele país. Hoje, como nos sonhos de então, continuo a encostar a minha cabeça naquele ombro. Relembro a lágrima que lhe rolou na face, quando nos despedimos. Relembro a realidade, nua e cruel, ali no meio do mar: o barco que me levaria de volta ao continente português, e a terras de Santa Margarida para o IAO.

A Guiné esperaria um pouco mais!

José Câmara
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4350: Tabanca Grande (141): José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Guiné, 1971/73)