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terça-feira, 29 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9960: (Ex)citações (179): A actuação da FAP em Guidaje (José Manuel Pechorro)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Pechorro* (ex- 1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19, Guidaje, 1971/73) com data de 29 de Abril de 2012:

Olá, uma boa tarde a todos,

Acabo de ler o poste P9823 referente à mensagem do amigo Carlos Jorge Marques Pereira, Ex-Fur Mil IOI / COP 3, Bigene / Guidage 72-74, conhecido entre o pessoal de Transmissões de Guidaje e Cop 3 por “Lobo”. Assim como li o poste P9751: FAP na guerra da Guiné, do também amigo António Martins de Matos (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, actualmente Ten Gen Ref).

O ex-Ten Pilav António Martins de Matos participou no desenrolar do assédio do PAIGC a Guidaje, alargando eu ao período de 6 de Abril a 29 de Maio de 1973. Não digo que esteve presente em todas as idas da FAP à zona operacional, não disponho de dados que o confirme…


Foto aérea, de SW, de Guidaje - 1971 numa altura em que o reordenamento já estava pronto. À direita, em primeiro plano, a Tabanca Nova. Para lá da pista de aviação é a bolanha e a parte acastanhada clara, é terreno a subir, do Senegal.

Foto gentilmente cedida por Cap. Carlos Ricardo - CMDT da CCAÇ 3 ao Blogue SPM0018, de JMF Dias Fur Mil SAM - Guidage / Binta). Com a devida vénia. 



Guidaje, Junho de 1972 > Eu, 1.º Cabo Op. Cripto, com o Protocolo, livro de registo das Mensagens. Pé em cima de pedaço de pedra “calcária” que uma granada de morteiro 82 despedaçou. Atrás, um dos bidões de combustível, que estavam espalhados pelo quartel, vislumbrando-se ainda, a cerca de 4 metros, o cabo de sustentação da antena do Posto de Transmissões.



A FAP EM GUIDAJE

A FA esteve presente, além de outros, nos momentos críticos e decisivos na batalha de Guidaje, apesar do alto risco: 

- No dia 6 de Abril, são alvejadas com mísseis Strela cinco aeronaves, tendo sido abatidas duas, um DO 27 e um T-6G. Morreram: dois Majores (1 Maj Pilav e 1 Maj Inf), dois Fur Pil, um Alf Mil médico, um 1.º Sarg da CCaç 19, um 1.º Cabo Enf e um ferido mandinga nativo de Guidaj. Oito mortos num só dia.

O ataque com armas ligeiras pelas 07h45 revelou-se ser um chamariz para o IN alvejar os nossos aviões. Apesar de logo no início se temer a forte possibilidade de ser atingida,  a FA acorreu com 3 DO 27, 2 Fiat G-91 e 2 T-6G.

Nos dias 8, 9, 10, 16, 19, 23, 28 e 29 de Maio de 73. Onde actuou ou tentou ajudar, no Quartel, na estrada, nas colunas auto e apeadas, em Cumbamory. Mantendo uma avioneta no ar, servindo de apoio às NT no terreno. Tendo provocado baixas numerosas ao PAIGC no dia 8 de Maio em Guidaje e no dia 19 no Cufeu.

A seguir ao abate dos nossos aviões e às baixas sofridas, a Força Aérea não ia a Guidaje, ficou quase se diria inoperacional, houve feridos que morreram e lá ficaram enterrados.

Os soldados não compreendiam esta ausência e apesar de tentar dizer que era compreensível, até eles arranjarem uma solução, respondiam com a cabeça quente…

No dia 11 de Maio 73 ouve uma tentativa de “insubordinação” dos dois Pelotões da 38.ª CCmds, evacuarem num Unimog o seu camarada 1.º Cabo Filipe, decepado de um pé por mina, no dia 10 entre o Ujeque e Guidaje. Foi com dificuldade que o Ten Cor Correia Campos os conteve…

No dia 16 de Maio apareceram 2 Hélis, onde foi o Gen Spínola e evacuou os feridos graves.

No dia 25, a seguir à morte do ferido 1.º Cabo Pára Ap Met G42 Peixoto (de Gião, Vila do Conde) ouvi dizer que houve movimentação de viatura pelos páras para evacuar o seu ferido Melo, mas não resultou…

Mais uma vez o Ten Cor Correia de Campos os convenceu a não deixar o quartel de Guidage (atitude inglória, acabariam com minas, mais feridos e dificilmente chegariam a Binta…)

No dia 28 apareceram 2 Hélis, rente e por entre as árvores. Levaram medicamentos, etc., para evacuar os feridos em estado mais grave.

Fiquei com a sensação que lá foram devido à pressão dos Páras (?). Os soldados afirmavam: se vieram duas vezes, porque não vieram buscar os que morreram?

A FAP, sempre que os chamávamos, aparecia quase na totalidade, nas acções anteriores em Guidaje. Houve vezes, que me pareceu exagerado o seu chamamento, para acções do IN que não justificavam a sua actuação… A proceder em todo o território deste modo, quem beneficiava era o PAIGC, graças ao desgaste do material aéreo e cansaço dos pilotos…

O meu parecer: A actuação da FA foi bastante positiva no decorrer da guerra na Guiné.

Um abraço a todos,
José Pechorro
Ex-1.º Cabo Op Cripto
CCaç 19
Guidage - Guiné
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 11 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9888: (Ex)citações (178): Estrutura do campo de minas (António Matos)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9954: Efemérides (95): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (2): Desenrolar da emboscada na zona do Cufeu (António Dâmaso)

1. Segunda parte da narrativa da "Operação Mamute Doido", trabalho enviado pelo nosso camarada António Dâmaso* (Sargento-Mor Pára-quedista do BCP 12, na situação de Reforma Extraordinária)  que participou nesta operação levada a efeito no fatídico mês de Maio de 1973.


OPERAÇÃO ”MAMUTE DOIDO” (2)

Desenrolar da emboscada na zona do Cufeu

António Dâmaso



Apesar de passados 39 anos e ter havido alterações da paisagem, agora com menos árvores e área de cultivo através desta imagem captada por satélite, a memória visual levou-me até ao local da emboscada de 23 de Maio de 1973. Lembro-me muito bem porque estive no local 4 vezes, por outro lado a carta topográfica neste pormenor é pouco elucidativa, nesta imagem pode-se compreender o porquê de toda a Companhia ficar debaixo de fogo, que os homens da frente estiveram sempre mais expostos. Mais dez, menos dez metros posso garantir que o local da emboscada foi este, as árvores mais grossas que lá existiam foram cortadas, tal como palmeiras e outras, as árvores de maior copa são muito poucas, restam apenas os arbustos e isto vem mostrar a rarefacção da floresta como se pode verificar através da imagem “que vale mais vale uma imagem do que mil palavras”.

Toda esta conversa só tem uma intenção que é repor a verdade dos factos, quando dizem que a emboscada foi na bolanha do Cufeu são imprecisos, porque bolanha propriamente dita, é aquela zona mais à frente sem vegetação onde passa a linha de água, em 1973 a Tabanca estava desabitada e o terreno inculto, nem sei se existiam lá algumas moranças.

Entre os mil e os quinhentos metros antes do Cufeu, depois de atravessar a estrada e descer a encosta, deparei-me com uma clareira enorme antes da bolanha, a mata circundante era muita rala e com árvores de reduzido diâmetro, palmeiras e outras árvores mais grossas eram muito poucas. Seguimos pela orla em direcção a uma ponta de mata mais avançada para a bolanha, para fazer a travessia da mesma na parte mais estreita, íamos com os sentidos alerta nomeadamente o primeiro homem, ciente que da sua capacidade de apuramento de três sentidos: visão, perscrutando todos os movimentos normais e anormais, o olfacto e a audição e que em grande parte, sabia que naquele momento os camaradas que o seguiam contavam com ele, daí que sentia a responsabilidade sobre ombros.

O primeiro homem, o Peixoto, era apontador de uma MG mas naquela operação levava uma HK 21 nova, em virtude da sua MG estar para reparação. Entrou na orla de uma clareira, a fronteira entre a mata e a clareira era quase inexistente, em virtude da raridade e espessura das árvores, detectou movimentações dos guerrilheiros a montarem o dispositivo da emboscada, não teve tempo de fazer quaisquer gesto  e abriu fogo imediatamente. Por azar a arma nova encravou-se logo, assim que a arma se encravou ele virou-se para mim muito aborrecido, lamentando-se disse:
- Meu primeiro, logo aqui é que me acontece uma coisa destas!

Quando se virou para mim foi atingido com um tiro no flanco direito, caiu de joelhos e ainda fez uma tentativa de desencravar a arma sem o conseguir e pediu-me que o tirasse dali.

Não podia ignorar um pedido daquele dirigido à minha pessoa, pois se ele o fez, lá tinha os seus motivos para o fazer. Embora o Peixoto fosse rebelde por natureza, havia respeito mútuo entre nós, aliás, como havia entre mim e todos os elementos do pelotão, até porque se eu fosse incumbido para realizar uma missão difícil, eu ia convidar os rebeldes porque apesar de não saber nada de psicologia, sabia que podia contar com eles até ao limite.

Nunca cheguei a saber o que tinha visto naquela emboscada para me solicitar que o tirasse dali, pois era auto-suficiente e aguerrido apesar da tenra idade, capaz dos maiores sacrifícios. A emboscada tinha rebentado, a Companhia ficou toda debaixo de fogo, em décimos de segundo avaliei a situação de risco, não pensei duas vezes, não havia tempo para pensar duas vezes, não podia deixar um homem meu que confiava em mim para o tirar ficar naquela situação. Saí detrás da árvore onde estava que não tinha mais de um palmo de diâmetro, corri para ele, agarrei-o para o trazer mas não tive forças suficientes para o arrastar mais ao armamento e equipamento que estava preso a ele. Vi-me na necessidade de pedir ajuda, o segundo homem, o Lourenço, foi imediatamente ajudar-me mas quando já tinha pegado no Peixoto, estávamos os dois de costas para a emboscada em progressão, foi atingido com um tiro na região posterior da cervical, ficando logo ali e só disse:
- Ai que já me mataram.

Fiquei cosido ao chão com o Peixoto encostado a mim e o Lourenço atingido do outro lado. Apesar do risco, o Ferreira de Carvalho, “o comprido” ou Vila de Rei, foi lá e ajudou-me a levar o Peixoto para trás do baga-baga, onde foi assistido pelo maqueiro Carvalho. Vi que tinha um pequeno orifício de entrada que quase não sangrou, sempre pensei que se safava, na altura muito embora tivesse um curso de primeiros socorros com a duração de uma semana, não tinha tempo nem os conhecimentos que tenho hoje para avaliar da gravidade de um ferimento, estava entregue aos cuidados do enfermeiro, eu naquele momento estava preocupado em sair daquela enrascada.

Os restantes homens do pelotão tiveram que se deslocar por lances, para a minha direita na procura de reagir à emboscada e ao mesmo tempo procurar protecção e foi aí que o Vitoriano foi atingido com um ou mais tiros que o atravessaram de flanco a flanco, segundo a versão de uns, mas segundo a versão de outros, foi quando procurou sair debaixo de uma árvore para ter ângulo tiro, isto por informação à posterior, uma vez que estava na minha retaguarda e não tinha ligação à vista de uma maneira ou de outra, lamento a sua morte.

Choviam morteiradas, roquetadas, canhoadas e tiros de armas automáticas, consta que tinham dois canhões sem recuo na emboscada, pois estavam à espera das viaturas, era um ruído ensurdecedor com tanto rebentamento, os nossos diminutos baga-baga iam ficando reduzidos drasticamente, os que estavam na parte de fora estavam alapados ao chão. Com o som ensurdecedor, fiquei com um zumbido permanente nos ouvidos que nunca mais me deixou e se tem agravado ao longo do tempo.

Além das baixas, tivemos algumas armas encravadas outras que não puderam ser usadas por falta de protecção dos atiradores, fui alternando a fazer fogo e falar no rádio, até que repentinamente chega junto de mim o Sargento Marques e larga o morteiro 60. No momento exacto que se baixa para deixar o morteiro, uma bala levou-lhe o chapéu camuflado, deixando-lhe um sulco de raspão no coiro cabeludo, desapareceu imediatamente para a posição dele, não me deu tempo de lhe perguntar nada.

Agarrei-me ao morteiro e comecei a “despachar” granadas para a zona onde estavam emboscados. Apercebi-me que as primeiras estavam a sair longas, eles estavam tão perto de nós que fui obrigado a quase endireitar o tubo para corrigir o tiro, em virtude da proximidade as granadas saiam quase na vertical. Enquanto tive granadas foi a despachar, o tubo do morteiro ficou muito quente, ainda me queimei mas sem gravidade, as granadas que pedimos em Binta deram-nos uma grande ajuda, depois comecei a fazer tiro de pontaria para um baga-baga onde vi vários guerrilheiros, só via sombras de um lado para o outro, pela movimentação é natural que estivessem a preparar a retirada, eles também me ripostavam da mesma maneira, o sol já estava baixo e dificultava-me a visão. Não sei se acertei em algum, os alvos não estavam estáticos, uma vez que não fomos lá ver, gastei as minhas munições todas e tive de pedir carregadores. Pensei em mandar uma granada de róquete, olhei para o lado, vi o apontador de RPG com a arma a seu lado, estava a esgravatar com as mãos para poder proteger a cabeça, não tive coragem de lhe perguntar se ainda tinha granadas, para o mandar expor-se mais, nunca o censurei porque se estivesse na pele dele teria feito o mesmo, provavelmente foi o que lhe salvou a vida pois à sua frente já não restava nada do bagabaga que tinha sido totalmente arrasado. Eu tinha começado a fazer tiro com a G3 e com o morteiro na posição de joelhos e já estava na posição de deitado, um tinha-me gritado:
- Meu Primeiro, tenho a arma encravada!

A minha resposta foi:
- Desencrava-a e deixa-te de estar para aí aos berros senão ainda te vêm apanhar à mão!

No momento compreendi que ele estava preocupado com a situação, mas não havia tempo para ir junto dele e explicar, fazes assim ou assado, havia que o acordar drasticamente para aquela realidade

Estávamos no mesmo lado da mata, mesmo no Cufeu e no ar andava o PCA (Posto de Comando Aéreo), bastante alto para estar fora do alcance dos mísseis, sabia que andava lá pelas comunicações que ouvia, aquele chamou apoio aéreo os Fiat, os pilotos afirmaram que tinham dificuldade em determinar uma linha de separação, foi aí que mandei colocar uma tela a indicar a nossa posição e a direcção do inimigo.

Entretanto deu-se o bombardeamento dos Fiat, foi muito providencial, porque os guerrilheiros terão pensado que atrás daqueles vinham outros e talvez, tal como nós, as suas munições também estivessem à beira de se esgotarem, ainda vi a retirada de alguns “turras” para o meu lado direito por uma picada que ficava junto à bolanha.

Foi um dia terrível, tínhamos uma sede horrível, vi homens a beber soro que era destinado a feridos, vi um urinar e senti um forte desejo de beber urina.

Fiz o que estava ao meu alcance fazer, os outros camaradas também fizeram o que puderam, enquanto estive com a adrenalina do combate a coisa correu bem mas quando este acabou, com o quadro que se me deparou, senti uma apatia momentânea como se não quisesse acreditar no que tinha acontecido aos meus camaradas. Estava com a ideia de organizar uma equipa e ir fazer uma batida ao local onde tinha estado a fazer tiro de pontaria, ao mesmo tempo pensei que por questões de segurança tinha de dar conhecimento ao Comandante da Companhia, depois o passa palavra que demorava muito tempo, ainda nos sujeitávamos a ser alvejados pelos nossos camaradas, tempo era aquilo que não dispúnhamos devido ao adiantado da hora, nesse momento veio uma ordem de cima, fazer macas improvisadas, mesmo assim ainda fiquei com a ideia de ir ao local a martelar-me na cabeça, mas depois o bom senso aconselhou-me que o melhor era sair dali rapidamente.

Era quase noite, o Comandante da Companhia mandou cortar varas para fazer macas improvisadas para o transporte de feridos e mortos, foi aí quando andava com os homens a escolher as varas melhores, que me apercebi da existência no local de esqueletos espalhados, e de uma estrada que não estava na carta, sem o saber, fomos ter mesmo ao local onde eles costumavam fazer as emboscadas, conhecedores do terreno movimentavam-se com rapidez.

O Comandante da Companhia deu ordens para que o pelotão que estava atrás de nós, avançasse para a frente para manter a segurança enquanto andávamos nos preparativos para transportar os nossos mortos e feridos.

O meu pelotão ficou inoperativo, dois mortos e um ferido grave para transportar, era um empenhamento de 15 homens, sobravam menos de 10. Desmoralizados por uma situação de que até ali não estavam habituados, era-lhes difícil entender porque antes eram evacuados por tudo e por nada e naquela situação, exaustos famintos mas mais grave ainda sedentos e desidratados, quase que a arrastar-se tinham que andar com os seus camaradas às costas. Fizeram-no porque existia aquele espírito de entreajuda, de irmandade e camaradagem entre combatentes, que caracteriza o ser humano nestas situações difíceis, dando-lhes forças para ultrapassar o limite e foi-lhe incutido na instrução, “que um pára-quedista depois de morto ainda faz dez flexões”.

O sol já se tinha posto, pegamos nos feridos e mortos, eu peguei num lado da maca do Peixoto e com três equipamentos às costas, entendi que naquele momento mais que mandar era preciso dar o exemplo. Aguentei até chegar ao Ujeque, enquanto os outros transportadores se foram revezando. Em Ujeque estavam os Fusos com viaturas, só aí é que conseguimos beber alguma água, sei que o Peixoto ainda chegou vivo a Ujeque, uma vez que o transportei até lá, os Fuzileiros que nos esperavam disseram estar admirados com a duração do combate, eles próprios já tinham tido um combate na zona, seguimos nas viaturas até Guidage onde chegamos já de noite escuro. Entramos pelo lado da pista, aí lembro-me que tive ordem para colocar o meu pelotão junto da vala, mais valeta do que vala, nas traseiras da cozinha perto do balneário, o 2.º ficou na vala que dava para a “pista”, onde mais tarde vieram a ser sepultados os militares falecidos.

Não cheguei a saber porque não fomos apoiados pelos obuses de Guidage, falta de munições, ou falta de lembrança?

Hoje é muito bonito dizer, temos de apostar mais na formação, a formação ajuda mas não é tudo, na altura se não estivesse debaixo de uma emboscada, tinha feito uma barragem de fogo e iam dois pegavam no ferido e tiravam-no para zona protegida, na teoria é muito fácil mas na prática é mais difícil, naquele dia caiu-nos um inferno de metralha em cima, improvisou-se.

Reflectindo sobre a maneira que os homens foram atingidos, o tiro que levou o chapéu ao Sargento Marques e ainda como me tentaram atingir, leva-me a crer que foram abatidos com tiros de precisão e que existia um atirador na emboscada, interrogo-me como não fiquei a fazer companhia àqueles bravos e chego à conclusão que se não fiquei lá, foi porque não tinha chegado a minha hora.

Saudações Aeronáuticas
Dâmaso
____________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 27 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9951: Efemérides (60): Guidaje foi há 39 anos: Operação "Mamute Doido" (1): Estadia em Binta e saída até Cufeu (António Dâmaso)

terça-feira, 22 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9934: Efemérides (90): Guidaje foi há 39 anos: reconstituindo a 5ª coluna, de 22 e 23 de maio de 1973 (Victor Tavares e † Daniel Matos)

A 5ª coluna,  a caminho de Guidaje>  Operação Mamute Doido, com os páras da CCP 121 > 23 de Maio de 1973 [fusão de dois postes]

por Victor Tavares (*) 
e † Daniel Matos (**)


1A. Victor Tavares [, ex-1º cabo paraquedista, CCP 121/ BCP 12, BA 12, Bissalanca, 1972/74). foto à direita]:

No início do mês de maio de 1973, as forças do PAIGC intensificaram os ataques aos destacamentos de fronteira, mais concretamente Guidaje, a norte, e Guileje, a sul. Em Guidaje a pressão das forças IN começou com ataques ao aquartelamento e depois às colunas de reabastecimento no período 7 a 30 de Maio de 1973. Nesse período realizaram-se seis colunas. Apenas a terceira conseguiu alcançar o objectivo sem problemas.

E porque fiz parte da quinta coluna (***), gostaria de dar algumas ideias do que passei na mesma aos tertulianos interessados na guerra de Guidaje.


Para começar quero dizer-vos que já li que os efectivos da CCP 121 que participaram nessa coluna eram na ordem de 160, quando na verdade seríamos pouco mais de metade. Mas avançando para o desenvolvimento, mais concreto, do deslocamento entre Binta e Guidaje, de má memória para os paraquedistas da 121, nesse dia fatídico para as nossas tropas recebemos a informação de que íamos fazer protecção a uma coluna auto que ia para Guidaje, e que regressaríamos de imediato, até porque não nos fora distribuída alimentação.


1B. Daniel Matos [1950-2011, ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74, foto à esquerda] ...


[Em 22 de maio de 1973,] do quartel de Binta, sensivelmente à mesma hora (sete e trinta) em que saíramos de Guidaje, avançara também nova coluna logística, com a missão de evacuar o pessoal, sobretudo os feridos. A CCP 121 faria protecção a oeste da estrada, cabendo a um destacamento misto de fuzileiros (42 homens dos DFE n.º 1 e n.º 4, comandados pelo primeiro-tenente Albano Alves de Jesus) a protecção a leste. Os picadores seriam de um grupo de combate da CCaç 14 (guarnição de Farim), participando também um grupo reduzido de elementos da CCaç 3. Um dos elementos, – o furriel miliciano Arnaldo Marques Bento, – deste grupo comandado pelo alferes Gomes Rebelo, acciona uma mina antipessoal, reforçada com outra, anticarro, e tem morte imediata. Também um picador – o soldado Lassana Calisa, – morre alguns metros adiante e a mesma mina provoca dois feridos graves. 


Ainda um outro engenho viria a ferir gravemente outro homem. Cerca do meio dia, um grupo de combate saiu de Genicó e veio reforçar a coluna. O tenente-coronel Correia de Campos manda abortar a coluna de reabastecimento e o pessoal regressa a Binta, onde chega apenas por volta das 18 horas.

2A. Daniel Matos

[A 23 de maio de 1973,] sai de Binta em direcção a norte uma coluna/auto comandada a partir de uma DO-27 pelo major 
paraquedista  José Alberto de Moura Calheiros. É protegida por uma unidade de fuzileiros especiais e por grupos pertencentes a unidades do Exército, nomeadamente da CCaç 3 e, como sempre, por uma equipa de picadores que rasga caminho lá bem na cabeça da coluna.

Ao chegar perto de Genicó liga-se aos cerca de 90 homens da CCP 121 que, sob o comando do capitão pára-quedista Armando de Almeida Martins, emboscada desde bem cedo, ali aguardam a sua passagem, para lhe fazer protecção. Os pára-quedistas faziam parte de uma força de intervenção, que incluía ainda uma companhia de comandos e uma companhia de fuzileiros, enviada para Guidaje para tentar romper o cerco e aliviar a pressão do PAIGC sobre o quartel.


2B. Victor Tavares:

Lá seguimos manhã cedo, [a 23 de maio de 1973,] até passar uma pequena ponte. Logo de seguida estacionámos e emboscámo-nos do lado esquerdo da picada, ficando a aguardar a chegada da coluna auto que, passado algum tempo, chegou já protegida do lado direito por um grupo de fuzileiros especiais, seguidos de elementos do exército.

Na frente da primeira viatura seguiam vários sapadores (picadores). É de referir que a mata envolvente era bastante aberta o que facilitava o contacto à vista com as outras nossas forças.

Entretanto, é dada ordem para iniciarmos a marcha lenta por forma a manter a ligação à vista com a frente da coluna. Nessa altura rebentou uma mina antipessoal, provocando 1 morto. Isto cerca das 8.30h. 

Recomposta a ordem, retomamos a marcha, até que, passados pouco mais de 15 minutos, novo engenho é accionado, desta vez por uma viatura, desfazendo parte dela e provocando mais 1 morto e 2 feridos graves. A partir daqui foi fazer a transferência da carga e retomar o deslocamento. Pouco tempo andámos para nova mina ser accionada provocando mais 1 ferido grave.

Nesta altura estávamos próximos de Genico [a seguir a Caur, vd. carta de Binta]. Perante estes acontecimentos foi dada ordem para que a coluna regressasse a Binta, uma vez que a zona se encontrava toda minada e seria de evitar correr mais riscos.

2.C. Daniel Matos:

Por volta das 8,30 horas, com a ligação à vista praticamente a ser efectuada, uma mina antipessoal é deflagrada e provoca a morte do soldado Bailó Baldé, da CCaç 3. Escassos minutos a seguir, quando a coluna recolhe o corpo e retoma o andamento, uma viatura acciona outra mina e causa mais uma morte imediata (soldado Fonseca Nancassa, também da CCaç 3) e dois feridos com gravidade. 

Uma terceira mina vem a ocasionar mais um ferido grave. Perante as adversidades da progressão, parecendo impossível ultrapassar o enorme campo de minas e armadilhas que encontrou em cada metro de caminho, é recebida ordem para que a coluna retroceda e regresse a Binta. Aos  paraquedistas , no entanto, é dito que devem avançar até ao destino, em missão de patrulha (operação Mamute Doido). Assim procedem, vindo a efectuar uma pausa para descanso, já na área do Cufeu. Conforme estas fatídicas jornadas demonstram à saciedade, seja ao longo da bolanha seja em torno da casa amarela que avistamos a cada passagem – ou do esqueleto que dela resta, – o Cufeu é uma zona propícia para as emboscadas, desde logo pelo número inusitado de morros de baga-baga atrás dos quais dezenas de corpos se podem ocultar e proteger-se das nossas balas.
3A. Victor Tavares:

Com tudo isto já passava do meio dia, quando é dada ordem para a CCP121 continuar a operação em patrulhamento, regressando os fuzileiros e o exército.

Em direcção a Guidaje seguiam os paraquedistas, até que foi feita mais uma de muitas paragens para descanso do pessoal, esta já na zona mais perigosa de todo o percurso, que era Cufeu.

Como me encontrava desde o início na retaguarda, desloquei-me até junto do meu comandante de pelotão, Tenente Paraquedista Hugo Borges, afim de saber qual seria o nosso destino, porque nos encontrávamos já bastante debilitados fisicamente. Foi nesse momento que a grande altitude apareceu sobrevoando a nossa posição uma DO 27 aonde se encontrava o Major Paraquedista Calheiros que, em contacto com o comandante da CCP 121, Capitão Paraquedista Armando Almeida Martins, informa-nos que teríamos de seguir para Guidaje porque já estaríamos perto.

Dada esta informação, regressei a retaguarda mas ao fazê-lo pedi ao Melo, apontador de MG 42, para ocupar o meu lugar (todos os operacionais sabem o desgaste físico e psicológico que tal posição provoca) porque eu já vinha a mais de uma dezena de quilómetros naquele lugar.

Entretanto inicia-se a marcha e, quase de imediato, rebenta na frente a emboscada, tendo os primeiros tiros dados pelas forças do PAIGC abatido logo os Soldados Paraquedistas, Victoriano e Lourenço e ferindo gravemente o 1º Cabo Paraquedista Peixoto, apontador de HK21 e MG42.

A reacção dos paraquedistas foi pronta e rápida: apanhados em zona aberta sem qualquer protecção reagiram ao forte poder de fogo do IN, conseguindo suster o assalto das nossas posições como se verificou na retaguarda onde guerrilheiros, alguns de tez branca, tentaram fazer um envolvimento as nossas forças, o que foi evitado pela elevada capacidade de organização em combate e disciplina de fogo, aliada à coragem dos nossos militares.

Quero referir que simultaneamente toda a nossa coluna ficou debaixo de fogo IN numa extensão de mais de 300 metros.

É de realçar também a organização e o poder de fogo dos guerrilheiros do PAIGC que, equipados com bom armamento, bem melhor que o nosso, caso das Degtyarev, RPG2, costureirinha PPSH, Kalashnikov, Canhão Sem Recuo, RPG7, Morteiros 61mm e 81mm, mísseis terra-ar Strela (estes a partir do início de 1973 começaram a derrubar a nossa aviação tirando-lhe capacidade de actuação no teatro de operações).

Não era por acaso que as forças do PAIGC estavam tão bem organizadas nesta zona e neste período, tinham como comandantes Francisco Santos (Chico Té) e Manuel dos Santos (Manecas), dois dos mais temidos pelas nossas forças, além do comandante Nino Vieira.

3B. Daniel Matos:

Retemperadas as forças, o pessoal da companhia de caçadores paraquedistas reinicia a marcha e é de pronto surpreendido por constringente emboscada. Dois dos pára-quedistas que seguem na frente (António das Neves Vitoriano e José de Jesus Lourenço, este com apenas 19 anos) têm morte imediata; o 1.º Cabo Manuel da Silva Peixoto, apontador de HK-21, é colhido por uma rajada e fica gravemente ferido. O fogo inimigo é muito intenso, a frente prolonga-se por algumas centenas de metros e dura três quartos de hora praticamente consecutivos. Há quem garanta ter avistado gente branca do outro lado.

“Os militares José Lourenço, António Vitoriano e Manuel Peixoto iam na primeira linha e foram os primeiros a cair”, relata muitos anos mais tarde Hugo Borges, na altura da emboscada tenente, comandante de pelotão (hoje general).

À mistura com tiros de Kalashnikov ouvem-se estrondos de canhões sem recuo e roquetadas das RPG-7, que causam pelo menos mais duas baixas graves: a do soldado Palma, que se encontrava a tentar desencravar a metralhadora MG 42 do soldado António Melo, que foi também ferido e ficou imediatamente em coma (viria a falecer após evacuação, já na metrópole). 

Apesar da resistência das NT, a ofensiva só é contida graças ao apoio aéreo que desta vez corresponde ao chamamento. Os Fiat lançam bombas de cinquenta quilos ao longo de meia hora bem medida sobre a zona de acção IN (cuja força é estimada em cerca de setenta guerrilheiros). 

Algumas viaturas saíram de Guidaje e foram ao encontro dos paraquedistas. Fizeram inversão de marcha para se carregarem os corpos das vítimas e regressarem à origem. Abrindo um novo trilho, conseguem chegar à aldeia de Guidaje, não sem que os guerrilheiros retirados do Cufeu após o bombardeamento da aviação os tenham atacado de novo, mas de longe e sem consequências. 

O Cabo Peixoto não resiste aos ferimentos e morre também neste dia 23 de Maio, – imagine-se! – considerado o “Dia dos Paraquedistas” por ser há precisamente 17 anos (desde 1956) a data da fundação, em Tancos, da Escola de Tropas Paraquedistas!...

O Batalhão de Caçadores Paraquedistas (n.º 12) teve durante as campanhas na “Guiné Portuguesa” cinquenta e seis baixas, (três oficiais, seis sargentos e quarenta e sete praças).

Os corpos dos militares da CCaç 3 que protegiam a coluna inicial e que pela manhã foram vitimados pelo rebentamento de minas (mormente os de Bailó Baldé e Fonseca Nancassa), ainda devem ter sido transportados pelas mesmas viaturas que os camaradas 
paraquedistas  trouxeram para Guidaje, pois viriam a ser ali sepultados, dias depois, conjuntamente. Se assim não fosse, teriam sido levados pelos fuzileiros e elementos do Exército que regressaram a Binta e o tratamento aos seus esquifes teria sido diferente.

4A. Victor Tavares:

Continuando a relatar o desenrolar da operação: durante o contacto fomos flagelados com morteiradas e canhoadas que rebentavam a poucos metros de nós, tendo uma delas ferido gravemente os Soldados Paraquedistas Palma e Melo, este com grande gravidade, ficando de imediato em estado de coma e vindo a falecer, na Metrópole.

Ainda relacionado com as granadas que rebentavam junto a nós, aí poderíamos ter mais mortos e feridos, mas a nossa sorte foi o terreno ser mole porque as granadas enterravam-se e os estilhaços saíam em V. Faço esta afirmação porque a dois, três metros da minha posição de combate, rebentaram 3 granadas e felizmente nada me aconteceu. Já a quarta granada veio mais longa, atingindo os paraquedistas atrás referidos, quando se encontravam a desencravar a MG42 da qual o Paraquedista Melo era apontador, de grande categoria (este camarada era uma autêntica máquina de guerra).

Ainda debaixo de fogo começaram a ser socorridos os feridos da retaguarda, pelo enfermeiro 1º Cabo Paraquedista Fraga.

Ainda antes de terminar este feroz combate, os bombardeiros Fiat 91 bombardearam as posições IN tal foi a duração do mesmo (mais de 30 minutos).

Terminado o contacto, tratou-se de improvisar a maca para transporte do Melo, o outro ferido, o Palma, seguiria a pé, já que o ferimento era no pescoço. Entretanto chega-nos a indicação da frente que tínhamos mais feridos e mortos (os átras referidos Peixoto, Vitoriano e Lourenço).

Entretanto, quando chegamos à frente, deparamos com os corpos dos nossos camaradas que jaziam no chão, dois já defuntos, e um ferido de morte, este a ser assistido pelos enfermeiros dos pelotões.

A partir daqui aguardava-se a chegada de viaturas que vinham de Guidaje. Chegadas estas, carregaram-se os mortos e feridos. Nnessa altura fui à viatura onde se encontrava o Peixoto para ver qual era o seu estado. Apertando o meu braço, diz-me ele:
- Tavares, desta vez é que eu não me safo. - Aí respondi-lhe:
- Não, tu és forte e tudo vai correr bem, tem calma.

Quando desci da viatura depois de ver os ferimentos, fiquei com a convicção de que só por milagre é que o Peixoto se safava: fora atingido por vários tiros em zonas vitais .

De seguida iniciámos a marcha rumo a Guidaje, para pouco tempo depois a coluna na frente ser novamente atacada, desta vez sem consequências de maior, para as forças que seguiam na frente, Fuzileiros e Paraquedistas, seguidas das viaturas e na retaguarda os restantes Paraquedistas que ainda tentaram fazer um envolvimento às forças do PAIGC, o que não resultou derivado à distância ser grande e as mesmas terem abandonado as suas posições de ataque.

5. Daqui até Guidaje não houve mais qualquer incidente. Chegados, fomos instalados ao longo das valas, montando segurança durante os dias que ai permanecemos, sete ou oito. Durante esses dias foram elementos dos Comandos Africanos que regressavam da Operação Ametista Real (no período de 17 a 20 de Maio de 1973) na qual também participou a Companhia de Paraquedistas 121 (Assalto à base de Kumbamory) dentro do Senegal. Participou também o grupo do Marcelino da Mata.

Em Guidaje também aí encontrámos parte de um destacamento de Fuzileiros que aqui se encontravam sitiados há alguns dias e que pertenciam ao destacamento de Canturé.

A seguir relatarei a permanência em Guidaje durante 9 dias e o funeral dos meus camaradas paraquedistas . (...)

PS - No que atrás relato não estão incluídas algumas passagens muito importantes que entendo de momento não publicar. (****)




Guiné > Região do Cacheu > Carta de Binta (1954) (Escala 1/50 mil)  > Detalhes: posição relatiav de Binta, Genicó, Cufeu e Ujeque (na picada Binta-Guidaje).

__________

Notas do editor:

(*) 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

Vd. também poste de 9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

(**) 5 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6108: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (7): Os dias da batalha de Guidaje, 22 e 23 de Maio de 1973


(***) Os historiógrafos militares Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso falam em 6 colunas, realizadas nas seguintes datas:

1ª coluna: 8 a 9 de maio de 1973;
2ª coluna: 10 de maio [ vd. aqui o testemunho do nosso camarada A. Merndes, da 38ª CCmds]
3ª coluna: 12 de maio;
4ª coluna: 15 de maio;
5ª coluna: 22 de maio;
6ª coluna; 29 de maio.

(In: Os anos da guerra colonial: volume 14: 1973 - Perder a guerra e as ilusões. Matosinhos: QuidNovi. 2009, p.45).

(****) Último poste da série > 9 de maio de 2012 > 
Guiné 63/74 - P9874: Efemérides (55): Cerimónia da transição da soberania nacional na Guiné (2) (Magalhães Ribeiro)


domingo, 25 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9662: Guidaje, Maio de 1973: 2ª coluna a 4 companhias, a caminho de Guidage - 29/05/1973 (Amílcar Mendes/João Ogando)



1. O nosso Camarada Amílcar Mendes, que foi 1º Cabo Comando da 38ª CCmds (Os Leopardos) - Brá, 1972/74 -, em colaboração com o Furriel Miliciano COMANDO João Ogando, enviaram algumas das suas memórias para publicação na revista MAMA SUME da delegação de Almada - Associação de Comandos, num interessante e esclarecedor artigo, que aqui reproduzimos com a sua autorização pessoal.



Introdução 

Em Maio de 1973, a 38ª CCmds estava sediada em Mansoa, na região central da Guiné, tendo a NW a região do Morés, e a SW, o Sara – Saruol. Na altura, devido à abertura de uma estrada entre Mansoa e Porto Gole (nas margens do Geba) a companhia fazia operações de reconhecimento ofensivo nas zonas por onde, no futuro, iria passar essa via, no sentido de impedir que quaisquer incidentes atrasassem os trabalhos. 

Em certo dia dos princípios de Maio, quando me encontrava numa destas missões fui informado, via rádio, pelo meu adjunto, na altura Alferes Agostinho B. Saraiva da Rocha, de que fora solicitado à companhia uma escolta entre Bissau e Farim, para transportar reabastecimentos para Guidage. Então já se começavam a sentir os problemas operacionais acima mencionados, mas ainda não se tinha realizado a missão a Cumbamori. 

Respondi-lhe que accionasse os meios no sentido do cumprimento da missão, apesar das limitações em material anteriormente referidas. Realizou-se a acção até Farim e, à chegada, o Alferes Rocha, foi confrontado com a ordem/pedido de integrar uma coluna para tentar chegar a Guidage, já que as anteriores tentativas de reabastecer aquela posição tinham falhado. 

Sobre esta missão, quem estará melhor habilitado para falar é o Coronel na Reserva Saraiva da Rocha. No entanto quero, desde já, salientar os seguintes factos: durante o trajecto foi accionado uma mina/armadilha que atingiu gravemente o 1.º Cabo “Comando” Filipe Tavares, sofrendo amputação da parte anterior de um dos pés e do indicador da mão direita. Este militar deu provas de uma inexcedível coragem, pois, por falta de evacuações aéreas e de cuidados médicos apropriados no local, os ferimentos gangrenaram. Nunca se deixou ir abaixo, chegando, inclusive, a animar outros feridos em estado relativo melhor que o dele. Dado o atraso no recebimento de socorros, o 1.º Cabo Tavares teve necessidade de sofrer corte da perna a nível do joelho e não apenas da parte do pé, como teria acontecido se tivesse sido evacuado atempadamente. Esteve nesta situação de espera durante vários dias até que foi evacuado para Bissau. 

No período de permanência em Guidage, o aquartelamento foi continuamente atacado pelos mais diversos meios. Os abrigos existentes eram insuficientes para os efectivos concentrados, havendo, ao longo do perímetro, uma trincheira que não devia chegar ao metro de altura e a um de largura. Numa dessas valas o Soldado “Comando” Raimundo foi atingido por estilhaços de morteiro, vindo a falecer. Como atrás referi, esta primeira escolta da 38ª  CCmds a Guidage, não poderá ser pormenorizada, pois não estive lá. 

No entanto o meu Adjunto, se for contactado, poderá esclarecer aspectos desta acção, nomeadamente das forças integradoras da coluna, quem a comandava etc. (3) Convém ressaltar que, ao contrário de escoltas/colunas anteriores, o reabastecimento chegou ao seu destino e não foi abandonado no campo de batalha. A companhia sofreu pelo menos um morto e um ferido grave e nada mais acrescento pois não possuo documentos que mo permitam fazer.

___________

Nota de MR:

(*) Vd. também sobre esta matéria o poste do mesmo autor em:

4 DE ABRIL DE 2008 > Guiné 63/74 - P2719: Guidaje, Maio de 1973: Só na bolanha de Cufeu, contámos 15 cadáveres de camaradas nossos (Amílcar Mendes)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9433: (Ex)citações (172): Ainda o dossiê Guidaje - Maio de 1973 (Manuel Marinho / Amílcar Carreira)

1. Comentário do nosso camarada Manuel Marinho (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), no Poste 9425(a) no dia 1 de Fevereiro de 2012:

Caro Amílcar
Por feitio e formação não gosto de estar a comentar textos de camaradas ou amigos do blogue que não são devidamente identificados, mas isto diz respeito aos editores, e na minha opinião violam regras estabelecidas no blogue, fica o reparo.
Mas como tu dizes que eras da CCS do BCAÇ 4512, portanto pertencendo ao meu, vou corrigir o que escreves no texto, que não corresponde à verdade, (eu estava lá).

Para mais completa informação consulta o P4957(b).

No dia 8 Maio onde eu vou integrado com o meu 1º GrComb de Nema, o confronto com o PAIGC só durou 15 minutos na noite do dia 8, por efeito de rebentamento de mina que obrigou a paragem forçada e a permanecermos durante a noite junto das viaturas.

Já agora, tivemos 2 feridos nessa noite.

Dia 9 logo ao alvorecer começou a grande e longa emboscada com mais de 100 IN que durou cerca de 5 longas horas, até que um pequeno grupo de cerca de 15 elementos de Binta da minha 1ª Ccaç, conseguiu chegar perto de nós e fazermos a retirada, conseguindo a muito custo retirarmos os nossos feridos.

As tuas erradas e (lamento dizê-lo) lamentáveis afirmações;

“A emboscada à 1ª coluna de ajuda a Guidage aconteceu no 1º dia, ao fim da tarde, só terminou ao raiar do dia seguinte, com o IN a derrotar as NT, e fazendo o correspondente assalto final.”

(É por estas e por outras parecidas, que o PAIGC “ganhou a guerra”).

O IN nunca nos fez assalto final porque não teve tempo nem poder para o fazer, mesmo nós já nos limites físicos e praticamente sem munições as coisas não eram assim tão fáceis.

Tivemos 4 mortos, que ficaram na picada, as ossadas só foram levantadas passados três meses, de apenas três deles.

- Arnaldo Marques Bento - Fur Mil da Ccaç 14ª de Farim, e já agora não era açoriano.
É o primeiro a falecer vítima de ter sido atingido no baixo-ventre, com granada RPG.
- Lassana Calissa - Sold da Ccaç 14ª
- Bernardo Moreira Castro Neves - Cabo Mil do meu GrComb.
- António Júlio Carvalho Redondo - da 3ª / Bcaç 4512 (corpo não recuperado).

O PAIGC teve 13 mortos confirmados nestes confrontos.

Mais algumas notas:

- O dia 8 Maio / 73 foi numa terça-feira e não num domingo.

- A 13 quando chega a 2ª coluna de Guidaje a Farim é num domingo, e traz 2 mortos numa Berliet, um deles é da tua Ccs, é curioso não o mencionares, seu nome:

- Ludgero Rodrigues Silva – Condutor Auto – faleceu em Guidaje.

- O 1º ataque com foguetões a Farim, ocorre a 5 de Fevereiro de 1973, ainda lá estão os “velhinhos” da Cart 3358 que fomos render.

Espero ter contribuído para que se dissipem algumas dúvidas que ainda vão aparecendo.

Aos Editores, renovo o meu apelo para que haja identificação de quem comenta, pois ainda não “apareceu” o anónimo que dizia ser Capitão da minha Ccaç, fez um comentário ao P6612(c) com falsas afirmações e até hoje não pude responder, além do comentário que fiz chamando a atenção para estas questões.

Um abraço para todos
Manuel Marinho


2. Mensagem do nosso camarada Amílcar Carreira, ex-Fur Mil Inf Op da CCS/BCAÇ 4512, Farim, 1972/74, com data de 1 de Fevereiro de 2012:

Boa tarde Carlos Vinhal.
Pelos dados que forneceste estivemos em épocas diferentes na Guiné.

Não suspeitei que o meu e-mail fosse publicado com a classificação de anónimo, uma vez que um dos ficheiros dizia que estava de sargento de dia ao batalhão e no item: assunto, disponibilizava muitos dados que permitiam identificar-me. No entanto a dúvida ficou instalada, ora nunca tive necessidade de me esconder atrás do anonimato, muito menos na situação de ex-militar.

Assim esclareço:

Frequentei a recruta de sargentos milicianos no quartel das Caldas da Rainha (4/1/1972).
Frequentei a especialidade de Informações e Operações no quartel de Tavira.
Fui mobilizado fazendo parte da CCS do BCaç 4512/72, que saiu do Quartel de Tomar, com o posto de fur milº Inf.Op. de Infantaria.
No dia 6/12/72, bem cedo (6 horas da manhã?), apanhei o comboio, para Lisboa, na estação da CP de Tomar. Cerca das 18 horas de 6/12/72 embarquei, no Uíge, com destino à Guiné.
Ao final da tarde do dia 12/12/72 cheguei a Bissau e na manhã de 13/12/72 desembarquei. De imediato segui para o treino operacional que decorreu no Cumeré.
Nas primeiras semanas de Janeiro de 1973 o Bcaç 4512/72 vai para o sector de Farim. A CCS e o comando ficaram em Farim e é aí que permaneço até Agosto de 1974.
O meu nome, no meio militar. era de Amílcar, e para quem ainda tem dúvidas da autenticidade de quem fez o contacto, dir-lhe-ei que o meu nome é Amílcar Carreira.

O Carlos Silva tem razão; o modo como cada um percepciona a verdade depende de várias variáveis.

Quanto aos comentários do Manuel Marinho terei que acrescentar algo, tentando nunca trair o que disse no 1º e-mail, relativamente à verdade dos factos e de quem devia ter prioridade na narrativa.

1 - Um olhar subjectivo sobre o conflito (guerra): cada qual tem a sua visão e não vou entrar por aí.

2 - A 1ª coluna de reabastecimento a Guidage é que sofreu os 4 mortos e todos na manhã seguinte à 1ª emboscada.

2.1- Furriel miliciano Bento, atirador, pertencia à Ccaç 14, e até ali, tinha sido o professor dos militares. Era de Vila do Conde (falámos horas intermináveis sobre a guerra e de assuntos de carácter geral)

2.2 - O Cabo miliciano da 1ª Companhia BCaç 4512/72, diziam que era dos Açores. Só o via quando os furriéis de Nema vinham tomar café ao nosso bar, Farim.

2.3 - Os 2 militares (penso que um era cabo e outro soldado, mas sem a certeza), identifiquei-os como ambos pertencentes à Ccaç 14. O Manuel Marinho diz que um pertencia à 3ª Compª do BCaç 4512/72, aceito que ele esteja certo.

3 – No que respeita ao regresso a Farim (13/5/73), domingo, da coluna constituída pelos militares que tinham feito parte da 1ª e 2ª colunas de ajuda a Guidage, como é óbvio, elas tinham saído de Farim durante a semana. Esta coluna trazia de volta o Comandante de Batalhão, Cor Vaz Antunes, que tinha ido a Guidage, na 2ª coluna que saíu de Farim, e por imposição expressa do General Spínola. Não questiono a presença de mortos na coluna descrita pois o que mais me marcou foi ver os corpos enfaixados seminus e os medicamentos a serem administrados por via venosa.

4 - É verdade que o soldado auto da nossa CCS morreu, mas foi no aquartelamento de Guidage, enquanto que no e-mail anterior só mencionei os mortos que aconteceram na 1ª/2ª emboscadas.

Aproveito este contacto para fazer uma correcção e repor a verdade dos factos em relação à narrativa do ex-fur milº Araújo.
Depois de ter feito seguir o meu ficheiro sobre o soldado africano que assassinou o alferes, verifiquei que o Araújo, mais uma vez, foi rigoroso, pois refere que o oficial foi assassinado por causa de um reforço, mas que não sabia o que estava na origem do diferendo. Ao Araújo as minhas desculpas se sentiu que os meus comentários feriram de algum modo a sua narrativa.

Durante muitos anos tive dúvidas se devia revelar o que tinha vivido na guerra (não é o caso de ter conhecimento de acontecimentos extraordinários). Mas não terão sido todos extraordinários? Ainda hoje as dúvidas subsistem…

Ao Bento, estejas onde estiveres, descansa em paz. Sei que finalmente estás bem.

A todos os ex-combatentes vai um abraço fraterno e sem mágoas,
Amílcar


3. Comentário de CV:

Caros camaradas Marinho e Amílcar, a troca de argumentos dentro da cordialidade e frontalidade só podem levar a um caminho, o da verdade.

Com efeito, ficou-nos alguma dúvida quanto à identidade do Amílcar, embora nunca duvidássemos de que se tratava de um camarada que de algum modo esteve perto dos acontecimentos de Guidaje. Agora sim estamos em posse de todos os elementos e podemos falar mais abertamente, rebatendo e utilizando a cordialidade como arma de arremesso.
Cada um de nós tem uma percepção do que viu e viveu, e só o ajuste de pormenores pode levar à verdade, se é que será possível chegar até ela volvidos todos estes anos.

Renovo o nosso convite ao Amílcar para se juntar a nós e colaborar neste registo de memórias que serão tanto mais fieis quantos mais depoimentos aqui forem feitos. Manda-nos as tuas fotos da ordem.

Ao camarada Marinho agradecemos a sua sempre atenta colaboração e a certeza de que tudo faremos para manter o nosso Blogue no caminho da verdade.

Carlos Vinhal
____________

Notas de CV:

(a) - Vd. poste de 31 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9425: O Nosso Livro de Visitas (125): Amílcar, ex-Fur Mil Inf Op da CCS/BCAÇ 4512 (Farim, 1972/74)Guiné 63/74 - P9311: (Ex)citações (171): A propósito de citações e comentário do Mais Velho (José Manuel Matos Dinis)

(b) Vd. poste de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4957: Tabanca Grande (173): Manuel Marinho, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Farim e Binta (1972/74)

(c) Vd. poste de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 – P6612: Estórias avulsas (89): Guidaje em revolta após Abril (Manuel Marinho)

Vd. último poste da série de 4 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9311: (Ex)citações (171): A propósito de citações e comentário do Mais Velho (José Manuel Matos Dinis)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8663: (Ex)citações (147): Guidaje – 1973. Esclarecimentos (José Manuel Pechorro)

1. O nosso Camarada José Manuel Pechorro, (ex- 1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19 - Guidaje -, 1971/73) enviou-nos a seguinte mensagem.

Camaradas,

Tentei introduzir uma resposta no poste P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado), em seguimento ao meu comentário no P8644, mas como o texto é extenso não consegui.

Assim, agradeço a publicação do texto e 2 fotos anexas sobre Guidage, no blogue, tentando responder às duas perguntas do Juvenal.

Amigo camarada Juvenal:

Estive com o Sr. Cap Cav Salgueiro Maia em Santarém, estagiei no Centro Cripto, na Escola Prática de Cavalaria.

No dia 29 chegou a 6ª coluna auto a Guidage, comandada pelo Sr. Cap Jorge Rodrigues (Cmdt da CCaç 14), onde vinham integradas a 38ª CCmds, parte da CCaç 4512, CCaç 3414 - Cumeré, Gr esp  mil 342 – Olossato, Gr Esp Mil - Farim (?) e CCav 3420.

Segundo conversas que ouvi, foi a 38ª CCmds que teve o principal embate com a guerrilha, durante o percurso…

Dei pelo aproximar do Cap Cav Salgueiro Maia ao posto de comando, onde estava próximo o Sr. Ten Cor Cav Correia de Campos, não dando mostra de esgotamento e vinha dizendo, já próximo e repetindo: "tenho ("8") homens que querem desertar para o Senegal", na presença de soldados do quartel e do Comandante de Guidage. Os soldados da CCav 3420 chegaram fortemente armados e muito cansados; reconheci um moço de Santarém.

Não li o livro deste oficial, que escreveu sobre o cerco, mas baseado em pequenos relatos que li neste blog, em:

Guiné 63/74 - P5774: Notas de leitura (63): Salgueiro Maia (2): Guidaje numa descrição digna do Apocalypse Now (Beja Santos), Sábado, 6 de Fevereiro de 2010:

"O chão estava lavrado por granadas, as casas, todas atingidas, pare-ciam ruínas, os homens viviam em buracos, luz e água não havia... como que para nos cumprimentar, pelas 21 horas somos flagelados por um morteiro de 82, com as granadas a cair em grupos de cinco e, para cúmulo, granadas nossas de 81 mm, das capturadas na coluna de reabastecimentos, agora disparadas contra nós. No dia seguinte, pouco depois do alvorecer, inicia-se a coluna de regresso com o pessoal que, até à data, tinha sobrevivido e que, para além dos sofrimentos de que já padecia, deitado sobre colchões velhos, saltava como pipocas cada vez que a Berliet passava num buraco".

E a descrição que ele faz de Guidage é perfeitamente dantesca:

"A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente des-truídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifí-cios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense que ficou sem uma perna uma farda nº 3, o que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da madeira quase cheia e inteira no meio de tudo partido. Com isto fiz uma pequena festa com três ou quatro homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.

Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito - consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os col-chões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde ele tinha vindo".

Noutra parte, que não recordo onde li, talvez no blog, seguindo a mesma lógica,  afirmou, salvo erro:

- "Dos cerca de 40 ou 50 ataques do mês anterior (Abril), em Maio Guidage sofreu 167!":
Em Abril sofremos um ataque com armas ligeiras no dia 6, o dia dos mísseis Strela e do abate das duas DO27 e do T6,e uma flagelação no dia 28.
Durante o mês de Maio fomos atacados e flagelados 45 vezes; sendo a última a do dia 29 pelas 21 horas. 36,foram antes do dia 19...

- “Em Guidage os mortos foram enterrados na parada!”

As campas foram abertas entre a vala e o arame farpado, próximo da caserna abrigo do 1º pelotão.
. . . . 0 . . . .

Trata-se de uma versão adaptada, de Guidage… Parece descrever uma batalha, de zona habitacional francesa, próxima das trincheiras da 1ª Guerra Mundial, tudo arrasado e destruído!

Fomos flagelados com granadas de mort 81 (1 ou 2 não explodiram) e deduzimos tratar-se das granadas que vinham nas viaturas da coluna Binta-Guidage, do dia 8 de Maio, acidentada com mina anti-carro e fortemente atacada durante a noite e madrugada do dia 9, foram abandonadas, sendo destruídas de imediato pela nossa aviação… Mas estas granadas apareceram 3 ou 4 dias depois da coluna, não a 29…

As moranças (casas da tabanca), edifícios do quartel e abrigos, em parte atingidos, não ficaram destruídos ao ponto de não continuarem a ser utilizados...


Foto adquirida ao 1º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (alentejano). Ao lado o espaldão do morteiro 81, vê-se o bloco de comando a casa do gerador e mota-bomba da água, o depósito, as viaturas e a porta da cantina de bebidas… Avistam-se embalagens das granadas do morteiro 81. O aspecto do terreno era este, as granadas de mort 82 e canhão s/ recuo quase não se notavam nesta terra dura… Os edifícios atingidos mostravam o que o tecto do comando mostra…

A enfermaria tinha placa em betão armado, atingida “duas ou três” vezes, aguentou e continuou a ser frequentada e utilizada.

Fotos adquiridas ao 1º Cabo Radiotelegrafista Janeiro (alentejano). Enfermaria depois de atingida 2 ou 3 vezes, por flagelação de morteiro de 82 mm. Tinha placa de betão armado a protegê-la…

A descrição do abrigo alvejado, na madrugada do dia 25, não corresponde... Faço ver o que aconteceu na P5479 de 16/12/2009. A granada de morteiro caiu e explodiu, no canto da placa, em cima da parede do abrigo. Devido á explosão os estilhaços do próprio tecto causaram as baixas sofridas... Só o canto do tecto de troncos de palmeira, enfraquecido pelo tempo ficou destruído. Os que estavam próximos do canto e do tecto foram atingidos. Um alferes madeirense (o Alf Mil Inf Luciano Dinis, da CCaç 19), ficou ferido com certa gravidade no abrigo, mas ficou inteiro... Não soube de Alferes que tivesse ficado sem uma perna, naquelas condições teria falecido… O pavimento do abrigo, tinha vestígios de sangue, mas não como está descrito... Eu vi logo que se fez dia. Este sim deixou de ser utilizado.

Havia um depósito de água, um gerador eléctrico e moto-bomba que tirava a água de um furo:

No quartel não faltou a água e nem a electricidade, embora houvesse cortes: Aguardávamos nas valas, e sem luz de propósito… segundo informações, teríamos um forte ataque de vingança (algumas deram a entender que o IN estava a abandonar a zona, depois do dia 19). Houve noites escuríssimas e também de luar que parecia dia.

Desligou-se o gerador, a certa hora, para poupar combustível, devido ao falhanço de 2 colunas que não passaram...

Chegamos a ter 800 homens juntos no aquartelamento, se levavam comida, retidos alguns dias, consumiam o que levavam, tinha que haver uma diminuição na quantidade e na qualidade. A vida degradou-se… Fui sempre comer as refeições ao refeitório, mas, algumas vezes fugi para o local de abrigo mais próximo…

As granadas de mort 82 não danificavam muito o terreno… Falo em flagelações com morteiro 120, a ter acontecido, só foi entre 22 e 25 de Maio... O Sr. Ten Cor Cav Correia de Campos afirmou tratar-se de mort 82... Mas as que explodiam no quartel, notava-se mais o local da explosão no chão endurecido.

O quartel de Guidage recebeu instalações novas, cobertas com chapa de zinco, feitas pela BEng em 71/72. Não havendo ataques ou flagelações, com retretes com chuveiro de água canalizada e luz do gerador, onde ia a avioneta do sector, “estávamos na cidade”…

Cobertas as valas interiores e demolidos a maior parte dos abrigos, restaram as 4 casernas abrigos dos 4 pelotões e se não erro 5 pequenos abrigos espalhados… O aquartelamento pequeno e superlotado, teve as suas consequências…

O Sr. Cap Cav Salgueiro Maia (e a CCav 3420), salvo lapso, abandonou Guidage, na coluna auto em 12/6/1973 onde foi o Sr. Ten Cor Cav António Valadares Correia de Campos. Substituído no terreno pelo futuro Cmdt do COP 3 Sr. Maj. Inf. Carlos Alberto Wahon da Costa Campos. Os 3 já morreram.

Com calma e serenidade, os que lá estiveram, cercados, numa batalha dura e cruel, vivendo a guerra! Concordará que a realidade não foi como está descrita pelo Ex. Sr. Cap Maia...

Quanto ao abandono de Guilege:


- Em Guidage recebemos mais "duas" flagelações em Junho: No dia 1 e a 17.

Não tenho a certeza se foram três, é provável que tenha sido mais uma no dia 11, que aconteceu o que descrevo: Ao chegar a coluna, cerca das 18,15 h, com mort 82. Durante 10 ou 15 m. Além dos estrondos, foram nítidos os clarões... Caíram na parada perto do comando e da enfermaria, local de maior aglomeração de soldados... A rapidez como desapareceram! Por milagre não tivemos baixas.

O Sr. Ten Cor Cav Correia de Campos estava no canto exterior do edifício do comando e não nos acompanhou em corrida para o refúgio do posto de rádio; apareceu e lá se meteu, foi das poucas vezes que o vi procurar abrigo. Fechamos a porta.

O suposto ataque de vingança, pelo nosso ataque a Cumbamory e a sua quase total destruição, tinha por fim reter as nossas forças operacionais no norte? Não chegando socorro a Guileje ou Gadamael nas devidas condições.

- Não quero julgar ninguém. Cada quartel teve a sua cruz... Não sou a pessoa habilitada para o fazer:

Em Bissau e o PAIGCV, certamente esperavam maior resistência em Guilege e se esta tem acontecido, não daria tempo para o socorro aparecer?

Um abraço a todos,
José Pechorro
1º Cabo Op Cripto da CCaç 19
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

11 de Agosto de 2011 >Guiné 63/74 - P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado) 

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8658: (Ex)citações (146): Guidaje - 1973, um comentário e algumas interrogações (José Manuel Pechorro / Juvenal Amado)

1. Comentário do dia 8 de Agosto de 2011 de José Manuel Pechorro (ex- 1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 19, Guidaje, 1971/73) ao Poste 8644:

Acabo de ler a postagem sobre a intenção do Nino desertar do PAIGC…

Na minha modesta opinião e sinceramente acredito na história descrita.

A batalha de Guidage (Estrada Binta – Guidage, os ataques e flagelações ao quartel, a acção da nossa aviação, e o nosso fortíssimo contra ataque contra a base do PAIGC em Cumbamory, que foi quase totalmente destruída, foi de facto uma pesada derrota para o movimento da guerrilha, que inseriu na zona cerca de 800 combatentes!

O PAIGC atacou e cercou uma companhia de recrutamento na Guiné, a CCaç 19, de etnia Mandinga e o Pel Art 24 com negros da tribo Balanta, sediados em Guidage. O Batalhão de Comandos Africanos, eram negros da província, que invadiram a base de Cumbamory; além de outras forças africanas da Guiné que participaram na batalha de Guidage… Esta gente teve papel preponderante na sua derrota! Deu-lhes que pensar.
Os negros africanos da Guiné faziam-lhes frente e combatiam por Portugal…

A operação Cumbamory desenrolou-se em confrontos no dia 19 de Maio de 1973, quem estava em Guidage a 5kms, ouviu todo o desenrolar dos combates. O Batalhão retirou para Guidage, onde chegou cerca das 18 horas, logo escurecendo, e foram aparecendo…

Cansados, alguns esgotados, sujos, enlameados, suados, carregando além do seu armamento pessoal, 1 ou 2 armas do PAIGC e espingardas G3 que encontraram nos armazéns do IN.

Ao chegar ao quartel deixavam-se cair no chão e adormeciam logo, em locais de risco, como perto do edifício do comando, longe das valas e até na parada os vi deitados…

No comando estiveram com o senhor TCor Cav Correia de Campos, os oficiais do Batalhão de Comandos Africanos, o Major João de Almeida Bruno (hoje General), os Cap António Ramos, Matos Gomes e Jamanca (negro) e o Alf Marcelino da Mata. O Cap Raul Folques foi para a enfermaria. A eles ouvi relatos do que acontecera durante o dia…

Escrevi que ao dormirem fora das valas estavam em alto risco! Ouvindo, um oficial branco comando disse-me: “Depois da sova que levaram, hoje não atacam Guidage. Estão a tratar dos feridos e dos mortos!”

Assim foi, o IN sabendo do mais provável ataque terrestre a Cumbamory, no dia 19 começou com uma flagelação cerca das 02h10 e outra 05h15, com morteiro 82 e canhão s/recuo, sem consequências; o dia 20 foi de descanso e só voltaram a incomodar no dia 21 cerca da 02 horas da madrugada, durante 30 minutos com morteiro 82 e canhão s/recuo, meteram as granadas quase todas na parada, numa noite de luar, fresquinha…

E será assim até desistirem, com flagelações de uma a duas por dia …

O seu esforço foi de tentar impedir a chegada de abastecimentos via estrada, que não conseguem evitar no dia 29 e onde a 38-ª Ccmds teve o principal confronto com o PAIGC no Cufeu…

O senhor Major Almeida Bruno deu-me o Relim da operação para remeter para Bissau, onde este descrevia o resultado da operação, que somado ao que ouvi na sala de operações aos oficiais comandos, desmente o que o senhor Manuel dos Santos “Manecas” (comissário político do PAIGC da zona norte) menciona no livro “A Última Missão”, do Maj (hoje Cor) Calheiros no que se refere a Cumbamory na batalha de Guidage. O senhor “Manecas” tentou limpar da história um acontecimento verídico: O PAIGC foi derrotado em GUIDAGE, e nesta batalha os soldados negros portugueses da Guiné tiveram papel de destaque no seu fracasso. É isto que eles não querem admitir... Porque tem ainda forte impacto político…

Se nós com 47 baixas mortais (brancos, e negros na sua maioria) nos angustiou; eles, com os seus cerca de 150 mortos (que já mencionei noutras intervenções) e a sua base principal na zona norte atacada e destruída, o abalo foi fortíssimo e compreende-se que o Nino procurou aproveitar o momento para dar outra solução para a Guiné Portuguesa… Os Mandingas da CCaç 19 não escondiam o seu desagrado em serem governados por Cabo Verde, se os portugueses abandonassem a Guiné…

Um abraço a todos,
José Pechorro
Ex-1.º Cabo Op Cripto –71/73
Ccaç 19 – Guidage - Guiné

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2. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1971/74), com data de 10 de Agosto de 2011:

Ao ler a excelente e muito completa discrição do camarada José Perrocho, sobre o que se passou em Guidage em 1973, assaltaram-me algumas duvidas que gostava de ver elucidadas.

O que desejo perguntar é se nesta batalha e na defesa de Guidage, esteve o capitão Salgueiro Maia? Figura que todos nós conhecemos e eu pessoalmente admirava e na verdade li um relato seu sobre penso eu, o mesmo período.

Se o Nino Vieira pessoa que sempre detestei, foi posteriormente o comandante operacional no Sul e do ataque a Guilege?

E por último volto aqui a fazer uma pergunta já noutro poste feita, se não estou em erro pelo C. Martins: - Porque não se defendeu Guilege? Porque não foram disponibilizados os meios que se utilizaram em Guidage? Porque foi pedida ajuda e ela não foi disponibilizada em tempo útil? Onde estavam os comandos africanos e brancos? Onde estavam os pára-quedistas? Os fuzileiros que raramente para aqui são chamados onde estavam? Porque só foram utilizados depois? A contra guerrilha não é atacar o inimigo quando ele se prepara para nos atacar a nós?

Já se tem falado aqui amplamente, sobre a diferença de seis combatentes portugueses para cada um do PAIGC, para além de blindados aviação, artilharia pesada e ligeira. Porque não se utilizou essa supremacia?

Por que é que um militar com o prestigio do General Spínola é substituído no comando da Guiné, quando ele foi o impulsionador da chamada dos Guinéus à sistema politico e militar do território, com a sua famosa acção psicológica?

Praticamente a nossa tropa nativa era equivalente em número de homens do PAIGC, mas eles com muito menos logística.

Por que se abandonaram zonas e nunca mais foram por nós ocupadas?

Como também já aqui foi referenciado o nosso governo levou jornalistas e observadores a alguns desses locais em visita relâmpago, mas não ficou lá ninguém a ocupar o terreno.

Já por mais de uma vez, foram apontadas como parte da revolta dos capitães, a situação militar na Guiné para além da ditadura na Metrópole. Também afirmações de que Angola era caso arrumado e Moçambique estava a caminho disso têm sido um constante. Se estávamos tão bem, por que se resolveram as coisas da forma que foram resolvidas? Acaso a Junta de Salvação Nacional não era composta por oficiais superiores com larga experiência nas questões Ultramarinas? Ou os galões que ostentavam saíram em alguma rifa?

O decréscimo da actividade das guerrilhas, que de repente reaparecerem com violência redobrada, são tácticas conhecidas em todo o lado. Não há frente nem retaguarda. É uma táctica movediça que obriga a quem ocupa, um esforço enorme de meios em equipamento e homens. São como incêndios que temam em reacender-se, depois de terem sido dados como extintos.

Quero deixar bem claro, que em nada belisco a valentia dos nossos soldados, que considero como os únicos no Ocidente, que aguentaram as condições em que vivemos na Guiné.

Desculpem mas estes casos já foram aqui aflorados por diversas vezes, mas porque num comentário, foi utilizada uma frase meio nebulosa ou fora do contexto, logo os assuntos em discussão descambam em ataques pessoais e ficam relegados para a velha «Guerra Perdida ou Ganha».

Como popularmente se diz Perguntar não Ofende, espero não ter melindrado ninguém.

Um abraço
Juvenal
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Notas de CV:

Sobre os acontecimentos de Guidaje, vd. postes de:

19 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5300: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - I Parte (José Manuel Pechorrro)

21 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5310: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - II Parte (José Manuel Pechorrro)

16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5479: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - Agradecimento e algumas informações (José Manuel Pechorro)

4 de Abril de 2010 Guiné 63/74 - P6105: (Ex)citações (63): O Ten Cor Correia de Campos foi um dos heróis de Guidaje (José Manuel Pechorro)

4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5763: Notas de leitura (62): Salgueiro Maia (1): Crónica dos Feitos por Guidage (Beja Santos)

6 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5774: Notas de leitura (63): Salgueiro Maia (2): Guidaje numa descrição digna do Apocalypse Now (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 7 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8646: (Ex)citações (145): Uma afirmação, um desabafo, uma pacificação (Joaquim Mexia Alves)