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sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20589: Notas de leitura (1258): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (42) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Entrou-se numa fase tranquila no BCAV 490, o bardo anda disfarçado de polícia militar e não se queixa.
Alguém que acompanha o blogue, que foi alferes em Moçambique, veio à estacada falar do seu irmão, um furriel miliciano do BCAV 490, louvado e condecorado. Impossível não acolher tão oportuna e benfazeja intervenção, oxalá que apareçam mais.
Põe-se termo às intervenções de Dutra Faria, o primeiro dos jornalistas que veio até à Guiné (uma série a que se podem juntar nomes como os de Amândio César, Horácio Caio e José Manuel Pintasilgo, série essa que culminará com um conjunto de reportagens de Avelino Rodrigues com uma polémica entrevista a Spínola onde se aflora a autodeterminação, pasme-se). E na linha do contraditório, dá-se a palavra a alguém que virá a ter reputação mundial como escritor e investigador dos movimentos revolucionários, Gérard Chaliand, que entre maio e junho de 1966 acompanhou Amílcar Cabral e outros dirigentes do PAIGC na região do Morés.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (42)

Beja Santos

“Continuamos a trabalhar
a missão desempenhámos.
Acabámos de rondar,
à Amura regressámos.

A placa contornando,
vemos as pernas às mocinhas.
Vão-se dando umas voltinhas
pela rua das montras passando,
à esquerda do sinaleiro voltando,
segue-se na rua à beira-mar.
Vêm-se os namoricos a gozar
nos bancos do jardim
e, com esta vidinha assim,
continuamos a trabalhar.

Voltando pelo mesmo lugar,
tomamos a rua do Hospital
e antes do quartel-general
tornamos à esquerda a voltar.
Aos Bombeiros vamos passar
e as duas gémeas miramos.
Ao Alto-Crim chegamos
e seguimos até à Flor do Minho.
E nas tabancas por outro caminho
a missão desempenhamos.

Passando ao Alto-Crim, novamente,
perto do Capitão se vai torcer
e as estudantes vamos ver
ao avançar prudentemente
à esquerda da rua em frente.
Vê-se a Milú a passear.
Ouve-se o Concha a tocar
com sua amabilidade
e correndo o resto da cidade
acabamos de rondar.

Temos que incomodar a rapaziada,
mandando apertar os botões
e manda-se desarregaçar os calções
e andar de farda asseada.
A malta às vezes é tarada,
e com eles nos chateamos
alguns malandrecos encontramos
que só obedecem a bastão
e levando-os ao nosso Capitão
à Amura regressamos.”

********************

O bardo prossegue a cantilena do quotidiano com roupagem de polícia militar, patrulham Bissau e não esquecem os namoricos. Aqui se faz um desvio e profundo. Acontece que quem acompanha o bardo escreve com regularidade num jornal de Tomar, com lastro de pergaminhos, O Templário. A propósito de uma recensão sobre Tomar e os seus tesouros, um leitor interveio com várias sugestões, Tomar não é só cidade, há tesouros pelas redondezas como Alviobeira, Asseiceira, S. Pedro da Beberriqueira, Bezelga, Carregueiros, Casais, Junceira, Madalena, Olalhas, Paialvo, Pedreira, Sabacheira e Serra, toca de inventariar tais tesouros de tais localidades. E depois de se apresentar como alferes miliciano de Cavalaria em Moçambique, onde permaneceu de outubro de 1972 a janeiro de 1974, na região de Cahora Bassa e de fevereiro a outubro de 1974 na Beira, lembrou que um seu irmão fora furriel miliciano de Cavalaria do BCAV 490. E deu pormenores, desta maneira:  
“Aqui vai a foto da Cruz de Guerra de 3.ª Classe com que o (então) Fur. Mil. Cav. António Augusto Pimenta Henriques Simões da CCav 488 do BCav 490 foi agraciado (entregue nas cerimónias do 10 de Junho em Tomar) pelos feitos em combate, designadamente em S. Nicolau na Ilha do Como - Guiné na Operação Tridente.
Irei fotografar o louvor do CMDT de Batalhão TCor Cav Fernando Cavaleiro que deu origem à condecoração e tempestivamente enviar-lho-ei.”


Mais tarde chegou o seguinte mail:

“Aqui vai a foto de um quadro com os louvores do meu irmão António Augusto Pimenta Henriques Simoes da CCava 488 BCav 490.”



E por fim o seguinte mail:
“Como prometi aqui remeto quatro fotos do meu irmão António Augusto Pimenta Henriques Simões (Fur. Mil. Cav. da CCav 488/BCav 490) em operações na Guiné 1963.1965.”





Um agradecimento profundo a João Manuel Pimenta Henriques Simões pelas cativantes lembranças que nos ofereceu sobre o seu irmão.
E voltamos a Dutra Faria e ao conjunto de textos intitulados “Na Guiné Portuguesa junto da Cortina-de-Ferro” que foram dados à estampa no jornal “Diário da Manhã”, inequivocamente ligado à ideologia do Estado Novo. O diretor da ANI – Agência de Notícias de Informação aproveita a oportunidade para referir movimentos rivais do PAIGC e não lhe escapou o despotismo de Sékou Touré e entrevista inclusivamente um fugitivo ao regime que se abrigou na colónia portuguesa. Deplora que uma boa parte dos portugueses não perceba que Portugal está em guerra contra o seu inimigo de estimação, o comunismo. Há a guerra, ele está absolutamente convicto que o terrorismo será em pouco tempo pulverizado, a rejeição dos verdadeiros guineenses é inequívoca. A sua reportagem culmina com uma visita a Bor, um asilo que tem funcionamento primoroso:
“Em Bor, os rapazes permanecem até aos sete ou oito anos, idade em que transitam, com largo pranto dos garotos e muitas lágrimas, também, nos olhos das Irmãs para outro asilo; as raparigas, porém, ficam até se casarem – ou até aos vinte e um anos, se acaso não se casam antes dessa idade. Aqui aprendem a ler e a escrever, a cozinhar e a costurar, a ter uma casa bem arrumada e a cuidar dos filhos que lhes hão de nascer um dia. Nas horas vagas, bordam, e das suas mãos saem então maravilhas só comparáveis aos bordados da Madeira e dos Açores.”

E a reportagem termina com um certo desconcerto:
“Ao sair pergunto à Irmã Rosa se os terroristas alguma vez as ameaçaram ou importunaram.
A resposta é encantadora:
- Porque haviam de fazê-lo? Nós educamos-lhes aqui as filhas…
Só Deus sabe, efectivamente, quantos dos indígenas que vemos pelos campos, debruçados para a terra a cavar, não trocam, à noite, a enxada pela pistola-metralhadora – ou, ao menos, não têm na palhota, bem escondido, o distintivo do PAIGC. Mas, se os pais ainda podem ser suspeitos, os maridos das raparigas que saem de Bor já são todos – e em grande parte graças à benéfica influência que sobre eles exercem as mulheres – portugueses dos melhores. E assim também combatem o terrorismo – à sua maneira – as seis boas freirinhas da Missão-Asilo de Bor”.

Findo este texto apologético de Dutra Faria, procura-se um contraditório, a viagem que Gérard Chaliand fez à Guiné entre maio e junho de 1966, é um dos primeiros brancos que acompanha Amílcar Cabral, atravessam a fronteira senegalesa, embrenham-se pelo mato, de piroga chegam a terra firme que os conduz ao Oio. Gérard Chaliand não esqueceu esta viagem e mais tarde no seu primeiro livro de memórias “La Pointe du Couteau”, Robert Laffont, 2011, revelará o entusiasmo que tal incursão lhe provocou, ficou marcado pela personalidade do líder do PAIGC. O seu livro “Lutte armée en Afrique” foi editado na Livraria François Maspero em 1967.
Investigador de reputação mundial em movimentos revolucionários, Chaliand começa por dizer que a luta armada mais consequente do continente africano era a que se desenrolava na Guiné, e menciona um comunicado do PAIGC, emitido em Conacri em 9 de maio de 1966, acerca da viagem em que Chaliand acompanhou Cabral. Tratou-se de uma itinerância pelo Norte, Cabral e a sua comitiva visitaram escolas, dispensários, bases de guerrilha e unidades das forças revolucionárias. O líder do PAIGC era acompanhado por Osvaldo Vieira e Francisco Mendes bem como por um responsável do MPLA e pelo jornalista e escritor francês Gérard Chaliand. Uma visita em que se percorreu Djagali, Maké e toda a base do Morés. Segue-se a narrativa da incursão.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 17 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20567: Notas de leitura (1256): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (41) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20577: Notas de leitura (1257): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20299: Efemérides (313): Na Guerra da Guiné, há 55 anos: A emboscada comandada por Osvaldo Vieira à escolta sob o meu comando, na estrada Mansabá-Farim, ao cair da tarde daquele 1.º de Novembro de 1964

1. Em mensagem de ontem, 31 de Outubro de 2019, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos um texto lembrando uma emboscada lavada a cabo no 1.º de Novembro de 1964, a uma coluna auto na estrada Mansabá-Farim, comandada por Osvaldo Vieira.


Na Guerra da Guiné, há 55 anos: 
A emboscada comandada por Osvaldo Vieira à escolta sob o meu comando, na estrada Mansabá-Farim, ao cair da tarde daquele 1.º de Novembro de 1964

A malta do 2.º Curso de 1963 do CISMI – Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, – merecerá o registo da história de excelente colheita.
Começámos em Agosto, saímos Sargentos tirocinados em Dezembro, mas, por “criatividade” dos nossos chefes militares, com o posto de Cabos Milicianos – para fazermos o serviço de Sargento ao custo do soldo de Praça.

Em 4 meses de recruta/especialidade, a “Academia Militar de Tavira” superiorizou 1200 instruendos a Hitler – ele saiu da tropa com o posto de Cabo “chico”.

A minha classificação final foi de 12,26 valores – só não tive notação negativa nos “trabalhos de estrada” – e, 0,2 de valor terão feito de mim o mais infortunado furriel da CCav 703, na Guerra da Guiné: não tive grupo de combate certo, fui obrigado a substituir todos os furriéis operacionais e 2 dos 4 alferes e acabei a comissão como comandante de 2 Grupos de Milícias. O Manuel Simas, que já nos deixou, era o segundo classificado, com 12,24 valores, e, na nossa interacção, se não foi a minha sorte grande foi a sua terminação – era mais capaz que eu.

A primeira substituição foi a do vagomestre, Furriel Aurélio Cunha, que dias após o desembarque baixou ao Hospital Militar 241.
O Aurélio Cunha será um prestigiado repórter, chegou a redactor principal do “Jornal de Notícias” e é autor do notável livro “Um Repórter Inconveniente”, está vivo e recomenda-se; o Manuel Simas será um escultor brilhante nos Estados Unidos, acabou professor no Ensino Secundário em Ponta Delgada e deixou-nos há 2 anos.

E foi no desempenho de vagomestre que eu e mais 11 nos vimos confrontados pelo carismático comandante Osvaldo Vieira e a sua malta, naquela emboscada, – a primeira sofrida pela CCav 703. Até então, apenas havíamos operado cercos, assaltos, etc.
O Comando-Chefe desencadeara a “Operação Confiança”, na sua pretensão de “limpar“ o Oio, à CCav 703 coube a missão do desimpedimento da estrada Mansabá-Farim, que o MLG e não o PAIGC havia pejado de abatises, desde 1962, o primeiro movimento armado independentista da Guiné, com o assalto e a vandalização de Susana, Varela, etc a seu crédito.

Montámos barracas cónicas chamadas “tendas coloniais” num descampado, arredores de Bironque, de dia uns faziam de militares-madeireiros, outros faziam patrulhas operacionais e de reconhecimento por água, em duas noites “embrulhamos” morteiradas de 82 – a sua segunda ou a terceira ocorrência na Guiné.
Levámos apenas atrelado-tanque de 10 000 litros de água, mas em Bironque não havia esse precioso líquido (viemos a saber que Teixeira Pinto se havia queixado do mesmo), não tivemos uma côdea de pão, passámos do rancho quente a rações de combate, as moscas passaram a enxamear o amontoado de marmitas não lavadas e, quando já tínhamos menos dum cantil per capita, o pequeno heli Alouette II das evacuações sanitárias, poisou com o Brigadeiro Sá Carneiro (tio do futuro fundador do PPD). O nosso enérgico Capitão Fernando Lacerda não era dado a tibiezas fizera subir o tom nas reclamações da falta do reabastecimento de água e o Comandante Militar, em vez de nos mandar gerricanes de água mandou-nos a sua presença – mas para admoestar e ameaçar o capitão com uma “porrada”. Mas deixou-nos um ensinamento: - Em tempo de guerra, as marmitas lavam-se com terra…

Nada tive a ver com a “Ordem de Operações” ou o estacionamento em Bironque, mas a sua falta de água sobrara para mim. A Guerra da Guiné também foi assim.
O nosso capitão disponibilizou-me o camião Mercedes, o seu condutor Domingos Pardal e uma esquadra, reforçada com os três elementos da cozinha, deu-me liberdade para acrescentar até 4 voluntários de folga (os outros operacionais tinham uma missão operacional), arregimentei apenas 3 voluntários, formei uma escolta de 12 fiz a lenga da praxe e lá fomos à água ao BArt 645, sediado em Mansabá. Eh, malta! Estou a sentir arrepios, à medida que vou recordando e evocando o acontecido, evidência que temos uma espécie de “disco rígido” que grava para a vida as nossas emoções fortes – o medo, no caso.

Troço da estrada Mansabá-Farim, com o Bironque sensivelmente a meio do caminho
Infogravura Luís Graça & Camaradas da Guiné

O Domingos Pardal dobrou o para-brisas, pusemos os óculos à aviador, tapamos as fuças com os lenços verdes, avançamos para Mansabá, a grande velocidade, levantado e deixando nuvens de pó, recebeu-nos um capitão “águia negra”, murmurou que só um maluco mandaria tão pequena escolta e disse-me, indicando 2 obuses 8.8 apontados para os lados de Bironque: - Vocês acabaram de passar no meio “deles”! A malta “águia negra” foi muito hospitaleira, emprestaram-nos toalhas para o banho, atestaram-nos o atrelado-tanque, abonaram-nos “vianda”, eu aviei meio casqueiro, uma lata de conserva de perdiz das Conservas Brandão e uma “bejeca” gelada.

O comandante de Mansabá mandou um pelotão escoltar-nos até meio do caminho, o seu Unimog avariou em plena mata, gastamos tempo a arranjar maneira de o ultrapassar, a noite tropical é rápida a chegar, o seu alferes disse-nos que o seu comandante permitia que regressássemos a Mansabá – mas a malta de Bironque desesperaria mais um dia sem água!
Como não era uma ordem, levantei os queixos e o olhar aos nossos, não houve reacção negativa, afivelei a máscara de sujeito decidido, saltei para o camião, lembrei-me e repeti a bravata do Henrique Galvão, no caso do Santa Maria: - Prá frente é que é o caminho!

Cerca de um quilómetro depois, desabou uma trovoada de rajadas e de rebentamento de granadas, todos voamos para o chão a ripostar, as balas faiscavam no taipal metálico e chicoteavam-me aos ouvidos, os sacos de areia em parapeito vertiam-na, um soldado dizia que estava cego, e, afortunadamente, as granadas rebentavam do outro lado da estrada. Dada a densidade da mata, os atiradores e granadeiros atacantes estavam-nos muito próximos, mas o outro lado era-nos seguro e campo da explosão das granadas deles.

O condutor Domingos Pardal continuou em 1.ª velocidade, deitara-se e orientava a condução pela porta aberta do seu lado, acelerava com uma mão e guiava com a outra, fiz-lhe o sinal convencional para arrancar e ao cabo da esquadra meu adjunto (lamento não me lembrar do nome) para retirarem a rastejar pela valeta, os atacantes encarniçaram o fogo sobre o camião e eu e mais 3 ficámos uns momentos na retaguarda, a dar segurança. Nesse momento e manobra localizámos os seus ninhos de tiro, os 4 despejamos 2 carregadores cada sobre eles, 160 balas, ouviram-se gritos e ruídos, deduzi que retiravam e também retiramos, a rastejar pela valeta.
 E já o Pardal vinha de marcha atrás com a malta, de regresso à “zona de morte”, porque ficáramos para trás. Rapaziada valente! Ao nosso encontro veio uma coluna de auxílio, comandada pelo capitão. Foram cerca de 10 minutos, que nos pareceram uma eternidade!

Moral da estória: O camião Mercedes, novinho em folha, tinha 17 impactos de bala na cabine, o taipal do lado do ataque estava todo cravado, os sacos de areia do seu peitoril estavam desfeitos, a primeira rajada atirara areia aos olhos daquele soldado, que recuperou, - mas o atrelado-tanque estava intacto!

Troço da estrada Mansabá-Farim em Fevereiro de 1971, pouco tempo após terminado seu asfaltamento. Ainda persiste o pó branco com que era coberto o alcatrão acabado de aplicar.

Foto e legenda: Carlos Vinhal

Sou recorrente nesta narrativa como preito de memória à malta que já partiu e de homenagem à malta ainda subsistente do BCav 705, do BCav 490, do BArt 645, da BCaç 507, do “Capitão do Quadrado”, com quem interagimos no norte da Guiné – no Oio e Morés.

E também não esqueço o Osvaldo Vieira, morto em desgraça, em Janeiro de 1974 e os bissau-guineenses que nos afrontaram de armas na mão, tão convencidos quanto nós, “por uma Guiné Melhor”.
Mereciam melhor sorte!
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20248: Efemérides (312): Mina anticarro em Canturé, regulado do Cuor, 16 de Outubro de 1969 (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52)

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19968: (In)citações (135): Achega II - E o PAIGC exaltou o Comandante Guerra Mendes a substituto de Salazar, na toponímia de Bissau (Manuel Luís Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) datada de 10 de Julho de 2019, com mais uma "achega":

ACHEGA II*

Protesto o meu respeito à laboriosa pesquisa histórica da Guerra da Guiné pelo Beja Santos, Jorge Araújo, José Matos, José Martins e de outros “camarigos”. Os seus actores não precisam de reescrever a sua história; mas, às vezes, sentimos a pulsão de chamar a “verdade dos factos” à colação das meias-verdades de muitos comunicadores.

O PAIGC foi fundado em 19 de Setembro de 1956, não por Amílcar Cabral (estava em Angola), mas por Rafael Barbosa, escriturário da construção civil, e por Fernando Fortes, chefe da Estação Postal Provincial, em Bissau, sob o acrónimo de PAI (Partido Africano da Independência), homónimo do Partido Comunista do Senegal, ambos militantes do Partido Comunista Português, no contexto do alinhamento deste com as conclusões anticoloniais da Conferência de Bandung, de Abril de 1955, e da proclamação do “direito das colónias à autodeterminação”, do XX congresso do PCUS, em Fevereiro de 1956.

Amílcar Cabral aderiu-lhe como militante e, em 1959, por negociação com os seus poucos pares e sem outra formalidade, Rafael Barbosa passou a presidente, ele a secretário-geral, Aristides Pereira a secretário-geral adjunto, objectivou-o também a Cabo Verde e mudou o seu acrónimo para PAIGC. O presidente manteve-se em Bissau, enquanto os dois secretários-gerais se expatriavam, avisadamente, – a PIDE instalara-se em Bissau no ano anterior. O PAI, o PAIGC, em Bissau, e o PAICV seu sucedâneo, na Praia, tiveram génese comunista e cabo-verdiana.

O PAIGC desencadeou a sua Guerra da Guiné nos princípio de 1963, com dois ataques à guarnição militar de Tite; mas, a Guerra da Guiné foi iniciada pelo MLG (Movimento da Libertação da Guiné), fundado em 1959, em Bissau, o primeiro partido emancipalista a desencadear ataques e emboscadas, nas áreas de S. Domingos, onde vitimou o Capitão de Cavalaria António Lopo Machado do Carmo, o primeiro oficial profissional a morrer em combate na Guiné, pilhagens a Susana e Varela e também atacou o aquartelamento de Bigene, iniciados em Julho de 1962 e activos até Fevereiro de 1964, até a manobra de Amílcar Cabral e o seu “charme” diplomático conseguir o desapoio da Organização da Unidade Africana e a perda da simpatia pela ONU.

O MLG expatriara-se para Dandula-Turene, Senegal, na sequência da agitação dos marinheiros de cabotagem, – a famigerada greve e o “massacre” do Pidjiquiti -, em Agosto de 1959, de sua inspiração e com o contributo do seu militante Luís Cabral, que virá a ser o presidente do PAIGC e primeiro PR da Guiné-Bissau, então guarda-livros da Casa Gouveia (Grupo CUF), empregadora da sua maioria. Esses ataques foram organizados e comandados por Pierre Mendy, um manjaco senegalês, já licenciado do exército francês e que combatera na Guerra da Argélia, e neles participou o guineense Momo Turé, que virá a ser um dos assassinos de Amílcar Cabral.

Os comandantes do PAIGC, que mais infernizaram a vida aos soldados portugueses e às populações, foram os 30 tirocinados na China, na “geração” de Mao-Tse-Tung.

O Rui Demba Djassi, era um jovem activo e turbulento duma família de funcionários públicos, residente na então rua de S. Luzia, entre o estaleiro da Tecnil e o Quartel-General do CTIG, desertara do EP para o PAIGC com o posto de furriel miliciano, e, antes de assentar praça, fora cobrador da Farmácia Moderna, muito dedicado à Dr.ª Sofia Pombo Guerra, comunista portuguesa e uma das mães da independência da Guiné (os guineenses não deixaram de ser polígamos na política…).

Foi o primeiro operacional dos primeiros 30 formandos militares e ideológicos na China, o primeiro instrutor da base de Koundara, vila da República da Guiné, a primeira base do PAIGC, à distância rodoviária de cerca de 30 quilómetros da fronteira com Buruntuma, foi nela que instruiu e foi dela que partiu o grupo de combate, o seu comando dividido com o Bobo Quetá, ex-futebolista de “Os Balantas” de Mansoa, para desencadear a sua guerra da Guiné, com esses dois ataques a Tite, no coração da Guiné - o de 6 de Janeiro, lançado sobre o edifício que encarcerava cerca de 100 “subvertidos” e o de 27 de Fevereiro de 1963, sobre a messe dos sargentos, ambos repelidos, no segundo foi decisiva a prestação da malta da “Maria Albertina”, autometralhadora Fox, do Pelotão de Reconhecimento enviado de Aldeia Formosa (Quebo), em reforço da guarnição.

Osvaldo Vieira, um dos principais formandos ideológico-militar na China, fora também empregado da Dr.ª Sofia Pombo Guerra, em Bissau, outro furriel miliciano desertor do EP, pontificava na Frente norte, Oio, Morés, etc., e, o seu primo Nino Vieira (terá sido cabo na guarnição da Guiné?), o principal formando na China, pontificava na Frente sul, há dois anos "enfeudado" com 300 combatentes, “pacificamente”, nas ilhas do Como, Caiar e Catunco - a sua “república independente” do Como, enquanto não foi extinta pelas NT, com a Operação Tridente, no primeiro trimestre de 1964.

Rui Djassi havia sido transferido para o posto de Vitorino Costa, irmão do Manuel Saturnino, morto no assalto das NT à tabanca de S. João, que tiveram a infeliz (no mínimo) ideia de passear a sua cabeça como troféu, transferido por Amílcar Cabral do seu posto do Gabú, quando falhava clamorosamente a sua subversão – os fulas eram refractários ao PAIGC e à sua mensagem.

Considerado o momento fundacional da nacionalidade bissau-guineense, iniciado em 12 e fechado em 16 de Fevereiro de 1964, no auge da Batalha do Como/Operação Tridente, o famigerado Congresso de Cassacá aprovou a sua “Lei constitucional” e o seu “Código de Justiça”, explicitadas pelo advogado José Araújo, ex-jogador da Académica de Coimbra. Invocando essa legalidade, no dia 17, Amílcar Cabral presidiu ao julgamento dum grupo de correligionários “criminosos”, entre os quais Rui Djassi, condenou três à morte por fuzilamento, o Nino Vieira e o Francisco Té providenciaram a execução, mas perdoou o Rui e deu-lhe a oportunidade de reabilitação no lugar do Vitorino Costa – expondo-o à maldição legada pela malta da CCaç 153, do RI 13 de Vila Real, e do seu capitão Carreto Curto, cuja morte havia decretado, como responsável da morte e da decapitação do Vitorino Costa.

Em 24 de Abril de 1964, dois meses depois, o Rui Djassi também foi eliminado pelas NT e Aristides Pereira mandou o Guerra Mendes para o seu posto, que lhe desobedeceu e que as mesmas eliminarão, um ano depois, em 14 de Fevereiro de 1965.

Quando o MLG e o PAIGC desencadearam a sua “guerra de libertação”, a Guiné-Bissau era uma criação territorial, administrativa e diplomática dos portugueses, mas apenas nominalmente portuguesa, sempre pertencera a guineenses e a cabo-verdianos – aqueles por direito próprio, como seus naturais, e estes como seu destino de emprego, nos serviços da administração pública, no comércio e serviços. Em 1961, havia menos de 1000 portugueses da Metrópole e ilhas adjacentes residentes na Guiné, contando os colonos, patentes militares e quadros públicos.

Os bissau-guineenses não se têm furtado ao reconhecimento que o continuado falhanço do seu Estado advirá do ADN ideológico do PAIGC, quando partido único e totalitário. A sua nacionalidade foi fundada por Amílcar Cabral, foi o PAIGC que a formatou em Estado, a matéria-prima era portuguesa, mas o seu modelo e metodologias eram fantasias, estranhas ao povo guineense.

Amílcar Cabral era português de Bafatá e a sua mulher Maria Helena era portuguesa de Chaves, ele acedeu e formou-se como bolseiro do Estado Português, a Casa dos Estudantes do Império, a cultura e a língua portuguesa foram a matéria-prima com que fundou a nacionalidade bissau-guineense, o seu conhecimento consolidado, como altos funcionários do Estado português, em Lisboa, Luanda e Bissau, iniciou os preparativos internacionais da sua luta com passaporte português, custeou as primeiras despesas da sua luta com escudos$ do seu ordenado e com escudos$ dos recursos da esposa, ter-se-á motivado ao tirocínio na China, para chefe militar, por ter sido oficial miliciano português e foi recrutar a primeira geração dos seus quadros combatentes ao Exército Português – sargentos e praças guineenses e oficiais cabo-verdianos.

Dos seus 60 primeiros quadros operacionais e ideológicos, construtores da nacionalidade e do Estado bissau-guineense, 30 foram mandados para a China, a tirocinar a luta de guerrilha, 25 para a Checoslováquia, a tirocinar para as polícias de segurança e para o controle político de partido único, e 8 para a União Soviética, a tirocinar Economia planificada. A ideologia de partido único, imposta nesses países, terá sido a sua má companhia.

O seu mais alto magistrado da Nação, o primeiro independente, ignorou a ética castrense da obediência ao poder instituído, e mandou fuzilar, alguns já julgados e absolvidos, cerca de 10.000 mil guineenses militares e militarizados, formados técnica e civicamente pelas FA portuguesas, em vez de os reconverter em FA nacionais da Guiné-Bissau.

Os quadros militares formados na China e noutros países de partido único, em vez de servirem o país, viraram as suas armas “libertadoras” contra o seu povo, usaram-nas para se servirem dele. Os quadros policiais, formados na Checoslováquia, em vez de servirem as populações e a administração interna, espiavam-nas e faziam desaparecer os que ousavam tecer qualquer crítica. E os quadros políticos formados na União Soviética não estilhaçaram a economia como delapidaram a generosidade financeira da comunidade internacional. E o tráfico de cooperantes pouco lhe valeu…

O destino foi muito cruel com Amílcar Cabral e menos com a sua ex-mulher. Morreu como como português emigrado, conselheiro Técnico contratado pelo ministério do Desenvolvimento Rural da República da Guiné, e, diplomaticamente, como Mohamed Benali, cidadão marroquino, e é cidadão bissau-guineense póstumo. A Maria Helena, divorciada desde 1966, foi sempre portuguesa, fará carreira como docente da Universidade do Minho e acabará os seus dias em Braga, em 2005.

E o PAIGC exaltou o Comandante Guerra Mendes a substituto de Salazar, na toponímia de Bissau.
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OBS: - Subtítulo da responsabilidade do editor
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Notas do editor

(*) - Vd. poste de 3 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19943: (Ex)citações (353): Uma achega referida à circunstância da morte em combate de Guerra Mendes, comandante do PAIGC (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703 / BCAV 705)

Último poste da série de 11 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19883: (In)citações (134): Os Coirões de Mampatá, CART 2519 (1969/71) (Mário Pinto, 1945-2019)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19437: PAIGC - Quem foi quem (12): Rui [Demba] Djassi, nome de guerra, Faincam (1938-1964), antigo comandante da região de Quínara, hoje "Herói da Pátria"







Citação:
(s.d.), "Relatório", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40094 (2019-1-24)  (Com a devid avénia...)

Casa Comum > Instituição:Fundação Mário Soares
Pasta: 04609.056.036
Título: Relatório
Assunto: Relatório remetido a Amílcar Cabral, Secretário Geral do PAIGC, por Rui Djassi (Faincam), acerca da repressão da população daquela zona pelas tropas coloniais.
Data: s.d.
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência 1962 (interna).
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos



Transcrição / revisão  / fixação de texto: LG


Camarada Cabral:

A situação está difícil. O povo não pode fazer revolta em grande parte; porque serão massacrados como acontece no Cubisseque [península de Cubisseco, a sudoeste de Empada, vd. carta de Catió].

E de maneira [que], passando mais dias, nem dentro  [, no mato,]  podemos estar .

A lavoura está quase parada,  porque se te virem entrar no mato é logo tiro. Para trazer-nos comida é difícil.

A dificuldade surge dia a dia.

O número dos mortos pode  alcançar 12.

Do camarada Djassi (FAINCAM)



1. O que terá acontecido ao Rui Djassi (Faincam)? - pergunta o nosso editor Jorge Araújo (*)


O seu nome deixou de constar na estrutura da «guerrilha», então aprovada no Congresso de Cassacá, em 17 de fevereiro de 1964,  sendo substituído por Guerra Mendes [que irá morrer em combate, em 9 de maio de 1965, em N'Tuane (Antuane)], conforme se pode ler no preâmbulo das  decisões tomadas então tomadas (*)

 (...) "Todos os responsáveis e militantes do Partido sabem que a zona 8 [região de Quínara]  sofre ainda as graves consequências duma direcção que não esteve à altura das suas responsabilidades e ainda da acção nefasta e dos erros cometidos por alguns responsáveis dessa zona. 

Depois do nosso Congresso, os camaradas Arafam Mané e Guerra Mendes, encarregados de melhorar urgentemente a situação da zona 8, fizeram, juntamente com outros camaradas, o melhor que puderam para cumprir a palavra de ordem do Partido. Mas esses camaradas mesmos são os primeiros a reconhecer que as coisas não vão muito bem na "zona 8", onde a situação é agravada pelo desaparecimento do responsável Rui Djassi, cujo paradeiro ninguém conhece, embora seja certo que está vivo".(...) 


E mais se acrescenta (*):

(...) "Nestas condições, todo o trabalho feito na zona 11 e nas outras regiões do país, está a ser prejudicado pela situação má em que se encontra a zona 8.

Por outro lado, a experiência feita no norte do país em que todas as zonas se encontram sob a chefia e responsabilidade dos camaradas Osvaldo Vieira e Chico Mendes (Té) mostra que é possível fazer o mesmo no sul, enquanto se prepara a nova fase da nossa luta. Quer dizer, todas as Zonas do Sul (11, 8 e 7) devem ficar sob a direcção centralizada dum pequeno número de responsáveis, directamente ligados ao Secretário-Geral do Partido. É portanto necessário fazer uma reorganização da direcção do Partido, da luta no sul do país, com a maior urgência possível.

No Ponto I.8, lê-se (*):

(...) " Os ex-responsáveis de zonas, camaradas Rui Djassi (Faincam) e Domingos Ramos (João Cá) devem vir imediatamente ter com o Secretário-Geral do Partido, passando as suas funções respectivamente a Guerra Mendes e Abdoulaye Barry"  (...).

Terá sido o Rui Djassi mais um "erro de casting" do Abel Djassi (aliás, Amílcar Cabral) ? É possível, mas o líder histórico do PAIGC também não tinha muito por onde escolher... De qualquer modo, um, Rui Dkassi (Faincam) e outro, Domingos Ramos (João Cá), desapareceram cedo, muito antes do "pai da Nação"... Um em 1964, outro em 1966.


2. O Bobo Keita, sobre o seu camarada Rui Djassim  diz o aegyuinte  no seu "livro de memórias" (in Norberto Tavers de Carvlaho - De campo em campo: Conversas com o caomandante Bobo Keita,edição de autor, Porto, 2011, pp. 237/238):

"Parte V - Guerrilheiros caídos no campo da honra (....)

Rui Djassi

O Rui  Djassi comandava toda a zona de Quínara. Tinha a sua base em Gampará. Cheguei a passar por aí quando íamos para o Congresso de Cassacá em 1964 [, de 13 a 17 de fevereiro de 1964; na região de Quitafine e não na ilha do Como, que na altura estava sob ataques terrestres, navais e aéreos das NT, no decurso da Op Tridente].

Na altura, pela maneira como se comportavam na base, notava-se logo que em situação de emergência, havia um perigo certo. Só quem não tivesse nenhuma noção de estratégia e de defesa poderia aceitar aquela situação. Os camaradas procediam a rituais animistas, cantando, dansando, bebendo o vinho do cibe [ou vinho de palma].

A base vivia num constante ambiente de frenesim. Foi assim que foram surpreendidos pela tropa portuguesa. Os tugas lançaram então a ofensiva. Escolheram um momento onde o rio estava na sua fase de plena enchente. O rio separava a base duma grande mata que se situava do outro lado da base. De forma que, quando houve o ataque, apanhados de surpresa, muitos camaradas tentaram ganhar o rio para atravessar e porem-se a salvo na outra margem.

O Rui Djassi tentou os mesmos gestos mas acabou pro morrer afogado no rio. O seu corpo desapareceu nas águas desse rio e nunca mais foi encontrado. Isto aconteceu pouco depois da realização do Congresso de Cassacá, que teve lugar em fevereiro de 1964".



Em suma, tudo indica que o Rui [Demba]  Djassi morreu "sem honra nem glória", contrariamente ao Domingos Ramos.  Ambos são, todavia,  "heróis da Pátria", e existe a sua "campa" (, embora não tenha sido encontrados os seus restos mortais) no Memorial aos Heróis da Pátria, junto ao Mausoléu Amílcar Cabral no interior da Fortaleza de São José de Amura, em Bissau. Lá consta qye nasceu em 1938 e morreu em 1964.


3. E a  propósito do Rui Djassi, recupera-se aqui  o comentário do nosso camarada Manuel Luís Lomba, também ele estudioso da história do PAIGC, feito no poste P13787 (**), onde refere:

"O Rui Djassi era cobrador da Farmácia Lisboa, foi incorporado no Exército Português e desertou como furriel miliciano  para ir com o Amílcar Cabral e mais 29 para a China, tirocinar 'guerra revolucionária' e foi o 1.º a concluir tal formação. 

Residiu na estrada de Stª. Luzia e, quando surgiu na guerra, o pai ofereceu recompensa a quem o liquidasse. Foi o 1.º comandante de Quínara e terá sido o responsável do assassinato do irmão do Manuel Simões [, o Januário Simões], ora evocado por falecimento. Foi o comandante dos ataques a Tite, em Janeiro e Fevereiro de 1963, currículo que o terá safado das penas de morte decretadas por Amílcar no I Congresso de Cassacá, na altura da Operação Tridente". (*)


4. Há vários Djassi no PAIGC,o que pode levar a confundir quem trata a informação do Arquivo Amílcar Cabar (***):

(i) o próprio Amílcar Cabral usava como nome de guerra "Abel Djassi"

(ii) o Osvaldo Vieira tinha, como nome de guerra, "Ambrósio Djassi";

(iii) Leopoldo Alfama era o Duke Djassi (, atuava na região do cacheu);

(iii) aão sabemos qual era o verdadeiro do Rui Djassi, que se assina sempre Djassi (FAINCAM).

(iv) aparace um documento, no Arquivo Amílcar Cabral, datado de 24 de junho  1965, em Madina do Boé, e assinado por Djassi, que  não pode ser atribuído ao Rui Djassi (morto em 1964) mas simn ao Osvaldo Vieira (Ambrósio Djassi); aliás, não é só um documento, são vários, dando o Rui como comandante da base do Boé.

Numa revista académica brasileira, ODEERE (que  "publica trabalhos inéditos e originais desenvolvidos em torno das discussões sobre etnicidade, relações étnicas, gênero e diversidade sexual em diferentes tempos e espaços e abordando diversos grupos sociais, tais como indígenas, negros, africanos, mulheres etc."), encontrámos uma referência a Rui Djassi.

Mais exatamente à sua sobrinha, Nhima Muskuta Turé, nascida em Gampará (Fulacunda, Região de Quínara), em 1954...  Nasceu na "luta de libertação", era filha de combatentes, foi recrutada ("contra a sua vontade"), aos nove anos, pelo seu "tio Rui Djassi". Teve uma instrução rudimentar, foi enfermeira do PAIGC. Foi entrevistada em Bissau em 14/10/2009, era então enfermeira-chefe do centro de saúde de Belém, Bissau (****)-

5. Recorde-se, por fim,  que o Rui Djassi fez parte da segunda leva de militantes do PAIGC que foram enviados para a China, no 2.º semestre de 1960, para formação político-militar como futuros comandantes.

Rui Djassi fazia parte destes 10 futuros destacados dirigentes do PAIGC, hoje todos desaparecidos, uns em combate outros na "voragem da revolução" (com exceção de Manuel Saturnino da Costa)… Aqui vão, mais uma vez os seus nomes, por ordem alfabética:

(i) Constantino dos Santos Teixeira (nome de guerra, “Tchutchu Axon”);

(ii) Francisco Mendes (“Tchico Tê”) (1939-1978);  oficialmente terá morrido de acidente na estrada Bafatá-Bambadinca; mas também há ainda suspeitas de assassinato, em 7/6/1978; foi primeiro ministro e chefe de Estado;

(iii) Domingos Ramos: morto, em combate, em Madina do Boé, em 11 de Novembro de 1966; tem nome de rua em Bissau; foi camarada do nosso Mário Dias no 1º curso de sargentos milicianos  (CSM) realizado na Guiné, em 1959;

(iv) Hilário Rodrigues “Loló”: , comissário político, morreu em 1968, num bombardeamento da FAP, no Enxalé;

(v) João Bernardo “Nino” Vieira (1939-2009): natural de Bissau; ex-Presidente da República; nome de guerrra, "Marga";

(vi) Manuel Saturnino da Costa, o único que ainda é vivo: será 1º ministro entre 1994 e 1997, num dos piores governos do PAIGC, na opinião do nosso saudoso Pepito (1949-2014);

(vii) Pedro Ramos: fuzilado em 1977, às ordens de ‘Nino’ Vieira, ao que parece, no âmbito do chamado "caso 17 de Outubro"); era irmão do Domingos Ramos;

(viii) Rui Djassi: comandante da base de Gampará, n aregião de Quínara, morreu por volta de fevereiro de 1964, por afogamento na sequência de um ataque das tropas portuguesas;  tem nome de rua em Bissau;

(ix) Osvaldo Vieira (1938-1974=; morreu, por doença, em 1974, num hospital da ex-URSS, e com a terrível suspeita de ter estar implicado na conjura contra Amílcar Cabral (ironicamente repousam os dois, lado a lado, na Amura); era também conhecido como "Ambrósio Djassi" (nome de guerra); tem nome de rua em Bissau; o aeroporto internacional também ostenta o seu nome;

(x) Vitorino Costa (morto, numa emboscada n o 2º semestre de 1962, antes do início oficial da guerra, por um grupo da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, comandado pelo Cap Inf José Curto; a sua cabeça foi depois levada para Tite, como "ronco"; era irmão de Manuel Saturnino da Costa: e terá sido o primeiro revés de Amílcar Cabral, no plano militar; tem nome de rua em Bissau.
__________________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 24 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19433 (D)outro lado do combate (42): A nova estrutura político-militar do PAIGC decidida no I Congresso, de Cassacá, em 17/2/1964: os líderes do 1º Corpo de Exército Popular (Jorge Araújo)


(***) Último poste da série > 25 de novembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19232: PAIGC - Quem foi quem (11): Lourenço Gomes, era uma espécie de "bombeiro" para situações difíceis ... A seguir à independência era um homem temido, ligado ao aparelho de segurança do Estado (Cherno Baldé, Bissau)

 Vd. postes anteriores da série: 

3 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6102: PAIGC - Quem foi quem (10): Abdú Indjai, pai da Cadi, guerrilheiro desde 1963, perdeu uma perna lá para os lados de Quebo, Saltinho e Contabane (Pepito / Luís Graça)

7 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4473: PAIGC - Quem foi quem (9): Luís Cabral, entrevistado por Nelson Herbert (c. 1999)

4 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4460: PAIGC - Quem foi quem (8): O Luís Cabral que eu conheci (Pepito)

1 de junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

12 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

12 de dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

18 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2190: PAIGC - Quem foi quem (4): Arafan Mané, Ndajamba (1945-2004), o homem que deu o 1º tiro da guerra (Virgínio Briote)

6 de outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2159: PAIGC - Quem foi quem (3): Nino Vieira (n. 1939)

30 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2143: PAIGC - Quem foi quem (2): Abílio Duarte (1931-1996)

30 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2142: PAIGC - Quem foi quem (1): Amílcar Cabral (1924-1973)

(****) Vd, Patricia Alexandra Godinho Gomes  - "As outras vozes”: Percursos femininos, cultura política e processos emancipatórios na Guiné-Bissau.  ODEERE -  Revista do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade (PPREC), UESB . Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil

domingo, 25 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19232: PAIGC - Quem foi quem (11): Lourenço Gomes, era uma espécie de "bombeiro" para situações difíceis ... A seguir à independência era um homem temido, ligado ao aparelho de segurança do Estado (Cherno Baldé, Bissau)


Foto nº 1 > República da Guiné > Conacri > c. 1960  > Dirigentes do PAIGC, junto ao Secretariado Geral: da esquerda para a direita, (i) Osvaldo Vieira, (ii) Constantino Teixeira, (iii) Lourenço Gomes e (iv) Armando Ramos.  

Recorde-se que o "estado-maior" do PAIGC instalara-se em Conacri em maio de 1960. A foto deve ser do ano de 1960, já que em janeiro de 1961 Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira faziam parte do grupo de futuros históricos comandantes, mandados por Amílcar Cabral para a  Academia Militar de Nanquim, na China, para receber treino político-militar. Uns meses antes, em agosto de 1960. Amílcar Cabral em pessoa tinha-se deslocado a Pequim para negociar o treino dos quadros do PAIGC na Academia Militar de Nanquim.  No grupo de quadros do PAIGC que vão nesse ano para a China incluem-se, além dos supracitados Osvaldo Vieira e Constantino Teixeira, os nome de João Bernardo Vieira [Nino], Francisco Mendes, Pedro Ramos, Manuel Saturnino, Vitorino Costa ], irmão de Manuel Saturnino],  Domingos Ramos [, irmão de Pedro Ramos e amigo do nosso Mário Dias], Rui Djassi, e Hilário Gomes.

Foto (e legenda): Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral  > Pasta: 05222.000.084 (adapt por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2018, com a devida vénia...)


1. Comentário do nosso editor LG:

Não era um tipo qualquer, este Lourenço Gomes (*)... Escrevia bem português, tinha estudos, devia ser natural de Bissau, talvez papel,  e, no início da guerra, pertencia ao "Comité Executivo da Luta"... Parece ser, pelo que se lê,  algo "enrascado", "queixinhas" e "timorato"... mas sensível aos gravíssimos problemas de assistência médico e hospitalar dos guerrilheiros e população evacuados para os hospitais no exterior (Senegal e Guiné-Conacri)... Quantos, centenas e centenas, não terão morrido por falta de medicamentos e outro material médico-hospitalar básico?...

Vamos encontrá-lo, em escassas fotos do Arquivo Amílcar Cabral, muito jovem (c. 1969) ao lado de outros dirigentes do PAIGC, e mais tarde (entre 1963 e 1973) como membro do "Comité Executivo da Luta" (Foto nº 2).


Foto nº 2 >República da Guiné > Conacri > c. 1963-1973  >  Reunião de responsáveis do PAIGC [Comité Executivo da Luta].  Da esquerda para a direita: (i) Lourenço Gomes, (ii) Honório Chantre, (iii) Victor Saúde Maria, (iv) Abílio Duarte,  (v) Pedro Pires, (vi) Luís Cabral e (vii) Aristides Pereira.


Foto nº 2 A > República da Guiné > Conacri > c. 1963-1973  >  Reunião de responsáveis do PAIGC [Comité Executivo da Luta].  Detalhe: Da esquerda para a direita: (i) Lourenço Gomes, (ii) Honório Chantre, e (iii) Victor Saúde Maria.

Foto (e legenda): Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivo Amílcar Cabral  > Pasta: 05247.000.074 (adapt por Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2018, com a devida vénia...)

Tivemos, entre as NT,  muitos erros de "casting", muitos dos nossos comandantes (e nomeadamente oficiais superiores, comandantes de batalhão) não tinham mesmo jeito para a guerra... Foram só preparados para a tropa e as suas burocracias... O busílis é que, quando há uma guerra, e é preciso saber liderar (, que não é a mesma coisa que chefiar...). E liderar é literalmente "ir à frente, mostrando o caminho"...

O PAIGC tinha, naturalmente, o mesmo problema. Este desabafo do Lourenço Gomes é mesmo de um homem, vulgar, como qualquer um de nós, à beira de um ataque de nervos... Este Lourenço Gomes não tinha fibra de revolucionário... Até onde é que ele chegou ?... Talvez o Cherno Baldé nos possa dar uma dica...

(...) "Estou sujeito a ser preso dum momento para o outro, pois o proprietário da Farmácia, constantemente me manda cobrar.

"A minha situação é semelhante a de um náufrago, que já cansado de nadar e com as forças esgotadas se deixa morrer. Assim também, não será de admirar e até será muito possível o ter de qualquer dia abandonar o meu lugar, sem esperar ordens superiores, não significando isso falta de respeito ou disciplina, mas sim, só saturação e canseira até ao esgotamento." (...)

Era bom que os nossos médicos e enfermeiros pudessem comentar... Andam muito arredios do nosso blogue...


2. Comentário do Cherno Baldé, nosso colaborador permanente:

Caro amigo Luís,

O Lourenço Gomes (suponho que é o mesmo), não é tão fraquinho como parece nesta imagem de missivas de 1965. Era de muita confiança e devia ser uma espécie de "bombeiro" para situações difíceis. 

No período pós-independência, o Lourenço foi o primeiro responsável do Partido a trabalhar com as chefias militares do exército português com vista a entrega das instalações e quartéis de Bissau. Deve haver muitas referências sobre ele nos contactos havidos com a parte portuguesa e, sobretudo a resolução da situação dos Comandos e soldados Guineenses que combateram do lado português.

Esteve depois ligado aos serviços da segurança do Estado, mesmo depois do golpe militar de 14 de Novembro de 1980 [, liderado por 'Nino' Vieira contra Luís Cabral]. Deve ter morrido de doença numa idade avançada, em finais dos anos 90 ou inícios de 2000. Era muito temido, como todos os da segurança num país de ditadura pseudo-revolucionária. (**)

Com um abraço amigo,
Cherno AB
________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 23 de novembro de  2018 > Guiné 61/74 - P19224: (D)o outro lado do combate (38): Carta de Lourenço Gomes, datada de Samine, 3 de março de 1965, dirigida a Luís Cabral, expondo a dramática situação da farmácia do PAIGC (Jorge Araújo)

3 de abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6102: PAIGC - Quem foi quem (10): Abdú Indjai, pai da Cadi, guerrilheiro desde 1963, perdeu uma perna lá para os lados de Quebo, Saltinho e Contabane (Pepito / Luís Graça)


4 de junho de 2009 >  Guiné 63/74 - P4460: PAIGC - Quem foi quem (8): O Luís Cabral que eu conheci (Pepito)

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18623: (Ex)citações (336): Guerra da Guiné: Paixão e Morte em Madina do Boé (Manuel Luís Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) com data de 6 de Maio de 2018, trazendo-nos uma reflexão sobre a Paixão e Morte em Madina do Boé:


Guerra da Guiné: Paixão e Morte em Madina do Boé

Este escrito é motivado pelo P18585, um testemunho da Guerra da Guiné na primeira pessoa do T-General Pilav José Nico, que aqui invoco como resposta a uns “ historiadores e cientistas sociais”, que se têm feito notar pela pretensão de rescrever a nossa História, à revelia do seu curso e carácter - qual “produto tóxico”, susceptível de adulterar Os Lusíadas em “Os Expansíades”. 


Meus caros: 
Primeiro a gesta dos Descobrimentos e depois a saga da Expansão!

De onde vem esse vento? Compare-se a memória descritiva do cubano Óscar Oramas, embaixador e comissário de Fidel Castro junto do PAIGC, com a do então Capitão José Aparício, comandante da CCaç 1790, contidas nesse post e referidas aos mesmos factos acontecimentais e à tropa nomadizada em Madina do Boé.

A região do Boé foi também um dos “amores” da malta operacional do BCav 705, transferido de emergência para o Leste, em Maio de 1965, e calhou à CCav 704 assentar arraiais em Madina e Béli, comandada pelo então Capitão Fernando Ataíde.
Nove meses após essas operações, em Fevereiro de 1966, ia em trânsito de Bissau para Buruntuma no DO do correio, ao levantar voo em Béli o seu lado esquerdo foi cravejada de balas, os vinte e tal impactos sofridos inutilizaram-lhe o rádio, quase arrancaram o ombro e o braço ao seu furriel piloto, este começou a exclamar “maldição! maldição!”, seguiu-se-lhe o desmaio, comigo, ileso mas na maior das aflições, a tentar fazer um torniquete à abundância da hemorragia, a esbofeteá-lo para o manter consciente; e lá sobrevoamos a linha da fronteira e aterrámos em Buruntuma, quase por gravidade, as nossas fardas de caqui muito ensanguentados – a dele pela gravidade das suas feridas e a minha pelo sangue delas.

Três meses depois, a nossa CCav 704 foi rendida pela CCaç 1416, comandada pelo Capitão Mil.º Jorge Monteiro (que será condecorado com a Medalha de Prata de Valor Militar com Palma), com formação agronómica como Amílcar Cabral, o vencedor de Domingos Ramos, ex-furriel mil.º do Exército Português, um dos mais altos quadros do PAIGC, a desempenhar-se como comandante da Frente Leste, abatido no primeiro momento em que desencadeava um poderoso ataque a Madina do Boé, enquadrado por militares do exército regular cubano, já então responsáveis pelos 4 mortos e muitos feridos graves daquela Companhia.

(Fidel Castro foi o único líder mundial a investir militares do seu exército regular em solo português ultramarino, com a missão de matar soldados portugueses. Sem trazer à colação a sua directa prestação no desastre da descolonização de Angola, merece repúdio o facto de, recentemente, S. Ex.ª o PR e Supremo Comandante das nossas FA´s Marcelo Rebelo de Sousa ter movido mundos e fundos, para lhe ir apertar a mão e o reverenciar…).
 
Quem não se sente não é boa gente.

É sabido que a estratégia de correr a tiro a Europa da África começou a ser preconizada pelos americanos e impulsionada por Lenine, a partir de 1916, que foi o armamentismo e o expansionismo ideológico da União Soviética a patrociná-la, mas que Amílcar Cabral optara por tirocinar a estratégia e táctica para a sua Guerra da Guiné na Academia Militar de Pequim, terá bebido do próprio Mao-Tsé-Tung as lições para transformar a Guiné no “calcanhar de Aquiles” do Ultramar português e bebido do generalíssimo vietnamita Giap a escolha de Madina do Boé, para palco dos eventos decisivos à fundação da Nacionalidade bissau-guineense.

Considerado eufemisticamente como o “Algarve da Guiné”, no entanto sem mar mas com chuvas diluvianas, o Boé (Madina, Beli e Lugajole) tornara-se uma “paixão” na Guerra da Guiné, comum aos seus senhores, o General António de Spínola e o Secretário-geral Amílcar Cabral. Mas enquanto este operara na região (mas além fronteira), com pompa e circunstância e nas barbas da guarnição militar portuguesa, que não usou o direito à perseguição, por razões políticas, a transformação da guerrilha nas FARP, uma espécie de exército convencional, estacionava a sua “roulotte” numa das suas colinas – a colina Cabral – passava lá temporadas, premonitória das suas intenções de Comandante supremo, o Comandante supremo de Bissau operará a sua primeira desistência, com a operação da retirada da guarnição de soberania de Madina do Boé, saldada com 46 mortos dos seus militares, no confronto com o general natural – o rio Corubal.
Retirada da maior transcendência e significado político, porque concedeu ao PAIGC o único território “libertado” de facto, para palco da formalidade da proclamação unilateral da independência da Guiné; e como conquistou Madina do Boé e Béli sem o cerco nem o assalto das suas FARP, o PAIGC transferirá tal manobra para Guidaje, Guileje e Gadamael, abortada sobre Buruntuma.

O alto comandante Osvaldo Vieira, inspector das FARP, também ex-furriel miliciano do Exército Português, delfim e herdeiro político e testamental de Amílcar Cabral, primo direito de Nino Vieira, este a mais alta patente da luta militar do PAIGC, no rescaldo do golpe do assassínio de Amílcar Cabral, viu-se desterrado e acabará os seus dias em Madina do Boé, diz-se que fuzilado nas vésperas da crise dos três G´s (Guidaje, Guileje e Gadamael) à ordem dos seus pares do Conselho Superior de Luta, maioritariamente cabo-verdianos.

O General Spínola tirocinou a guerra na Frente Russa, sob a égide do General Paulus e do exército nazi, e Amílcar Cabral tirocinou-a na Academia Militar de Pequim, privando com Mao e com Giap; a diferenciação abissal entre o pensamento e planeamento militar de ambos na Guerra da Guiné decorrerá dessa contingência?
Amílcar Cabral esforçava-se para chegar a toda a Guiné; ao trocar o vencer pelo aguentar o General Spínola contrariou o mundo darwiniano: o mais fraco sobreviveu ao mais forte.
O abandono da soberania em Madina do Boé pelo General Spínola e a retirada de Guileje pelo Major Coutinho e Lima, serão efeito da mesma causa, não obstante escrutináveis como decisões ao arrepio da disciplina e da lógica militar.


Invoquemos a História: 

Nas guerras Fernandinas, o adiantado-mor da Galiza, General Pêro Rodriguez Sarmiento, montou cerco ao castelo de Monção, na fronteira, com o fim de o fazer capitular pela fome. No seu desespero de causa, a alcaideza Deu-la-deu Martins mandou cozer a fornada do último cereal, atirou os pães aos sitiantes, também dele necessitados, a exclamar: 
- “Tomai perros famintos! E mais vos darei, se o pedires!”. E ele viu-se forçado a levantar o cerco.

Em 1949, “Berlim ocidental” estava para a Europa livre, como Madina do Boé estaria para a “libertação” da Guiné. Os Aliados fizeram abortar o cerco montado pelo Exército Vermelho com uma ponte aérea, que durante um ano os abasteceu de tudo, sem descurar as flores de decoração, gosto tão cultivado pelas mulheres berlinenses.
Em 1999, no decurso do 50.º aniversário desse acontecimento, no aeroporto berlinense de Schonefield, colhi um poster de um avião DC 4 Skymaster, cheguei à fala com um dos seus veteranos pilotos, que me concedeu um autógrafo.


Circunstâncias especiais exigem homens especiais. E de Portugueses sempre os houve.

O post do T.-General José Nico evidencia que, em 1968-69, não obstante a sua mais evoluída estratégia e tácticas, o PAIGC estava a ser empurrado para as cordas da derrota – o momento psicológico desperdiçado para a resolução da Guerra da Guiné, sem vitórias nem derrotas e, sobretudo, sem o abandono. António Salazar, que era estadista, cai, derrotado pela cadeira do forte do Estoril e a cátedra da Universidade negara a clarividência a Marcelo Caetano, que era jurista. O ónus da criação das condições à eclosão da guerra ultramarina e de não lhe pôr termo em tempo útil recai sobre um e sobre o outro.

O PAIGC rearmou-se e ganhou fôlego, enquanto a cristalização da estratégia e tácticas militares criava anticorpos na comunidade castrense e a estagnação do governo de Lisboa faziam engordar as oposições, interna e externas, à guerra ultramarina.
Amílcar Cabral passara a frequentar Moscovo em vez de Pequim e, para reforçar a sua expansão ideológica, numa demonstração que as aviações não ganham as guerras, mas que as decidem, a União Soviética prometeu-lhe a construção de um aeródromo-base militar no Boé dotado de MIG´s, no contexto da sua estratégia, que esbarrará na oposição de Sekou Touré, por lição do assalto a Conacri, sob o argumento que se PAIGC detinha dois terços do território da sua Guiné, teria muito espaço para essa base.
Se os generalíssimos Mao e Giap foram boas companhias, Sekou Touré foi uma má companhia de Amílcar Cabral, eventual portadora da sua desgraça pessoal; o facto de a Guiné-Bissau ter virado em destroço da descolonização será o preço a pagar pelo seu erro de ter preferido, para a sua empresa da libertação, o déspota e sanguinário guinéu ao senegalês Leopold Shengor, culto, democrata e humanista. Amílcar Cabral vivia em contacto tanto com as evidências anti-humanas do colonialismo de Portugal como com as do “socialismo real”, imposto e vigorante na China, Cuba, União Soviética, Europa do Leste, Guiné-Conacri, etc.
Poderá ser entendido como futilidade, mas a história e a evolução da Guiné-Bissau seriam certamente diferentes.

Esse post também evidencia a visão míope da Guerra da Guiné, por parte da liderança do governo de Lisboa.
Por investigação publicada pelo tabanqueiro José Matos, sabemos que o Secretário de Estado da Aeronáutica da altura relatou e instou o governo a dotar as FA de aviões e da panóplia de misseis e antimísseis, já objecto de estudo especializado, compatíveis com o arsenal da parceria da União Soviética com o PAIGC, que tardará 5 anos a fazê-lo, apenas em 1974, “já Inês estava morta”. E não foi por falta de oferta nem de dinheiro - que tudo é capaz de comprar -, como se viu, pela disponibilidade da França, Alemanha, África do Sul e Israel. Não estávamos endividados, o Banco de Portugal possuía quase 1000 toneladas de reservas de ouro, e constituíra uma reserva de 12 meses de divisas de cobertura às importações, garantidas pelo suor e o patriotismo dos portugueses na diáspora.

Pela falta de capacidade, de raio de acção e de letalidade da aviação de Bissalanca, o êxito da acção sobre Conacri resultou parcial e, em 1973, a mesma aviação que impediu ao PAIGC a formalidade da declaração unilateral da independência em Guileje, não tinha capacidade para a impedir no Boé.
Por ironia em que o destino é fértil, será a ameaça desses MIG´s nos céus de Bissau, invisíveis porque não existiam, a precipitar o golpe militar do 25A74…

Que os mortos combatentes dos dois campos da Guerra da Guiné descansem em paz, que os sobrevivos estejam descansados e com a melhor saúde e que o encontro de Monte Real tenha alimentado o corpo e robustecido a alma da sua malta grisalha.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18488: (Ex)citações (335): a crítica "agridoce" de Mário Beja Santos ao meu livro "Guiné-Bolama, história e memórias" (Fernando Tabanez Ribeiro)

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Guiné 61/74 - P17520: (De) Caras (80): Maria Sofia Pomba Guerra (1907- c.1970), mais uma "desterrada política", tal como Fausto Teixeira, elogiada pelos históricos dirigentes do PAIGC

1. O nome de Fausto Teixeira parece estar hoje esquecido (espero bem que não esteja proscrito ...), ao não contar da lista dos "antifascistas da resistência"... Pelo menos não aparece na lista das 600 personalidades que constam, como tal,  no respetivo blogue e na respetiva página do Facebook (" notas biográficas de cidadãs e cidadãos que lutaram contra o fascismo e o colonialismo").

Provavelmente falta-lhe um biógrafo ou um "advogado", mesmo que oficioso... Mas o mesmo acontece com outros dos seus companheiros de desventura:  de facto, também não contam dessa lista os nomes de Gabriel Pedro (1898-1972) (igualmente desterrado para a Guiné e depois para o Tarrafal, tal como o seu filho Edmundo Pedro) e de Manuel Viegas Carrascalão (1901-1977) (operário gráfico, anarcossindicalista, preso sob a acusação de bombismo e de pertencer,  tal como Fausto Teixeira e Gabriel Pedro, à "Legião Vermelha", acabando por ser desterrado para Timor em abril de 1927, no navio "Pêro de Alenquer", numa viagem que vai demorar  5 meses, com passagem por Cabo Verde, Guiné, onde desembarcam alguns deles e entram outros, e Moçambique onde é rendido o comandante do navio.). 

Admite-se que, no caso do Fausto Teixeira, a omissão do seu nome  seja  devida, pura e  simplesmente, ao facto de lhe terem perdido rasto, desde que, com 25 anos, foi desterrado para a Guiné, em 1925, não pelo "fascismo" da Ditadura Militar / Estado Novo mas pela I República. 

De qualquer modo, a Guiné e  Timor era dois dos piores sítios do nosso glorioso Império para onde o Estado mandava os desgraçados dos "desterrados políticos", sendo ali entregues à sua sorte. Para este inferno, que eram estas duas colónias, iam em geral os indivíduos de profissões manuais ou, no caso de militares, os soldados e os marinheiros. 

Até no exílio e deportação, todos eram iguais mas uns eram mais iguais do que outros.
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[Foto acima: Maria Sofia Carrajola Pomba  Amaral da Guerra, cortesia do blogue "Silêncios e Memórias", editado por João Esteves]


2. O nome de Fausto Teixeira (ou Fausto da Silva Teixeira] aparece associado ao de Maria Sofia Carrajola Pomba [Amaral da Guerra, por casamento], sobre a qual colhemos as seguintes informações, a partir dessa página do Facebook e outras fontes na Net:

(i) nasce a 18 de julho de 1906, em São Pedro, Elvas, distrito de Portalegre (terra igualmente de uma militante pioneira do feminismo, a médica Adelaide Cabete, 1867-1935);

(ii) licencia-se em Farmácia pela Universidade de Coimbra, no princípio dos anos 30 (no ano lectivo de 1926/27, está no 2º ano, segundo apurámos por conta própria);

(iii)  a partir de meados da década de 30, vai para Moçambique [deve ter sido em 1933:
vd. GUERRA, Maria Sofia Pomba - Dois anos em África / Maria Sofia Pomba Guerra. - : Ed. do Autor, 1935. - XIII, 206 pp.]

(iv) em Lourenço Marques, publica alguns estudos sobre frutos silvestres e produtos exportáveis, é analista no Hospital Miguel Bombarda, lecciona na Escola Primária Correia da Silva, onde tem como aluno o poeta, jornalista e activista moçambicano Rui Nogar (1932-1993);

(iv) terá aderido ao PCP - Partido Comunista Português, em Lourenço Marques, por intermédio de um  ferroviário, o  Cassiano Carvalho Caldas [1915-c..2002/03, ], no final da década de 1930 ou princípios de 1940;

(v) mantém naquela cidade do Índico uma  militância activa, colabora nos jornais "Emancipador" e a "Itinerário", publicação editada entre 1941 e 1955, participa entre 1947 e 1948, na construção de uma estrutura comunista local [Fonte: José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal, vol. 3] e desenvolve, juntamente com Noémia de Sousa, actividades no âmbito do Movimento dos Jovens Democratas Moçambicanos, versão local do MUDJ da metrópole, integrando a direcção;

(vi) em 1949, torna-se na primeira mulher branca a ser presa e deportada para a metrópole: apresentada na PIDE em 23 de novembro de 1949, fica detida em Caxias até 4 de julho de 1950; será então libertada por ordem do Tribunal Plenário de Lisboa, por ter sido absolvida;

(vii) parte a seguir  para Cabo Verde, onde se junta ao marido, médico,  colega de Coimbra [ Platão Zorai do Amaral Guerra] e dali para a Guiné, onde vem a ser proprietária da Farmácia Lisboa;  ensina inglês no Liceu de Bissau (acabado de fundar) [não fica claro se vem para a Guiné como "deportada" ou se de livre vontade...];

(viii) em Bissau, vai procurar reatar a sua actividade política, juntamente com o empresário Fausto Teixeira e o médico Gumercindo de Oliveira Correia: segundo Pacheco Pereira [Álvaro Cunhal, vol. 3];

(ix)  Sofia Pomba Guerra era vigiada pela PIDE (instalada em Bissau a partir de 1957), que sabia que a farmacêutica recebia e fazia circular revistas comunistas francesas e panfletos portugueses, procurando mesmo organizar células comunistas no seio da população trabalhadora urbana (incluindo o incipiente operariado);

(x) o seu apoio, ao embrionário nacionalismo independentista, é reconhecido pelos históricos dirigentes do PAIGC  que não poupam elogios ao seu papel na luta anticolonialista, nomeadamente no auxílio à organização clandestina de reuniões, na prestação de informações relevantes sobre prisões iminentes, como a de Carlos Correia, e na preparação de fugas, como a de Luís Cabral (auxiliado também por Fausto Teixeira);

(xi) está associada, em 1958, à fundação do Movimento de Libertação da Guiné (MLG) (mais moderado que o PAIGC, defendendo uma solução de tipo federalista entre a Guiné e Portugal);

(xii) na sua farmácia trabalham destacados futuros combatentes do PAIGC como Epifânio Souto Amado e Osvaldo Vieira (este, um dos principais combatentes do PAIGC, morto em 1974, mas igualmente suspeito de envolvimento no complô contra Amílcar Cabral que levaria ao seu assassinato em 20/1/1973);

(xiii) Amílcar Cabral [Bafatá, 12/9/1924-Conacri, 20/01/1973], com quem Sofia convive na década de 50, no discurso pronunciado num Seminário de Quadros do PAIGC, efectuado entre 19 e 24 de novembro de 1969, refere-se à contribuição de dois brancos [Fausto Ferreira e Sofia Pomba Guerra]  na fuga de Luís Cabral da capital guineense, afirmando explicitamente que “uma pessoa que teve influência no trabalho do nosso Partido em Bissau, foi uma portuguesa", e acrescentando: "só quem não está no Partido é que não sabe isso. Ao Osvaldo, a primeira pessoa que lhe ensinou coisas para a luta, foi ela, não fui eu. Eu não conhecia o Osvaldo” [Amílcar Cabral, Alguns Princípios do Partido, pp. 21-22];

(xiii) mais tarde, Luís Cabral, nas suas memórias, a Crónica de Libertação [1984], evoca os contactos que manteve com esta “deportada para a Guiné", com a ficha na PIDE e a indicação de se tratar de "um elemento altamente perigoso”:  e acrescenta:  “embora vigiada pela polícia política, cujo chefe veio morar mesmo em frente da sua casa, retomou na primeira oportunidade as suas actividades políticas”;

(xiv) relaciona-se com Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Luís Cabral, a quem dá lições de Inglês do 7.º ano do liceu, e muitos outros;  “apesar da posterior separação da actividade anticolonialista do movimento geral antifascista, a dr.ª Sofia Pomba Guerra continuou, como no passado, a ser a amiga e conselheira de cada um de nós” [idem]; foi ela quem apresentou Aristides Pereira a Amílcar Cabral quando este chega à Guiné no início dos anos 50;

(xv) o rótulo de "desterrada política antifascista e comunista" (sic) acompanha-a por todos os locais por onde passa  mas isso nunca a impedirá de intervir politicamente e manter-se fiel às suas ideias;

(xvi) morre sem chegar a ver a  independência, da Guiné-Bissau,  em data que não sabemos precisar, talvez no início da década de 70;

(xvii)  muito mais tarde, Luís Cabral terá reencontrado em Portugal o marido, o dr. Guerra, “que parecia estar sempre muito distante das actividades da esposa, [mas] era um grande patriota e democrata português que encorajava e apoiava essa actividade” [idem], com a filha mais nova Tafia;

(xviii) é autora de várias publicações  de natureza económica e científica, em Moçambique, outras: “Fruta de Moçambique” (1936), “Alguns frutos silvestres de Moçambique” (1938), “Alguns produtos exportáveis de Moçambique e os seus mercados externos” (1939);

(xviii) colaborou ainda  com o Centro de Estudos Culturais da Guiné Portuguesa:  vd.  GUERRA, Maria Sofia Pomba - Amendoim e palmeira do azeite : pilares económicos da Guiné portuguesa / Maria Sofia Pomba Guerra. In: Boletim cultural da Guiné portuguesa. - Vol. VII, nº25 (1952), p.9-83.
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Fonte: Adapt.com a devida vénia, do blogue "Silêncios e Memórias", editado por  João Esteves > 12 de junho de 2015 > [0998.] Maria Sofia Carrajola Pomba Amaral da Guerra [I]

Vd. também a nota biográfica da autoria de historiador João Esteves com colaboração de Helena Pato, sendo a fotografia,  acima publicada, enviada ao João Esteves por uma das netas da biografada, Maria Leonor Guerra Rodrigues Eisman > Página do Facebook Antifascistas da Resistência.
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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17512: (De) Caras (86): Francisco Augusto Regalla (1871-1937), médico militar: a história de uma família ou de um clã (Juvenal Amado / Manuel Coelho / Armando Tavares da Silva / Patrício Ribeiro / Ricardo Regalla Dias-Pinto)

sábado, 28 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16998: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (5): O I Congresso do PAIGC em fevereiro de 1964, em Cassacá, a sul de Cacine, e a importância social da saúde e da instrução literária, analisada na base central do Morés em março de 1964 - Parte II







O nosso colaborador assíduo do blogue, Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494. Xime e Mansambo, 1971/74): tem já mais de 110 referência no nosso blogue; ainda está no ativo, é professor universitário, doutorado em ciências do desporto. Este texto, a publicar em duas partes, foi submetido ao blogue em 4 de janeiro de 2017]



O I CONGRESSO DO PAIGC EM FEVEREIRO DE 1964 NO SUL E A IMPORTÂNCIA SOCIAL DA SAÚDE E DA INSTRUÇÃO LITERÁRIA, ANALISADA NA BASE CENTRAL (MORÉS) EM MARÇO DE 1964


II (e última) Parte


Um mês após a conclusão do I Congresso de Cassacá, na Frente Sul, os responsáveis da Frente Norte, Ambrósio Djassi [nome de guerra de Osvaldo Vieira; 1938-1974] e Chico Té [nome de guerra de Francisco Mendes; 1939-1978] tomaram a iniciativa de convocar uma reunião para o dia 21 de março de 1964, sábado, a realizar na Base Central [Morés] entre os responsáveis de bases e os sub-comisssários [políticos] com o objectivo de estudar e discutir as novas fases do desenvolvimento da luta, e ao mesmo tempo para pôr todos os camaradas ao corrente das resoluções aprovadas na reunião de Cassacá.

No final da reunião do Morés foi elaborado o respectivo relatório, que foi remetido ao Secretário-Geral, e por este recebido em 4 de abril de 1964, onde se fez referência aos temas tratados, ao conteúdo de cada intervenção e ao nome de todos os responsáveis que nela tomaram parte, num total de cinquenta e seis elementos.

Eis os dez pontos da Ordem do Dia [dos Trabalhos]:



1. - Mudança de Táctica

2. - Criação de novas bases
3. - Recrutamento e treinos
4. - Política
5. - Disciplina Militar
6. - Alimentação
7. - Saúde
8. - Instrução literária
9. - Segurança e controle
10. - Ligação.



Como ponto extra foi abordado o “ataque ao Enxalé” e analisada a sua necessidade.

Considerando a extensão do documento, constituído por doze páginas A4 manuscritas, iremos abordar neste texto somente os pontos 7 e 8, relacionados com os assuntos sociais – saúde e educação –, aliás em conformidade com o exposto na introdução.

Esta opção é justificada pelo facto de termos vindo a tratar o tema da saúde utilizando as memórias e experiências vividas por médicos cubanos no apoio à guerrilha, cujos relatos são posteriores a este evento (dois anos; com início em junho de 1966).

Já reproduzimos ao altop deste poste a folha de rosto, ou 1.ª página, onde consta o que acima foi referido.


Ponto 7 - SAÚDE


{Ambrósio] Djassi
– Tudo o que já fizemos e pensamos fazer é devido ao estado normal da nossa saúde. Passo a palavra ao nosso camarada Simão Mendes [enfermeiro] para nos apresentar o relatório elaborado em colaboração com os outros camaradas da saúde.


Simão Mendes
– Digo aos camaradas que vou relatar 10 pontos principais conforme o relatório que fizemos:

1 – Medicamentos: - os medicamentos passarão a ser requisitados trimestralmente, requisitando só os medicamentos de maior consumo na Guiné, dando uma regalia aos guerrilheiros como ao povo. Requisitar materiais de pequena cirurgia o mais breve possível.

2 – Doentes para a fronteira: - mandar urgente para a fronteira todos os feridos ocasionados por ferimento de balas uma vez que não há já recursos locais para a sua extracção. Formar um grupo de transporte de doentes ou feridos graves para a fronteira. Esse grupo será nomeado pelo responsável pela Zona Norte.





3 – Preparação de Ajudantes de enfermagem para outras bases: - serão escolhidas meninas e rapazes para receberem noções de socorros urgentes e de enfermagem.

4 – Escala de Serviço e sua conveniência: - far-se-á uma escala de serviço nomeando cada enfermeiro para a sua responsabilidade diária.

5 – Ginástica, sua necessidade e inconveniência: - a ginástica continuará a ser feita como dantes, isto é, todos os dias principalmente para os recém-chegados.

6 – Visitas guiadas às bases: - deslocação quinzenalmente às bases; nesta visita o enfermeiro escolhido procurará colaborar com o povo estudando assim as doenças de 1.ª instância. Serão construídas duas barracas para consultas.

7 – Noções ligeiras de primeiros socorros aos guerrilheiros: - fazendo parte da guerrilha é lícito que todos os guerrilheiros tenham noções de primeiros socorros. Oferecemos a nossa boa vontade neste momento.

8 – Higiene e sua conveniência: - fazendo parte da saúde, para evitar certas doenças, devem todos os guerrilheiros seguir os princípios da higiene do vestuário e limpeza de barracas.

9 – Escala de serviço e sua conveniência: - far-se-á uma escala de serviço, nomeando cada enfermeiro para a sua responsabilidade diária. (Este ponto é igual ao 4).

10 – Colaboração mútua em tudo que diga respeito ao nosso movimento com o povo e guerrilhas: - colaborar com a nossa população explicando a todos as inconveniências que o abuso excessivo dos medicamentos pode ocasionar. Paciência absoluta, dando ao povo explicações do emprego de medicamentos.




Resolução:


Todos os camaradas estiveram de acordo com as proposições dos camaradas da saúde e resolveram criar forças para garantir a execução do que está acima indicado.



Ponto 8 - INSTRUÇÃO LITERÁRIA



Djassi
– Depois de tudo devemos começar a pensar na instrução dos guerrilheiros e do povo. Hoje podemos dispor de alguns livros apanhados e que já empregamos para o mesmo fim. Os camaradas que vieram de Bissau vão ser distribuídos nas bases para começarem a instrução literária.

Chico Té
– Devemos fazer esforços para pôr isso em prática o mais breve possível apesar de poucos meios do que nos dispomos actualmente.


Luís Gomes – Neste ponto posso dizer que é muito importante para a nossa vida e o desenvolvimento da nossa terra. A instrução não é só para crianças mas sim também para adultos.






Resolução:


Todos os camaradas estiveram de acordo neste ponto, e os camaradas que vieram de Bissau vão ser distribuídos nas bases a fim de começar com a instrução literária. Devido à falta de material escolar solicitamos aos dirigentes superiores do Partido o envio de algum material neste campo.


Citação:
(1964), "Relatório da reunião entre os responsáveis de bases e os sub-comisssários da Base Central", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40112 (2016-12-28)


Fonte (,com a devida vénia...):

Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 04613.065.157
Título: Relatório da reunião entre os responsáveis de bases e os sub-comisssários da Base Central.
Assunto: Relatório da reunião entre os responsáveis de bases e os sub-comisssários da Base Central, assinado por Chico Té (Francisco Mendes) e Ambrósio Djassi (Osvaldo Vieira). Ordem do dia: mudança de táctica, criação de novas bases, recrutamento e treinos, política, disciplina militar, alimentação, saúde, instrução literária, segurança e controlo e ligação. Ataque de Enxalé.
Data: Sábado, 21 de Março de 1964.
Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul e Leste).
Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Documentos


Em função do exposto, e em jeito de conclusão, podemos dizer que a organização do PAIGC, passados quinze meses do início da sua luta armada, ainda era excessivamente precária, onde os adjectivos: instável, delicada, insegura, débil e pobre, enquanto sinónimos, completam o seu quadro mais global.

Mas poderia ser diferente para melhor? Não creio… pois tudo na vida é processo e projecto.

Obrigado pela atenção.
Um forte abraço de amizade e votos de boa saúde.
Jorge Araújo.
4jan2017.

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Nota do editor:

Último poste da série 26  de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16991: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (4): O I Congresso do PAIGC em fevereiro de 1964, em Cassacá, a sul de Cacine, e a importância social da saúde e da instrução literária, analisada na base central do Morés em março de 1964 - Parte I