Mostrar mensagens com a etiqueta Recruta. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Recruta. Mostrar todas as mensagens

domingo, 9 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12815: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (23): Santarém, onde volto por necessidade, por gosto e por desgosto de ver desaparecer algumas das minhas referências (Hélder Valério de Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Hélder Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 2 de Março de 2014:

Caro Editores

Já faz tempo que não colaboro com nenhum escrito para o Blogue.
Coisas da vida! Mas hoje resolvi enviar-vos este texto para ser enquadrado no tema da "Cidade ou Vila que mais amei ou odiei antes da mobilização".
Trata-se de Santarém e da sua EPC e Destacamento.
Ainda não tinha visto por aqui ninguém recordar essa passagem e entendi por bem fazê-lo. O problema é que não tenho fotos da época e por isso o texto pode ser pouco apelativo. Afinal tratam-se das minhas recordações e isso pouco pode interessar a terceiros, no entanto acho que por lá passou também muito boa gente e pode ser que se sintam encorajados a trazer a público as suas lembranças.

Abraços
Hélder Sousa


A CIDADE OU VILA QUE MAIS AMEI OU ODIEI, NO MEU TEMPO DE TROPA ANTES DE SER MOBILIZADO

SANTARÉM


Vista aérea da cidade de Santarém. Foto: InLut, com a devida vénia


Responder a esta questão não é fácil, porque as circunstâncias eram diferentes conforme se estava na recruta ou com uma ocupação mais ‘folgada’, aliás conforme já foi possível verificar por recordações de outros camaradas. Mas é uma boa questão, para se perceber melhor como é que nos relacionamos com essas recordações e se elas ainda ‘mexem’ connosco. Por isso, vou também entrar no jogo.

O meu percurso militar, antes de ser mobilizado, portanto, na “Metrópole”, foi Santarém, Lisboa (Batalhão de Telegrafistas), Tancos, novamente Lisboa, Porto e Lisboa (Adidos). Porque de todos esses locais guardo recordações, vou cingir-me hoje a Santarém.

E faço-o com muito gosto porque ainda não vi por aqui recordações da Escola Prática de Cavalaria [EPC], o que lamento, sabendo da importância que tal Escola teve nas nossas vidas, esperando sinceramente que possam surgir mais depoimentos.

Como o objectivo é saber, no fundo, como é que nos relacionámos ou interagimos com as terras e suas gentes, isto podia ser muito simples: antes de ir para Santarém, gostava muito, enquanto lá estive fui ganhando saturação ao ponto de pensar que “Santarém, nunca mais!” e hoje volto a ir lá por necessidade, por gosto e por desgosto de ver desaparecer algumas das minhas referências. É preciso dizer que sou ribatejano, que fui Furriel e até aqui estou coincidente com o Armando Pires, mas depois não fui enfermeiro nem fadista o que, valha a verdade, ainda bem, pois não tenho jeito.



Bissau - Bar de Sargentos. Santa Luzia. O Hélder Sousa com o Boavida, do seu tempo de recruta na EPC.

Ir a Santarém, antes da tropa, era normal. Ia lá muitas vezes, principalmente quando estava a passar alguns dias na minha aldeia. Fui lá às “sortes”. E apresentei-me no dia 15 de Julho de 1969 para integrar a 3.ª incorporação no 1.º Ciclo do CSM. Foi no Destacamento da EPC.

Durante esse tempo da recruta foram muito poucas as folgas, os dias em que se podia sair, dar uma volta pela cidade ou arredores, para que assim se pudesse conhecer melhor e dar agora a opinião. Como noutros locais em que se tinha que produzir rapidamente militares ‘prontos’, a formação era acelerada. E tenho a ideia que havia uma espécie de competição para ver quem fazia mais e melhores ‘sargentos milicianos’, nomeadamente entre a Cavalaria (Santarém), a Artilharia (Vendas Novas) e a Infantaria (Tavira), já que as Caldas da Rainha, não sei se só com fama se também com proveito, não contava para isso.

Essa competição fazia com que as recrutas fossem duras, por si mesmas, ou até por algum exagero para maior diferenciação. Devido às constantes actividades saía-se pouco à noite. O pessoal era fortemente castigado do ponto de vista físico, portanto tinha que descansar e as actividades nocturnas não eram raras. Daí que, para a generalidade dos ‘soldados-recrutas’, acredito que o conhecimento da cidade não pudesse vir a ser muito profundo. Já aqueles que depois, terminado esse 1.º ciclo, ficaram na própria EPC em qualquer das especialidades da Cavalaria, tiveram mais tempo e talvez mais oportunidades.

Não sei como era no curto tempo do fim-de-semana pois consegui vir sempre a casa, já que a distância não era muita (45 km) e havia ligações por camioneta e comboio. Quando se saía, os mais afortunados iam até Almeirim, às febras e à ‘sopa da pedra’. Fui lá 2 ou 3 vezes por força das amizades que sempre se vão fazendo com camaradas do Pelotão e que eram de lá, caso do Aranha Figueiredo e do Boavida, cujos conhecimentos ajudavam a ‘abrir portas’.

Refiro estes dois camaradas porque o Aranha, que foi para Moçambique, encontrei-o naquela “clara e límpida madrugada”, no Terreiro do Paço, onde pensávamos que íamos apanhar o barco das 07:00 para a Margem Sul onde trabalhávamos e o Boavida porque mais tarde me veio a encontrar em Bissau conforme foto anexa tirada no Bar de Sargentos em Santa Luzia.

A maior parte das vezes, quando havia dispensa de recolher, ficava-se ali perto, no “Verde Gaio”. Também ia até ao “Quinzena”. Visitar a “Adibis”, pastelaria fina, da elite ‘scalabitana’, das meninas estudantes, era quase proibitivo já que também estava ‘infestada’ de Oficiais. Enquanto civil, fui lá várias vezes, Enquanto militar, acho que só entrei uma vez e… chegou!

Santarém tem a particularidade de se espraiar por um planalto o que faz com que fosse para onde se fosse, para a carreira de tiro com acesso pela EN 3 a caminho do Cartaxo, para a outra carreira de tiro em Vale de Estacas, para a estrada da Estação da CP e ponte de Almeirim, fosse pelo “Colégio Andaluz” para a Quinta das Ómnias, à ida era sempre a descer e depois de completamente estoirados, o regresso seria naturalmente a subir, mas parecia sempre muito mais íngreme do que na descida. E quantas vezes, para ‘abreviar tempo’, se tinha que o fazer em ‘passo de corrida’? Daí que quando saí de Santarém tivesse pensado de forma determinada que nunca mais voltaria lá. Claro, puro engano!
Voltei lá, sim senhor, para tratar assuntos pessoais, para jantares de convívio, para rever locais, para visitar a minha mãe no Hospital e assisti-la no falecimento.

Tudo o que atrás disse tem a ver com a relação com a cidade, com os locais e as pessoas. Mas foi tudo condicionado pela actividade militar. Não será esse o tema mas não posso deixar de referir alguns apontamentos que me parecem relevantes ou interessantes. Muitas vezes tenho lido que o pessoal foi, na generalidade, mal preparado para a guerra, para o tipo de guerra que acabou por encontrar, principalmente na Guiné. A experiência que tive em Santarém diz-me o contrário. Lá, pelo menos naquele 3.º Turno do CSM, a preparação foi dura, exigente (talvez nada que se parecesse com os “especiais”, mas teve alguns pontos comuns), e fortemente voltada para o tipo de situações semelhantes à Guiné.

Claro que na altura não podíamos saber, mas eles, os instrutores, esforçavam-se por nos incutir a ideia que esse seria o nosso destino. Diziam isso amiudadamente e as nossas constantes idas às Ómnias podem hoje testemunhar como isso era verdade. Nas Ómnias, na orla do Tejo, com terrenos alagados, em charcos, em terrenos enlameados, em lagoas (numa das quais, mais funda do que se pensava, um dos instruendos do meu Pelotão ia lá ficando) encontrava-se e praticava-se em locais que quem teve o ‘privilégio de usufruir’ das bolanhas não deve ter achado estranho.

Particularmente duras foram as “24 horas de Santarém”, já no final da formação, em Setembro.
Nesse ‘evento’ todos os Pelotões saíram para um local comum, no Paúl, onde lhe foi dada a possibilidade de participar e assistir a progressões, emboscadas, golpes de mão, confrontos. Após isso, em que enquanto participantes estávamos lá em baixo no terreno cada vez mais enlameado por força da chuva e revolvido pelos passos dos ‘actores’ e enquanto espectadores estávamos num plano mais acima donde se podia assistir ao desenrolar dos acontecimentos, fomos agrupados em diferentes secções para desempenharmos as missões que nos foram dadas e das quais só podíamos regressar ao Destacamento às 08:00 do dia seguinte.

Como começou a chover uma chuvinha miudinha, mas persistente, praticamente desde que saímos do Quartel e que foi progressivamente engrossando e que durou todo o ‘santo dia’, aliviando já só sobre a madrugada alta, foram realmente umas “24 horas” de grandes dificuldades, em que se pode dizer que fomos ‘ensopados até aos ossos’. Recordo que cerca das 23:00 entrámos, o meu grupo (7?, 9?, não recordo) em Alcanede e habitantes apiedados da nossa situação e estado lastimoso, convidaram-nos a entrar para uma espécie de adega onde tinham um lareira e várias coisas para comer que nos facultaram. O pão soube divinamente, os chouriços, morcelas, queijos, etc., também, mas o que recordo ainda é o fumegar das nossas roupas, a evaporação da água incorporada, pois tirámos o que pudemos e ficou tudo junto à tal lareira.

Ficámos por lá até quase à madrugada e, conhecedores da região, foi então mais fácil dar conta da missão e chegar a horas ao Destacamento. Um dos elementos desse grupo era o Aranha, que levava a bazuca. Na formação no Destacamento estavam 3 Esquadrões. O 3.º do Tenente Cadavez, o 4.º do Tenente Guilherme, que me disseram nunca ter chegado a ir a África pois foi para a NATO, e o 5.º do Tenente Tavares de Almeida.

Eu pertenci ao 1.º Pelotão do 4.º Esquadrão que tinha como instrutores o Aspirante Teixeira (diziam que tinha pertencido ao Conjunto Maria Albertina) e um Cabo que, não sendo maus tipos, tinham assumido o ‘espírito da coisa’ e foram bastante duros connosco. Duros, mas leais, diga-se em abono da verdade.

Além dos já citados Aranha e Boavida faziam parte do meu Pelotão outros elementos (obviamente) de que me lembro agora dum tal Vozone, que era um nome conhecido da vela de competição, e o nosso camarada da Guiné, Luís Encarnação, da Companhia que esteve em Canquelifá do BCAV 2922, que ainda não pertence à “Tabanca” mas já esteve em almoços na “Linha”. Falando com ele recordei-me de várias peripécias, como os patrulhamentos ao longo do caminho de ferro, a escalada da escarpa das “Portas do Sol” (dizia o Aspirante Teixeira que era para imitar os soldados de D. Afonso Henriques) em que a cada dois metros de progressão escorregávamos um, das ‘cenas’ com um camarada que dormia de olhos abertos, de outro que foi enganado e utilizou “Baygon” pensando que era desodorizante, etc..

Foi tempo de conhecer um tal Salgueiro Maia, que nos deu instrução de granadas, de um tal Mário Tomé, ao tempo Oficial de Segurança da EPC e que foi o protagonista de uma cena-aviso do tipo “casamento na Parada”.

Esta passou-se na Parada da EPC, com todos os militares tanto da própria EPC como do seu Destacamento, ao qual pertencíamos, formados e a ouvir um raspanete a propósito, ou a pretexto, de uma mãe que se teria queixado de abusos à sua filha ocasionados por militar. Fiquei sempre com a sensação que se tratou de uma encenação, destinada à “acção psicológica”, mas a verdade é que o então Capitão Tomé disse mais ou menos isto: “…. têm a mania que são machões? Acham que a instrução não é suficientemente dura? Pois vão ver como será daqui para a frente! Vão ser ‘apertados’ de tal maneira que não terão força nem para levantar o ‘piçalho’….”

Foi tempo de um grande empenhamento em aprender as ‘artes militares’. Dediquei-me à formação com toda a energia. Aprendi a teoria. Não me baldei à prática. Achava que era importante aprender e obter conhecimentos que certamente iriam ser necessários para os tempos que, convictamente, ‘sabia’ que iriam ocorrer, inevitavelmente, embora ainda tivessem que decorrer quase 5 anos.

Tive boas pontuações de tal modo que fui convidado a ‘seguir outro caminho’, o que não aconteceu. Além disso também podia usufruir do conhecimento antecipado do resultado correcto dos testes de escolha múltipla que fazíamos sentados no chão. Como sabia? Não me recordo…. apenas me lembro que fazia sempre primeiro por meu conhecimento e depois ia ‘conferir’, sendo que, por ‘precaução’, falhava sempre uma ou duas.

Lembro-me, também, como se ia ‘moldando’ as vontades do pessoal. Primeiro procurava-se valorizar a ‘dispensa de fim-de-semana’ de tal modo que isso era uma espécie de prémio, para o qual todos deviam concorrer e para tal suportar tudo. E tudo servia de pretexto para ‘cortar’ essa ‘regalia’. Por exemplo, na revista aos Pelotões do meu Esquadrão chegou a participar um Alferes, com um ar propositadamente abandalhado, mal ataviado, com a barba por fazer e a exigir o máximo de aprumo e perfeição dos instruendos perfilados, para lhes provocar alguma reacção às injustiças sentidas quando os castigavam por os botões não estarem alegadamente bem brilhantes, por a camisa não estar devidamente fraldada, por a barba ‘não estar bem feita’ (mesmo que a cara já estivesse com vários cortes).

Suprema ironia era quando, propositadamente, pisava uma bota impecavelmente reluzente (diria quase envernizada com “Búfalo”) que assim ficava com algum pedaço esfolado e depois dizia para o Cabo apontar o corte da dispensa por ter as botas mal engraxadas. Tudo isto provocava revolta. Mas o pessoal continha-se. E, de contenção em contenção, as chefias pensavam que ‘domavam as vontades’, o que era possível que sim, pelo menos no momento, e que tinham o pessoal ‘enquadrado’, sendo que aqui se enganavam redondamente, pois as animosidades foram sempre em crescendo.

Portanto, em resumo, as recordações de Santarém são boas. O que se passou foi importante. Sempre valorizei essa passagem, compreendendo todos os seus passos. Isto em termos militares que, afinal, não podemos dissociar do resto.

Da cidade em si, da sua História, da sua importância, da sua monumentalidade, a capital do Gótico Português, diz-se, isso foram conhecimentos que já tinha antes da passagem pela tropa, pelo que não me acrescentaram nada.

Quanto a ódio-amor acho que já disse. Primeiro, amor. Depois, ódio, Agora, novamente, amor e tristeza.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12810: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (22): Caldas da Rainha - Os primeiros dias da recruta (Mário Migueis da Silva)

sábado, 8 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12810: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (22): Caldas da Rainha - Os primeiros dias da recruta (Mário Migueis da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Migueis da Silva* (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 24 de Fevereiro de 2014:

Olá Luís!
Já terás percebido que o tal desenho das Caldas que remeti ao Vinhal não passa de uma “ilustraçãozeca” inserta nos meus escritos da tropa, que pretendo possam vir a reflectir um pouco “aqueles anos de castigo” – falo por mim – em que, por paradoxal que isso possa parecer, o ridículo das situações, o humor e a boa disposição, andaram de mãos dadas com o medo, a ansiedade, a tristeza, a raiva, a dor, a própria morte.

O que até agora escrevi – não cheguei ainda à Guiné – nada tem, a não ser um pouquinho de raiva, dos últimos seis condimentos atrás referidos, consistindo, praticamente no seu todo, ao relato de curtos episódios por mim vividos, e, pois, verdadeiros, tão verdadeiros como caricatos e com carradas de humor.
Se conseguirei ou não transmitir com letras e algumas imagens auxiliares essas verdadeiras palhaçadas dos meus tempos das Caldas e de Tavira e também da própria Guiné - se bem que, por aqui, com a mudança brusca das coordenadas geográficas, o humor-humor se vá desviando para o chamado humor negro -, só o futuro, com o feedback daqueles que me possam vir a ler, poderá informar. Talvez tu próprio me possas dar, em primeira mão, esse retorno, o qual, pecando por insuficiente para valores estatísticos, terá, no mínimo, o condão de me motivar ou então, num gesto de sinceridade que agradecerei, a aconselhar-me a voltar os meus esforços para coisas menos exigentes e, porventura, mais frutuosas, poupando-me a desperdícios de tempo e vãos sacrifícios de memória. Nesse sentido, estou a anexar a tal “pontinha do trabalho” que, curioso que és, me estás a pedir (claro que seleccionei a parte do texto que o boneco já remetido ao Vinhal ilustra, ficando, assim, completas as duas páginas correspondentes ao “par de botas”, parte do primeiro capítulo, com o sugestivo título “Os primeiros dias da recruta”, que poderá vir a ser alterado para, por exemplo, “As primeiras impressões”, “Os primeiros dias de um soldado”, “Os primeiros banhos nas Termas da Rainha” – aceitam-se sugestões).

Quanto às “tintas da china de Tavira”, olha que eu falei-te de uns apontamentos a tinta da china e, no caso concreto, os ditos até foram feitos em papel de embrulho - que mais se podia esperar de um simples soldado instruendo a centenas de quilómetros da mesada dos papás?!... “De modos que” a qualidade, com o decorrer dos anos e com os ataques cerrados das traças, deixa muito a desejar, em nada abonando a valia do mestre e os pergaminhos da editora (leia-se “do blogue”). O que eu posso e tenciono, mais à frente, fazer é reproduzir para um suporte em condições e então, sim, estarão os apontamentos em condições de serem vistos e, eventualmente, publicados. De qualquer forma, vou compensar-te com um dos guaches que pintei nas Caldas (já como cabo miliciano), após levar cinco dias de detenção (oficial, pois claro), por ter “respondido mal” ao comandante do Regimento, quando este me interpelou na mini carreira de tiro, durante o tempo de instrução. Acho que tem muito a ver com “a cidade ou vila que mais odiei”, dando a ideia – no meu caso – de uma postura algo rebelde, com muita dificuldade em submeter-me à rígida disciplina militar, para a qual eram dirigidos os meus ódios e, não propriamente, para a cidade que, conforme referes, também a ti não deixou “particulares recordações”. Como o guache está em tamanho “A-3” e não estava ainda digiltalizado, tive que providenciar uma redução para A-4, razão pela qual só agora te estou a remeter o pretendido. Repara na data: 07/09/70. Na altura, ainda não estava mobilizado, mas, daí a mês e meio (18/11/70, véspera do meu aniversário), estava a embarcar para a Guiné).

E, então, onde param os infantes, que não dão a cara à luta, falando das recrutas e das especialidades, durante as quais levaram, como nós, “até ao céu da boca”?!... E a cavalaria?!... E a artilharia – pum! pum!... Ou avançam de uma vez ou então…

…“Siga a Marinha!...”

Confesso que, para além do mais, admiro muito em ti a tua entrega de corpo e alma a este bicho lindo que criaste e à energia que possuis ou inventas a cada instante para o manter vivo e vibrante. Assim o queiram todos os amigos e simpatizantes.

Um grande abraço,
Mário Migueis

P.S
Ainda a propósito das “tintas da china”, não sei se reparaste que o Fernando Gouveia, que, ao longo do tempo, se tem revelado grande entusiasta do blogue (penso que terás idêntica opinião), continuando a contribuir com interessantes textos e, muito especialmente, com belas fotografias da Guiné, com destaque para a interessantíssima Bafatá, que tínhamos ali a dois passos, comentou que também gostaria de ver os meus desenhos. Como vês, com a tua precipitação, deixaste-me ficar mal. Vê lá se arranjas maneira de me desculpar, talvez com a promessa de que o próximo boneco será servido em sua (dele) honra.

Para ele e para o Vinhal mais um abraço muito amigo.

************



Os primeiros dias da recruta

…/…

Ai, pois é, e por isso é que me fazia espécie ter que me sujeitar aos desaforos e impertinências daquele simples 2.º Sargento da Companhia, que, cheio de despacho e com a colaboração de dois Cabos quarteleiros, superintendia na distribuição das fardas aos novos guerreiros do Império. Mal aquela besta me viu abrir a boca para dizer que calçava 44, enfiou-me, a correr, nas mãos, dois pares de botas n.º 47 e uma boina que, de tão grande e espalmada, achei atentatória da minha dignidade!... “Por amor de Deus!... Mas que raio de tropa é esta?!... “, pensei eu, indignado.
- Desenrasca-te!, - grunhiu o “sorja”, já voltado para a vítima seguinte.

O ar tristonho das "47-BL"

O Ferreira tivera mais sorte e, já defronte de um dos espelhos do balneário, ajeitava, com pedantismo, a micro boina à comando, que um dos quarteleiros, menos estúpido que o chefe, lhe reservara. Mas, este, se calhar, até tinha razão com aquela do “desenrasca-te!”, porque o que é facto é que, dois dias depois, já eu conseguira trocar as botas com um calmeirão de outra Companhia. Casualmente, vi-o a atravessar a parada, e o especial aspecto do seu trajar chamou-me imediatamente a atenção: devidamente fardado, com a lustrosa farda n.º 3 encimada por um quico que procurava encobrir-lhe uns olhitos envergonhados, calçava, não as botas da praxe, mas - espanto dos espantos! -, uns sapatos ténis “civis”, por sinal à beira de se desintegrarem, tal o seu estado de ruína. Aproximei-me, curioso, e, feita a verificação mais de perto, constatei que, sem dúvida para que o peito dos pés não lhe saltasse para fora dos “sapatões”, trazia estes amarrados com vária voltas de cordel, tal como os jogadores de futebol faziam antigamente com as “chuteiras”.

O "Calmeirão", ainda sem as "47-BL" 

- Eh, pá!, não tiveste direito a botas?!... - abordei-o eu com algum cuidado, não fosse melindrar o senhor de tão perigosas “solhas”.
- Os filhos da puta não têm botas para gente adulta! - respondeu o calmeirão, olhando, cabisbaixo, para a sua triste figura.
- Não têm botas para gente adulta?!... Não têm o caraças!... Então e estas, são para gente quê?!...

As bochechas do calmeirão, que era loiro, de peles muito sedosas e brancas como o leite, avermelharam-se de espanto perante a magnificência do meu calçado.

Nem era tarde, nem era cedo, poupámos as palavras e demos corda às botifarras.

Cheios de orgulho, já em frente à caserna da 2.ª Companhia – que era a dele -, eu e o meu novo amigo admirávamos o nosso novo par de botas: eu, nas 44 dele, que me serviam na perfeição, e ele, nas minhas 47, que só lhe apertavam um pouquinho no “dedão” do pé esquerdo.

- Arranja umas meias de nylon, que não enchumaçam tanto! – aconselhava eu ainda o calmeirão, cuja beiça inferior, avermelhada e grande como o dono, se babava de contentamento.

.../...

Texto e ilustrações: © Mário Migueis da Silva (2014). Direitos reservados.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12807: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (21): Caldas da Rainha, RI 5, os autocarros de fim de semana que iam até ao Porto e o maior cagaço que eu apanhei na minha vida... (Henrique Cerqueira)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12779: CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, 1968: Instruções ao sold recruta nº 821, do 3º turno de 1968, incorporado na 3ª Companhia, assinadas pelo comandante, cap inf Eduardo José Moreira Fernandes (César Dias, ex-fur mil, sapador, CCS / BCAÇ 2885, Mansoa, maio de 1969/março de 1971)



Bilhete de identidade do César Dias, sold do CSM nº 197356/68, emitido em 16/7/1968

Fotos [de cima e de baixo): © César Dias  (2014). Todos os direitos reservados


1. Documento recolhido e digitalizado pelo nosso amigo e camarada César Dias, que fez a recruta no 3º turno de 1968, do CSM, no CISMI, Tavii.

Trata-se de instruções dadas ao sold recruta nº 821/3ª, assinadas pelo comandante, o cap inf  Eduardo José Moreira Fernandes.

O César foi meu contemporâneo no CISMI (fizemos a especialialidade em Tavira, no CISMI, na mesma altura, set/dez de 1968, ele como sapador, eu em armas pesadas de infantaria; foi fur mil sapador da CCS/BCAÇ 2885, Mansoa, Maio de 1969/Março de 1971.  [, foto à esquerda].



António Salgadinho
São Brás, Faro, 1975/76
 
Ficamos a saber que o ten Madeira era o comandante adjunto da 3ª
companhia, e que havia 6 pelotões, sendo o alf Mascarenhas o comandante do 1º... Os restantes eram comandados por aspirantes:  Domingos (2º), Pontes Silva (3º), Antunes (4º), Neto (5º) e Sousa e Silva (6º). O 1º sargento da 3ª companhia era o  Sena.

Mais, ficamos a saber que o "ideólogo" do CISMI (Chefe de Gabinete de Estudos, subdiretor do CISMI e 2º comandante da unidade) era muito provavelmente  o cap  António Salgadinho São Brás [, foto à direita, em 1975/76, como comandante di Centro de Recrutamento de Faro; cortesia do sítio do Exército]: provavelmente o  "guia do instruendo" seria da sua lavra...

O comandante da unidade, por sua vez,  era o major José Bernardo Cruz Aragão Teixeira [, que irá comandar, em 1970/72, em Moçambique, um batalhão de caçadores, o BCAÇ 2913]. Do cap inf Fernandes, não parece haver rastos na Internet... [Consulte-se, no entanto, a página, no Facebook, do Grupo dos Antigos Militares do CIQ-CISMI, Tavira e QG Évora..]

No dia 25 do corrente, às 23h14, o César mandou-me entretanto o seguinte email:

"Boa noite, Luis. Só agora cheguei a casa, por isso só agora te respondo. Infelizmente não faço ideia de quem tenha sido o Capelão do CISMI naquele tempo, nem sequer quem foi o autor do Guia do instruendo, mas o responsável era por certo o Director do Centro.Mas ainda descobri aqui um cartão. do instruendo que, se quiseres,  podes enquadrar no poste [vd. imagem acima]. Um abraço, César."


Carlos Nascimento: foto recente, na parada do quartel da
Atalaia,em Tavira... Ainda se vê ao fundo o célebre pórtico,
 usado  na nossa instrução... Foto:  Cortesia de
Carlos Nascimento
2. Quem tem recordações bastante precisas desse tempo do CISMI, é o Carlos Alberto Dores Nascimento,que foi 1º cabo miliciano, e monitor do CSM, entre 1967 e 1969. Mandou-me há uns anos (em 9 de setembro de 2010) o seguinte email:

 "Alô, Luis. Sou o Carlos Alberto Dores Nascimento, estive em Tavira de Janeiro de 67 a Dezembro de 69. Especialidade de atirador... e por lá fiquei até ao fim como monitor. Conheci o Robles e o Trotil. O Trotil era Óscar. Conheci-os de alferes a capitães. 

Também gostava de encontrar alguns companheiros daquele tempo (,agora somos avós, ) mesmo que tivessem sido 'meus'  intruendos. Sei que todos os anos em Outubro fazem lá no quartel um convívio com todos os que passaram por lá. Eu este ano quero ir pois nunca fui. Estou inscrito no FaceBook, tenho lá algumas fotos do nosso tempo para ver se há alguém que se identifica. Bom, um grande abraço.". 

[De facto, o Nascimento, algarvio, que é natural de Alagoa, e vive em Portimão, é um dos elementos mais ativos do Grupo (aberto) do Facebook,  Grupo dos Antigos Militares do CIQ-CISMI, Tavira e QG Évora.. Gostava de o convidar para integrar o nosso blogue, se bem que ele já faça parte dos amigos da Tabanca Grande no Facebook. Vd aqui a sua página pessoal]

Segundo o Carlos Nascimento, a 2.ª companhia era "a  companhia das várias especialidades"... Deve ter sido a minha, de armas pesadas de infantaria.  As outras, faziam recrutas (, caso da 3ª, por  exemplo) ou especialidade de atiradores. Ele também conheceu o Madeira ainda como alferes e depois tenente.


sábado, 8 de fevereiro de 2014

Guiné 63/74 - P12697: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (10): Monitor na instrução de recrutas no RI 14, em Viseu



Viseu > RI 14 >  1966 > Instrutores, Monitores e Soldados duma Recruta  na semana de campo  > Eu estou no centro à frente, com a mão direita no queixo.



Viseu > RI 14 > 1966 > Preparar Homens para a Guerra:  Pelotão de Recrutas no Dia do Juramento de Bandeira. Eram cerca de 8 dezenas!... o Mário Gaspar éo "12.º de cima, a contar da esquerda"...


Fotos (e legendas): © Mário Gaspar (2014). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do Mário Gaspar [foo à direita], enviado 
em 26 de janeiro último:


Camaradas e Amigos: Encontrei estas fotos muito velhas, e escrevi algo que tem a ver com as mesmas. O assunto apresentado não é novo, mas como podem existir dúvidas sobre o número exagerado de elementos que compunham um Pelotão, podem contá-los. Como é o Dia do Juramento de Bandeira, estão também elementos da fanfarra. Mas devem rondar os 77/78 jovens militares. E qualquer Pelotão tinha mais ou menos o mesmo número.

Um abraço, Mário Vitorino Gaspar


2. Monitor na instrução de recrutas no RI 14,  em Viseu

Eu Mário Vitorino Gaspar, ex Furriel Miliciano de Artilharia n.º 03163264 com o Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas.

Em 3 de Janeiro de 1966, fui chamado a frequentar o 2.º Ciclo do CSM,  na Escola Prática de Artilharia (EOA), em Vendas Novas, e terminei o Curso de Atiradores de Artilharia, em 2 de Abril, do mesmo ano. Promovido ao posto de 1.º Cabo Miliciano em 3 de Abril de 1966.

Após 10 dias de licença – no dia 13 de Abril de 1966 – mandaram-me apresentar no Regimento de Infantaria n.º 14 (RI 14), em Viseu, ficando como Monitor na Instrução de Recrutas.


Coronel Carlos Faustino da Silva Duarte
Comandante do RI 14, Viseu (1965/68)

O  Comandante do RI 14 em Viseu (1965/68) era  o Coronel Carlos Faustino da Silva Duarte [, foto à esquerda], que fazia parte da equipa da Académica de Coimbra que ganhou a Taça de Portugal em Futebol em 1939.

O Comandante da Companhia era – se a memória não me falha – o Capitão Amaral.

O Comandante de Pelotão era o Alferes Miliciano Antunes (que ficara deficiente em Moçambique, e que aguardava ser operado na Alemanha) – que julgo ter ido para a Brigada de Trânsito da GNR – depois eu, um outro Cabo Miliciano, e um 1.º Cabo Readmitido (PCAB/RD). Formámos os quatro a equipa.

Como já afirmei, dei algumas recrutas, desde Abril a Agosto (a restante equipa ainda ficou em Viseu depois sair), e os Pelotões de Instrução eram constituídos por 77/78 jovens, oriundos de diversas terras, alguns e muitos, nunca tinham visto sequer o mar. E não foi em Viseu que tiveram essa oportunidade. Não era de modo algum possível preparar homens para a guerra – com Pelotões tão numerosos e em condições.

A higiene não fazia parte das suas vidas. Assisti a casos caricatos de pouca ou nula higiene, principalmente quando era destacado para receber os mancebos, 50 cada vez em formatura – mas ainda à civil - para irem ao Médico e à vacina; fazerem os Testes Psicotécnicos; irem ao barbeiro; receberem o fardamento e tomarem  banho.

Pois o curioso era mesmo o banho. Moços existiam que nunca tinham tomado banho, alguns deles, até com crostas na cabeça, tornavam-se os mais interessados numa higiene normal. Outros com enormes cabeleiras. Por fim, alguns deles, vinham-me contar, e orgulhosos,  que já haviam tomado mais de um duche.

Mas toda esta conversa porquê ? Tudo tem a ver com o número exagerado de futuros militares do Exército Português, nos Pelotões, com tão pouco tempo de instrução pela frente. E tratava-se de preparar homens para a guerra.

E como é difícil acreditar que o Exército Português, preparava homens para uma guerra nestas circunstâncias, envio uma foto no Dia do Juramento de Bandeira – de uma das algumas recrutas que dei como Monitor de um Pelotão – no RI 14, em Viseu, no ano de 1966. Sou o 12.º de cima, a contar da esquerda.

No dia 6 de Agosto marchei para a Escola Prática de Engenharia (EOE) em Tancos para frequentar e completar o XX Curso de Minas e Armadilhas, iniciado a 8 de Agosto de 1966 e terminado a 17 de Setembro de 1966.

Estava encontrado o meu destino: - Guiné!
_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 6 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12682: Recordações de um "Zorba" (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68) (9): SOS, procuro os meus camaradas 'Zorbas', José Paulo Oliveira de Sousa Teles (alf mil), Luís Alberto Alves de Gouveia (alf mil), José Fernandes Durães (fur mil enf), José Norberto Rodrigues Vieira (fur mil), Carlos Alberto Monteiro Leite (fur mil), Rui Filipe Alves Ribeiro (fur mil)

sábado, 18 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12597: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (2): Caldas da Rainha, a cidade onde estava sediado o Regimento de Infantaria 5, onde era ministrado o Curso de Sargentos Milicianos (Carlos Vinhal)

1. Dando cumprimento ao desafio do Editor Luís Graça, vou falar, não da cidade que mais amei ou odiei, mas de todas cidades (vilas e/ou lugares) onde estacionei no meu tempo de tropa, antes de embarcar para a Guiné.
Gostei de todas elas porque nenhuma tinha culpa da minha situação, temporária, de militar em trânsito. De todas me ficaram boas e más memórias.



Começarei pela cidade das Caldas da Rainha, onde assentei praça no RI5 como Soldado Instruendo do CSM.

Acho não ficar mal confessar que antes de ir para a tropa, o mais a sul que tinha ido, tendo como referência a minha residência no concelho de Matosinhos, fora Fátima com os meus pais, aos 10 anos de idade, no ido ano de 1958.

Ir para as Caldas, no dia 21 de Abril de 1969, tornou-se portanto uma aventura, minimizada pelo facto de a viagem ser partilhada por largas dezenas, ou centenas, de mancebos que de todo o norte do país convergiram para a Estação de S. Bento a fim de apanharem o comboio-correio da meia-noite. Um grupo bem numeroso, onde eu me incluía, saiu de Leça da Palmeira no autocarro das 22 horas a caminho da cidade Invicta. Assim se iniciou uma longa viagem de quase 12 horas.

Não me perguntem como, mas sabíamos de antemão que tínhamos de fazer dois transbordos, um em Alfarelos para apanhar outra composição de um ramal que nos levaria até à estação de Lares, na Linha do Oeste, onde aguardaríamos por outro comboio que nos levaria finalmente às Caldas.

Tenho em memória que chegámos aos portões do RI5 por volta das 9h30 da manhã de 22, dia que me estava destinado para comparecer no quartel, tendo grande parte do grupo entrado de pronto porque nos disseram que se esperássemos pela tarde, a confusão seria mais que muita.

Vamos saltar as peripécias militares, para aqui não chamadas, e vamos falar da terra propriamente dita.

Ao tempo a cidade era relativamente pacata, destacando-se o velho Hospital Rainha D. Leonor, localizado no frondoso Parque D. Carlos I, o Parque propriamente dito e as várias lojas de artesanato, mais ou menos atrevido, que explorámos nos tempos livres.

Hospital - Foto: http://images.fineartamerica.com/, com a devida vénia

Famoso era também o Café Zaira(*), situado na Praça da República, onde não passávamos muito de perto já que junto ao vidro, do lado de dentro, costumavam sentar-se os oficiais, o que nos obrigava a constantes e arreliadoras paladas.
Diga-se em abono da verdade que no belíssimo Parque acontecia o mesmo, já que era vulgar encontrar muitos oficiais a passear, acompanhados de suas famílias. Como bons recrutas que éramos, o melhor era bater continência a tudo o que tivesse divisas, fosse bombeiro ou porteiro de hotel.
Nesta mesma Praça realizava-se, e julgo que ainda se realiza, o afamado mercado da fruta das Caldas da Rainha, mais um ex-libris desta cidade.

Mercado da Fruta - Praça da República - Foto: EU GOZEI A MINHA ADOLESCÊNCIA NAS CALDAS DA RAINHA NOS ANOS 70 E 80, com a devida vénia

Como bom militar tem de ser bom garfo, lembro o restaurante que frequentávamos quando o rancho não era a contento. Não me lembro do seu nome, também já não existirá, mas da empregada, a Tininha(?), uma jovem que nos atendia com especial carinho, talvez por saber que no quartel se comia muito mal. Que belos bifes com ovo a cavalo, guarnecidos generosamente com batatinhas fritas, arroz e salada. Era o nosso prato favorito. Ainda lhe sinto o cheirinho.

A cidade das Caldas da Rainha tinha já, então, uma actividade cultural e desportiva interessante. Nunca mais esqueci o Museu José Malhoa que revisitei mais recentemente, assim como os torneios de ténis de mesa, uma modalidade ali muito acarinhada, praticada num pavilhão existente dentro do Parque.

Museu de José Malhoa - Foto Wikipédia, com a devida vénia

Já aflorei o artesanato local, que não se limitava só às malandrices que mais aguçava a nossa curiosidade. Eram muitos os estabelecimentos de venda de olaria, verdadeiras montras de obras de arte confeccionadas por gente anónima nas inúmeras fábricas e ateliês que transformavam o barro em peças únicas.

Uma das mais belas recordações que guardo desta magnífica cidade foi o desfile que fizemos no Dia de Juramento de Bandeira(?), ao longo das suas ruas, com as varandas das casas engalanadas com colchas multicolores e as pessoas acenando à nossa passagem. Foi um adeus sentido de parte a parte.

Na tarde do dia 5 de Julho, em que apanhámos o comboio com destino a Lisboa, a caminho de Vendas Novas, já sentia saudades daquela terra e daquela gente.

Do RI5 não guardo boas recordações, pela má comida e porque alguns oficiais e sargentos não distinguiam a disciplina militar da prepotência e do abuso da autoridade que, julgavam, os galões e as divisas lhes conferiam.
Eram um verdadeiro vexame aquelas formaturas de revista, de hora a hora, após o toque de ordem, para podermos sair e ir dar uma volta pela cidade e comer alguma coisa de jeito. Por tudo e por nada nos mandavam para trás, o que acarretava nova tentativa uma hora depois. Estávamos assim à mercê do bom ou mau humor do Oficial de Dia.

Fica desde já aqui registado que em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, a disciplina era mais severa e a instrução militar, de longe, muito mais dura, mas éramos tratados com respeito.

Carlos Vinhal
Ex-Fur Mil
CART 2732
Mansabá
1970/72

OBS: - As interrogações são fruto de alguma incerteza, volvidos que são quase 45 anos. Aceitam-se as devidas correcções.

(*) - Nome do café rectificado por indicação do camarada António Ribeiro
____________

Nota do editor

Último poste da série de 17 de Janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12594: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (1): Espinho, Porto, Tavira e Torres Novas (José Martins)

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12035: Estórias cabralianas (80): As mulatas de Luanda (Jorge Cabral)



Mafra  > Sobreiro > 1968 >  O cadete Cabral, discursando no jantar comemorativo do fim da recruta, na EPI.

Fotos (e legenda): © Jorge Cabral (2013). Todos os direitos reservados

1. Mais uma estória cabraliana, que nos chega pela amável e  caixa de correio da Anabela Martins, com data de hoje à tarde ("Encarrega-me o senhor Prof. Jorge Cabral de enviar o anexo. Com os melhores cumprimentos"):


1. Estórias cabralianas > As Mulatas de Luanda

por Jorge Cabral [ex-comandante do Pel Caç Nat 63, Bambadinca, Fá Mandinga, Missirá, 1969/71]


Numa noite, no início de Maio de 1968, apareceu-me irritado o meu amigo Filipe. Ia para a tropa.
– Tens a certeza Filipe? Olha vamos passar por lá, pela Junta de Freguesia. (Onde à porta afixavam as listas).

E fomos. Corri os olhos pelo edital e era verdade. Lá constava, Filipe Narciso Gonçalves da Silva. Só que, um pouco mais abaixo, encontrei o meu nome, Jorge Pedro de Almeida Cabral. Devia ser engano, um erro, eu tinha direito a adiamento. Que o Filipe fosse, não era para admirar. De igual idade e entrados ao mesmo tempo na Faculdade, ele não passara do primeiro ano, enquanto eu contava acabar o curso no ano seguinte.
–  Vamos os dois. Sabes que não discuto o destino.
 – Eu não vou –  gritou-me ele. (E não foi...).

E.P.I, Mafra, 15 de Junho, era o que estava escrito. Porque me teriam chamado? Política?

Era do contra mas discreto, tal como continuei a ser toda a vida. Aliás, há quem diga que o sou em demasia. Agora até as minhas doenças são discretas. Não há ecografia que não acuse... tudo, mas discreto (...discreta litíase, discreto enfisema...).

Porém, precisava saber a razão do chamamento.

Assim, dois dias depois, desloquei-me ao Distrito de Recrutamento. Recebeu-me um Primeiro Sargento, Candeias de seu nome. Expostas as razões e documentos, o militar consultou as normas e declarou:
– Tem razão. Mas,  se não vai agora, vai para o ano. Eu acabei de chegar de Angola, de Luanda, que cidade! As mulatas...

E durante uma hora, falou-me das mulatas.
– Mulheres assim não encontramos cá! E você é capaz de ser colocado numa secretaria em Luanda. Mas faça um requerimento. Não demore é muito.

Saí animado. Com a hipótese de não ir para a tropa? Não, com as mulatas de Luanda...

Esqueci o requerimento. Qual tropa, qual quê! Ia era fazer uma espécie de estágio. E depois, depois... as mulatas de Luanda. Chegado a Mafra, logo na primeira saída no café em frente do Convento, apresentaram-me Nasciolinda, a filha do escrivão. Então, não é que era mulata! Bem, não era de Luanda... mas representava um presságio do que me estava destinado. E as coisas até corriam bem com a Narciolinda, se eu não lhe tivesse escrito um poema, no qual jogava com as palavras, dizendo que a queria ver na Tapada, mas destapada...Não gostou. Paciência... Continuei vida fora a brincar com as palavras e a inventar trocadilhos, o que me ocasionou inúmeros dissabores.

A Recruta correu bem. Ágil e resistente, não senti qualquer dificuldade. Claro que,  na carreira de tiro, fui um desastre. Nem uma vez acertei no alvo. Estranho, porque nas barraquinhas do Parque Mayer, fui sempre o melhor...

Mafra chegou ao fim. O pelotão reuniu-se num jantar no Sobreiro. Discursei. No regresso ao Quartel, o Tenente Comandante, disse-me:
–  O Cabral vai para o Lumiar, Secretariado.

Na manhã do dia seguinte em formatura, distribuiram as respectivas guias de marcha. A minha dizia:
– E.P.A. Vendas Novas.

Ainda pensei que fosse secretariado de artilharia...mas não, era mesmo atirador.
– Então, meu Tenente ?  – perguntei.
– Devo ter visto mal  – respondeu-me.

Mais uma vez, não discuti o destino.

Fiquei a ganhar. Se fosse um ano depois, o mais certo era ter sido Capitão, como quase todos os meus colegas. Não imagino, nem ninguém consegue imaginar, o que seria uma Companhia Cabraliana...Se tivesse ído para Secretariado, atrasaria o expediente, perderia os papeis e não me teria sido possível, organizar, como fiz em Missirá, um original arquivo debaixo da cama, partilhado por insetos onde as garrafas vazias se misturavam com mensagens secretas...

Mas,  afinal, que teria acontecido para me terem reclassificado de madrugada? Perigoso subversivo? Operacional insubstituível?

Nada disso. Apenas uma valente cunha de última hora. Eu ganhei. O da cunha também Perderam as mulatas de Luanda.

Coitadas...

Jorge Cabral

PS – Anexo foto do tal jantar de fim da recruta. Cadete Cabral discursando.
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 17 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11720: Estórias cabralianas (79): O Capitão-Tenente dos Submarinos (Jorge Cabral)

(...) Qual Guiné? São tantas. Cada um cria a sua ou inventa... E quem diz Guiné, diz Guerra. Por mim conheço muitas... Mas como esta, que mora no Beco do Cotovelo, à beira da Mouraria, não deve haver mais nenhuma. É na tasca da Conceição, onde às vezes abanco com três ex-combatentes da Guiné. Todos eles lá estiveram, em lugares e tempos diferentes e todos davam pelo nome de Mouraria. (...)

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11669: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (37): 38.º episódio: Memórias avulsas (19): Mafra, Junho de 1964

Mafra, 26 de Janeiro de 1964 > O 1.º pelotão, da 1.ª Companhia ao 2.º dia de tropa.


1. O nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), em mensagem do dia 22 de Maio de 2013, enviou-nos mais uma história ocorrida durante "Os melhores 40 meses da sua vida", mais propriamente durante a recruta, naqueles belos primeiros dias de tropa.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

GUINÉ 65-67 - MEMÓRIAS AVULSAS

19 - MAFRA, JUNHO DE 1964

Entretanto vieram as marchas finais.
Era Junho de 1964 e o local, uma zona de pinhais e mato rodeando as culturas próprias dos pequenos agricultores que se esgadanhavam para tirar um pouco proveito daquele trabalho árduo.
Viam-se por ali, de sol a sol, escavando... escavando, só parando ao ver os escanzelados militares em manobras a quem ofereciam um cigarrito, um copo do vinho que faziam para consumo próprio... uma fruta.
E digam lá se a isto não se chama solidariedade?

Esta iria ser a última semana difícil em Mafra, terminando assim os cinco meses de recruta e passávamos a ser quase 1.ºs cabos-milicianos, ou seja, a mola real do Exército Português, ou melhor ainda, aqueles que sabem como é na verdade.

Houve rigor e tudo parecia ser mesmo uma guerra a sério e até nos era permitido o acesso a verdadeiras balas embora de madeira. As situações treinadas assemelhavam-se à realidade das matas africanas e sempre supervisionadas por Oficiais Instrutores oriundos da Academia Militar, com experiência quer na preparação de homens, quer até, alguns, já conhecedores da verdadeira tormenta africana.

Ambicionávamos que aquele malvado tempo passasse depressa, porque logo após, teríamos o gozo de um mesito de férias, antes do reinício do que se chamava especialidade, que todos nós escolhêramos, acreditando ser possível. Claro que a maior parte foi cair na de atirador, com'a mim.

Feitas as pazes com o inimigo, outros d'outras companhias e também instruendos, procedeu-se ao regresso, em passeio pedonal de trinta e cinco quilómetros. O estado físico geral era pior que mau, mas o ânimo voltou quando, ao chegarmos às imediações do quartel, fomos subitamente atacados pelo Hino Nacional abrilhantado pela Banda Musical Militar.

E o inimaginável aconteceu: aqueles verdadeiros homens cansados, arrebentados, tristes e acabrunhados, revigoraram... marcharam garbosamente... endireitaram-se... honraram a farda... tornaram-se capazes até... de chorar.

Domingo à espreita... e deu-se a cerimónia do "Juro, como Português e Militar... defender a minha Pátria... mesmo com o sacrifício da própria vida".

Presentes muitos dos familiares das tropas em presença, nanja os meus e bem pena tive, mas a crise d'agora já eles tinham então e desde que tinham vindo ao Mundo.

Fomos então autorizados a sair e pela primeira vez, de civis vestidos, para o retorno não definitivo à vida, que sim, essa era a nossa de antes e que iria ser a de depois. Descer aqueles 135 degraus do 5.º andar até cá baixo, nunca me atrevera a pensar que me saberia tão bem. Foi o correr para a boleia do Miranda que fez o favor de me deixar em Sta. Apolónia.

Depois... o chegar a casa... o reencontro com os familiares... a festa... a galinha assada nas brasas... o reconhecer de novo de que "como é bom ser gente"... poder ir à pesca... nadar nas águas límpidas do rio Sôr... o colher da fruta na horta... o comer uns passarinhos fritos... dormir que nem um justo.

Até que um dia e só haviam passado trinta, lá veio a desmancha prazeres da informação de que me devia apresentar em Tavira para completar o processo e poder usar as divisas de duas riscas encarnadas viradas para o cachaço e ainda outra mais pequena apontando o chão e inseridas ainda num paninho verde.
E daí em diante seria e fui para todos o "NOSSO cabo-miliciano".

(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11596: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (36): 37.º episódio: Memórias avulsas (18): Aquando no CSM, Mafra, Maio de 1964

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7098: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (1): No princípio, era o convento... de Mafra



(...) "Encontrou alguns dos seus colegas de seminário, desistidos anos antes e nunca mais vistos: O Vítor, um óptimo hoquista, de Espinho; o Luís Barros, o José Ramos Canito, de Vila do Conde. Outros mais haveriam de aparecer já nas quentes paradas do religioso convento, convertido em quartel e escola de guerra." (...) . Imagem: Origem desconhecida.




1. Texto do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins, (Como, Cachil, Catió, 1964/66)

Assunto: Futuro Palmeirim de Catió

Olá,  Luís!

Como não podia ser doutra maneira, continuo a sr um assíduo e interessado leitor do teu/nosso monumental blog. Duma riqueza incalculável. Se não fosse a tua feliz ideia, mais umas dezenas de anos volvidos, um valiosíssimo tesouro patriótico ficaria, para sempre, sepultado no desconhecido e na ignorância das gerações futuras. Aquela guerra que nós vivemos, com bons e maus momentos, palpita com uma surpreendente e autêntica vivacidade nos milhares de posts que já foram escritos e irão seguir-se.

Mais uma vez e sempre a minha admiração e reconhecimento pelo teu empenho e o dos nossos co-editores.

O texto que segue sai da autobiografia que fiz para os meus netos lerem, um dia...sobre os verdes anos do seu avô...Dela sairam as crónicas dos Palmeirins de Catió (*). Agora, penso de algum interesse partilhar a minha vida, nos tempos preliminares da guerra que nos foi imposta e que cumprimos sem discutir...( absolutamente impensável nos tempos que correm...).

Fica à tua/vossa disposição para serem lançadas no Blogue.

Um grande abraço

Joaquim Mendes Gomes


2. Futuro Palmeirim de Catió (1) > No Convento de Mafra
por J.L. Mendes Gomes

Num dos primeiros dias de Agosto de 1962, munido da guia de marcha militar, tomou a carreira mais madrugadora do Cabanelas, às 6 da manhã, em Pedra Maria,( Felgueiras) para ir apresentar-se, nesse dia, na longínqua vila de Mafra, sua conhecida, só das páginas escolares da história portuguesa.

Naquela manhã, uma vez mais, acompanhado pelas badaladas da torre de Pedra Maria, agora, em jeito de adeus, um dos seus filhos partia para a tenebrosa e imposta aventura militar. O cortejo dos que tinham a mesma sorte foi engrossando, ao longo do caminho, longo, primeiro, na tão familiar estação de São Bento, no Porto. Depois, sempre no ronceiro comboio correio que parava em tudo quanto era sítio, até às paragens verdejantes da linha do Oeste, a partir da simpática estação de Alfarelos, com bela azuleijaria azul a revestir-lhe as paredes com cenas de vindimas e pomares da região.

O nervosismo que toldava todos os mancebos ficava mascarado pela irrequietude e pelas irreverentes gargalhadas que se desprendiam, permissivas e sem controle, dominando as carruagens do comboio, como se já fossem as, ainda só, imaginadas casernas que os esperavam.

Encontrou alguns dos seus colegas de seminário, desistidos anos antes e nunca mais vistos: O Vítor, um óptimo hoquista, de Espinho; o Luís Barros, o José Ramos Canito, de Vila do Conde. Outros mais haveriam de aparecer já nas quentes paradas do religioso convento, convertido em quartel e escola de guerra.

O famigerado Simão, por exemplo, lá apareceu, em fatídica surpresa, qual sombra sinistra e teimosa, escondido na larga farda cinzenta, onde lhe sobrava muita fazenda. Só a comprida pála do barrete lhe acompanhava, até à ponta, em sintonia perfeita, o seu característico nariz rubicundo. Tão furtivamente como apareceu, assim desandou, ao cabo de umas breves semanas da recruta, dura de roer…

Soube, através de outro ex-seminarista, o pachorrento, mas d`olho vivo, Bernardino Teixeira de Carvalho, que ele tinha dado baixa ao hospital e que, por artes mágicas, se livrou, definitivamente, da tropa, escassas semanas depois…Que inveja!…Era sobrinho dum abade influente. …Bênçãos que caem e sempre hão-de cair, apenas, sobre certos telhados, sabe-se lá porquê… Talvez o diabo saiba…

Pode dizer-se que uma grossa turma de ex- seminaristas portucalenses lá estava transferida, agora, espalhada e bem tresmalhada, pelas muitas companhias do regimento, de velha "mauser" ao ombro, e fato zuarte, em vez do terço e da cândida sobrepeliz branca…

A pouco e pouco, já de noite, a longa fila dos noviços soldados-cadetes desfilava por um dos muitos infindáveis corredores do convento colossal, para ir desnudar-se, pela derradeira vez, à vista de todos os olhos surpresos, só para que dúvidas não restassem sobre a masculinidade genital, perante os clínicos anfitriões…

Era a primeira cena, simiesca, das muitas que haveriam de suceder, durante os anos seguintes, perante a máxima e confortante hilariedade, em que todos eram participantes. Olhos surpresos? Sim. Se é certo que quem vê caras não vê corações, também se confirmou, ali e doravante, que quem vê grandes e másculas corpulências não pode garantir-lhes correspondentes intumescências…

Dir-se-ia até que a lei da natureza, sobre masculinidade, se rege pela razão inversa dos tamanhos…numa linha de equilibradas compensações. Ali se patenteava, aos olhos de todos, com toda a verdade, pelo menos, naqueles tempos, as grandes surpresas e os desencantos de tantas noites de núpcias…

O Sampaio, um castiço tripeiro, de cabelo alourado e espetado, numa cara sardenta e afilada, com olhos pequeninos e fundos, um inexcedível palrador e barraqueiro, desde a estação de S. Bento, bêbado de cerveja, que nem um cacho, ali estava a tentar pele 4ª ou 5ª vez, enfiar, perna a perna, nas largas calças da farda acabada de receber, com algumas idas ao chão, pelo meio, sem esboçar um sorriso.

Por acaso, foi parar ao mesmo pelotão da 2ª Companhia de Infantaria, comandada pelo mais garboso e convencido capitão, Óscar Gomes da Silva, de bivaque de altas proas na cabeça e de elegantes polainas pretas de couro preto, sempre a luzir, e à mesma caserna monacal.

Tal como o Mendonça, a quem a longa escola da boémia de Coimbra rapara todo os temores que nos enlaçam sempre, nestes primeiros contactos, em novos ambientes.

Totalmente ambientado, desde logo, se manifestou pronto a enfrentar e derreter, em gozo geral, os frequentes assomos da maluqueira militarice profissional.Parecia que estava ali para se divertir, à grande, com a requintada habilidade de um bobo na côrte.

Também quis a sorte que ele fosse parar ao mesmo pelotão, companhia e caserna. A prová-lo, relembra um dos muitos episódios, que teve a sorte de presenciar. Seguia o Mendonça, a seu lado, magricelas, dentro do fato zuarte cinzento, esbordante no tamanho, por um dos muitos corredores que percorrem o interior do convento-quartel, do tamanho de altas e largas avenidas, com o braço engessado ao peito. Uns metros após terem passado por aquele superior hierárquico, imediato, o zelozo capitão, comandante de companhia, parou, estacado e dirigiu-se ao subordinado rastejante:
- O nosso cadete não cumpriu o dever de saudação ao seu comandante!…

A resposta brotou, pronta, do Mendonça, já em sentido:
- Saiba Vossa Senhoria, que não foi feita a bem merecida continência, por impossibilidade física, (só os olhos baixaram para o braço desditoso) mas volvi, respeitosamente, ao flanco…

Desarmado e sem palavras, o comandante retomou, impertigado, a sua caminhada bem timbrada sobre o lajedo de mármore gasto pelo uso secular das multidões profanas que o convento continuava a albergar.

Só quando o vulto esguio do satisfeito superior se desvaneceu à distância, por entre outros militares, transeuntes, estoiraram, sem réplica, as gargalhadas, a muito custo retidas por ambos.

O seio hermético do mundo militar começava a revelar-se em catadupa, nas duras semanas que se seguiram, infindáveis. Era um autêntico internato, movido a sonoros toques de cornetim. Cada um tinha o seu significado e, aos recém-soldados cadetes era-lhes vedado alegar desconhecimento.

Às seis da manhã, de verão e de inverno, o toque da alvorada obrigava-os a descerem lestres dos beliches de três, para o escutarem, em sentido, junto aos ferros das camas, ainda em traje de dormir.

As luzes acendiam-se, à 1ª nota do cornetim, e dentro de 20 minutos toda a caserna deveria estar arrumada, camas feitas, com a higiene pessoal e as sagradas botas pretas a reluzir, para que na 1ª inspecção do formar da companhia, o olhar de lince do capitão Óscar, não desfechasse um doloroso corte de dispensa, no final do dia.

Hoje, é inimaginável como tudo se conseguia.

O castiço Mendonça era sempre o último a chegar à parada, com os três pelotões e respectivos comandantes instrutores, à frente, alferes de carreira, de cada uma das três companhias, já bem perfiladas, de capacete e espingarda ao ombro, em posição de descanso.

Vinham depois os três imponentes capitães postar-se à frente da sua companhia, recebendo a devida, continência, à voz de " Ombro, arma!", erguida por cada um dos alferes.

Logo a seguir, era a vez de os capitães renderem continência da sua unidade ao comandante, ainda mais imponente, do Batalhão que o toque de cornetim, anunciava uns instantes antes.

Fazia-se a chamada por companhia; o comandante de batalhão fazia as advertências patriótico-militares, da ordem, e toda a mística estudada nos anais das ciências militares ia sendo transmitida aos futuros comandantes de pelotão nos teatros de guerra colonial que os aguardavam.

Vinha a seguir o pequeno almoço, nos amplos refeitórios do convento, depois da ordem de dispersar.

O próximo toque obrigava à formatura das companhias, perante os seus comandantes e, a partir daí, era a partida em marcha cadenciada pelo alferes, para a mata de castanheiros frondosos, a uns dois km. dali, no seio da vastidão da cerca mítica do convento de Mafra.

Ensarilhadas as armas, segundo a norma tradicional, começavam, em cada manhã, os exercícios de ginástica, desenvolvida numa corrida em círculo. Ali, surgiu a 1ª experiência do esforço físico exigido, sem limites, pela imaginação e comando supremo do alferes do pelotão. As suas ordens eram indiscutíveis, até à exaustão. O cansaço das primeiras semanas fez ver quão doces eram uns escassos minutos de intervalo, entre cada sessão. Nunca as folhas caídas dos castanheiros, à mistura com ouriços espinhosos, foram tão apetecidos colchões, secos ou molhados pela chuva, para um saboroso restauro de forças.

Quando chegava a hora do almoço, era o regresso, até aos imensos refeitórios, de mesas de mármore branco, em salas imponentes. O feijão, o macarrão ou o arroz, acompanhado de gordurentos pedaços de carne de cabra, nunca foram tão saborosos…regados com um pequeno púcaro de vinho tinto carrascão, a granel, ou da água da caneca.

Ordem unida, instrução militar, e o esventrar das mil peças que formam a expedita e obsoleta espingarda Mauser, da bazooca e do morteiro, era o temas da 5 horas de aulas que preenchiam as tardes, sempre, algures, debaixo dos frondosos castanheiros, na mata de Mafra.

A religiosa manutenção da sua Mauser, os crosses semanais, de comprimento crescente, ao longo da estrada da Ericeira, até aos oito km, mais umas sessões de acção psico-pedagógica militar, ocupavam todo o período de recruta daqueles soldados-cadetes. Tratados abaixo de cão, pelas cadeias da hierarquia cinzentona, desde os simples cabos, sargentos ao distante e sisudo comandante do regimento, jamais seriam capazes de imaginar-se, volvidas umas breves semanas, como futuros oficiais milicianos.

O certo, porém, é que terminada a recruta, intensa na preparação física e mentalização militar, com uma semana de campo, nos montes escalvados das cercanias da Malveira, veio a chamada especialidade de atirarador de infantaria, que iria ser exercitada no fantasma da guerra de África. A preparação infindável, terminou nos rigorosos frios de inverno ventoso e chuvento de Mafra lamacenta. Quem por lá passou, bem o pode testemunhar. Mafra, nunca mais. Vê-la, nem de longe.

As guias de marcha para as férias de Natal, na casa de cada um, foram distribuidas em folgosa e frenética algazarra de caserna, companhia a companhia, depois da meticulosa entrega do material distribuido no início.

Nunca se roubou tanto, como nesses dias finais. Capacetes, bivaques, bornais, cinturões, tudo corria perigo ameaçador, numa desconfiança sem excepções, a começar no colega mais próximo. Com recurso a lojas especializadas, abastecidas sabe-se lá como, que prosperavam nas ruelas de Mafra, tudo acabava por dar certo, na hora final

J.L. Mendes Gomes

[Continua]

[Fixação / revisão de texto / título: L.G.]
_______________

Nota de L.G.;

(*) Vd. postes de:

24 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5006: O segredo de... (8): Joaquim Luís Mendes Gomes: Podia ter-me saído caro aquele pontapé no...

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia  

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo
 
22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira
 
8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha
 
11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)
 
29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1543: Uma estória da minha recruta, em Beja, no RI3 (Tino Neves)

Beja > RI 3 > 1969 > Dia do Juramento de Bandeira. Sinalizado com círculo vermelho , o autor desta estória.


Beja > RI 3 > 1969 > Vista do Quartel


Beja > RI 3 > 1969 > "Eu mais dois camaradas, um foi para a PM [Polícia Militar] e o outro para Rádio-Montador. Semana de Campo em terras do Baixo Alentejo" (TN)



Fotos: © Tino Neves (2006). Direitos reservados.
Texto enviado pelo nosso camarada Tino Neves > Constantino Neves, ex- 1º. Cabo Escriturário da CCS do BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71) (1).

Caro Luís Graça

Vou-te contar uma pequena história da minha recruta, pelo facto de que aquilo que fomos na Guiné, Angola ou Moçambique, tem a ver com o que se passou na nossa recruta.

A recruta foi mais importante que a especialidade, porque foi na recruta que tudo começou. Começámos a conhecer e aprender a conviver com outros iguais e com os nossos superiores, pois já os nossos pais diziam que a tropa era a escola da vida. Como também diziam que havia muitos filhos de muitas mães e que a tropa abria os olhos a quem os tinha fechados e fechava-os a quem os tinha muito abertos, os chamados Xicos Espertos. Pois havia daqueles que mal sabiam falar, como um do meu pelotão, que nem sabia dizer de onde era, só sabia dizer que era do outro lado da ribeira. Mas também havia os ditos Xicos Espertos, como um também do meu pelotão, que o Furriel o mandou ao armazém de material de guerra buscar uma caixa de estrias, e chegou junto do Furriel estafado com uma caixa às costas, cheia de pedras, julgando que eram estrias.

A recruta não foi só a preparação física. Também, e principalmente, aprendeu-se a ser amigo do seu amigo e a criar e a manter o espírito de camaradagem, como há muitos que começaram na recruta e acabaram no Ultramar sempre juntos.

Agora vou então contar a minha história da minha recruta (não era Xico Esperto, mas sabia de onde era) (2).

Durante a semana de campo parti a coronha da espingarda G3 (como sabem a coronha da G3 era muito frágil na zona onde acaba o plástico e começa a parte de metal), e o Furriel ameaçou-me que o Capitão ia-me dar uma porrada (entenda-se, um castigo). Também os meus colegas me intimidavam, assim como um que me disse:
- Estás feito, vais para atirador para a Guiné. - Mas eu não ligava a tudo isso que me diziam, porque já tinha acontecido a outros colegas e eles não foram castigados.

Quando regressámos ao quartel, fui chamado ao Comandante de Companhia (um Capitão, de não me recordo o nome). Aí já fiquei com algum receio.E lá fui eu ao gabinete do Capitão.
- Dá-me licença, meu Capitão?
- Entra
- Apresenta-se o soldado recruta 10.087/69, meu Capitão!
- Ah... és tu aquele que anda a destruir património do Estado...
- Sim, meu Capitão, sou eu mesmo.
- Sabes, vais ser castigado.
- Sim, meu Capitão, mas queria pedir ao meu Capitão que me deixasse contar como se passou tudo.
- Está bem, conta lá.

Então contei-lhe a minha versão:
- Ontem, o nosso Furriel Magno resolveu fazer uma prova de Combate, para isso tivemos que apanhar uma porção de pedras, do tipo calhau, para junto dele, e depois disse-nos: 'Eu sou um inimigo, quando eu apitar uma vez, quero todos no chão, quando tornar a apitar, quero todos de pé e em passo de corrida, mudar de posição, e quando voltar a apitar não quero ninguém de pé, que eu disparo um tiro, uma pedra, aviso já que sou bom atirador'.
- E então ? - pergunta o Capitão.
- Então, é que na altura em que estavamos a mudar de posição e ouvi o apito, eu encontrava-me de costas a pouca distância do inimigo e, para que não fosse alvejado, lancei-me ao chão num grande salto. A G3 caiu mal e partiu-se, só depois é que analisei a minha reacção, e cheguei à conclusão de que deveria ter dado uma cambalhota...Mas estou aqui a ser preparado para a Guerra, não é verdade, meu Capitão?
- Tens razão, rapaz, estás a ser preparado para a Guerra, desta escapas, mas dou-te um conselho, trata da tua arma melhor que a tua namorada, que ela pode salvar-te a vida.
- Sim, meu Comandante.

Fiz a continência, dois passos atrás, e saí do gabinete do Capitão, todo satisfeito, não somente por não ter sido castigado, mas por, apesar de não ter namorada na altura, ter entendido o recado.

Um Abraço
Tino Neves
Almada
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1146: Constantino Neves, ex-1º Cabo Escriturário da CCS do BCAÇ 2893 (Lamego, 1969/71).

(2) Vd. outros posts anteriores do Tino Neves:

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

5 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1404: Um pequena estória dos Magriços de Guileje (CCAÇ 2617) (Tino Neves)

14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)

7 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1349: Quartel Novo de Nova Lamego: paredes finas e chapa de zinco (Tino Neves)

23 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1310: Postais Ilustrados (12): Ponte-Cais de Bissau e estátua de Diogo Gomes (Tino Neves / Carlos Fortunato)

9 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1160: Lembranças de Nova Lamego (Tino Neves, CCS/BCAÇ 2893): A fatídica noite de 15 de Novembro de 1970

3 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1145: Na fonte... com o Inimigo (ou a água quando nasce é para todos) (Tino Neves, CCS do BCAÇ 2893, Nova Lamego)