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segunda-feira, 27 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19833: Notas de leitura (1181): “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Num dado momento histórico de completa incerteza sobre os rumos da independência das antigas colónias portuguesas, a Fundação Calouste Gulbenkian pôs um punhado de investigadores altamente qualificados a pensar sobre o futuro da lusofonia, do ensino da língua, da revitalização dos arquivos e da cooperação científica. Infelizmente, um grande número de propostas não teve sequência, mas é bom que se saiba que o ponto de situação sobre o funcionamento da investigação científica ultramarina apresentada pelo comandante Teixeira da Mota era mais positivo do que negativo. E nenhum estudioso das ciências humanas e sociais na África lusófona pode deixar conhecer este ponto de situação e o acervo da bibliografia então existente e aqui plasmada em publicação.

Um abraço do
Mário


O papel da lusofonia na aurora da descolonização (2)

Beja Santos

Entre 20 e 22 de Janeiro de 1975, enquanto a classe política entrava ao rubro com a questão da unicidade sindical, na Fundação Calouste Gulbenkian reuniam-se pesos pesados da investigação africana para debater o futuro da lusofonia no ensino, o que se iria passar no sistema educativo nos novos países de língua portuguesa, quais as contribuições portuguesas para as ciências humanas em África, quais as perspetivas que se rasgavam para cooperar no campo do ensino com a África lusófona. A Fundação Gulbenkian convocara um grupo seleto para o debate. Por parte da Fundação estavam Victor de Sá Machado, José Blanco, Luís de Matos, Mário António, Fernandes de Oliveira, o Embaixador Fernando Reino representava o Ministério da Coordenação Interterritorial. Os participantes eram, entre outros, Orlando Ribeiro, Ilídio do Amaral, Teixeira da Mota, René Pélissier, Douglas Wheeler, Albert Tévoédjrè e Gerard Bender. Daí resultou um livro editado em 1979 “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”. Já se falou do português fundamental, dos manuais escolares adaptados à especificidade de cada um dos novos países, ao ensino bilingue e de diferentes línguas nativas, com relevo para o crioulo, abordou-se o que sobre esta matéria de línguas africanas se fazia em institutos portugueses até 25 de Abril, o debate continuou sobre o ensino das ciências humanas orientado para as problemáticas africanas e nesse sentido foi feita uma detalhada apresentação das atividades da Junta de Investigações do Ultramar, os participantes fizeram comentários sobre como podem as instituições portuguesas cooperar no ensino e na cultura africana, fez-se mesmo o ponto de situação das universidades de Angola e Moçambique.

Respondendo a certas críticas que René Pélissier apresentou sobre as bibliotecas e arquivos portugueses, o então Comandante Teixeira da Mota deu conta do trabalho em curso, a pedido do governo, para o estabelecimento de uma nova atuação de todos os organismos na órbita da Junta de Investigações do Ultramar. E quanto aos arquivos portugueses comentou:  
“Verifico que o Centro de Estudos Históricos Ultramarinos tem estado a publicar colecções de documentos e não vejo fazer isso nem na Inglaterra, nem na Holanda. Talvez a política do Centro de Estudos Ultramarino esteja errada. Tenho dito isso ao senhor director, Padre Silva Rego. Por exemplo, publicaram em 9 ou 10 volumes os documentos de um fundo importante da Torre do Tombo. Publicaram na íntegra todos os documentos que têm interesse ultramarino. Esse fundo das gavetas, no estado actual da Torre do Tombo, é o produto de muitas misturas ao longo dos tempos e também consequência do terramoto de há mais de 200 anos. Esse critério afigura-se-me que não é o mais apropriado. Julgo que, antes de mais, interesse ter os documentos em ordem e procurar fazer guias ou catalogar e não publicar (…) Quanto à catalogação de certos arquivos, no que respeita ao Arquivo Histórico Ultramarino, eu creio que as coisas não estão muito mal na medida em que o grosso da documentação que está nesse arquivo, encontrava-se no princípio do século em montes no Ministério da Marinha e Ultramar. Não será pedir demais aos arquivos e às entidades portuguesas, quando eu vejo que não se fizeram coisas semelhantes noutros países?”.
Mais adiante, deu esclarecimentos sobre estudos desenvolvidos sobre a história pré-colonial:
“Em 1972, realizou-se em Londres a Conferência de Estudos Mandingas, e foi para mim uma surpresa verificar que apareceram nove ou dez trabalhos de pessoas de diferentes nacionalidades sobre o Reino do Cabo que é considerado hoje como o mais importante Estado Mandinga depois da queda do império do Mali. Este Reino do Cabo está dividido politicamente pela Guiné-Bissau, pelo Senegal e pelo Gâmbia… Creio que este trabalho sobre o Reino do Cabo é muito importante e até talvez pudesse ser um modelo de trabalho de colaboração internacional, porque não há apenas a recolha da tradição oral, há a possibilidade de completar a tradição oral com documentação europeia, que existe em várias línguas”.

No final do colóquio, o professor Orlando Ribeiro ensaiou um punhado de conclusões sobre a orientação do ensino do português, a orientação do trabalho científico e a necessidade das instituições académicas já existentes em países africanos de língua portuguesa se reestruturarem para corresponder às condições locais. Noutra vertente haveria que criar condições para que a organização de inventários, de catálogos, de bibliografias, existentes nos novos países independentes se tornem acessíveis não só os centros culturais portugueses como e sobretudo em todos os países estrangeiros onde se investiga a história africana; embora não tivesse comparecido nenhum estudioso brasileiro ao colóquio, não deixou de se fazer menção a uma série de colóquios de estudos luso-brasileiros e à bibliografia existente que tem sido publicada sob os auspícios da Fundação Gulbenkian.

Este colóquio, visto à distância de mais de 40 anos permite aos interessados a consulta de papéis singulares. Ilídio do Amaral apresentou tópicos para a discussão com o título “Em torno de problemas sobre as ciências sociais e humanas na África lusófona”. Orlando Ribeiro fez distribuir documento “Décolonisation, enseignement et recherche scientifique”; Teixeira da Mota apresentou o seu documento, à luz das incumbências que o governo português lhe empossou na coordenação de um grupo que tinha como missão apresentar uma estrutura moderna para as investigações científicas no antigo império, e com o título “Algumas actividades de organismos de investigação sediados em Portugal", no domínio das ciências humanas e sociais, de âmbito africano. Para os historiadores e investigadores é do maior interesse o documento apensado às atas do colóquio com o título “Bibliografia da Junta de Investigações Científicas do Ultramar" sobre ciências humanas e sociais.
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Notas do editor

Poste anterior de 20 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19807: Notas de leitura (1179): “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 24 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19821: Notas de leitura (1180): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (7) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18227: Notas de leitura (1033): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (18) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
Estamos ainda num período de acentuada crise económica e escassez de dinheiro, o comércio debate-se com a penúria, os relatórios do BNU não iludem a situação. Inicia-se uma situação que ainda hoje não se consegue dilucidar entre a fixação e a realidade, a chamada revolta dos Felupes. Desparece um avião francês, há quem diga que caiu em Jufunco, em Chão Felupe. As autoridades francesas pedem inquérito, Bolama responde com uma coluna militar. Há interrogatórios de régulos, a quem não faltará violência, os Felupes espalham-se pelas matas e pelo Casamansa, as peripécias arrastar-se-ão até 1935. Depois, os Felupes chegam a um acordo tácito com as autoridades. Acordo que se prolongará pela guerra fora, a generalidade dos Felupes manter-se-ão neutrais, mas não aceitarão ingerências.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (18) 

Beja Santos

Antes de voltarmos à questão da revolta dos Felupes, é conveniente contextualizar a perda de importância da filial de Bolama, atenda-se ao que se irá escrever num relatório referente ao primeiro semestre de 1984:
“Esta filial continua com o seu movimento bastante reduzido e em regime de prejuízo anual, suportado pela agência de Bissau. É gerida diretamente pelo seu antigo guarda-livros, Sr. Fernando Coelho de Mendonça, com procuração subestabelecida pelo signatário, com poderes reduzidos, assinando conjuntamente todos os documentos, com a exceção da correspondência reservada. O movimento geral quotidiano limita-se a cobrança de letras a receber, alguns empréstimos sobre penhores, um reduzido desconto de letras descontadas sobre a praça, movimento de depósitos à ordem e cobrança de saques ordinários ou telegráficos, cuja emissão é feita pela agência de Bissau, visto o encarregado da filial não ter poderes para sacar. Periodicamente, pelo menos uma vez por mês ou sempre que o serviço da agência o permite, deve ser a filial visitada pelo gerente-geral, como está determinado, para conferência de valores e verificação de serviços. A filial, por nossa terminação, remete também a esta gerência segundo as vias da correspondência reservada dirigida à sede. Esta, a nosso pedido, costuma também enviar-nos duplicados da mesma correspondência dirigida à filial. Desta forma, fica esta gerência ao facto do principal movimento da filial, completando a fiscalização com visitas periódicas do gerente geral”.

Nesta exposição sucinta, fica bem claro que a filial de Bolama era uma sombra do passado.

O período de 1933 termina com uma carta confidenciada do gerente de Bissau para Lisboa acerca da revolta dos Felupes:
“Em aditamento à nossa carta confidencial de 13 de Novembro pretérito, que confirmamos, informamos V. Exa. de que, presentemente, se encontra na região dos Felupes apenas um oficial, Tenente Dores Santos, com um destacamento sem que se tenham registado novos actos de insubordinação activa.
Julga-se que devido às baixas causadas pelas tropas governamentais, os revoltosos se tenham espalhado, uns pelas tabancas da fronteira e outros pelo território francês. Escoaram-se por entre os pântanos, pondo-se fora do alcance das nossas balas, não voltando às suas terras enquanto elas estivessem ocupadas militarmente. Esta situação não permite que as tropas se retirem nem que, ficando, se batam, por desaparecimento do inimigo.
No dia em que o destacamento recolha ao quartel, os insurretos, escondidos ou internados no território francês, voltarão imediatamente e exercerão represálias sérias nos indígenas da região que auxiliaram as nossas autoridades ou, pelo menos, não as hostilizaram. Esta é a convicção geral.
Há dias, seguiu para os Felupes o Capitão Sinel de Cordes, com a incumbência, diz-se, de mandar recolher o destacamento, deixando ali apenas uma pequena força do comando de um sargento. Não tivemos ocasião de aqui trocar impressões com o Chefe da Repartição Militar, mas informaram-nos de que as tropas não recolheriam, seriam reforçadas tanto mais que os indígenas fiéis lhe pediram para de qualquer forma deixar lá tropa comandada por um oficial.
Devemos notar, a título de curiosidade, que na região revoltada todos os indígenas andam com uma fita branca na cabeça para se distinguirem dos revoltosos. Consta que os chefes revoltosos – Alfredo e Coelho – das tabancas de Jufunco e Egine, respetivamente se refugiaram com parte da sua gente no território francês, sendo ambos presos pelas autoridades respetivas. Iniciaram-se diligências oficiosas junto daquelas autoridades para que, às nossas, esses chefes fossem entregues. Parece que tudo indicava que as diligências seriam coroadas de êxito, mas ultimamente o caso mudou de feição e as autoridades francesas não entregaram os homens. Quanto às tropas francesas que guarneceram a fronteira durante a revolta, disse-nos o senhor governador que já tinham retirado”.

Justifica-se plenamente incluir aqui a opinião do historiador René Pélissier, expressa na já anteriormente referida História da Guiné[1], pois dedicou bastante atenção a este período, depois de se ter referido ao golpe republicano de Abril-Maio de 1931, e mencionado uma purga que ocorreu entre Setembro e Outubro na ilha de Bissau, para a qual não encontramos qualquer documento nos arquivos do BNU, temos a seguir uma longa abordagem dos Felupes, como segue. Refere o desaparecimento do avião militar francês, as buscas sem sucesso de vestígios de tripulantes ou do próprio avião e as referências propaladas sobre o seu canibalismo e práticas de feitiçaria. Escreve Pélissier:
“Nos anos 1930, contam-se 16 aldeias Felupes na Guiné dependentes administrativamente em primeiro lugar de S. Domingos e depois de Susana. Com os Nalus do Sul da Guiné, partilham o assustador fardo de estar sob uma permanente acusação de antropofagia. Sempre prontos a denegrir os seus vizinhos, os franceses do Senegal têm os Felupes da Guiné como a quinta-essência do selvagem”.
Estabelece um quadro sobre o que ele chama o “mal-entendido Felupe”: desaparecimento do avião militar francês em fim de Junho; buscas infrutíferas das autoridades de Dakar; em Agosto chega à vez das buscas portuguesas, sem resultado; a mulher do aviador quer descobrir se o seu marido ainda está vivo, depois de muitas peripécias, uma missão de franceses chega à Guiné em 12 de Outubro; o administrador de Canchungo pede à sacerdotisa de Susana que convoque os principais chefes Felupes, estes, interrogados, declaram nada saber, isto enquanto Mamadu Sissé, um tenente de segunda linha que comandou às ordens de Teixeira Pinto, diz que viu um avião dirigindo-se para o Sul e que terá aterrado em Jufunco; espalham-se boatos desencontrados acerca do avião se encontrar em Jufunco; em fins de Outubro o Capitão Velez Caroço manda prender o chefe de tabanca Alfredo e uma dezena de notáveis de Jufunco, de Egine e de Varela, o administrador de Canchungo interroga os suspeitos à palmatória e Alfredo confessa que o avião aterrou em Jufunco e fizeram-se confissões também desencontradas: que os brancos se tinham ido embora, que os Felupes os mataram, que tinham destruído o avião; e no final de Outubro chegam 50 soldados e duas metralhadoras a Susana.

A 1 de Novembro começa a chamada revolta dos Felupes, as tropas portuguesas avançam sobre Jufunco, as tropas não conseguem entrar na aldeia e o Capitão Sinel de Cordes regressa a Bolama para ir buscar reforços. Começa a guerra. Os Felupes refugiam-se nas matas ou na região de Casamansa, juntam-se-lhe os 800 irregulares de Mamadu Sissé. Uma concentração de 1500 Felupes teria feito recuar o Capitão Velez Caroço mas este acabou com a resistência Felupe. Chega-se à conclusão de que nunca os dois aviadores tinham chegado à Guiné, no final de uma limpeza sistemática a todo o território. Tratava-se de um gigantesco mal-entendido. E que deixou sequelas. A 2 de Fevereiro de 1934, as autoridades de Dakar recusam extraditar 31 felupes porque isso seria prejudicial à imagem dos franceses entre os Felupes de Casamansa. Carvalho Viegas, o governador, temendo que os Felupes entrem na Guiné e massacrem as populações fiéis, dispõe de uma unidade militar em Chão Felupe que aí permanecerá até ao fim de Abril de 1934.

Teremos novas agitações a partir de Maio. Eclodiu um novo e bastante grave movimento de insubordinação na região de Susana, Cassalol e Basseor. A repressão esteve a cargo de uma companhia de atiradores sobre a direção do capitão Velez Caroço. De novo os Felupes se refugiam no Casamansa, isto enquanto o Tenente Óscar Ruas chega a Basseor. Para desalojar os Felupes de Casamansa, Óscar Ruas serve-se de um estratagema. “Cerca de 500 felupes, acreditando poder apoderar-se facilmente dos cipaios, desempenhando do papel de chamariz, esbarram com uma das metralhadoras dissimuladas nas camionetas da coluna. Os portugueses e as suas tropas, escondidos, cercam os felupes”. Os rebeldes foram postos fora de combate. A terceira e última sequela a que Pélissier se refere irá ocorrer em Susana, em Março de 1935.

O ano de 1934 trará outras surpresas: a denúncia de um médico aldrabão, a participação da Guiné na Exposição Colonial de Paris e a acrescida decadência de Bolama.



A Fundação Calouste Gulbenkian adquiriu um valiosíssimo espólio de milhares de fotografias de Mário Novais, um dos grandes fotógrafos do século XX, e com pergaminhos familiares. Foi a examinar este riquíssimo espólio que me deparei com imagens de grande beleza, resta saber em que período Novais visitou a Guiné, provavelmente antes da guerra, ele morreu em 1967, com 68 anos

Fotos editadas por CV

(Continua)
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Notas do editor:

[1] - Vd. Postes: P10447; P10462 e P10485

Poste anterior de 12 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18203: Notas de leitura (1031): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (17) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18215: Notas de leitura (1032): “Uma Estrada para Alcácer Quibir”, por António Loja; Âncora Editora, Dezembro de 2017 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18138: Notas de leitura (1026): A luta armada na Guiné reexaminada por Mustafah Dhada (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
É de salientar que estas imagens terão sido captadas aí à volta de 1977, dá para perceber que o património arquitetónico deixado pela potência colonial ainda não foi desvirtuado, as ruas estão limpas, os jardins tratados. Este álbum terá sido encomendado para mostrar as potencialidades turísticas, o exotismo, a diversidade étnica, as potencialidades agrícolas. Tem um resumo propagandístico da história do PAIGC e da luta de libertação.
Vasco Cabral, o poderoso comissário da Economia, fala de plantações de cana-de-açúcar para 60 mil toneladas. René Dumont ficou alarmado quando ouviu estes números e fez as contas, teria um preço incomportável.
É um tempo de sonhos, de fantasias e de uma ingenuidade que custou muito caro.

Um abraço do
Mário


A luta armada na Guiné reexaminada por Mustafah Dhada

Beja Santos

Mustafah Dhada é um categorizado investigador de acontecimentos contemporâneos, incluindo as lutas de libertação em África. Pertence ao naipe de nomes sonantes como Basil Davidson, Gérard Chaliand, Patrick Chabal, R. H. Chilcote e Lars Rudebeck que durante e após a luta de libertação se têm debruçado atentamente sobre o ideal revolucionário de Cabral, a forma como liderou, no plano ideológico, militar e diplomático a condução da luta, e a vida do país depois da independência.

Tomámos a liberdade de pegar num seu ensaio datado de 1998, publicado no prestigiado The Journal of Military History, em que ele procede a um reexame da luta armada, com a finalidade de ver os aspetos essenciais da sua argumentação, ter uma postura crítica face ao acesso às suas fontes e tecer conclusões quanto à premência de os investigadores de diferentes proveniências (incluindo portugueses e guineenses) ponderarem as lacunas inaceitáveis que existem, reapreciarem as fontes consultadas e debateram informalmente o modo de superar fontes propagandísticas, muito úteis para a luta ideológica, inaceitáveis para elaborar uma primeira tentativa da história da Guiné-Bissau a partir da sua luta armada.

Mustafah Dhada inicia o seu trabalho com a fase de arranque da luta armada e a estratégia seguida. Os dados avançados parecem-me irrepreensíveis. Apostou-se no Sul, pelas suas dificuldades de acesso, desde o segundo semestre de 1962 a sublevação foi destruindo infraestruturas e comunicações, escolheu posicionamento em pontos naturalmente de muito difícil acesso. Enquanto decorria esta operação a Sul, criava-se a chamada frente Norte, no Oio. Tudo isto decorria ainda com armamento precário, recorria-se ao abatis e às emboscadas do “bate e foge”. O ano de 1963 marca a consolidação no Sul e uma progressiva extensão nas regiões de Cacheu, Bissorã e fronteira senegalesa. Em 1964, a guerrilha estende-se à região de S. Domingos, põe um pé no Gabu, aparece no Boé e ocupa o Corubal. Noutro capítulo fala da estratégia usada para combater a presença do PAIGC no Como e a resistência posta pela etnia Fula ao PAIGC. A economia no interior do país desarticula-se progressivamente, fecham as serrações, não se cultivam bolanhas, desaparecem as destilarias, o comércio do amendoim reduz-se. A resposta de Louro de Sousa e depois de Schulz é a criação de destacamentos, a formação de milícias, a proteção de tabancas, é uma malha de pequenas unidades gravitando à volta de batalhões que procura estender-se pelo território.

Faz-se aqui uma pausa para mostrar dois mapas. O primeiro, data de 1960 e parece-me demonstrativo da colocação das etnias por todo o território.


Dá-se entretanto uma transformação das FARP, são divididas em três forças regionais em que 200 a 300 militares estacionam nas principais bases do interior. Foram selecionados alvos privilegiados no Boé e na região de Guileje. Recordo que quando o capitão Tomé Pinto (o conhecido “capitão do quadrado”) chegou a Binta, em 1964, os grupos afetos ao PAIGC estavam implantados a escassos dois quilómetros do quartel e circulavam com toda a facilidade entre Binta e Guidage. Schulz obtém de Lisboa um elemento dissuasor fundamental: as bombas de fósforo e mais meios aéreos. O PAIGC é forçado a reduziras as bases, a torná-las mais contingentes, os grupos mais reduzidos, é uma flexibilidade que responde às destruições provocadas pelos bombardeamentos. O Corubal torna-se praticamente intransitável.

Hélio Felgas, que comandou um batalhão de Bula, escreverá anos depois um livro intitulado “Guiné 1965”, não ilude o tom laudatório para as atividades desenvolvidas na sua área, mas também não esconde que as FARP se aproximam de Bigene, Ingoré, Barro, Binar. No início de 1967, os helicópteros semeiam o terror, é uma arma nova que surpreende a guerrilha quando pretende fazer frente às tropas portuguesas em campo aberto. Vejamos agora um mapa em que Mustafah Dhada mostra a existência de conflito militar em 1967.


O mapa revela imprecisões, algumas delas com bastante gravidade. Falo do teatro de operações em que combati, a região do Cuor, limite, no Centro-Norte do mapa, vem lá referido Sinchã Corubal. Do lado de lá de Bambadinca, havia dois destacamentos no Cuor e um no Enxalé. Sinchã Corubal era uma tabanca abandonada, perto ficava o acampamento de Madina e a Norte, numa região profundamente árida, Belel, o início de um corredor que prosseguia por Sara-Sarauol, esta uma posição importante, dispunha de um hospital de campanha. A norte do Cuor havia a região de Mansomine, onde o PAIGC se posicionava sobretudo em Sinchã Jobel. Nós, no Cuor, podíamos calcorrear uma boa parte do regulado, fora dos destacamentos de Missará e Finete, as populações residentes em Madina e Belel vinham comerciar e obter informações nos Nhabijões (portanto próximo de Bambadinca, na outra margem do Geba) e em Mero, também na outra margem, tabanca habitada por população Balanta. Quem olhar para este mapa é capaz de pensar que não havia conflito latente/permanente no Xitole e em toda a região até Geba, em 1967, nada de mais errado. Seguramente que outros combatentes que estejam a ler este texto encontrarão outras anomalias no mapa referente a 1967.

De 1967 para 1968 assiste-se a uma penetração na região de Teixeira Pinto, no Sul o Comandante-Chefe Schulz determinou um conjunto de operações com forças especiais e na região Norte entraram em cena bombardeamentos em povoações afetas ao PAIGC próximo de Farim, Bissorã e S. Domingos, suspeitas de abrigar as FARP. Segundo Mustafah Dhada foi um período extremamente difícil para as FARP, perderam abastecimentos, passaram fome, é um período inclusivamente marcado por contestação à estratégia militar no interior do PAIGC. Cabral consegue o reequipamento das FARP e em 28 de Fevereiro de 1968 um comando atacou Bissalanca. Pretextando doença, Schulz retira-se e é substituído por Spínola. Abandonam-se quartéis e posições consideradas inviáveis, redesenha-se a guerra psicológica, reagrupam-se as forças, estabelece-se um plano de reordenamentos, e Dhada traz um elemento novo, o apoio de Spínola a uma força política opositora ao PAIGC, a frente unida de libertação. Dhada como outros autores, labora num equívoco que é atribuir a exclusividade a Spínola da criação de milícias, grupos em autodefesa e a formação de caçadores nativos, de um modo geral esta africanização já estava em curso no tempo de Spínola o que este conseguiu foi obter financiamento para acelerar a africanização inclusive ao nível das tropas de elite. Dhada, não se sabe qual a fundamentação e os documentos em que baseou, dá como certo e seguro a constituição da FUL onde cabiam dissidentes do PAIGC, Rafael Barbosa e nacionalistas guineenses.

A operação de ataque a Conacri acabou por minar a política externa portuguesa, teria começado aí a congeminação do plano para chegar às negociações diretas com Cabral, entretanto a agressividade militar de Spínola parecia imparável, o que obrigou a uma nova reformulação das FARP. Dhada fala sistematicamente das operações anuais das FARP, omite as operações de iniciativa portuguesa, o que é incompreensível em historiografia militar. Temos as conversações com Senghor e refere-se um plano para dividir o PAIGC entre a ala cabo-verdiana e a guineense, seria com esta, segundo Dhada, que Spínola contaria preparar um plano de autodeterminação.

Em Janeiro de 1973, tudo vai mudar com o desaparecimento físico de Cabral, o PAIGC envereda por ataques seletivos, cria infernos à volta desses objetivos selecionados. O autor detém-se sobre os acontecimentos de Copá, em Janeiro de 1974, os bombardeamentos sistemáticos das FARP e as emboscadas próximo de Pirada bem como a coluna vinda de Bajocunda em direção a Pirada que foi brutalmente atacada. Dhada refere um número de baixas para os efetivos portugueses que é manifestamente delirante, em 1973 diz que o número ultrapassou os 2 mil mortos, o segundo mais alto desde o início da guerra armada (!), isto quando há muito tempo já há dados sobre os mortos portugueses em campanha.

O que se pode depreender de um trabalho onde há uma indiscutível investigação séria, mas onde existem lacunas relativamente ao comportamento das Forças Armadas portuguesas (nem uma só palavra sobre o papel da Marinha que, como é de todos sabido, foi primordial), onde se usam mapas fantasiosos? Tudo leva a querer que personalidades como Mustafah Dhada, Julião Soares Sousa, António Duarte Silva, Leopoldo Amado, historiadores militares portugueses como Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes conversassem entre si, sobre as fontes probatórias e aquelas que ainda estão inquinadas pela propaganda (não é a primeira vez que vejo escrito que as tropas portuguesas tiveram 650 mortos no Como entre Janeiro e Fevereiro de 1964), e que depois de laborioso acerto sobre o rigor dos dados transmitissem o produto das suas reflexões para meio universitário e para as opiniões públicas dos dois países mais afetados pelo que aconteceu naquela luta armada, a Guiné-Bissau e Portugal. Quanto ao mais, de boas intenções está o inferno cheio.

Recomendo a todos os interessados a leitura integral do ensaio de Mustafah Dhada no site:
https://www.academia.edu/4022011/Mustafah_Dhada_The_Liberation_War_In_Guinea-Bissau_Reconsidered_Journal_of_Military_History_62_3_Summer_1998_571-593

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Nota do editor

Último poste da série de 22 de Dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18123: Notas de leitura (1025): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (14) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P18009: Notas de leitura (1017): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (10) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
Com este texto atingimos 10 anos da vida do BNU em Bolama. Tudo I República.
Vale a pena insistir, não existem no Arquivo Histórico do BNU quaisquer documentos entre 1903 e 1915, só escassas imagens que não ajudam a compreender nem a contextualizar o que se passou nesse período que persiste na obscuridade. Não há referências à campanha de Teixeira Pinto, só aparece um documento alusivo à partida de Abdul Indjai para Cabo Verde, onde falecerá. No entanto, esta documentação é riquíssima em elementos económicos e financeiros e na muitíssima turbulência da vida governativa, onde não faltaram revoltas, levantamentos e sedições.
Para meu conforto, entreabriu-se mais uma porta para um melhor conhecimento da Guiné Portuguesa.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (10)

Beja Santos

Caminhamos para o fim da I República, há uma vertente de modernização na Guiné. Começam-se a cantar hossanas, é patente que a política concebida e executada por Velez Caroço começa a dar os seus frutos.

Em 1925, é dado à estampa uma Memória da Província da Guiné, é seu autor Armando Augusto Gonçalves de Moraes e Castro, funcionário colonial. É um homem esperançado, deslumbrado e não o esconde no prefácio do seu escrito:

“Falar da Guiné é falar da colónia portuguesa que mais caráter possui de terra africana; é falar, dentre as possessões que constituem o nosso domínio colonial, daquela que melhor situação financeira desfruta, daquela que tem mais personalidade, sem mistelas equívocas, sem arremedos bacocos.

A Guiné é, de facto, a mais rica das nossas províncias africanas, nas possibilidades de produção agrícola.

Quem for ativo e inteligente, quem entender que os seus braços devem servir para mais alguma coisa do que roçar malandramente pelo mármore rachado dos cafés, quem tiver na vida o grande sonho de vir a ser rico pelo esforço próprio, aqui encontrará o El Dourado das suas legítimas ambições.
Porque a Guiné, com a quermesse bizarra e multicolorida das suas onze raças, e diversas subraças, formando um bloco notável de aproximadamente 800 mil habitantes; com a maravilha pessoalíssima da sua fauna; com a sua ornitologia, opulenta e variada, em que as cores das aves dir-se-iam fugidas de uma paleta de pintor impressionista, pela diversidade ofuscante dos tons; com a abundância da sua herpetologia; com a variedade dos seus espécimes entomológicos; com a riqueza da sua concheologia; a Guiné com a sua flora variegada até ao impossível; com o sensível incremento que está sendo dado à sua agricultura, transformando em fontes de riqueza o que era até há bem pouco uma desoladora extensão de solo inaproveitado…”.

Tais louvores aparecem mais contidos no olhar do historiador. Na sua "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", Volume II, Editorial Estampa, 1997, René Pélissier ajuíza a atividade de Velez Caroço. Escreve o seguinte a partir da página 204:

“O primeiro mandato de Velez Caroço conhecerá uma febre de construções no sertão, afetando as sedes da quase totalidade das 14 circunscrições. Porém, este governador manter-se-á, principalmente, como o homem das estradas e das pontes e, como consequência, o do trabalho indígena obrigatório e não remunerado. Infelizmente, o otimismo musculado de Velez Caroço vai ver-se desmentido”.

Para além das estradas, pontes e radiotelegrafia, Velez Caroço ver-se-á envolvido numa nova campanha de Canhabaque, entre Março e Maio de 1925. Deixará a colónia em Dezembro de 1926. Bolama e o gerente da filial do BNU acompanham as questões momentosas de um movimento de desagrado à administração do governador:

“Rompeu hostilidades, em primeiro lugar, ostensivamente, o Capitão de Engenharia João Pedro da Costa, com o relatório dirigido ao Ministro das Colónias, verberando a administração do governador, que classifica de perdulária. Esse relatório, verdadeiro libelo contra Velez Caroço, foi organizado um tanto levianamente, ressentindo-se da falta de provas jurídicas, e por isso, e ainda porque sendo o ministro e o governador democráticos, não sortiu o efeito que o autor desejava: uma sindicância àquilo a que o governador chama a sua obra. Dizem-nos que o governador facilmente destruiu as acusações que lhe foram feitas. O certo, porém, é que o Capitão Pedro da Costa não foi até hoje castigado militarmente. Pouco depois, era o Engenheiro Costa secundado na campanha pela Associação Comercial de Bissau, elegendo como seu representante para o concelho legislativo o Dr. Alçada Padez, advogado naquela cidade e particular amigo do Engenheiro João Pedro da Costa.
Passaram então a revestir certo interesse para o público as sessões do Conselho Legislativo onde o Dr. Padez entrou em franca oposição. Dá-se a Revolta Militar e o governador embarca apressadamente para o seu posto, de cabeça levantada, segundo ele, e sorrateiramente, segundo a oposição”.

Não pararam as acusações e os ataques dos opositores a Velez Caroço.

Chegaram as eleições para o representante da Guiné no Conselho Superior das Colónias, parecia que a campanha anticarocista atingiu o auge. O gerente de Bolama desce aos pormenores:

“O truque da posição foi coroado com êxito raras vezes registado nas colónias. Apesar de todas as trapaças concebíveis em matéria de eleições, da banda dos apaniguados do governador, a lista governamental apenas conseguiu vencer pela ridícula maioria de 60 votos! É de notar que aqui em Bolama, onde o governador reside, e onde a maioria dos eleitores são funcionários, a oposição, habilmente manejada pelo Tenente-Coronel Médico Dr. Monteiro Filipe venceu Velez Caroço por 40 votos!

Isto só por si seria bastante para que o atual governador se convencesse que era de mais na Guiné. Mas não. Ele não o compreende assim e mantém-se à frente da colónia, embora divorciado da opinião política que o detesta, aguardando uma salvadora revolução democrática que lhe dê força que sente faltar-lhe na atual situação.

Parece que o atual ministro as Colónias mantém por tudo quando se está passando na Guiné um desprezo superior”.

 Praia de Ofir - Bolama

O relatório de 1926 tem uma valiosa componente económica e procede à situação da colónia com bastante cuidado. Vejamos agora a situação da colónia deixando para mais tarde o quadro económico e financeiro da Guiné no relatório de exercício de 1926, ver-se-á que é extremamente útil. Estava agora em funções um encarregado do governo, o novo governador será alguém que deixará nome, Leite de Magalhães. Vejamos como o gerente se refere a este período de transição:

“A obra do atual encarregado de governo tem já factos que demonstram bem o acerto e desinteresse com que pretende governar. Empenhado em ressuscitar a Guiné e fazer dela valor seguro e real que representa no nosso Império Colonial, começou por moralizar os diferentes serviços públicos, reduzindo nuns, ao mínimo indispensável os servidores da colónia que pesavam exageradamente no seu orçamento, reorganizou-se o quadro administrativo, começando por uma acertada divisão do território da província em sete circunscrições e dois concelhos, que trouxe como consequência o alijamento de muitos funcionários que nada produziam; extinguiu-se o Corpo da Guarda Fiscal, corpo militar aparatoso mas inútil, composto na sua maioria por cabo-verdianos, sem noção dos seus deveres e que eram sem dúvida dos maiores contrabandistas (…) Estão-se reorganizando os serviços aduaneiros com o mesmo intuito de economia; foram dispensados muitos contratados que para nada prestavam; foram suspensos todos os contratos de empreitadas; paralisam as obras do Estado que vinham absorvendo uma enorme parte das receitas da província, obras em que a fiscalização e os desperdícios eram tamanhos que toda a gente se arrepiava com tão grande desmazelo”.

O gerente não esconde uma profunda animosidade pela administração de Velez Caroço e adianta um episódio onde se insinua que o então governador praticava arbitrariedades e prepotências:
“Um facto queremos ainda salientar a V. Exas., que pela sua importância e significado é preciso ponderar.

No governo passado, há anos, ausentou-se do Forreá um régulo dos mais poderosos daquela região, chamado Cherno Cali. Levou na fuga atrás de si muitas centenas de pessoas e muito gado. As perseguições de um administrador, dos que se recrutam por favor da política, sem conhecimentos e sem a noção da responsabilidade que sobre ele pesava, originaram a resolução do régulo Cali, oficial de segunda linha do Exército por seus bons serviços ao país.

Despovoou-se o Forreá, região rica, abundante de coconote; não se lavraram mais as suas terras; não se justificava já a existência de uma circunscrição naquele território. Várias tentativas se fizeram no sentido de conseguir o seu regresso no governo passado. Tudo inútil, pois desconfiado, como todos os da sua raça, esperava que lhe fizessem pior ou o sobrecarregassem com alguma pesada multa em gado. Pois logo no começo do governo do Capitão Saldanha o régulo Cali pediu licença para regressar à sua terra de onde se exilara forçado pelos vexames e perseguições a que o sujeitaram. Estava certo que a forma vexatória e injustificada como fora perseguido, desaparecera, para não desmentir a maneira branda como sempre tratamos os portugueses filhos dos nossos domínios africanos. Este facto, por si só, quando outros não avultassem já, diz bem do alto conceito em que é tido o encarregado do governo da Guiné entre os próprios indígenas”.

(Continua)
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Notas do editor:

Vd. poste anterior de 17 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17978: Notas de leitura (1015): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (9) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de20 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17991: Notas de leitura (1016): "40 anos de impunidade na Guiné-Bissau", relatório da responsabilidade da Liga Guineense dos Direitos Humanos, publicado em 2013 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17150: Notas de leitura (937): "Portugal Afrique Pacifique", por René Pélissier, edição de autor, 2015 (2) (Mário Beja Santos)


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Não conheço historiador mais atento a tudo quanto se publica sobre África Lusófona do que René Pélissier. É bem possível que ele todo os dias ande a vasculhar em blogues como o nosso e em todas as casas editoriais europeias. O certo é que ele lê e comenta o que se publica e ajuda-nos a conhecer o pouco que se vai editando sobre a Guiné. Ele pede aos antigos combatentes que façam as suas edições de autor que não se esqueçam de lhe enviar os seus trabalhos para: Editions Pélissier, 20 Rue des Alluets, 78630 Orgeval, França.
Temos depois, o autor terá a grata surpresa de ver os seus comentários publicados numa imprensa especializada já que, como é do domínio público, os grandes gigantes da edição permanecem indiferentes a todo o tipo de literatura e estudos científicos sobre a guerra colonial, aquele espaço de martírio e onde houve tanta esperança revolucionária deixou de estar na moda.

Um abraço do
Mário


As leituras de René Pélissier acerca da Guiné (2)

Beja Santos

René Pélissier tem o dom de escavar e encontrar pepitas de ouro, e no que tange à Guiné a sua voracidade bibliográfica surpreende sempre. Continuamos a respigar o que ele sobre a Guiné plasma em "Portugal Afrique Pacifique", edição de autor, 2015 (para os interessados: Editions Pélissier, 20 Rue des Alluets, 78630 Orgeval, França; email do autor viapelbooks@wanadoo.fr).
Já aqui se falou no precioso álbum organizado por Mário Matos e Lemos sobre “O primeiro fotógrafo de guerra português José Henriques de Mello. Guiné: Campanhas de 1907-1908”. Obra que me provocou emoção, referia-se a território que percorri palmo, o Cuor. Quando o régulo Infali Soncó decidiu fechar o trânsito do Geba, os políticos de Lisboa aperceberam-se que a questão era mesmo grave, aquela rebelião podia levar ao colapso do comércio da colónia. Por isso o governo deliberou enviar tropa europeia e macuas de Moçambique. José Henriques de Mello fotografou as tropas em Bissau e depois no Cuor, onde houve combates e o régulo fugiu. São imagens impressionantes. É pena este álbum editado em 2009 pela Imprensa da Universidade de Coimbra estar completamente esgotado.

Outra preciosidade é um guia turístico espanhol, “Rumo à Guiné-Bissau” de José Luis Aznar Ferrández, Barcelona, 2010. Pélissier comenta que consagrar mais de 200 páginas a um país que não acolherá muitos visitantes hispanófobos por ano é uma intenção louvável de editor e de autor, por aqui pululam traficantes colombianos que mais não leem que banda desenhada e livros de contabilidade com droga transacionada. Pélissier considera este autor imbatível nas suas descrições minuciosas dos principais locais merecedores de visita. É um autor que não deixa de elogiar a hospitalidade, a xenofilia dos guineenses. E na mesma recensão, o autor fala-nos de uma obra merecedora da nossa atenção, “Mami Wata, Mãe das Águas, Natureza e Comunidades do Litoral Oeste-Africano”, por Pierre Campredon, França, 2010. O autor é um ecologista naturalista fascinado pelas zonas costeiras oeste-africanas e das populações que vivem na Mauritânia, no Senegal e na Guiné-Bissau. Disserta sobre a vida económica do arquipélago dos Bijagós e chama a atenção para a necessidade de preservar as espécies faunísticas do arquipélago, ameaçadas pela pesca industrial. Pélissier espera que a criação da reserva de biosfera do arquipélago Bolama-Bijagós não chegue demasiado tarde.

Recorda Gérard Chaliand e o seu La pointe du coteau, Robert Laffont, 2011, de já se fez aqui recensão. Em Maio de 1966, Chaliand entrou no território da Guiné através do Casamansa, fez-se prontamente amigo e admirador de Cabral. Pélissier passa de Chaliand para um livro de Rui Jorge Semedo, ponto de vista, Pedro e João Editores, Brasil, 2009, e pergunta o que é que diria Cabral se lesse este livro. Rui Semedo faz uma verificação desesperada da situação da sua pátria, a Guiné-Bissau, cerca de 40 anos depois da morte de Cabral. E cita-o: “As principais atividades económicas da Guiné são: tornar-se ministro, traficante de droga, entrar em revoltas militares ou na corrupção, no peculato e no desvio de bens públicos”. Um geólogo à procura de diamantes, pôs-se ao caminho em países africanos como a Costa do Marfim, o Gabão, o Mali e entrou na Guiné-Bissau em 1978. Essas memórias parecem publicadas com o título Reflets de Brousse, por Jean-Louis Marroncle, Editions Edilivre, Paris, 2010. Outra surpresa: as memórias do padre Abel Gonçalves, missionário na Guiné cerca de 20 anos, o título da obra é Catarse (Ordem da Trindade, Rua da Trindade, 115, Porto, 2007. Descreve o seu ministério religioso primeiro como padre capelão junto de tropas do Exército, entre Maio de 1967 e Maio de 1969, e depois no Hospital Militar de Bissau.

Tem agora a precedência um livro de Lourenço da Silva intitulado Les Héros de la Guinée-Bissau, L’Harmattan, Paris, 2012, cidadão da Guiné, alto funcionário. O seu livro não é nem de história nem de ciência política, é uma espécie de biografia apologética e ditirâmbica de Nino Vieira. Pélissier leu atentamente o relato de Idálio Reis a CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné. Gandembel/Ponto Balana, uma revisitação a um pesadelo para o qual nunca ninguém deu uma explicação: montar um quartel longe da população e no corredor da morte, é de facto um dos documentos mais arrasadores da estratégia montada pelo Estado-Maior de Schulz. O pesadelo acabou em 28 de Janeiro de 1969 com a evacuação de Gandembel, uma posição fustigada centenas de vezes, em que a reação, pela força das coisas teria sempre que ser meramente defensiva. Uma palavra para Guinée, 22 Novembre, 1970. Opération Mar Verde, de Bilguissa Diallo, L’Harttman, 2014, um livro que Pélissier considera útil para completar tudo o que tem sido publicado em Portugal sobre o assunto. A autora é filha de um antigo oficial guineense que esteve envolvido na tentativa de golpe de Estado. Na obra procura-se reabilitar muitas figuras do FLNG – Frente de Libertação Nacional da Guiné.

Um comentário final para este maratonismo de René Pélissier que abarca toda a África Lusófona, é um esforço incansável para repertoriar tudo o que se publica pelo mundo fora. Bem entendido, há obras que aqui não se referem escritas em línguas não acessíveis ao leitor comum, caso de Branco Pelele, publicado por um finlandês na Alemanha, mas inteiramente redigido em Finlandês e consagrado às experiências e à vida quotidiana de uma voluntária humanitária na Guiné-Bissau. Enfim, quem quiser estar atualizado sobre este vasto caleidoscópio de edições tem mesmo que ter na mão estas mais de 500 páginas de Portugal Afrique Pacifique.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de março de 2017 Guiné 61/74 - P17131: Notas de leitura (936): "Portugal Afrique Pacifique", por René Pélissier, edição de autor, 2015 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17131: Notas de leitura (936): "Portugal Afrique Pacifique", por René Pélissier, edição de autor, 2015 (1) (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Trata-se de um tomo bem pesado daquele que será o grande maratonista internacional de recensões das antigas colónias portuguesas. A seleção que aqui se pretende fazer é de obras estrangeiras que possam interessar ao investigador ou curioso, sem deixar de dar a palavra a alguns escritores que Pélissier não esconde a boa apreciação. Também eu não escondo a minha profunda admiração por este investigador que continua ágil e ativo debruçado sobre o período colonial e pós-colonial. É caso para dizer que desejo longa vida a todos aqueles que não perderam o entusiasmo por aquilo que é o estudo aturado do antigo Império colonial português.

Um abraço do
Mário


As leituras de René Pélissier acerca da Guiné (1)

Beja Santos

“Portugal Afrique Pacifique” é o mais recente livro de René Pélissier, tão referenciado que está no nosso blogue por se tratar do investigador estrangeiro que melhor conhece a literatura portuguesa na vertente da guerra colonial. Trata-se de uma edição de autor (quem pretender adquirir a obra pode dirigir-se: René Pélissier, Éditions Pélissier, 78630 Orgeval, França).
Trata-se de um livro que é um instrumento de trabalho destinado a bibliotecários, investigadores, livreiros, colecionadores e simples curiosos. É uma obra com mais de 500 páginas, inclui crónicas e miscelâneas, Angola e Moçambique têm a fatia de leão, mas Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Índia e Timor são também contemplados. Obviamente que ficaremos centrados na problemática guineense, vamos ser surpreendidos com uma série de obras sobre as quais nunca tínhamos ouvido falar. Logo à cabeça, “Navigating terrains of war. Youth and soldiering in Guinea-Bissau”, Berghahn Books, Oxford, 2006. O autor aborda em antropologia social um problema muito circunscrito: porquê, como e com quais resultados um adolescente, pobre, marginal e violento, se envolve numa milícia paramilitar – os Aguentas, em 1998-1999 – para apoiar o presidente Nino Vieira? O autor fez o inquérito de 16 meses e considera-se apto a responder à questão. A Guiné-Bissau é um país sem esperança onde a única aspiração de um jovem sem trabalho é de emigrar para a Europa com prioridade para Portugal. Segundo o autor, os políticos atuais exacerbam as rivalidades entre Papéis e Balantas, eles querem manter-se no poder e enriquecer. Muitos dos entrevistados deploram a saída dos portugueses em que havia estabilidade e prosperidade. Tantos mortos e tantos horrores para se chegar a isto!

Segue-se outra obra que desconhecia inteiramente, “Navigating youth, generating adulthood. Social becoming in an African context”, por Catrine Christiansen e Mats Utas e Henrik Vigh, Instituto Nórdico de África, Uppsala, 2006. Nesta obra examina-se a situação em que os Papéis estão no epicentro sangrento da resistência local à quarta campanha de Teixeira Pinto. “Os contos navais” de Joaquim Chaves Ubach, Xlibris Corporation, EUA, 2006 é outra revelação. O autor é um antigo oficial da Armada que andou nos rios e rias da Guiné entre 1965 e 1967. Descreve as suas operações nas rias do Sul, Cacine (no rio Grande de Buba, Cacheu e Mansoa). A impressão que sai desta leitura é que o PAIGC estava muitíssimo bem equipado em artilharia e alvejava implacavelmente as embarcações portuguesas.

“A difusão do nativismo em África, Cabo Verde e Angola, séculos XIX e XX", por José Marques Guimarães, África Debate, Lisboa, 2006 é uma história de intelectualidade crioula, analisa-se a relação entre os movimentos independentistas brasileiros contra Portugal e, de outro lado, o separatismo latente das elites crioulas nas duas colónias atlânticas mais evoluídas. O autor segue os meandros destas pequenas células de intelectuais, por vezes proprietários de escravos ao longo do século XIX, até ao fim da primeira república, 1926. O mérito deste trabalho de Marques Guimarães é de situar numa perspetiva transatlântica ampla elementos dispersos.

A obra seguinte intitula-se “The life, thought and legacy of Cape Verde’s freedom fighter Amilcar Cabral. Essays on his liberation philosophy”, The Edwin Mellen Press, Lewiston, Nova Iorque, 2006. Marxista pragmático, Amílcar Cabral inflamou a esquerda terceiro-mundista de seu tempo. Este agrónomo tudo apostou num projeto de união contranatura entre o arquipélago de Cabo Verde e a Guiné. Tanto na Praia como em Bissau a sua memória continua a ser respeitada, mas, curiosamente, é sobretudo nas universidades negras dos Estados Unidos se se estuda o seu pensamento. É aqui que parece que Amílcar Cabral sobrevive.

Mudamos de longitude. Para os amadores da história oral têm muito peso as narrativas e crónicas relativas ao nascimento, evolução do reino de Kaabu e o seu desaparecimento. Um par de investigadores holandeses estudou a batalha de Kansala (em que os Fulas derrotaram os Mandingas no território da Guiné Portuguesa, em 1867) e procuram uma boa cronologia onde se possa fazer a distinção entre o mítico e aquilo que está incontestavelmente certificado. René Pélissier faz largas referências a livros de que aqui já se fizeram recensão, como o "Diário de Luís de Matos, Memória dos dias sem fim", de Luís Rosa, e o esplêndido álbum “O primeiro fotógrafo de guerra português", José Henriques de Mello. "Guiné: campanhas de 1907-1908", por Mário Matos e Lemos, trata-se do primeiro diário de campanha é a primeira das monografas militares mais completa que conhecemos, neste período. Fica ainda uma referência ao livro “O tempo e o espaço em que vivi”, por Miguel Urbano Rodrigues, Campo das Letras, Porto, 2002. Este jornalista desvela os seus contactos em 1961 em Conacri com alguns nacionalistas angolanos. Este mesmo autor refere que os acontecimentos de 4 de Fevereiro de 1961, em Luanda, não foram o resultado de um plano amadurecido, utilizava-se a presença de jornalistas estrangeiros que estavam à espera do paquete Santa Maria, apanhado por Henrique Calvão. É uma contradição com a vulgata ulterior do MPLA, que propagandeava a sua participação no assalto às cadeias. Miguel Urbano Rodrigues não esconde a sua grande admiração por Amílcar Cabral tanto como pensador como humanista. Uma última referência para a obra de António Duarte Silva, “Invenção e construção da Guiné-Bissau”, Edições Almedina, 2010. O autor procede a um estudo das primeiras organizações protonacionalistas, traz aspetos novos. Introduz uma iluminação na nebulosa das versões antagonistas do massacre de 3 de Agosto, dito do Pidjiquiti. As responsabilidades apontam para António Carreira, ao tempo gerente da Casa Gouveia em Bissau. Resta dizer que Carreira veio desdizer publicamente que tivera quaisquer responsabilidades nos atos da polícia e do exército. É uma obra que se concentra sobre certas temáticas, por exemplo o golpe de estado de Novembro de 1980, as constituições de 1984 e 1993, a etnicidade, o carrossel político depois do conflito de 1998-1999.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série 10 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17124: Notas de leitura (935): Autóctones guineenses e portugueses: Contactos sempre difíceis, dos primórdios à independência (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16982: Notas de leitura (922): “De África a Timor, uma bibliografia internacional crítica (1995-2011)”, por René Pélissier, Edições Húmus, 2014 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a uma digressão sobre recensões guineenses, entre as muitas centenas que vêm inseridas nesta obra monumental de recolha de investigações que muitas vezes não aparecem no mercado português. Para o estudioso e mesmo para o leigo interessado sobre acontecimentos dos dois últimos séculos do império colonial, Pélissier é incontornável, e quem põe dúvida a esta afirmação pode esclarecer-se com esta leitura, pois a obra está disponível nas livrarias.
Registo que Pélissier procura repertoriar tudo que tem a ver com a literatura da guerra colonial.

Um abraço do
Mário


De África a Timor: uma maratona de livros por René Pélissier (2)

Beja Santos

“De África a Timor, uma bibliografia internacional crítica (1995-2001)”, por René Pélissier, Edições Húmus, 2014, é uma obra indispensável para leigos e investigadores sobre trabalhos que se prendem com as diferentes parcelas do antigo império português. Pélissier é um nome gigante nas investigações da colonização portuguesa e não se conhece mais ninguém com este palmarés de milhares de recensões inicialmente publicadas em revistas especializadas e depois em diferentes volumes. Como é óbvio, neste espaço procuramos referenciar estudos e recensões centrados na Guiné. A propósito de um escritor português, Luís Rosa, Pélissier observa:
“A literatura dos antigos combatentes é um género, ou subgénero, que mobiliza e mobilizará os professores de literatura portuguesa durante muitas gerações, bem depois do desaparecimento dos que a escreveram. Estes académicos, em geral, não têm as mesmas preocupações dos autores e ainda menos as dos historiadores. Os últimos desejam saber o que não se encontra nos comunicados de imprensa da época nem na história oficial estabelecida a posteriori pelos Estados-Maiores. Para os historiadores o estilo e o lirismo, a poesia e o vocabulário das emoções não são mais do que acessórios. O aborrecimento chega depressa após a leitura das proezas desta ou daquela Unidade; não nos devemos desencorajar pois acabamos por descobrir pepitas mesmo nos romances históricos, redigidos por certos atores (em geral oficiais milicianos) que tiveram de combater a sério.
"Memória dos Dias sem Fim", por Luís Rosa, Editorial Presença, 2009 é disto um bom exemplo. Luís Rosa está numa guerra absurda e enfrenta na Guiné um inimigo decidido e combativo. O alferes Rosa e a sua Companhia estão na zona nevrálgica fronteiriça do Sudeste, entre o rio Cacine e o limite artificial da Guiné Conacri. É um lugar de passagem obrigatória do PAIGC, que está encarregado de retomar e defender. Um historiador que já sublinhou abundantemente o caráter arbitrário do traçado dos contornos da Guiné não pode ficar insensível esta demarcação que devido o país dos Nalus. De entre as caraterísticas mais importantes do livro, limitar-nos-emos a citar as mais originais: a) a presença de um comerciante português em Gadamael que explora impiedosamente os Nalus; b) a tortura de um louco, prisioneiro; c) a execução em Guileje, por um alferes, de um velho informador/agente duplo, a quem obriga a cavar o próprio túmulo antes de arrancar uma orelha do seu cadáver; d) o bombardeamento com morteiros do posto de Sangonhá a partir do campo de Marela do PAIGC, na Guiné Conacri e o franqueamento, em represália, da fronteira pelos Comandos e milícia local; e) a receção dos refugiados que fogem da fome; f) a primeira destruição pelas unidades regulares de artilharia do PAIGC da guarnição portuguesa de Guileje; g) o fornecimento de informação contra o PAIGC por um chefe Nalu, refugiado na Guiné Conacri, em troca de um tratamento contra as doenças venéreas”.

Foi com surpresa que tomei conhecimento do romance “Deixei o meu coração em África”, por Manuel Arouca, Oficina do Livro, 2006. Segundo Pélissier, trata-se de uma extraordinária reconstituição da realidade vivida pelos soldados portugueses em Guileje. Esta reconstituição é tanto mais notável quanto Manuel Arouca não parece ter conhecido a Guiné no seu crepúsculo caetanista. E é mesmo um romance em que tudo o que o autor narra sobre este país em guerra lhe foi contado por um primo. Vejamos os termos, segundo Pélissier:
“Assim, encontramos Spínola, mas sobretudo o quotidiano de uma guarnição, ameaçada e rotineira, que só se anima com as escoltas dos comboios de provisões, a chegada do correio, os bombardeamentos de napalme, as emboscadas, as personalidades fortes, como a do capitão cabo-verdiano que comandava a Companhia e que era o único patriota otimista neste posto português. Assistimos, em seguida, ao casamento em Gadamael-Porto de um suboficial de Coimbra com a filha de um chefe Fula: um caso de luso-tropicalismo que acabará mal (ao pisar uma mina, o marido perderá as duas pernas). Conhecemos também um soldado marxista que denúncia as operações em proveito do PAIGC e o herói do livro, um furriel, é adotado por uma família Balanta cujos filhos gémeos são, um, um chefe de guerrilheiros e, o outro, um capitão dos comandos africanos portugueses. A obra abarca o período de 1968 a 1971. O maior problema do Exército Português prendia-se com o facto de serrem raros – exceto entre as tropas especiais – aqueles que acreditavam verdadeiramente na utilidade daquilo que faziam. E não estavam provavelmente enganados”. 
Refere também o “Diário da Guiné” de António Graça de Abreu, Guerra e Paz Editores, 2007, dizendo:
“Graça de Abreu observa a política contestada de Spínola e permanece duvidoso quanto às pretensões do PAIGC em dominar todo o território, mas cedo se apercebe de que, pelo menos entre os Manjacos, décadas de exploração colonial não podem ser apagadas por tardias reformas materiais”. 
E, mais adiante: 
“No final de 1973, Cufar e todas as guarnições em redor são bombardeados pelos 122. As tropas sabem que vão para a morte na ofensiva contra o Cantanhez e as minas que os esperam. Os sábios de uniforme escrevem poemas que Camões não teria imaginado, mas todos mergulham no álcool para adormecer os seus medos. O Estado-Maior e os serviços de saúde pública terão elaborado, posteriormente, estatísticas sobre a dependência alcoólica dos antigos combatentes portugueses? A água pura era rara na Guiné no início de 1974. Sabemos a que é que tudo isto conduziu Exército e o Estado-Novo”.

Temos aqui centenas de recensões numa edição cuidada, incluindo lista de autores, a ordenação geográfica da respetiva bibliografia e o facilitador índice toponímico.

Trata-se de um levantamento de um historiador infatigável, de alguém que anda há várias décadas a coligir, peça a peça, a desmesurada bibliografia de antigos combatentes e de investigações dos mais diferentes matizes.
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de Janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16972: Notas de leitura (921): “De África a Timor, uma bibliografia internacional crítica (1995-2011)”, por René Pélissier, Edições Húmus, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16972: Notas de leitura (921): “De África a Timor, uma bibliografia internacional crítica (1995-2011)”, por René Pélissier, Edições Húmus, 2014 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Novembro de 2015:

Queridos amigos,
Foi graças ao Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto que se fez a compilação das recensões de René Pélissier num conjunto de publicações, tais como Análise Social, África Hoje e História, entre outras. Volume denso, procurei catar obras e autores que nos passam despercebidos, desde edições estrangeiras que não chegam ao nosso mercado até edições de autor que só por um bambúrrio da sorte é possível encontrar.
Pélissier é historiador notado e um maratonista sem rival quanto a recensões de obras que abarcam os séculos XIX e XX, centro dos seus estudos. Trata-se de um inesgotável potencial de informação acompanhado da bibliografia por autores, temas e regiões. Obra indispensável para os fanáticos de leituras dos nossos dois últimos séculos de império.

Um abraço do
Mário


De África a Timor: uma maratona de livros por René Pélissier (1)

Beja Santos

Como soe dizer-se, René Pélissier é um nome gigante da historiografia da colonização portuguesa. Os seus trabalhos pioneiros sobre a evolução político-militar das colónias portuguesas dos séculos XIX e XX são incontornáveis, nenhuma investigação é possível sem esta referência obrigatória no campo do conhecimento. Acresce que ele vence toda a concorrência na recensão de obras sobre todo o antigo império português. “De África a Timor, uma bibliografia internacional crítica (1995-2011)”, por René Pélissier, Edições Húmus, 2014, é uma amostra do trabalho deste maratonista a quem se deve a mais completa revisão da bibliografia do nosso antigo império. Este volume acolhe as recensões feitas em várias revistas portuguesas a quem devemos, até 2005 cerca de 3 milhares de recensões sobre a mesma época histórica (1800-2005).

É completamente inviável fazer-se aqui um levantamento das cerca de 650 páginas do volume, abordarmos todas as guerras, todo o processo colonial e toda a descolonização, avançam-se com alguns exemplos que vão certamente aguçar o interesse de quem gosta destas leituras e sentir que ainda há muito autores a descobrir para formarmos uma opinião tão esclarecida quanto possível sobre o tema colonial que nos apraz investigar. René Pélissier fala de autores e obras que não passam pelas nossas livrarias. É o caso de Planting Rice and Harvesting Slaves, Transformations along the Guinea-Bissau Coast, 1400-1900, por Walter Hawthorne, e tece as seguintes considerações:
“Para a Guiné-Bissau, os historiadores ficarão contentes por tomarem contacto com o primeiro estudo aprofundado de uma etnia local examinada ao longo de 500 anos. Na verdade, inicialmente, é visível uma certa ingenuidade do autor, ao acreditar em tudo o que escreveram os pundits (eruditos) a propósito da não participação das sociedades sem estado no comércio de escravos em África. Trata-se de puras bizantinices académicas. Mas Walter Hawrthorne demonstra magistralmente que os Balantas não foram só vítimas, mas, também eles, negreiros, a fim de se abastecerem de armamento indispensável à sua própria defesa. A economia do tráfico de escravos exigiu um reforço da população e de um produto para a alimentação desse excesso populacional (o arroz). Contrariamente ao clichés lançados por este ou aquele perito, que não vê mais além do que a ponta do seu nariz e extrapola, em seguida, para o conjunto das situações, tentando assim construir uma reputação de teórico, o comércio de escravos não conduziu sempre a uma diminuição da população em todas as sociedades que neles estiveram desenvolvidas. Os Balantas estiveram entre elas. Com um impressionante conhecimento das fontes portuguesas, escoradas por entrevistas no terreno, o autor, que conhece não apenas o português, mas igualmente o crioulo, o guineense e a língua Balanta, elabora um trabalho universitário de alta qualidade”.

Tenho dito repetidamente que há muitas peças para juntar, muitas edições de autor ou obras mal divulgadas, e a Guiné não é caso raro. René Pélissier fala-nos da monografia da CART 731, Guiné 1964/1966, obra de descrição minuciosa, e adianta os seguintes elementos:
“Estacionada sobretudo em Farim, e atuando no início da guerra, operou essencialmente entre muçulmanos. É uma obra que merece ser mencionada pela excelência dos mapas. Trata-se de uma documentação que devia ser multiplicada por 100 para que tivéssemos, finalmente, uma história completa da guerra colonial. Há poucas hipóteses de que veja a luz do dia em 20 volumes”.

E voltamos a outros autores que desconhecíamos inteiramente. De novo René Pélissier na primeira pessoa:
“Saltemos agora até à Guiné-Bissau, onde, para começar, dois escandinavos, um dinamarquês e uma islandesa, se debruçam sobre os problemas da juventude local. Henrik Vigh aborda, na perspetiva da antropologia social um problema bem delimitado: porquê, como e com que resultados um adolescente pobre, marginal e violento se alista numa milícia paramilitar – os Aguentas, 1998-1999, para apoiar o presidente Nino Vieira? Após um inquérito de 16 meses, realizado entre 2000 e 2003 em Bissau, em particular em Bandim (etnia Papel) e em Praça, a parte antiga da cidade) o autor sabe o suficiente para responder à questão formulada e as suas conclusões não são animadoras. A Guiné-Bissau é um país sem esperança, em que a única aspiração de um jovem ocioso é emigrar para a Europa e, prioritariamente, para Portugal (Henrik Vigh, Navigating terrains of war. Youth and soldiering in Guinea-Bissau, Berghahn Books, Oxford, 2006).
Quanto à antropóloga islandesa, Jónina Einarsdótttir, encontramo-la como autora de um capítulo do livro Navigating youth, genarating adulthood. Social becoming in na African context, Nordiska Afrikainstitutet, Upsala, 2006. Ela estuda a situação entre os Papéis no epicentro sangrento da resistência local durante a quarta campanha de Teixeira Pinto. Ela não se enreda em referências históricas que, no entanto, lhe teriam permitido saber que em 1915, no Biombo, se registou uma tal sobremortalidade masculina que foram precisas décadas para restabelecer o equilíbrio entre os dois sexos. O texto está repleto de histórias pessoais e a autora, que conhece melhor do que ninguém as questões relacionadas com a adoção e criação dos jovens de etnia Papel, aproveita para denunciar a Convenção dos Direitos da Criança como nefasta, se aplicada universalmente. Provavelmente tem razão, mas quem é que em Genebra ou em Manhattan se preocupa com os jovens Papéis?”.

E no mesmo contexto de recensões traz-nos mais uma novidade: Contos navais, da autoria de um ex-oficial da Marinha Portuguesa, que publica na sua língua, mas nos Estados Unidos: Joaquim Chaves Ubach, "Contos Navais", Xlibris Corporation, EUA, 2006. Este antigo oficial comandou lanchas de desembarque entre 1965 e 1967. “A impressão que ressalta da sua leitura é que o PAIGC, sendo extremamente bem equipado com peças de artilharia, bombardeava sem muito perigo as embarcações portuguesas. As datas são pouco precisas e é de admirar que, uma geração depois dos factos, a Armada não tenha ainda publicado uma história global das suas atividades, e não apenas as dos fuzileiros, mas também as de todas as unidades de alto-mar (esta situação encontra-se presentemente superada depois de recentes publicações da Academia da Marinha, importa dizer)”.

Continua
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Nota do editor

Último poste da série de 16 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16957: Notas de leitura (920): “O fim da guerra na Guiné”, por Carlos Alberto G. Martinho, Chiado Editora, 2015 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14618: Notas de leitura (712): René Pélissier escreveu sobre a CCAÇ 2317, Gandembel (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Maio de 2015:

Queridos amigos,
É sempre bom que se fale dos nossos livros, e em publicações de grande importância, como é o caso da Africana Studia.
O essencial respeitante ao livro do Idálio Reis já está dito e publicado no nosso blogue, em martírio que está gravado em bronze para a História.
Vale a pena ver a peça de um grande historiador que é René Pélissier, mais uma razão para o orgulho que temos no nosso blogue.

Um abraço do
Mário


René Pélissier escreveu sobre a CCAÇ 2317, Gandembel

Beja Santos

Na conceituada revista Africana Studia, uma das poucas publicações científicas relacionadas com estudos africanos, editada pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, no n.º 20, de 2013, René Pélissier, que regularmente aqui publica as suas recensões sobre obra da literatura colonial, debruça-se sobre o livro de Idálio Reis, a "CCAÇ 2317 na guerra da Guiné. Gandembel/Ponte Balana", 2012.

É do conhecimento de todos que à CCAÇ 2317 coube o martírio de erigir junto do “Corredor da morte” um aquartelamento por decisão do Estado-maior de Arnaldo Schulz. Viveram literalmente enterrados no solo, como escreve Pélissier e o martírio acabou em 28 de Janeiro de 1969 quando Gandembel foi evacuado.
Entretanto, este posto avançado em terra de ninguém foi flagelado 372 vezes enquanto durou o suplício.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14597: Notas de leitura (711): "O Outro Lado da Guerra Colonial", por Dora Alexandre, A Esfera dos Livros, 2015 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12000: Notas de leitura (516): "Le Naufrage des Caravelles", por René Pélissier (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2013:

Queridos amigos,
Esta capa de Pélissier não tem nada a ver com a Guiné, reproduz o forte de São José de Encoge (1759), em Angola, Pélissier estudou Angola a fundo.
A matéria deste trabalho prende-se com as consequências demográficas na guerra de guerrilhas, ele faz uma interpretação do que se passou na Guiné, com base nos dados das autoridades portuguesas e os apresentados pelo PAIGC.
Como se verá, ele não andou muito longe da verdade e não se deixou seduzir pelos cânticos das sereias.

Um abraço do
Mário


O naufrágio das caravelas, por René Pélissier

Beja Santos

“Le Naufrage des Caravelles, Etudes sur la fin de l’empire portugais (1961-1975)”, Editions Pelissier, 1979, reúne um conjunto de ensaios que o investigador publicou em diferentes periódicos entre 1967 e 1975, todos eles consagrados às colónias portuguesas em África. De um trabalho publicado em 1974 na Revista Francesa da História do Ultramar e intitulado “Consequências demográficas das revoltas na África portuguesa (1961-1970), ensaio de interpretação”, parece-nos interessante reproduzir algumas das suas afirmações sobre a situação então vivida na Guiné.

Ele recorda que ambas as partes na contenda usaram de propaganda para angariar apoios, por vezes sem nenhuns escrúpulos. Qualquer guerrilha leva a alterações demográficas, ao crescimento de alguns territórios em detrimento de outros, as partes em conflito brandem números sobre a população que se acolhe à sua causa. Neste trabalho, o autor não esconde que parte do postulado da validade das estatísticas portuguesas, considera que os recenseamentos portugueses constituem um ponto de partida particularmente sólido. E logo comparando as fontes portuguesas de 1960, em que se fala de uma população aproximadamente de 521 mil habitantes, refere dados exibidos por Basil Davidson em que a fonte do PAIGC refere 800 mil habitantes, em 1968, e não tem rebuço em dizer que as fontes dos nacionalistas têm tendência a empolar os efetivos das etnias que lhes eram favoráveis, minorando as que eram manifestamente opostas. E dentro desta comparação dos dados apresentados pela Agência-Geral do Ultramar e fontes do PAIGC, mostra como o PAIGC reduz a população Fula e Mandinga inflacionando a Balanta e a Manjaca. E adianta que o recenseamento de 1960 feito pelas autoridades portuguesas visava apurar com rigor por causa dos impostos e conhecer com exatidão possível a onda parava a mão-de-obra masculina.

A fuga de populações começou a ser um dado inicialmente menor entre 1961 e 1962, a partir de 1963 é a desarticulação na região Sul, com o tríplice efeito de concentrações na mata, em apoio ou com a coação do PAIGC, em fuga para as regiões fronteiriças da Guiné-Conacri ou com uma concentração à volta de povoados mais importantes como Aldeia Formosa, Bedanda, Tite, Buba, Catió, Cufar ou Gadamael Porto; este fenómeno da desarticulação com as inevitáveis consequências demográficas também se registou na região de Corubal, entre Xime e Xitole, portanto Leste, e afetou a região entre Mansoa e Bissorã (Morés) e Norte (região de Farim). É a partir daqui que se pode apreciar a evolução dentro dos conselhos e circunscrições: entre 1960 é incontestável o crescimento de Bissau e Bolama, de Bafatá, do Gabú e dos Bijagós e um decréscimo pode ser observado em Cacheu (muito ligeiro), em Mansoa, em Bissorã (relevante), São Domingos, em Farim (relevante), em Fulacunda (relevante) e em Catió (relevante). Os dados que dispomos sobre os refugiados no exílio não são suficientes. O alto comissariado das Nações Unidas para os refugiados só fez a recensão dos guineenses no Senegal, em 1971 considerou haver aqui cerca de 83 mil guineenses, mas nada se ficou a saber sobre os refugiados na Guiné-Conacri, e ignorou-se as comunidades guineenses de não refugiados residentes no estrangeiro. E para sermos rigorosos, uma população que vive no exílio não vive na dependência condicional do PAIGC.

Procurando analisar as consequências demográficas, Pélissier observa que o caso de Bissau tem a mesma analogia de qualquer capital de um país em guerra, procura-se segurança, trabalho. Bolama era uma ilha, dispunha de um centro militar, atraia recrutas e só era alcançável por mísseis. Os Bijagós, um pouco à semelhança dos Felupes, puseram-se à margem do conflito, igualmente que atraíram quem procurava segurança e atividades económicas. A estagnação demográfica de Cacheu tem a ver com o comportamento do chão Manjaco, uma certa fuga de população para o Senegal, até 1970 julgava-se, na ótica dos militares portugueses, que se recusaria o apoio ao PAIGC.

O Gabu, esse imenso concelho com uma longa fronteira com a Guiné-Conacri, contou com a hostilidade dos Fulas e as imensas reservas dos Mandingas, ambas as etnias não queriam embarcar na aventura coletivista nem desfazer-se de uma hierarquia do tipo feudal. Os territórios ditos sob o controlo do PAIGC (caso do Boé) eram áridos e com população muito reduzida. A região de Bafatá acolheu, tal como Bambadinca e o regulado de Badora populações inseguras e daí ter mais população em 1970 do que 1960. Aqui e acolá, Pélissier faz observações contundentes, por vezes o PAIGC afirmava controlar toda a região Leste, chegando ao ponto de incluir Contubuel em zona libertada, a estatística portuguesa referia, em 1970, cerca de 22 mil habitantes, o Xitole podia estar cercado por grupos armados mas de modo algum estava sob o total controlo do PAIGC.

Depois, na análise dos concelhos em baixa populacional, Pélissier refere as fugas para o Senegal, os litígios no rio Cacheu e o predomínio balanta onde, sobretudo em Farim, Bissorã e Mansoa, o PAIGC foi buscar o seu principal apoio. São Domingos aparece dividida entre o fator nacionalista, a presença muita próxima do Casamansa e a hostilidade Felupe, sobretudo. A sul do Geba, onde a implantação do PAIGC era inegavelmente forte, há a distinguir a razia demográfica em Fulacunda e Catió.

Que concluir? Há números que apontam para perdas superiores às migrações internas; há o bloco muçulmano das savanas do Leste, há os terrenos do tarrafo entre os rios Cacheu e Tombali. Portugueses e PAIGC guerrearam também com os números. Pélissier admite que em 1970, haveria no exílio 90 mil guineenses e 30 mil sob inteiro controlo do PAIGC e presume mesmo que este número poderá ser altamente contestado pelo PAIGC. É inaceitável falar-se de uma população de 800 mil habitantes e ainda por cima reivindicar o controlo de dois terços do território, a ser verdade isso significaria dominar mais de 440 mil pessoas, dez vezes mais que os números estabelecidos pelas fontes portuguesas. Como se saberá mais tarde, quando o PAIGC fizer recenseamento para as eleições da sua assembleia legislativa, os números apresentados não excederão os 80 mil eleitores.

Este estudo de Pélissier é hoje matéria para académicos, já não tem o trotil que se destinava a incendiar apoiantes e adversários. Dentro desta frieza, dá para apreciar o rigor que Pélissier usou nas suas considerações. E dá igualmente para refletir como estes trabalhos às vezes esquecem dimensões óbvias como sejam as melhorias sanitárias, a baixa da mortalidade infantil e, mesmo que conjuntural, o aumento da esperança de vida. As guerras guardam em si segredos que só podem ser revelados mais tarde: por exemplo, o estado sanitário dos britânicos melhorou consideravelmente durante o racionamento da II Guerra Mundial, menos açúcar, menos gorduras, etc. Os guineenses, a despeito do tumulto demográfico, não regrediram nas suas condições de vida. Mas isso é outra coisa que não vem ao caso neste trabalho de René Pélissier.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11993: Notas de leitura (515): "As Ausências de Deus", por António Loja (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Guiné 63/74 - P11173: Bibliografia de uma guerra (68): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

1. Lembrando a mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2013:

Queridos amigos,
Alguns meses atrás, recebi uma carta do Prof. René Pélissier solicitando-me livros e alguns contactos, ele continua indefetivelmente, infatigavelmente, a fazer recensões de livros em torno dos nossos conflitos coloniais. Daí nasceu a ideia, mais tarde, de sugerir a esta autoridade internacional na historiografia das nossas guerras que pusesse por escrito as suas reflexões sobre escritores e escritos de antigos combatentes.
Penso que este trabalho científico nos deve orgulhar e não escondo uma certa ufania em ter participado neste exclusivo que inclui fotografia inédita do historiador a mostrar leituras onde a Guiné é preponderante.

Um abraço do
Mário



Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2)

René Pélissier

Um dos erros que um historiador não deve cometer, em absoluto, é o de a partir de uma dada situação num período preciso e generalizar conclusões. Cada mentalidade é uma ilha mais ou menos acolhedora ao leitor. Mário Beja Santos cultiva as relações humanas. É um autor que não nos vai ensinar muito sobre as operações militares. Ele não participa em grandes ofensivas. Não estará mesmo constantemente assediado pelos artilheiros cubanos do PAIGC. Vive num território onde a população não está ferozmente explorada por colonos brancos gananciosos, como em certas zonas de Angola ou Moçambique, o seu sector não é uma Disneylândia mas também não é o planalto dos Macondes nem a selva dos Dembos onde cada um sabe onde está o inimigo. Onde ele vive, há uma certa fluidez. O fator étnico, histórico e mesmo social deve ser sempre tomado em conta e nunca deve ser extrapolado à escala de todo um país em África. Uma das explicações da duração da resistência portuguesa à erosão nacionalista que, finalmente, a levará ao esgotamento, reside, apesar de tudo, no facto da guerra da Guiné ter sido conduzida no terreno por soldados oriundos de meios muito humildes, habituados à dureza da vida, e contra guerrilheiros ainda mais pobres do que eles, mas bem armados, cheios de esperança e bem aconselhados. Quanto aos portugueses, a sua esperança era a de regressar o mais rapidamente possível para junto dos seus entes queridos.

Nós estamos nos antípodas de uma guerra ultratécnica, de um lado, perante camponeses fanatizados (tipo Afeganistão e, mais longinquamente, o Vietname ou a Argélia) sem possibilidade de uma real aproximação humana, ao nível dos combatentes. Os portugueses estão condenados a perder, mas lentamente. E, sobretudo, esse sentimento está mais instalado na mente dos oficiais de carreira do que na superioridade esmagadora dos seus adversários. É uma guerra entre duas paciências.

De qualquer maneira, Mário Beja Santos é o autor que publicou mais livros sobre a Guiné: pelo menos cinco grandes volumes até ao início de 2013. E publicou-os através de editoras capazes de tocar um público numeroso. O mesmo não se pode dizer dos dois livros seguintes, seja qual for o valor literário ou documental destes títulos em apreço. Aqui, nós abordamos sem pudor uma questão delicada para um crítico, mas é preciso que fique claro. Para se vender bem um livro, é preciso que ele seja bem distribuído nas livrarias e que, no mínimo, haja bons contactos na comunicação social que permitam o conhecimento desta produção. Os autores-editores e os autores que pagam a um pequeno editor para que a sua obra seja publicada são, por vezes, bem-sucedidos a ganhar dinheiro quando apresentem um tema dito “do grande público”.

Infelizmente, as memórias da guerra colonial não fazem parte desse grande público, salvo honrosas exceções. O “grande público”, em todos os países, é um público de rebanhos que segue a moda ou em conformidade com o que se vê na televisão. Falar de Timor aquando dos massacres cometidos pelas milícias pró-indonésias era uma garantia de sucesso na época. Agora, seria sopa requentada numa panela velha: impensável! Ora, no contexto português atual, a guerra colonial da Guiné interessa a pouca gente, salvo precisamente os antigos combatentes, as suas famílias e os seus amigos. O que é insuficiente. Acresce, é preciso dizê-lo em muitos casos, os simples autores-editores não fazem nada para se fazerem conhecer, ou não têm meios para isso. Alguns limitam-se a dar algumas conferências em vilas de província, em reuniões de clubes, outros não ultrapassam o nível dos antigos camaradas das suas unidades militares, alguns mencionam um ISBN na ficha técnica mas não indicam o endereço ou as livrarias onde se podem fazer encomendas. Sei isto muito bem porque eu compro – ou muitas vezes procuro comprar – todos os anos dezenas de livros que as livrarias portuguesas não sabem mesmo aonde os encomendar. São livros fantasmas, desconhecidos das melhores bibliotecas estrangeiras e mesmo portuguesas. Ou sabe-se que eles existem, talvez, mas nunca lhes pomos a vista em cima.

O mínimo que devia respeitar um autor-editor seria fornecer nos livros e na publicidade à volta da sua obra, um endereço, seja postal, seja eletrónico, e responder aos potenciais compradores se ele não quer assegurar um serviço de comunicação aos raríssimos críticos que querem divulgar a obra. De igual modo, um jornalista ou um publicista deveria nas suas recensões dizer onde se pode obter a obra de que ele está a falar. Caso contrário, é amadorismo que revela uma ausência de confiança na qualidade do livro ou uma evidente falta de profissionalismo.

Pequeno ou grande, para mim, crítico e historiador, um livro desconhecido com uma tiragem de 300 exemplares tem o mesmo valor que um best-seller, se ele é original e me traz algo de novo, comparativamente ao que já foi publicado. Mas também é preciso saber que são muito raros os antigos combatentes que conhecem aquilo que já foi escrito, vai para uns três, cinco, dez anos antes, por um membro da sua própria unidade militar, a fortiori quando se trata de livros publicados por um autor que pertence a uma outra unidade. Cada um no seu pequeno cantinho faz, por conseguinte, a sua própria “cozinha” memorial, sem ir muitas vezes ao “restaurante” – uma biblioteca especializada, quero eu dizer – para comparar e verificar.

Compreendo que um avô queira deixar aos netos as suas memórias da guerra, dizer-lhes as experiências que teve, contar-lhe as operações nas quais ele talvez tenha participado, os seus estados de alma, as suas alegrias, a sua camaradagem com este ou aquele, mesmo os seus desesperos, a brutalidade do comandante, do inimigo, o seu horror face a crimes, os mortos, os hospitais, a rotina quotidiana, os seus medos, a imbecilidade de certos regulamentos, a sua indignação por o terem obrigado a deixar a sua aldeia ou o seu bairro, a vergonha de se ter sentido impotente ou manipulado, e mesmo – isto existe também nos textos de alguns antigos combatentes das tropas especiais – o seu sentimento de satisfação por terem pertencido a um corpo de elite e de se terem sentido “super-homens” durante alguns anos. Tudo isto é admissível, mas o que se destaca, sobre 10 ou 30 páginas, é a centésima versão da viagem para Bissau, Luanda ou Lourenço Marques, é que este material está muito longe de ser indispensável. Ou então que o autor seja um verdadeiro talento no campo do romanesco.

Entre os livros recentemente recebidos sobre a Guiné, assinalaremos ainda António Lobato, Liberdade ou Evasão. O Mais Longo Cativeiro da Guerra, 4ª edição aumentada, DG Edições, Linda-a-Velha, 2011, 277pp., fotos a preto e branco. Este livro foi inicialmente publicado pela Editora Erasmo, 1995, 214pp. com fotografias, analisei-o longamente (cf. René Pélissier, Angola-Guinées-Mozambique, op.cit, p.372), porque é um livro-documento importante sobre o tratamento dos prisioneiros portugueses e sobre a natureza da guerra praticada pela Força Aérea, Lobato acidentou-se em 22 de Maio de 1963, no regresso de uma operação na Ilha de Como. Como eu então cometi uma imprecisão, retifico-a agora. O autor, sargento da Força Aérea, não foi abatido diretamente pelos guerrilheiros, o seu avião simplesmente foi tocado em pleno voo. Ele pedira a um piloto de um outro T6 para verificar se o seu trem de aterragem não estava destruído, o outro piloto passou sob o seu aparelho. E foi durante esta manobra delicada que o avião do seu camarada colidiu com a hélice do avião de Lobato, este ficou ingovernável, o seu camarada despenhou-se e morreu enquanto Lobato aterrou numa bolanha de Tombali. Perderam-se assim dois aviões no dia 22 de Maio de 1963, Lobato foi feito prisioneiro, espancado, ferido e encarcerado em condições muito duras na Guiné-Conacri. Será libertado em 22 de Novembro de 1970 no decurso da operação Mar Verde, os Comandos Africanos assaltaram a prisão e trouxeram todos os prisioneiros portugueses que ali estavam. Na presente atualização da sua narrativa, em Fevereiro de 1999, Lobato foi convidado pelo Presidente ex-inimigo, “Nino” Vieira recebeu-o em pessoa em Bissau, tinha sido “Nino” Vieira a impedir que ele fosse mais mal tratado do que já tinha sido, no início do seu cativeiro: daí a adição de novas páginas (pp. 247-250) sobre este episódio menor mas sintomático da reconciliação. Assim, é necessário possuir esta 4ª edição.

É igualmente recomendado que se procure um romance histórico que decorre praticamente ao mesmo tempo que A Viagem do Tangomau…, op.cit.

Pensamos que Guilherme Costa Ganança, O Corredor de Lamel, 68 Guiné 69, 2ª edição, Chiado Editora, Lisboa, 2012, 418 pp., fotografias a preto e branco, é um romance autobiográfico que vem na sequência de outro volume, igualmente romanceado, sobre o período imediatamente anterior. Trata-se de um alferes da Madeira, da sua companhia, dos seus problemas com a hierarquia, dos seus amores epistolares e sobretudo das operações em que ele intervém em Contuboel, Bula, Cabedu, Catió e, finalmente, a partir de Farim, o famoso corredor de Lamel, que deve ainda hoje evocar muitas recordações. Uma das diferenças da Guiné relativamente a Angola é que o território sendo pouco extenso e o PAIGC militarmente muito mais ativo que a FNLA e o MPLA (e, acessoriamente, a UNITA) havia poucos sectores onde os portugueses viviam em calma ou segurança, com a exceção de Bissau e quatro ou cinco cidades do interior, nos Bijagós, e nos Felupes, e, de uma maneira mais compacta, na região dos Fulas. Dito de outro modo, à intensidade dos combates, à dureza do clima e à morbidade em geral, seria necessário juntar a raridade de sectores tranquilos para onde se podiam enviar as tropas para recuperação das energias. Na Guiné não havia Sá da Bandeira, Lunda, Bié ou vilegiaturas urbanas. A inquietação era geral e nós ainda não lemos uma só narrativa onde os soldados desmobilizados se tenham vindo a instalar na Guiné, situação que foi frequente em Angola e Moçambique. Era um Purgatório para todos e um Inferno para a maioria. Mesmo os ultrapatriotas ou os super-homens autoproclamados dos comandos, dos páras e dos fuzileiros só tinham em mira um objetivo: a peluda. Como é evidente, com o passar dos anos e com a juventude já no passado longínquo, certos autores não querem mais do que rememorar – seletivamente – os raros momentos em que eles estavam otimistas, mas se dispuséssemos de um corpus completo de todos os livros publicados pelos antigos soldados da Guiné, poder-se-ia estabelecer uma grelha de análise fina onde certamente se poderia constatar que as más recordações são mais frequentes que as reminiscências felizes. E isto ainda mais no Exército, em especial nos açorianos e nos madeirenses que foram enviados para a Guiné nos últimos anos da guerra.

Em última análise, todos estes autores (uma centena) não tiveram nem têm uma memória tão compassiva face aos guineenses como Mário Beja Santos que deve ter sido o alferes (1968 a 1970) mais atento à sorte dos seus homens, velhos e desesperados, vendo em que decrepitude caiu a Guiné, tal como ele a visitou em 1990, 1991 e 2010. Ele resumiu o quadro através de uma expressão fúnebre: “um buraco na escuridão” (p.509).

Tantos mortos, tantas esperanças para ter que ver um antigo coronel do PAIGC mendigar-lhe um saco de arroz.
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Nota do editor

Vd. poste anterior de 26 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11159: Bibliografia de uma guerra (67): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1) (René Pélissier / Mário Beja Santos)