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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13675: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (16): Um soldado de Artilharia na fronteira sul

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), com data de 26 de Setembro de 2014:

Bom dia Carlos,
Cordiais saudações.
Do velho e já desgastado baú, sempre algo pode surgir...

Lembro o já distante ano de 70, quando em meados do ano rumei a Gadamael, para assumir o Comando do 23.° PelArt, e por lá fiquei na maior parte da minha comissão de serviço.

A situação operacional de Gadamael, já foi descrita pelo Camarada Manuel Vaz na sua magistral "Uma visão alargada do ataque a Gadamael". Também, o Exmo. Sr. Coronel de Artilharia Morais Silva, caracterizou a situação: "...A CCaç 2796 foi fustigada de forma brutal nos seus primeiros passos em Gadamael numa primeira tentativa do PAIGC de, indirectamente, eliminar a posição de Guileje (o que veio a conseguir em 1973 por via directa). Sofreu baixas, incluindo o comandante da companhia (24Jan71)..." .

Gadamael - Espaldão de obus 10,5

Gadamael - Obus em acção de tiro
Fotos: © Humberto Nunes

O Pelotão era maioritariamente composto por soldados da incorporação local, somente o Comando, um Oficial e dois Sargentos vinham de Portugal, no sistema de rendição individual.
Os soldados (profissionais) eram operacionalmente eficientes, e sob aspecto disciplinar, só lembro um evento de relativa gravidade, quando um soldado na formação e revista diária do Pelotão, teve uma atitude (passiva) de insurbordinação.
Já falei antes da sorte que tive com os Furriéis, dedicados, eficientes e leais.

Coincidiu a minha chegada com a entrega das casas do reordenamento, sendo atribuida ao Pelotão, a última fileira de casas junto ao rio e aos obuses, conforme assinalado na foto.
Acredito que foi do Furriel Oliveira, a sugestão de também nós nos instalarmos na tabanca, e foi o que fizemos, na primeira casa junto aos obuses, aliás excelente sugestão, sob o ponto de vista operacional, como parece óbvio, se se olhar a foto.

Gadamael - Casas atribuídas ao Pel Art.ª
Foto: © Coronel Morais Silva

O Comando da Artilharia em Bissau (GAC 7), não permitia a saída do Pelotão sem sua prévia autorização, sendo portanto a atividade da Artilharia dentro do quartel, no "bem-bom" do arame farpado, segundo alguns.

Os quartéis da zona Sul, ficavam expostos a ataques de Artilharia, efetuados também além fronteira. As ordens do Comandante do Aquartelamento eram bem claras: "...Ao ... Pelotão sempre exigi, quando andava no mato, tempo de resposta que não podia exceder 1 minuto e perante uma "saída" das armas IN a resposta imediata de um obus fosse qual fosse, no momento, a direcção de vigilância..." - Ex-Capitão Art. Morais Silva.

Além da resposta a ataques IN, havia o apoio a tropas em movimento, e eventualmente atingir alvos determinados por alguma autoridade militar. ​Como somos poucos, e quase esquecidos, é sempre bom lembrar o papel da Artilharia na Guiné!!!

forte abraço
VP
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13623: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (15): Autorretrato de um soldado

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)


Guiné > 1970 > Um "selfie" ("avant la lettre"...) do Vasco Pires, ex-al mil art,  cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72; bairradino, vive no Brasil desde que acabou a comissão de serviço no CTIG).

Observ.: Selfie - junção do substantivo self (em inglês "eu", "o próprio") e o sufixo ie. Ou selfy... É um tipo de fotografia de autorretrato,  normalmente tirada com uma câmara digital de mão ou telemóvel  com câmara. Foi considerada a palavra internacional do ano de 2013 pelo Oxford English Dictionary. Tornou-se "viral",  como muitas outras modas... Fonte: Adapt. de Wikipedia.


Foto: © Vasco Pires (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. O Vasco Pires foi quem deu o mote (*):


(...) Nesses tempos de "selfies" (neologismo que significa autorretrato), chamou minha atenção essa [minha] foto de 1970, poucos dias após a chegada à Guiné [, vd. foto acima].

Autorretrato acompanha a História da Humanidade, lembra Narciso,  filho de liríope, passa pela necessidade de autoconhecimento, até chegar na expressão dos modernistas angustiados.

Mas voltemos ao soldado, que parece perguntar:
- Como é que eu vim parar aqui?

É uma viagem à década de sessenta, jovens inexperientes, num país que se queria fechado ao mundo. Eu, particularmente, vinha da Bairrada profunda, de um grupo familiar que Gramsci apelidada "intelectuais rurais', logo por defenição conservadores, embora dela tenham saído alguns que ele chama de intelectuais urbanos.

Passando pelas escolas locais, cheguei na Academia Coimbrã em plena efervescência da segunda metade da década de 60, verdadeiro "ponto de clivagem", dos valores e hábitos Ocidentais (não vamos achar que somos o centro do Mundo, só porque assim fizemos como nosso mapa).
Um fervilhar de ideias, contestação dos valores tradicionais, onde poucos tinham uma visão cosmopolita.

Na época, muitos devem lembrar, a figura do "passador", que mediante determinada quantia, fazia chegar as pessoas, além Pirenéus.

Pois, tinha um que era amigo da família, pai de um amigo, e que trabalhava em parceria com um frade (não sei se este o fazia por dinheiro ou convicção), eu tinha também, grande parte da família do outro lado do Atlântico. Assim, com essa facilidade, eu, que jamais pensei que a missão era "dilatar a fé e o império", nunca me passou pela ideia de usar os seus serviços, ou me reunir aos parentes. Penso, talvez, que não queria romper com os valores culturais em que estava inserido.
Contudo, "nesta altura do campeonato", não é mais relevante. Alguns de nós foram à guerra por convicção, outros movidos pela propaganda, muitos por inércia, e alguns outros com receio de enfrentar usos e costumes estrangeiros.

2. Comentário do nosso editor Luís Graça [ex-fur mil, armas pes inf, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71]  (*)

(...) "Alguns de nós foram à guerra por convicção, outros movidos pela propaganda, muitos por inércia, e alguns outros com receio de enfrentar usos e costumes estrangeiros". (..:)

Vasco, lusitano da diáspora que estás sempre a lembrar as tuas raízes bairradinas... e respiras portugalidade por todos os poros... Dava uma série, para o nosso blogue, o feliz título que tu escolheste: "autorretrato de um soldado"...

No fundo, a questão que pões é: "por que é que eu fui p'rá guerra"...

Questão provocatória, incómoda, ou até absurda ?... Alguns camaradas nossos poderão achar que sim... Se a "pátria" te chama, só tens que responder com prontidão... Não foi sempre assim ao longo da nossa história ?... Se calhar não foi sempre assim... A história da nossa pátria está longe de ser um "livro aberto" e ter uma única leitura...

Sabe-se que de 1946 a 1973, dois milhões de portugueses sairam da sua terra, e quase metade (45%), em plena guerra colonial, só no curto período de 1966 a 1973... A maioria em idade ativa e jovem... E muitos deles, portanto, terão sido refratários...

Como alguém disse, o Estado Novo e as suas políticas (incluindo a guerra colonial) foram plebiscitadas pelos portugueses "com os pés"...

As motivações para a saída em massa e ilegal (, "a salto",) são fáceis de perceber: o círculo viciosoa da pobreza, em Portugal, não poderia ser mantido mais tempo, com o "milagre económico europeu" à nossa porta... (Os "trinta gloriosos", as décadas de excecional desenvolvimento económico e social que a Europa conheceu, desde o pós-guerra até 1973)... Já não  era preciso ir para o Brasil: a França e a Alemanha estavam ali, à nossa porta, ou pelo menos, a partir dos Pirinéus...

Muitos jovens da nossa geração emigraram, não tanto para fugir à guerra colonail, mas por razões "económicas" (, digamos assim, para simplificar)... E outros (e se calhar muitos) fizeram a guerra para ter direito a um passaporte e poder emigrar (ou passear pelo estrangeiro, estudar, etc.) legalmente...

Lutámos em África também para ter direito a um pátria... De certo modo, foi o teu caso, o meu, e de muitos outros de nós que fizemos a tropa e a a guerra...

Não sei, não temos suficiente evidência empírica sobre esta questão... Cada um, portanto, só poderá falar de si e por si....

Sinto, no entanto, que é não "confortável" para os ex-combatentes falar, para os seus "pares", num blogue como o nosso, com a audiência que o nosso tem, sobre estas "questões do foro íntimo"... Para mais, à distãncia de meio século...

No passado, quando jovens, reagíamos com o corpo inteiro (cabeça, coração, estômago, hormonas, braços e pernas, o chamado "sangue na guelra"...). Hoje tenderemos a "racionalizar" e a "idealizar" as "escolhas" que fizemos no passado (e que estavam longe de serem inteiramente livres...).

Um alfabravo verde-rubro do tamanho do Atãntico que nos separa e que, ao mesmo tempo, nos une... Luís. 


3. Comentário de Francisco Baptista [ex-alf mil inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72)] (*):

Amigo Vasco:

O meu percurso é parecido com o teu. sendo eu natural do nordeste transmontano, filho de lavradores ilustrados para o tempo e região, tinham a quarta classe.
Nesses tempos, excluindo os da capital eramos quase todos provincianos, eu influenciado por algumas leituras, não abençoadas pelo regime, pois por falta de meios financeiros, não fui para a faculdade, deixei que me levassem para a Guiné, por inércia, por outros medos e porque tinha 5 irmãos mais novos que precisavam da minha ajuda. (...)

4. Comentário de José Manel Matos Dinis [ex-fur mil, CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71]


Olá, Vasco,

A mesma frase que lança o Luís em comentário, pode ser acrescida de outras controversas condições: para além da veneração à pátria, e da aceitação das atribuições dela decorrentes, também a transigência aos costumes, e o medo da perseguição e discriminação pessoal e familiar eram condicionantes influentes na decisão de ir à guerra. Se podemos considerar decisão, face ao estatuto de passividade existente.

Eu nem me questionei muito. Se fugisse, nem sabia bem para onde, pois uma paixoneta ou outra em Inglaterra não seriam garantia de nada. Por outro lado, cedo comecei a preparar-me mentalmente para a sorte ou o azar de ir batê-las em África, e fui sem custo especial.

O comentário do Luís tem a virtude de alongar o nosso raio de pensamento sobre a questão, e de nos fazer confrontar, 40/50 anos depois, com o estado de espírito da época.

Ele tem uma interrogação pertinente, "não foi sempre assim ao longo da nossa história?"

Pois a minha resposta é que não sei, em primeiro lugar, porque a história está mal contada, em segundo, porque ao longo do tempo muitos foram arrebanhados para diferentes campanhas, sempre ao serviço dos poderosos, que evitavam a valorização do povo para dele disporem melhor. Ainda é assim. (...)

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quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13623: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (15): Autorretrato de um soldado



1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), com data de 17 de Setembro de 2014:

Bom dia Carlos,
Raspando o fundo do baú, sempre aparece algo.

Nesses tempos de "selfies" (neologismo que significa autorretrato), chamou minha atenção essa foto de 1970, poucos dias após a chegada à Guiné.
Autorretrato acompanha a História da Humanidade, lembra Narciso filho de liríope, passa pela necessidade de autoconhecimento, até chegar na expressão dos modernistas angustiados.

Mas voltemos ao soldado, que parece perguntar:
- Como é que eu vim parar aqui?

É uma viagem à década de sessenta, jovens inexperientes, num país que se queria fechado ao mundo. Eu, particularmente, vinha da Bairrada profunda, de um grupo familiar que Gramsci apelidada "intelectuais rurais', logo por defenição conservadores, embora dela tenham saído alguns que ele chama de intelectuais urbanos.

Passando pelas escolas locais, cheguei na Academia Coimbrã em plena efervescência da segunda metade da década de 60, verdadeiro "ponto de clivagem", dos valores e hábitos Ocidentais (não vamos achar que somos o centro do Mundo, só porque assim fizemos como nosso mapa).
Um fervilhar de ideias, contestação dos valores tradicionais, onde poucos tinham uma visão cosmopolita.

Na época, muitos devem lembrar, a figura do "passador", que mediante determinada quantia, fazia chegar as pessoas, além Pirenéus.
Pois, tinha um que era amigo da família, pai de um amigo, e que trabalhava em parceria com um frade (não sei se este o fazia por dinheiro ou convicção), eu tinha também, grande parte da família do outro lado do Atlântico. Assim, com essa facilidade, eu, que jamais pensei que a missão era "dilatar a fé e o império", nunca me passou pela ideia de usar os seus serviços, ou me reunir aos parentes. Penso, talvez, que não queria romper com os valores culturais em que estava inserido.
Contudo, "nesta altura do campeonato", não é mais relevante. Alguns de nós foram à guerra por convicção, outros movidos pela propaganda, muitos por inércia, e alguns outros com receio de enfrentar usos e costumes estrangeiros.

Forte abraço
VP
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13600: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (14): Sou só o Comandante

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13600: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (14): Sou só o Comandante

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72), com data de 8 de Setembro de 2014:

Caríssimo Carlos,
Há dias, lendo sobre Marinha na Guiné e "raspando o fundo do baú", lembrei de uma viagem que fiz de Gadamael para Bisau.

Como muitos sabem, Gadamael (Porto) fica num braço de rio, também dito rio Sapo.
A nossa locomoção para fora de Gadamel era preferencialmente, pegar boleia com o Dornier do correio, ou eventualmente com algum "tubarão" em visita aos "perdidos" na fronteira Sul.

Ora, quando tínhamos alguma bagagem mais robusta, a saída era mesmo por mar.
Numa dessas idas, peguei uma embarcação, que não recordo se seria LDG, ou outro barco de guerra. A saída foi ao fim da tarde, e me acomodei no convés da melhor maneira possível. Ao raiar do dia apareceu um Sargento da Marinha, que com a formalidade que lhes é peculiar, me informou que o Comandante estava me convocando para que me apresentasse nos aposentos do Comando.


Guiné -  LDG (Lancha de Desembarque Grande) 105
Foto: © Humberto Reis (2005)

O Comandante era um oficial com patente equivalente a Tenente, talvez Capitão; pediu desculpas de não me ter chamado antes, mas só naquele momento tinha tomado conhecimento da minha presença a bordo. Convidou-me a tomar uma refeição com ele, e lá fomos conversando até Bissau.
Dada altura, perguntei da formação para tal função, e outros detalhes da "arte de marear".
Fiquei surpreso, quando perguntei o que ele fazia a bordo, e me respondeu:
- Sou só o Comandante.

Até hoje lembro a humildade desse Oficial de Marinha!!!

Forte abraço
Vasco Pires
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Setembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12047: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (13): A minha singela homenagem aos pais de todos nós

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13357: (Ex)citações (235): A 'Máfrica' (EPI, Mafra) dos nossos verdes anos (Vasco Pires, camarada da diáspora lusitana no Brasil; ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

1. Comentário do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72) (*)


Sim, a metáfora é minha, aliás, a citação.

Vamos lá, então, explicar para os mais apressados.

Muitos de nós - inclusive eu - vínhamos da Academia Coimbrã, em um momento de "clivagem", na segunda metade da década de 60 do século passado.

Mafra: Convento... Fonte desconhecida
Só para relembrar: Barricadas de Paris, De Gaulle  voa para Baden-Baden para se encontrar com Massu, Guerra do Vietname, Universidade de Kent 70...

Então, "Máfrica" exprimia a reação,  de jovens inocentes e provincianos que se julgavam na vanguarda da modernidade e pensavam que iam mudar o mundo, à disciplina militar, reforçada, por ser num curso acelerado [, o COM].(**)



No meu caso, o impacto foi "amortecido", pois dormia e comia fora do quartel [, EPI].

Quanto a juízos de valor, nada tenho contra quem os faz, todavia, eu  procuro não fazê-los. (***)

forte abraço a todos
Vasco Pires
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 2 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13355: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): IV (e última) Parte: A Máfricacomo "instituição totalitária", no sentido sociológico forte do termo...

(**) Vd. também:

1 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12662: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (15): Mafra, Tavira, Caldas, Santarém, Vendas Novas..., nos tornaram vítimas e agentes (Vasco Pires)


...(...) O processo começava aí: "Máfrica", Vendas Novas, Tavira, Caldas da Rainha... E lá íamos nós, mais ou menos convencidos e eficientes agentes, enquadrar outros mais, pelos quartéis de Portugal e de África. Mafra e Tavira, eram o início de um processo de inserção no sistema de muitos milhares, que a propaganda chegou a fazer pensar, que estavam "dilatando a Fé e o Império". 

Mafra, Tavira, Caldas, Santarém, Vendas Novas..., nos tornaram vítimas e agentes. (...)



16 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10535: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (2): Como fui parar a Gadamael, por acção do meu pai e reacção do 'Paizinho' 

(...) Meu avô materno era filho de comerciante, e como seus irmãos emigrou para o Brasil, e ao contrário deles voltou a Portugal, no fim da primeira década do século XX, casou com uma professora, que era duma família profundamente ultramontana, originaria da Madeira.

A minha infância e adolescência foi passada em escolas da região, seguida de uma passagem de cinco anos pela efervescente cena Coimbrã da segunda metade da década de 60.

Em 69, saí desse "borbulhar" de novas ideias e atitudes, para a disciplina EPI na "Máfrica" de tantos de nós. Logo começou a minha boa sorte, de ter camaradas, subordinados e superiores que me ajudaram nesta caminhada de três anos pelos quartéis de Portugal e África.

Nesta caminhada de soldado-cadete, apareceu o Raul, que era da Mealhada, professor, com família constituida, e lá rumávamos todo Domingo para Mafra. O Raul era um gordo bem humorado, que fazia todos os exercícios como qualquer atleta, mas comer do rancho já era pedir muito, logo tratou de desarranchar e alugar apartamento, e lá fui eu "no vácuo". E assim foi-se amortecendo o choque da irreverência da Academia Coimbrã, com a disciplina do quartel.

Onde quer que estejas, Raul, o meu muito obrigado! (...) 


Guiné 63/74 - P13355: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): IV (e última) Parte: A Máfrica como "total institution", no sentido sociológico forte do termo...


Capa da brochura, s/d, usada no COM - Curso de Oficiais Milicianos, ministrado na EPI - Escola Prática de Infantaria, Mafra (ou a Máfrica, como lhe chama o Vasco Pires, nosso camarada da diáspora lusitana no Brasil), 


Planta do EPI, Mafra





EPI - Salas de aula
































Reprodução da quarta (e última) parte do guia do instruendo do COM (Curso de Oficiais Milicianos), usado na EPI - Escola Prática de Infantaria, em Mafra (*):  Informações úteis para o instruendo (Correio, telefone, sslas recreativas, cantinas, barbearias, farmácias, parques de estacionamento, retificação de documentos, datas de casamentos, talhes de barba e cabelo...).

Imagens: © Mário Vasconcelos (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: LG]


1. O documento original, sem data, chegou-nos, devidamente digitalizado, por mão do nosso camarada Mário Vasconcelos [ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72. Mansoa, e Cumeré, 1973/74; foto atual à esquerda].

Recorde-se que já publicámos o guia do instruendo do CSM - Curso de Sargentos Milicianos, documento que nos chegou por mão da parelha Fernando Hipólito / César Dias, e que é claramente mais "ideológico" do que o guia que estamos agora a publicar. Comparando os dois guias, há claramente um tratamento mais "classista", de maior deferência, em relação ao instruendo do COM, futuro "oficial e cavalheiro".

Não encontro este documento na Biblioteca do Exército.

Estas "indicações" ( e não "instruções") dadas aos instruendos dos COM remetem, por sua vez, para o Regulamento Geral de Instrução do Exército (RGIE).

2. De qualquer, a grande escola de cadetes e fábrica de oficiais  que depois seguiam para os teatros de operações do ultramar, a grande 'MÁFRICA' (, a expressão é do nosso grã-tabanqueiro Vasco Pires), que terá formado dezenas e dezenas de milhares de oficiais subalternos e comandantes operacionais, era, como em qualquer parte do mundo, uma verdadeira "instituição totalitária" ("total institution") no sentido forte, sociológico, do termo.

Se não,  vejamos alguns traços comuns às instituições e organizações a que poderíamos aplicar a tipologia desenvolvida, e,m 1961, pelo sociólogo americano Erving Goffman (Asyluns: essays on the social situation of mental patients and otther inmates. New York: Anchor, 1961).

(i) Este tipo de institituições  são organizações "muralhadas",  fechadas, com "barreiras" delimitando claramente as trocas ou transações com o exterior, tanto ao nível das entradas no sistema  (inputs) como das saídas (outputs);

 (ii)  como em qualquer estabelecimento militar (mas também prisional, conventual, hospitalar psiquiátrico...), essas barreiras tanto são físicas (sob a forma de muros altos, arame farpado, áreas minadas, portões, janelas gradeadas, portarias, guichés ou balcões de atendimento, pessoal e sistemas mais ou menos sofisticados de vigilância e protecção, áreas de acesso interditas ao público, etc.; como a própria arquitectura dos edifícios, marcada por uma grande volumetria ou monumentalidade, mais evidente ainda em Mafra, já que o  EPI está instalado num antigo convento);   como são  barreiras imateriais, culturais ou simbólicas (logótipos, regulamentos, valores, práticas, ritos, vestuário, normas de acesso, códigos linguísticos, sistemas de sinalização, etc.).;

(iii) tais barreiras servem fundamentalmente para demarcar as fronteiras do sistema de acção interno e definir a identidade organizacional (por ex., o soldado fardado e armado junto a uma barreira de arame farpado, as formaturas, as divisas e galões, os toques de clarim);

(iv) os instruendos (neste caso...)  estão colocados sob uma única e mesma autoridade (o comandante da EPI);

 (v) comem, dormem e trabalham sob o mesmo teto;

(vi) cada fase da atividade quotidiana desenrola-se, para cada instruendo, , numa relação de grande promiscuidade com um elevado número de outros instruendos, submetidos às mesmas regras, procedimentos, deveres e obrigações;

(vii)  todos os períodos de atividade são regulados segundo um programa estrito, isto é, todas as tarefas estão "encadeadas", obedecem a um plano imposto "de cima" por um sistema explícito de normas e regulamentos cuja aplicação é assegurada pelo pessoal militar (de instrução e de apoio), fortemente hierarquizado (oficiais, sargentos e praças); e, por último,

(viii)  as diferentes atividades assim impostas são por fim reagrupadas segundo um plano único e racional,concebido expressamente para responder ao fim ou missão oficial da instituição (, formação militar, humana, técnica e operacional de oficias subalternos em tempo de guerra).

O traço essencial destas instituições, como a MÁFRICA, é a aplicação ao indivíduo dum tratamento coletivo (e, nalguns casos, coercivo) de acordo com um sistema burocrático que cuida de todas as suas necessidades. Daí decorrem alguns consequências importantes, segundo a sociologia da "total institution":

(ix) A tarefa principal dos profissionais (pessoal dirigente e de enquadramento) não é tanto a de dirigir, controlar, ou supervisionar o trabalho, como numa empresa, como sobretudo a de vigiar e punir toda a infracção às regras, todo o comportamento desviante (, isto é mais evidente nas instituições ligadas á justiça, à reinserção social, e  até `á saúde mental - caso dos manicómios, no séc. XX e primeira metade do séc. XX);

(x) Há um fosso intransponível entre o número restrito de dirigentes e de pessoal de enquadramento (instrtutores, neste caso) e a massa de indivíduos dirigidos lou em formação (instruendos);

(xi) Os instruendos são forçados a viver no interior do estabelecimento, por períodos variáveis  (entre 3 a 6 meses),  mantendo com o mundo exterior contactos limitados, enquanto os profissionais continuam , entretanto, oficialmente integrados nesse mundo exterior (têm as suas famílias e as suas casas,  as suas relações sociais, os seus hobbies, etc., no exterior, na comunidade, "lá fora");

(xii) Cada grupo tende a ter  uma imagem estereotipada (e muitas vezes negativa e até hostil) um do outro: para o instrutor, o instruendo  é, incialmente,  visto como um simples mancebo, um ser virado sobre si mesmo, egocêntrico, infantil, reivindicativo, efeminado, mole, cobarde, muitas vezes agressivo, mentiroso, desleal e ingrato; para o instruendo, o instrutor  começa por ser visto  um ser poderoso e muitas vezes prepopente e até tirânico; em todo o caso, quase sempre distante, frio, mesquinho e desumano;

(xiii) Os contactos entre os dois grupos são restritos: a própria instituição impõe a distância espacial e temporal entre eles; mesmo quando certas relações são inevitáveis (a interação na instrução); há barreiras selectivas (as regras da hierarquia militar,  baseadas da unidade comando controlo); há segregaçºão socioespacial (messe de oficiais, messe de sargentos, refeitório de praças);

(xiv) Os instruendos são mantidos sistematicamente na ignorância das decisões que lhe dizem respeito, quer os motivos alegados sejam de ordem militar, legal, administrativa, disciplinar, penal; por outro lado,. nem têm qualquer poder reivindicativo, dada a sua situação de total subordinação e a sua sujeição ao regulamento de disciplina militar;

(xv) A instituição no sentido lato do termo (edifícios, instalações, equipamentos, recursos técnicos, humanos e financeiros, razão social, história, políticas, nome, logotipo, etc.), é vista, tanto por uns como por outros, como ‘propriedade’ dos dirigentes (comandante, instrutores, pessoal de apoio), sendo o pobre do instruendo visto, condescendentemente, quando muito um ‘hóspede’; não há visitas e as saídas (tal como as entradas) são estritamente regulamentadas e controladas em função da lógica do processo de instrução militar, não das necessidades, expectativas ou preferências do instruendo (ou da sua família); como "hóspede" que é, a ele aplica-se o provérbioi popular: "O peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem", isto é, cheira mal:

(xvi) A relação de trabalho (nas "total institutions") tende a estar  mais próxima da relação senhor/servo do que da relação de trabalho livre (embora subordinado), que é uma das estruturas-base das sociedades modernas: o conteúdo, a organização e as demais condições de trabalho, os horários, os planos de actividades, as regras de funcionamento, o regimento, etc., são impostos e sancionados pela instituição,


Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1964 > Curso de Sargentos Milicianos (CSM) > "Mafra, 26 de Janeiro de 1964 > O 1.º pelotão, da 1.ª Companhia,  ao 2.º dia de tropa"... Foto (e legenda) do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67).


Foto: © Veríssimo Ferreira (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]



(xvii) A "nstituição totalitária", enquanto comunidade residencial e organização fortemente centralizada, regulamentada e fechada, é, de resto, incompatível com uma outra estrutura básica no processo de socialização: a família; a sua eficácia depende, aliás, em grande parte do grau de rutura que ela provoca com o universo familiar dos seus membros e com os papéis sociais que desempenhavam antes (pai, esposo, educador, etc.). 

Em suma, e segundo o sociólogo norte-americano Erving Goffman, as ‘instituições totalitárias’ (prisões, hospícios, asilos, lazaretos, hospitais psiquiátricos ou manicómios dos séculos passados, mas também estabelecimentos militares e militarizados,  unidades da marinha de guerra e mercante, frota da pesca do bacalhau, colégios internos, reformatórios, centros de reclusão/reinserção social, mosteiros, conventos, seminários, etc.); seriam, nas sociedades humanas, lugares de coerção destinados a modificar a personalidade, as atitudes ou o comportamento do indivíduo, e a que o indivíduo responde através de dois tipos de "adaptações":

(a) primária ou manifesta (por ex., aceitação das regras, interiorização das normas e valores, submissão à disciplina, compliance ou adesão ao tratamento prescrito, ressocialização);  e

(b) secundária ou latente (como meio de escapar ao papel e ao personagem ou ao label que a instituição lhe impõe — instruendo, educando, interno, noviço, aprendiz, louco, doente, recluso, recruta,  etc.. — e que o leva a assumir uma vida clandestina no seio da instituição. (LG)

PS - Claro que este "modelo sociológico" também se aplicava, com as necessárias adaptações e cautelas, tanto à 'MÀFRICA' como  ao CISMI, Tavira, por onde muitos de nós passámos (e fomos "passados")... antes de ir parar, alegremente,  às bolanhas da Guiné.
__________________

Nota do editor:

(*) Postes anteriores:

18 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13003: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte I: Finalidade, Funcionamento, Provas de aptidão, classificação e Faltas

25 de abril de 2014 > Guiné 63774 - P13041: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte II: Averbamentos; Serviço interno; (...); Salas de estudo; Comportamento; Saídas do quartel; Passaporte de dispensas ou licenças; Cartas de recomendação, pedidos feitos por interpostas pessoas, etc.. etc., [vulgo, "cunhas"].

28 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13055: Mafra, EPI, COM: Instruções para os instruendos (Mário Vasconcelos): Parte III :vi - Serviço interno; vii -Dispensas, pretensões; viii- Fardamento; ix - Uniformes, equipamento e armamento; x- Revista de saúde e curativos

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13333: (Ex)citações (234): Comentários ao poste do António Medina sobre os acontecimentos de 1964 em Jolmete: Vasco Pires, António Graça de Abreu, Manuel Carvalho, Joaquim Luís Fernandes, Júlio Abreu, Manuel Luís Lomba, António Rosinha e António Medina



Guiné > Região do Oio > Jolmete > CCAÇ 2366/BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70 > As NT e a população.

Foto: © Manuel Carvalho (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem;:LG]

Publicamos, seguindo uma ordem cronológica, os comentários suscitados até à data pelo poste P13326 (*). Sobre os acontecimentos de há 50 anos em  Jolmente (ou Djolmete), evocados pelo nosso camarada da diáspora António Medina (que vive nos EUA), não encontrei até agora nenhuma referência no Arquivo Amílcar Cabral, disponível para consulta pública no portal Casa Comum. O que não quer dizer absolutamente nada.. Em muitos casos o arquivo tem muitas lacunas e é decionante...(LG)


1. Vasco Pires  [ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72; membro da Tabanca Grande, a viver na diáspora, Brasil]

"War is hell,"

"You cannot qualify war in harsher terms than I will. War is cruelty, and you cannot refine it; and those who brought war into our country deserve all the curses and maledictions a people can pour out. I know I had no hand in making this war, and I know I will make more sacrifices to-day than any of you to secure peace."

General William Tecumseh Sherman

Parabéns Camarada, por conseguires exorcizar os teus "fantasmas".

PS - Esclarecimento:  Fiz a citação Major - General Sherman, por se tratar de um militar da terra de adoção do Camarada Medina.

Citei-o também, por ser o autor da célebre frase "War is hell", repetida até hoje à exaustão.

Transcrevi a frase seguinte, por ter sido feita, por um militar considerado intransigente, num momento de decisão particularmente difícil - a evacuação e incêndio de Atlanta.

Quanto a juízos de valor,nada tenho contra quem os faz, contudo, eu, tento não os fazer. (...)


2. Manuel Carvalho [ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf, CCAÇ 2366/BCAÇ 2845, Jolmete, 1968/70]

Caros camaradas: Cerca de quatro anos depois, em  junho de 68 a minha companhia, a CCAÇ  2366, chegou a Jolmete e aí permanecemos cerca de um ano. O Blog tem fotos minhas desse mesmo barracão que era o edifício com mais qualidade que existia em Jolmete.(**)

A pouca população que havia tinha sido recuperada no mato.O Régulo atual de Jolmete julgo que é o Cajan Seidi. Por acaso não te lembras do nome desse Régulo?



Diz o António Medina: "Não se trata de nenhuma minha criatividade ou ficção, mas sim a descrição verdadeira de factos sucedidos, contados a mim na altura por quem foi testemunha e participante de uma acção bastante degradante e vergonhosa."

Portanto o António Medina não assistiu aos "fuzilamentos", ouviu contar.

Não digo que não possam ter acontecido, todas as guerras são sujas, tudo é possível, até o assassínio de três majores e um alferes, mais dois guias, gente do meu CAOP 1, em 1970, militares desarmados que iam em negociações de paz, exactamente na estrada do Pelundo para o Jolmete.

Estive sete meses em Teixeira Pinto, em 1972/73, estive no Jolmete em 1972, jamais ouvi esta história. Eu sei que já haviam passado oito anos, mas "fuzilamentos" deste tipo costumam deixar lastro na memória das gentes.

Gostava que estes "fuzilamentos" fossem confirmados por mais pessoas que se possam pronunciar com verdade, com factos, não de ouvir contar. (...)

4. Joaquim Luís Fernandes [ex-alf mil, CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974]

Caros Camaradas e Amigos: Eu sou um sentimentalão! E se calhar muito ingénuo.

Ao ler esta narrativa sentia uns arrepios e um desgosto profundo e interrogava-me: Como terá sido possível tão medonho ato por parte de um corpo do exército português, formado e enquadrado por valores éticos, que condenariam em absoluto tal procedimento? Ou havia nesse tempo outra doutrina que eu desconheço?

E porque duvidar da verosimilhança da descrição do camarada António Medina?...

Tudo isto mexe comigo. Porque vivi aí os meus primeiros medos e pisei esse chão incerto e instável, sou remetido para as questões que tantas vezes coloquei a mim próprio: Porquê a antipatia que via espelhada nos rostos dos manjacos e a sua desconfiança e má vontade?

Teria a ver com a memória desses factos, ou eram memórias bem mais antigas, do tempo de Teixeira Pinto ou ainda mais antigas do tempo dos escravos do Cacheu?

Em 1973, em Teixeira Pinto, coabitávamos em paz aparente com a população local, (velhos, mulheres alguns jovens adolescentes e crianças) mas sentia que éramos "personas non gratas". Toleravam-nos enquanto os servíamos. Diziam-me os meu soldados: "Eles fazem de nós seus criados".

Também ainda não consegui encaixar bem, toda a tramóia dos assassinatos dos três majores, do alferes e dos acompanhantes, em 1970. Apesar de tudo o que li, ficaram-me vários hiatos sem explicação. Agora fico com mais esta dúvida: Será que um acontecimento não tem nada a ver com o outro? A minha intuição diz-me que sim. Pelo menos o local escolhido foi o mesmo. Porquê?... Esta história tem muito por contar! (...)

5. Júlio da Costa Abreu [ex-1º cabo radiomontador do BCAÇ 506 (Bafatá) e ex-1º cabo comando, chefe da 2.ª equipa do grupo de comandos "Centuriões" (Brá, 1964/66); a viver na Holanda }


Ser ou não ser, eis a  questão...  Ter ou não ter razão... E de quem foi a culpa de terem fuzilado em Bambadinca depois do 25 de Abril tantos soldados Comandos, como por exemplo o Jamanca e muitos outros? Ou será que depois de eles terem confiado nos novos donos da Guiné, foi a paga que lhes deram? Isso também é  motivo para serem assassinados? E a guerra realmente nunca foi limpa mas isso é normal. (...)

 6.  Manuel Luís Lomba [ ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66]

'Terei sido contemporâneo destas circunstâncias.Chegámos a Bissau (BCav 705) em 26/7/64 e a minha subunidade (CCav 703) foi de intervenção para Bula em Agosto, fez o seu baptismo de fogo em Naga e durante 20 dias reforçou a atividade operacional o BCaç 507, comandado pelo então t-coronel Hélio Felgas - que alinhava no mato.

Sem pretender sindicar a memória do camarada António Medina, acho algo de estranho. Aquele comandante exortava-nos à implacabilidade em relação à gente que nos recebesse à bala ou granada, mas incitava-nos ao cuidado de poupar populações. Enfatizava o dilema das mesmas - colocados entre a tropa e os "terroristas". Havia bastantes presos, junto à casa da guarda que recebiam o rancho geral e não me apercebi de maus tratos. Isto dois meses após esses eventuais factos. Cercar tabancas e fazer capturas foi o nosso dia a dia de cada dia operacional. Aconteceram atos lamentáveis? Com certeza. Mas o fuzilamento dos capturados diferido dois meses suscita melhores provas. Luís Cabral não refere esse evento no seu livro Crónica da Libertação. E aquele foi o tempo da prisão de importantes paigcistas, como Rafael Barbosa, Fernando Fortes, sem esquecer os que vieram a conspirar e assassinar Amílcar Cabral que não foram eliminados. (...)

7. Antº Rosinha [ex-fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93]

Todos os crimes e fuzilamentos e atrocidades cometidos pelos tugas estão adaptados ao discurso anticolonial conveniente às autoridades revolucionárias que tomaram conta do poder em toda a África.

Isto desde o início da guerra em 1961, sempre se acreditou em tudo o que vinha de Argel, Moscovo e Brazaville e Conacry.

Desde os números arredondados tipo os 50 mártires do Pidjiquiti até aos milhares de turras da UPA lançados ao mar, pelos luxuosos PV2 da FAP, tudo está "provado" e "comprovado".

Só falta descobrir o segredo das valas comuns e da contagem dos respectivos cadáveres.(...)

8. António Medina [ex-fur mil inf, CART 527, Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65; vive nos EUA]

Acabo de tomar conhecimento de comentários feitos por alguns camaradas, mostrando certa relutância em aceitar a narrativa dos factos acontecidos na área de Jolmete. Cada um tem o direito de aceitar ou discordar e até pedir provas mais concretas desde que estejam disponíveis.

Segundo a teoria aplicada pelo Comandante do Batalhão de Bula , ver comentário do camarada Manuel Lomba porque assim reza o seu segundo parágrafo:

” AQUELE COMANDANTE EXORTAVA À IMPLACABILIDADE EM RELAÇÃO ÀS GENTES QUE NOS RECEBESSEM À BALA OU GRANADA MAS INCITAVA-NOS AO CUIDADO DE POUPAR POPULAÇÕES “.

Ora, o que foi feito em Jolmete ?

Pouparam, sim, a vida das mulheres e crianças. Mas sem condescendência, como vingança exterminaram os homens da tabanca, considerando o facto que talvez fossem coniventes com os autores da tal emboscada ou assim evitar o perigo de virem a pegar em armas. Foi uma acção bastante secreta como é óbvio. 

SE ENQUADRA OU NÃO NA TEORIA OPERACIONAL DAQUELE COMANDANTE?

Sabemos que casos semelhantes aconteceram não só na Guiné mas também em Angola e Moçambique, em grupos ou a nível individual.

O camarada Manuel Carvalho se refere ter estado em Jolmete em 1968, quatro anos depois, assim como que a pouca população que havia em Jolmete tinha sido recuperada no mato. isto vai ou não ao encontro do que escrevi, da fuga da população que restou e se refugiou no mato?

Estava eu em Bissau como empregado do BNU quando em 1970 se deu o caso dos três majores, um alferes e outros na estrada de Jolmete. Não obstante fossem militares e em guerra, o caso consternou os civis da cidade de Bissau. Teria sido vingança do PAIGC sobre a tropa colonial? (...) (***)
_____________

Notas do editor

(*) Vd. poste de 24 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13326: De Lisboa a Bissau, passando por Lamego: CART 527 (1963/65) (António Medina) - Parte II: Foi há 50 anos, a 24 de junho de 1964, sofremos uma emboscada no regresso ao quartel, que teria depois trágicas consequências para a população de Jolmete: como represália, cerca de 20 homens, incluindo o régulo e o neto, serão condenados à morte e executados pelas NT, dois meses depois

(**) Vd, poste de 24 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10191: Memória dos lugares (189): Jolmete, quotidiano da tabanca e aquartelamento (Manuel Carvalho)

(***) Último poste da série > 20 de maio de  2014 > Guiné 63/74 - P13167: (Ex)citações (233): Venho manifestar o meu apoio ao camarada Veríssimo Ferreira pelo repto que faz ao camarada Manuel Vitorino (Manuel Luís Lomba)

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13238: (Ex)citações (234 ): A angústia do artilheiro quando tinha de dar apoio às NT, nomeadamente quando estavam sob fogo IN... (Vasco Pires, ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72, há mais de 4 décadas no Brasil)


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > Agosto de 1972 > O temível obus 14 [140 mm] em ação... à noite.

Foto: © Vasco Santos (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.



1. Mensagem, de 25 do passado mês de maio,  do nosso camarada Vasco Pires [ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72; membro da Tabanca Grande, a viver na diáspora, Brasil]

...AINDA A ARTILHARIA DA GUINÉ.

Caríssimos Carlos/Luís,
Éramos poucos e dispersos, e dispersos continuamos, talvez por isso a nossa história seja tão pouco conhecida, digamos mesmo, quase esquecida.

O Comando da Artilharia na Guiné ficava em Bissau, BAC 1, GAC 7, e finalmente GA 7 quando agregou a Artilharia Antiaérea, sob o comando de um Oficial Superior de Artilharia e os Pelotões espalhados no TO, adidos a Companhias ou Batalhões que, penso, chegaram a 27. A tropa era do contingente local, sendo três graduados da tropa continental, um Alferes e dois Furriéis, e, raramente, um Cabo Apontador.

Os Pelotões não podiam sair dos quartéis sem uma autorização expressa do Comando em Bissau, ou - no meu tempo - com uma ordem escrita do Comando Operacional local; os Artilheiros ficavam, segundo alguns, no "bem bom" do arame farpado.

A Artilharia tinha funções de defesa e ataque, incluindo apoio às NT em combate. Eu, com excepção, de dois "passeios" que fiz no começo e no fim da comissão, ao Bachile e a Ingoré, passei a maior parte do meu tempo de serviço na Guiné num quartel da fronteira Sul, Gadamael, também conhecido como Gadamael Porto.

Os quartéis da fronteira Sul  eram "ilhas" rodeadas de arame farpado, no meio de "terra de ninguém", e ao alcance da Artilharia IN além-fronteira. Falar das condições operacionais da fronteira Sul, tornar-se-ia repetitivo, pois já foi feito exaustivamente.

A vigilância constante era apanágio da atividade da Artilharia, durante o dia no apoio às NT, e durante a noite em alerta para uma pronta resposta às flagelações da artilharia IN. Digo pronta resposta, contudo precedida de uma rápida análise da situação, para evitar o fogo de contra-bateria, ou seja evitar que uma resposta precipitada facilitasse a regulação do tiro IN. Em alguns casos extremos - aqui-del-rei que eles querem entrar! - poucos, felizmente, o Artilheiro tinha de dar uma de Clint Eastwood dos Trópicos, e fazer tiro direto.

Contudo, como já disse anteriormente noutro comentário, o momento de maior tensão do Artilheiro era o apoio às NT, principalmente quando estavam debaixo de fogo IN, todos podem imaginar a precaridade do envio de dados naquelas condições operacionais física e emocionalmente.

Quantos militares, até civis, não sentiram alívio quando ouviam o "troar dos nossos Canhões"?

OBSERVAÇÃO: escrevo estas mal traçadas linhas, motivado por um alerta do Camarada Luís Graça sobre a falta de conhecimento da "cultura" da Artilharia; não faz parte, pois, da coletânea "A minha guerra é maior que a tua".

...e siga a Artilharia... (**)

forte abraço a todos
Vasco Pires
Ex-soldaddo de Artilharia (IOL)
____________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

18 de maio 2014 > Guiné 63/74 - P13159: (Ex)citações (232): "Tristes artilheiros solitários" no meio dos infantes... (Vasco Pires, (ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

26 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13046: O segredo de... (18): O ato mais irresponsável nos meus dois anos de serviço como soldado de artilharia (Vasco Pires, ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

(**) Último poste da série 20 de maio de  2014 > Guiné 63/74 - P13167: (Ex)citações (233): Venho manifestar o meu apoio ao camarada Veríssimo Ferreira pelo repto que faz ao camarada Manuel Vitorino (Manuel Luís Lomba)

domingo, 1 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13221: Agenda cultural (320): Alberto Costa e Silva é o vencedor do Prémio Camões 2014 (Vasco Pires, grã-tabanqueiro da diáspora lusitana no Brasil)

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires [ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72; membro da Tabanca Grande, a viver na diáspora, Brasil]:

Data: 30 de Maio de 2014 às 23:49

Assunto: Alberto Costa e Silva é o vencedor do Prémio Camões 2014


Caríssimos Carlos/Luis,

O diplomata, Alberto da Costa e Silva, é poeta, ensaista e historiador. Membro da Academia Brasileira de Letras, serviu como diplomata em vários países, inclusive Portugal.

O Comunicado da Secretaria de Estado da Cultura salientou: "a importante ponte que este intelectual, criador e diplomata estabeleceu entre a América do Sul, África e Europa".

Tem dois notáveis trabalhos sobre a história Africana, antes "A enxada e a lança, a África antes dos Portugueses" e depois da chegada dos Portugueses, "A manilha e o libambo, a África e a escravidão de 1500 a 1700".

Do primeiro diz o autor: "Só o escrevi com o pensamento e o objetivo de entregar ao leitor um manual - simples,claro, direto, embora emotivamente interessado - que lhe servisse de intrudução ao conhecimento da África."

Quanto ao segundo "A manilha e o limbambo..",: manilha é um bracelete de metal, limbambo é uma cadeia de ferro usada para prender escravos pelo pescoço...

Para nós que fechamos os últimos "portões do Império", é um mergulho na História dos povos de quem fomos ao encontro, de "armas na mão" (sem qualquer juízo de valor).

forte abraço a todos
Vasco Pires
_____________

Nota do editor:

domingo, 18 de maio de 2014

Guiné 63/74 - P13159: (Ex)citações (232): "Tristes artilheiros solitários" no meio dos infantes... (Vasco Pires, (ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

1. Mensagem de do 7 do corrente do nosso camarada Vasco Pires (ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72; membro da Tabanca Grande, a viver na diáspora, Brasil]


"Vasco: Se calhar tens que ser... mais explícito... Onde é que o "cerne" da tua irresponsabilidade... Nem toda a malta conhece a "cultura" da artilharia... Abração, Luis" (*)


Caro Luis,

Cordiais saudações.

O teu oportuno comentário, sobre um post meu; me alertou que, realmente, a maioria dos Camaradas não está familiarizada com a "cultura" da Artilharia.

Logo que saímos de Vendas Novas, onde já éramos poucos, fomos para os quartéis, com muitos de nós dando instrução básica de Infantaria, para futuras CART (nominalmente).

Já éramos poucos, e assim continuava quando normalmente três de nós (caso da Guiné) éramos agregados a uma Companhia ou Batalhão de Infantaria, fazendo humor fácil com a letra de uma canção antiga éramos "...tristes Artilheiros solitários..." sem a "âncora" de Companhias ou Batalhões, e assim continuava quando voltávamos para casa, sem os salutares e terapêuticos convívios.

Operacionalmente, tínhamos uma formação "express" na "fábrica" de Artilheiros em Vendas Novas, diga-se de passagem com excelentes instrutores, mas com manuais dos tempos da guerra clássica; eu por exemplo, fui treinado para, supostamente, ser observador e para fazer a ligação do Batalhão ou Brigada com a Artilharia Divisionária. Então, éramos "jogados" em África, numa guerra de guerrilhas, que poucos Oficiais acima de Major, faziam ideia do que fosse.

Na Guiné, a tropa era Africana, nos Pelotões onde estive, éramos somente três da tropa Continental.

Quanto ao material era de bom a excelente, principalmente os Obuses 10,5, porém, mais uma vez, "hardware" e "software", transplantados da gelada Europa, para as tórridas e húmidas bolanhas dos deltas dos rios da África Ocidental.

Não irei discorrer sobre a complexidade do tiro de Artilharia, pois, o Nobre Artilheiro C. Martins já o fez neste Blog, com notável maestria.

Dentro do Aquartelamento, havia ordem expressa para não sair - imaginemos o efeito que teria a propaganda IN apresentar um "canhão" aprendido às NT - basicamente os trabalhos eram de ataque a bases IN, e resposta a ataques ao quartel, o que se tornou relativamente fácil para mim,  pois tive a sorte de ter uma equipe competetente ágil e leal.

Quando de um ataque ao quartel e o Comandante ordenava: todos para as valas e abrigos, o Artiilheiro era o único de pé a descoberto, não porque fosse mais "valente", mas porque era lá, no espaldão, que se sentia seguro.

Dando apoio às tropas de Infantaria, por vezes debaixo de fogo num ambiente com poucas referências, com cartas com a precisão que todos nós conhecemos, era sem dúvida o momento de maior tensão do Artilheiro, com necessidade de decisões e cálculos rápidos, por vezes acumulando as funções de Observador, Chefe do Posto de Comando de Tiro e Comandante de Bataria.

Espero, caro Luis, ter começado a responder à tua "ordem" de Comandante desta " Grande Brigada"!!!

forte abraço a todos

E siga a Artilharia...(**)

Vasco Pires
Ex-Soldado de Artilharia (IOL)

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Notas do editor:

(*) Vd. 26 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13046: O segredo de... (18): O ato mais irresponsável nos meus dois anos de serviço como soldado de artilharia (Vasco Pires, ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

(**) Último poste da série  > 6 de maio de  2014 > Guné 63/74 - P13107: (Ex)citações (231): O PAIGC também uma vez, em junho de 1968, "arrasou o campo fortificado de Mansambo" e "matou dezenas de soldados colonialistas", segundo a Maria Turra... Nós éramos apenas... 50 a defender-nos!.. Houve 2 feridos que não figuraram sequer no relatório: o 1º cabo cozinheiro, que se queimou na G3, e eu que me queimei no mort 60... (Torcato Mendonça, ex-alf mil, CART 2339, 1968/69)

sábado, 26 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13046: O segredo de... (18): O ato mais irresponsável nos meus dois anos de serviço como soldado de artilharia (Vasco Pires, ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72)

1. Mensagem, com data de ontem, de Vasco Pires (ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72; membro da Tabanca Grande, a viver na diáspora, Brasil]


Assunto: Raspando o fundo do baú..

Caríssimos,

Quando li o desafio do Luis, para "raspar o fundo do baú", nada me ocrreu, contudo, há dias, fazendo um comentário num post, "veio à memória":


O ATO MAIS IRRESPONSÁVELDOS MEUS DOIS ANOS DE SERVIÇO COMO SOLDADO DE ARTILHARIA!

Decorria o ano de 1970, quando cheguei a Bissau, no BAC1  (ou já seria GA7?), que era Comandado por um controverso Oficial Superior de Artilharia, a quem a caserna dera o codinome de "Paizinho", entre outros, que vou me abster de mencionar.

Circulavam "estórias" por Bissau, algumas falsas, outras verdadeiras, como o facto de ter "saído no Braço" com o Segundo Comandante, o que acarretou a ruína da carreira do desdito Oficial. Esse comportamento do Comandante, digamos errático para ser generosos, contaminou as relações dos Oficiais do Comando, e consequentemente, se foi alargando (como as pragas).

Após a chegada, foi feita uma apresentação ao material em operação nos Pelotões (10,5,  11,4, e 14); já quanto á situação operacional do TO, apesar de desde a recruta, vermos cartazes "gritando", "O boato fere que nem uma lâmina", as "infomações" vinham mais do "Jornal da Caserna", que propriamente um "briefing" consistente.

Alguns dias após a chegada, mandaram-me, por um curto período, para um Pelotão no Bachile, acredito, que para cobrir férias do Comandante.

Lembro bem, que no entusiasmo de "periquito", aceitei o convite do Comandante de uma patrulha, para ter uma ideia, de como seria um pedido de apoio; errado, porque a ordem expressa do Comando do BAC1, era de que o Pelotão (material e militares), só poderia sair dos quartéis, com uma ordem escrita do Comando do Aquartelamento.

A ativadade operacional do Pelotão era nula. Deslocava-me a Teixeira Pinto com alguma regularidade, um dia no Bar do CAOP1, fui abordado pelo Major de Operações, que, após se certificar da minha identidade de soldado de Artilharia, desferiu:
- Amanhã, terá uma grande operação, forças especiais e tropa regular vão atacar uma base IN na Mata X [da qual não lembro o nome, e que na altura, como recém-chegado, pouco ou nada dizia para mim]. Nós ( eu e ele) vamos regular o tiro. Amanhã às Y horas, esteja no lugar Z!!!

No auge da minha "periquitice", sem nada perguntar, limitei-me a dizer:
- Sim, senhor, meu Major!

Na minha fantasia, iríamos regular o tiro, a bordo de um helicóptero; na hora e local determinado, como não poderia deixar de ser, me apresentei devidamente "armado" com a minha tabela de tiro. Qual não foi a minha surpresa, quando subimos numa Dornier!

Por lá andamos ás voltas, ele identificando os alvos, e eu,  tabela de tiro no colo, calculando, e transmitindo a ordem de fogo para o Pelotão!!! Felizmente nada ocorreu de anormal.

Quando descemos, me faltaram as palavras e a coragem, para transmitir o meu espanto do ato que tínhamos acabado de cometer.

Ainda hoje, mesmo que tenha cometido outros erros, considero este como o ato mais irresponsável, dos meus dois anos de serviço na Guiné, como soldado de Artilharia.

E siga a Artilharia...

Forte abraço a todos

Vasco Pires

___________

domingo, 20 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P13010: 10º aniversário do nosso blogue (13): falar ou não falar, da guerra, aos nossos filhos... A alguns de nós foi o blogue que nos tirou a "rolha" (Luís Graça / Jorge Cabral / Vasco Pires / Antº Rosinha / António J. Pereira da Costa / Henrique Cerqueira / Manuel Reis)

1. Comentários diversos ao postes P12966 e P13000 sobre o tema da última sondagem "Camarada, com que regularidade falas, da guerra, aos teus filhos" (*) (**):

(i) Luís Graça:

O meu pai, Luís Henriques (1920-2012), também andou "lá fora", a defender o Império, a Pátria, durante a II Guerra Mundial: Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 1941/43...

Cresci, fascinado, a folhear o seu álbum de fotografias, que andava por lá escondido numa gaveta, entre papéis velhos... Mas ele nunca me sentou ao colo e me explicou, tim por tim, por que terras e mares tinha passado,  por que é que andou a "engolir pó" durante 26 meses, lá nessa terra distante, enfim, não me contou histórias desse tempo, ainda eu não era nascido...

Mas era eu que as tinha que adivinhar, criar histórias, mesmo se muitas das fotos tinham legendas, lacónicas no verso... Mas, como era puto, e mal sabia ler, não entendia nada...

Um dia tocou-me a vez de ir para a tropa e também de ir "defender a Pátria", neste caso, ainda mais longe, lá na verde e rubra Guiné, em 1969/71... Nunca falámos, nem ele me deu conselhos: olha isto, olha aquilo... Por pudor ? Sim, por pudor...

Luís Henriques (c. 1941)
Voltei, "são e salvo" (?), e continuámos sem falar, da tropa, da guerra, das áfricas... Veio o 25 de abril, esqueci (?) a guerra, por um estranho sentimento de culpa, por pudor, por estúpido preconceito talvez... Era politicamente incorreto, nesse tempo,  falar-se da (ou até pensar-se na) maldita guerra colonial, ou do ultramar, ou de África...

Passaram-se os anos até que, em 1980, comecei a interessar-me pelas minhas vivências da Guiné, publiquei uma série de escritos no semanário "O Jornal"... e por tabela fui "redescobrir" o velho álbum do meu pai, já desconjuntado. amarelecido, comido pela humidade...

Com o blogue, há 10 ano atrás, começámos a ter conversas de grande "cumplicidade",  eu e o meu pai, como dois bons e velhos camaradas... Publiquei com ternura as fotos dele, em São Vicente, Cabo Verde,  (as que restaram, ao fim de tantos anos...) e fiz diversos vídeos com entrevistas com ele, sobre esses tempos de "expedicionário"...

Criei, no nosso blogue, uma série "Meu pai, meu velho, meu camarada"... Tenho pena de, por razões de saúde, nunca ter podido levá-lo em viagem de saudade, de regresso, a São Vicente... Teimoso, ele nunca quis fazer uma artroplastia das ancas... A velhice (e o blogue) aproximou-nos... Tarde, mas valeu a pena...

Provavelmente, sem o blogue, ele teria morrido, como morreu, há dois anos atrás, sem eu ter sabido mais nada sobre os três anos e tal de vida que ele passou na tropa e na guerra, os seus medos, temores, amores, desamores. problemas de saúde, amizades, histórias de vida dos seus camaradas, etc.

Jorge Cabral, c. 1970
Com os meus filhos passou-se o mesmo, foi o blogue que nos aproximou...  Só posso, por isso, estar grato a todos os camaradas que me ajudaram a construir o blogue e que me honram hoje com a sua presença (ou a sua memória) à sombra do mágico e fraterno poilão da Tabanca Grande... Nunca o teria feito sozinho, nunca o teria conseguido fazer sozinho...

  (ii) Jorge Cabral:

Um milhão de homens foram para África. Mais de 1 milhão de filhos. Talvez 2 milhões de netos...Que  os jornalistas peguem no tema, acho bem. Só que, para o fazerem, devem estudar o Portugal dos anos 60 e perceber que guerra existiu e como eram os rapazes que a fizeram. 

Luís Graça, Contuboel. junho de 1969
com Renato Monteiro, no Rio Geba
Há quem não tenha nada para contar...e quanto ao medo, só os que viveram situações de perigo podem falar...Entre ser contabilista em Lourenço Marques e operacional no Guiledje, as diferenças são óbvias...

(iii) Luís Graça

Além disso, Jorge, "um homem não chora"... Não se queixa, não grita, não tem dores, não tem medo, não tem angústias, não sente, não pensa, não faz perguntas... E, "se tem medo, compra um cão"!

Não era assim, no nosso tempo ? Nas nossas casas, nas nossas igrejas, nas nossas escolas, nos nossos quartéis, nas nossas empresas ?

Concordo contigo, o Portugal salazarento dos anos 60 não tem nada a ver com o Portugal de hoje... Quem tratava o pai por tu ? Além disso, para muitos dos nossos camaradas, sobretudo do meio rural, pai era pai-e-patrão... Para fugires à sua autoridade, ou emigravas ou te casavas, às vezes "à força" (, por exemplo, "raptando a noiva", no Alentejo)...

(iv) Vasco Pires [, foto à esquerda, Ingoré, c. 1972]

Mas como vejo aconteceu com muitos, a "rolha" só saiu há pouco.

Não só deixei de falar da guerra com meus filhos, mas também com outras pessoas, durante mais de quarenta anos; o Blog que tirou a "rolha".

Quantos aos nossos escritos, acredito que poucos além de nós os leem, contudo, certamente, mais na frente, algum antropólogo vai dar vida aos nossos relatos.História dos "vencidos", já que os que não seguiram o nosso caminho em Portugal, assumiram o controle, me parece que até hoje; e as verdades e as mentiras quando repetidas, e ampliadas pelos mídia, tornam-se verdades(quase)absolutas.

(v) Antº Rosinha [, foto a seguir, à direita, Angola, 1961]

O J. Cabral diz que os jornalistas "devem estudar o Portugal dos anos 60 e perceber que guerra existiu e como eram os rapazes que a fizeram. Há quem não tenha nada para contar..."

E digo eu que os jornalistas devem também estudar os rapazes que se furtaram à guerra, tanto os que tiveram a coragem de ir para o bidonville de Paris, como certa burguesia, tanto dos meios citadinos como provincianos, e até de certos filhos cujos pais lhe mandavam a mesada a partir das próprias colónias em guerra.

Estas burguesias tinham em geral uma motivação muito semelhante à esperteza nacional e cultural que é a eterna fuga aos impostos e contribuições... para os malandros do Estado!

Mas claro, essa fuga à guerra era pela precocidade política do jovem de 19/20 anos, não era por uma mesquinha "esperteza" à maneira nacional.  Esses jovens tremendamente precoces é que precisam de ser bem estudados, porque gritaram tanto todos estes anos, que não tem dado espaço para se lhes fazer perguntas. E muitos têm andado de partido em partido, de governo em governo, de administração em administração de Empresas Públicas.

Essa precocidade também tem que ser bem compreendida, para não se perder a tradição.

J. Cabral, de facto há mais gente sem nada para contar, como tu dizes, por isso poucos aparecem a falar, era interessante um dia alguém tentar encontrar uma percentagem dos que não ouviram qualquer tiro...como eu, em 13 anos de guerra (,no mato e nos muceques de Angola e nas praias de Luanda).

(vi) António J. Pereira da Costa [,. foto a seguir em Cacine, c. 1968, com a enf pára Maria Ivone Reis]



Parece-me que esta questão, por si própria, levanta uma ainda mais importante: como é que, no fundo, lidamos com a guerra?

Parece-me que cerca de 50% de nós não temos a nossa relação com a "guerra" devidamente arrumada. De outro modo teríamos falado dela com desassombro com os nossos filhos e teríamos conseguido sensibilizá-los para o que ela foi e o que passámos/fizemos.
Não me parece que tivéssemos tido grande êxito nesta matéria. Ou estou enganado?


(vii) Henrique Cerqueira

Eu já votei... No entanto,  e a verdade seja dita,  eu tive alguma dificuldade para votar numa das opções.É que actualmente estou mesmo quase a fazer 65 anos e já não dá para falar assim tanto com os filhos, pois que eles andam tão ocupados a não perder os empregos que nem tempo têm para grandes conversas e muito menos para conversas com o pai sobre o ex-Ultramar.

Eu até entendo. Quando eu estava no Ultramar, só queria que o tempo passasse para poder regressar ao trabalho activo e ao melhoramento da minha vidinha tanto em formação como em apostar numa carreira de trabalho.

A NI e o puto do Henrique Cerqueira, Nuno Miguel, na estrada de
Biambe-Bissorã, c. 1973
Os meus filhos já pensam o contrário.Ou seja: já só pensam se no final do mês o patrão abre ou não a fábrica e pensam ainda se não será melhor fazer o percurso inverso do pai, que é ir para África, ex-ultramar...(Isto é uma porra, meus camaradas!)

Bom,  pelo menos e para já,  vou falando ao neto sobre a guerra do ultramar e mais especificamente sobre a Guiné. Pois que por acaso o pai dele (meu filho), até esteve na Guiné em criança. Mas quando me alongo de mais e me perco em "devaneios" sobre a Guiné,  o "puto" começa logo a bocejar e desvia a conversa para os interesses dele. É que os programas escolares sobre a história ultramarina e em especial as guerras coloniais não se alongam muito e quanto a mim dando a entender existir alguma "vergonha" em aprofundar mais os conhecimentos da nossa participação na Guerra Colonial.

Foi a minha opinião.

(viii) Manuel Reis [, foto a seguir,. Guileje, c. 1972]


Amigo Luís, é um facto que " o baú está um pouco mais rapado" mas longe de estar esgotado. Continua a ser útil para todos os camaradas e ex-combatentes, de modo especial, aqueles que tardiamente se aperceberam desta ferramenta, que os pode aliviar das tormentas da guerra.

Falo na guerra aos meus filhos nos momentos em que os vejo interessados e receptivos a ouvir as estórias em que, na Guiné, muitos ex-combatentes foram protagonistas. 

O convívio é indispensável, é o agrupar das tropas e já sentimos a sua falta. Vamos a isso Luís.
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

17 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13000: 10º aniversário do nosso blogue (9): Sondagem: resultados finais (n=129): mais de um terço dos respondentes nunca falou da guerra, ou só muito raramente, aos seus filhos... Comentário da jornalista e escritora Catarina Gomes: "não esperem por perguntas, digam filho, anda cá que eu quero contar-te uma coisa"

11 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12966: 10º aniversário do nosso blogue (3): Resultados preliminares (n=67) da nossa sondagem ("Camarada, com que regularidade falas da guerra, aos teus filhos?")... Mais de um terço admite que nunca falou ou raramemte fala, da guerra, aos seus filhos...

(**)  Último poste da série > 18 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13006: 10º aniversário do nosso blogue (12): Faz hoje 2 meses que o Pepito nos deixou... Em sua memória reproduzimos aqui um vídeo de 2012, em que ele relata, com humor e boa disposição, uma das cenas de violência de que foi vítima, na sua casa do Quelelé, ao tempo de Kumba Ialá (c. 2000)...