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sexta-feira, 8 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10012: Cartas do meu avô (7): Quinta carta: O primeiro encontro com... ela, e o meu regresso a casa, em Pedra Maria (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)




Lisboa > Beira Tejo > 21 de fevereiro de 2012 > Eram os difíceis os nossos regressos... da Guiné,em 1966...

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.




A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. 

As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)


B. QUINTA CARTA > Primeiro Encontro com a Madrinha de Guerra


Outro facto muito importante estava para acontecer. Tudo estava combinado. Era o primeiro encontro com a A.T. , a minha madrinha de guerra. Não nos conhecíamos pessoalmente.

Com o reduzido conhecimento do local, assentou-se que ela estaria próximo dum pontão, interior ao cais, frente a umas escadinhas, que saem da 24 de Julho, e vão dar perto do Museu da Arte Antiga.


Ela estaria vestida com fato, saia e casaco, muito claros. Traria uma malinha branca, sobre o estreito e longo, na mão e sem alças. De óculos escuros.

Mais tarde vim a saber que a Mãe dela estava a assistir ao encontro, a partir das tais escadinhas lá em cima. Muito tiveram de esperar. O desfile não seguiu o rumo que lhe havia dito, por alteração de última hora, e o encontro deu-se muito mais tarde.

Por ela, foram passando dezenas e dezenas de militares desembarcados. Estes reconheciam-se bem, pela farda amarelada que traziam e a cor da pele ainda mais… A todos ela confrontava, discretamente, com a imagem que retinha da minha fotografia.
- Foi um longo penar… - disse-me ela depois.
- Ai, e se é este!?...e aquele!..que horror!...

Finalmente, aconteceu. Eu vi-a de longe, sem ser visto. Deu para a apreciar. Olhei-a bem, de cima a baixo. Baixinha como eu. Tinha umas boas pernas e, toda ela era bem feita. Um busto enriquecido e bem desenhado. Fiquei satisfeito.

Gostei. Fui-me abeirando. O rosto, de linhas especiais, era muito expressivo. Tinha qualquer coisa de judia. Às tantas, fez-se luz…Olhámo-nos e, cumprimentamo-nos, cerimoniosamente, à boa maneira da época. Por dentro, havia muita alegria, em cada um de nós. Brilhava-nos nos olhos…

Falou-se pouco. O tempo era escasso para mim. A minha companhia partiria para Évora. A guerra não estava ainda morta… Assentamos no que faríamos a seguir e, logo, foi a despedida.

Foi um encontro acridoce. O resto ficaria para depois. Pelo teor das cartas, parecia-me que estava tudo garantido. Mas, pressentia que muito havia que desbravar, para um e para outro.


II – Ida a Pedra Maria

Depois de Évora, vieram uns dias de férias, ainda por conta da tropa. Tinha de subir ao Norte. A família , os tios e primos, a irmã estava emigrada em França, o irmão pequenito, estava com a sua madrinha, na casa dos meus pais em Pedra Maria.

Estavam ansiosos como eu, todos à espera. Ninguém veio, nem à minha partida para Bissau nem à vinda. Por razões do custo… tempo e dinheiro.

Foi sempre assim. Os momentos mais cruciais da minha vida, por vontade do destino, tive de os enfrentar sempre só. Só eu e Deus. Fé n’Ele, nunca faltou. É e foi sempre o meu segredo. O rio da minha vida correu sempre por onde Ele mo encaminhou. E deu sempre certo.



O reencontro com Pedra Maria foi uma festa. Tinha a sensação de que um século tinha decorrido, desde que, lá atrás, de manhãzinha, tomara a camioneta do Cabanelas, com a guia de marcha para a Escola de Mafra.

O espectro da guerra estava arredado. Definitivamente. Outras guerras estavam para vir.
Desde logo, a adaptação à vida normal do dia a dia. Era como se tivesse descido as escarpas do Everest. Em vez dos rigores do frio e das ameaças do abismo, tudo, agora, me parecia uma pasmaceira.

O sono foi-se e com ele vieram noites terríveis de insónia. O cérebro batia-me ferozmente, cá dentro da cabeça, como se fosse um tigre numa gaiola. Tive de pedir ajuda a um médico. Vieram os fármacos. Às toneladas. De arrasar. Passei do verão para o inverno duro. De tremer. Era só dormir… dormir…e, quando acordado, era como se tudo estivesse longe e sob um denso nevoeiro. Fiquei incapaz de escrever uma letra. Quanto mais uma carta.

A A.T. vociferava lá em baixo em Lisboa, como se eu estivesse a escarnecer dela. Pensava que eu tinha desistido.
- Bem dizia a minha Mãe…- confessou-me ela depois, convencida do logro em que vivera.

A muito custo, consegui dizer-lhe que andava a cair de sono, por força do tratamento. Ela acreditou. Pelos livros de guerra que lera, sabia que a ambientação pós-guerra é penosa. Os militares regressados do Vietname e Indochina, davam que falar, lá pela América.

Ficou mais serena. Confiadamente, à espera das melhoras. Diziam-mo as suas cartas, constantes, agora vindas pela mão do senhor Bastos. O carteiro de toda a vida, lá na terra. Umas semanas depois, o sol das melhoras começou a raiar. Comecei a ter vontade de fazer alguma coisa. Com o dinheirito que tinha amealhado.


Era preciso fazer obras lá em casa.O poço quase secava, no verão. Era preciso afundá-lo ou abrir outro noutro sítio do quintal. Não havia um quarto de banho a sério, lá em casa.
Pelo menos isso. Foram a tarefa para os dias que se seguiram. Serviram-me de acelerador e ambientador.

No final, quando o poço já regurgitava de água, havia que montar um motor eléctrico para abastecimento à casa. Tratei tudo numa casa da especialidade lá na vila. Vieram trazer-me um motor. Por três mil e quinhentos escudos, nunca mais esqueço.

Deveria ser novo. Com toda a certeza. Pus-me a olhá-lo. Não me cheirou bem. Aquilo não reluzia a novo. Pensei.
- Estes estupores pensam que me enfiam o gorro. Pensam que estão a lidar com um puto. Enganam-se. Nem imaginam a escola em que andei.

Chamei lá casa o meu tio Tónio. Era serralheiro de profissão. A ele ninguém o enganaria.
Confirmou-me que sim. Era um motor em segunda mão…
- Ó raios!...



Peguei na bicicleta e em cinco minutos estava a entrar porta dentro da tal loja. Com cara de problemas…A loja era muito conceituada na terra. De gente séria.
- Ou vocês me vão lá, imediatamente, pôr um motor novo ou vamos ter muito sarilho…
ainda não arrefeci da guerra da Guiné…
- Ai, o Sr. Gomes veio da Guiné? – perguntou o dono.
- Sim, há um mês.
- Então conheceu lá o coronel da marinha, fulano…
- Muito bem. Foi meu comandante, lá no sul…em Bolama e Catió.
- É isso mesmo. Ele estava em Bolama.
- Pois, ainda é da minha família - respondeu, já muito amistoso e conciliador.
- Mais uma razão. Ou o motor aparece lá imediatamente, ou eu vou ter uma conversa com ele. Sei muito bem onde encontrá-lo.
- Fique descansado. Aqui o meu empregado vai já lá pô-lo.
- Então que venha já que eu vou com ele.

E assim foi. Nesse dia o motor, via-se que era novo a espelhar, não parou de tirar água para o tanque, toda a manhã.

A maturidade e a experiência da vida militar estavam a dar os seus frutos.



__________________

Nota do editor: 



(*) Último poste da série > 2 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P9985: Cartas do meu avô (7): Quarta carta: regresso à metrópole, 4 dias depois da inauguração da Ponte Salazar (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

sábado, 2 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P9985: Cartas do meu avô (7): Quarta carta: regresso à metrópole, 4 dias depois da inauguração da Ponte Salazar (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)





Lisboa > 29 de maio de 2012 > Ponte sobre o Rio Tejo >  Iniciada a sua construção em 5 de novembro de 1962, foi inaugurada em 6 de agosto de 1966... 

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados.


A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66.

As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)


B. QUARTA CARTA > REGRESSO AO CONTINENTE


 I – A Ponte de Salazar

Quando partimos para a Guiné, em Agosto de 1963, do Niassa que nos levava, viam-se as obras de construção da ponte.

Não havia ainda tabuleiros. Só os pilares estavam cravados ao chão.

Vimos que, como num tear, uma aranha gigante passava o santo dia, feita maluca, dum lado para o outro do rio, lá nas alturas dos pilares, a desfiar uma linha de aço que ia tecendo e engrossando um dos cabos, suportes da ponte.


Quando estávamos para embarcar, em Bissau, corria a notícia de que a ponte estava pronta e iria proceder-se à sua inauguração.

Nada melhor que um batalhão a desfilar para assinalar esse feito. Dizia o boato. E dizia mais: Que seria aproveitada a nossa participação. A chegada do nosso paquete, - o Uíge – a Lisboa, estava prevista para o dia seis de Agosto.

Seriam dois quilómetros ou mais para palmilhar, um sacrifício nada de menosprezar… mas a vontade de regressar era tão forte que tudo se suportaria.Não sei porque razão. Só chegámos ao Tejo a dez de Agosto e aí soubemos que a inauguração já se tinha realizado. (**)

Por isso, apenas haveria o desembarque no mesmo Cais da Rocha. Seguir-se-ia a marcha do batalhão frente à tribuna dos Chefes Militares, ali mesmo, frente à gare marítima e depois, era o regressar a quartéis.
________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 29 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9959: Cartas do meu avô (6): Terceira Carta - Em Bissau (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)


(**) Ponte sobre o Tejo (designação oficial), também conhecida anteriormente por Ponte Salazar, e  hoje, Ponte  25 de Abril > Dados recolhidos na Wikipédia:

Via >  A2 / IP7 e Linha do Sul
Cruza >  Rio Tejo
Localização  > Lisboa, Portugal
Design  > Ponte suspensa
Maior vão livre >  1 012,88 m
Comprimento total  > 2 277,64 m
Altura máxima  > 70 m (vão)
Início da construção >  5 de Novembro de 1962
Término da construção >  1966
Data de abertura >  6 de Agosto de 1966

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P9973: (Ex)citações (181): Revisitando as cartas do alf mil Carlos Geraldes (José Freitas, ex-fur mil minas e armadilhas, CART 676, Pirada, 1964/66)





Guiné > Região de Gabu > Pirada > CART 676 (1964/66) > O bom do senhor Barbosa, Chefe de Posto de Pirada na intrincada tarefa de fazer o recenseamento civil. Foto nº 59 do álbum de Carlos Geraldes (1941-2012).

Foto (e legenda): 
© Carlos Geraldes (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, Todos os direitos reservados.


1. Comentário de José Freitas, com data de 16 de maio último, ao poste P4980 (*):

Eu pertenci à mesma CART  676  (**) como o alferes Geraldo [sic]. Sou o José Guilherme  Teixeira da Silva Freitas,  furriel miliciano de minas e armadilhas,  e  confesso-me  muito surpreendido com as suas narrações. 


O Alferes Geraldes  conta muitas histórias com que eu não concordo. Só para dar um exemplo: eu é que ajudei com a tradução em francês várias vezes [, nos contatctos com as autoridades senegalesas]. Até ensinei aos  cabos que trabalhavam na secretaria com o 1º sargento,  na escola em  Pirada. 

Também fui eu que usei granadas ofensivas como armadilhas para  proteger os sargentos que moravam numa pequena casa fora do  aquartelamento, [em Pirada]. Fui também com o Capitão [Álvaro Santos Carvalho]  Seco e mais 15 soldados,  fomos num Unimog devido a informação recebida dum grupo terrorista e fomos  emboscados,  perdendo a viatura. Tivemos que desertar [sic] pois eles eram um grupo de 200,  pelo menos. 

O que li de você,  Alferes Geraldes,  é a SUA HISTÓRIA, mas há outros que tiveram uma importância também...

2. Comentário do editor:

Obrigado, José Freitas, nosso leitor e camarada, pela visita ao blogue e pelo comentário ao poste do Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66. Trata-se de um série, Cartas, que cobrem o período da vossa comissão de serviço (maio de 1964 a março de 1966), e de que se publicaram dez postes. Espero que os tenha lido todos (*).


Certamente por lapso de memória, você - que presumo viva no Brasil, não ? - começou por tratá-lo por Geraldo. O seu nome é Carlos Adrião Geraldes. Ou melhor, era: o Carlos já não está entre nós, faleceu de ataque cardíaco, em Viana do Castelo,  no princípio deste ano. Infelizmente ele já não poderá acrescentar mais nada ao que deixou escrito no nosso  blogue, e que é muito e é valioso. Às vezes quando lemos os escritos dos outros, "vemos a árvore mas não a floresta". 


De qualquer modo, o José Freitas fica desde já convidado a integrar o nosso blogue, bastando para tal mandar-nos duas fotos da praxe e contar-nos uma ou mais histórias, as suas histórias. O nosso blogue existe (desde há 8 anos), justamente por que todos fomos e somos  importantes. Todos, sem exceção. Você, o Carlos, eu, todos os camaradas de armas que passaram pelo TO da Guiné. (***)


Alguns camaradas nossos fizeram comentários elogiosos,  a propósito desta série epistolar, em que o Carlos Geraldes descreve, entre a ternura e a ironia, o seu quotidiano nos sítios do setor por onde passou (Pirada, Bajocunda, Paunca), as relações entre camaradas e as relações dos militares da CART 676 com os comerciantes e as autoridades locais... Alguns destes comentadores conhecem a região, por lá terem estado em data posterior à vossa saída. Aqui ficam uma seleção desses comentários:


(...) Uma série de altíssima qualidade, que, a meu ver, prestigia o blogue (Carlos Cordeiro, 16/9/2009);

(...)  A tua guerra está cheia de episódios fortes e delicados. Talvez esta chuvada possa serenar o ambiente, ademais a senhora já abalou. Quanto às libertinagens referidas, eram frequentes nos vinte aninhos, e punham a nú a fragilidade da NT. Acho eu que isso ainda vai acabar bem. Continua (José Manuel Diniz, 11/9/2009);

(...) Não há duvida que os nomes maçaricos e piriquitos se deve a duas espécies de pássaros muito comuns na Guiné, os maçaricos amarelos os periquitos verdes.
Mas a razão de a tropa portuguesa ser cognominada com esses termos. As madrinhas foram as nossas ex-lavandeiras que iam esperar os militares e oferecerem os seus préstimos de lavandeira. De tal modo a malta formada a preceito de farda amarela mais pareciam os tais bandos de maçaricos. Então elas diziam, 'jubi chegaram mais manga de maçaricos'. Mas eis que em mais uma nova chegada de militares mas todos de farda verde, surpresa total nas lavandeiras, 'jubi agora maçarico cá tem! Agora só manga de piriquito'. Se há outros motivos quem sou eu para discordar.
(José Colaço, 9/9/2009)

(...) Com que então sardinha assada? Como dizia o outro: ele há guerras... e guerras! Mas as descrições que fazes compensam com delícia as dificuldades passadas. Um Ford T? Outra maravilha só possibilitada em África. Aguardo os próximos episódios. (José Manuel Dinis, 3/9/2009)

(...) estive lendo o teu P4892 e quando falas de Bajocunda deixa-me uma grande alegria pelo tempo que lá estive se bem que com oito anos de diferença, mas o engraçado é que quando lá cheguei em Nov 73 havia três frigoroficos a petróleo um maior que os outros já não funcionava e se calhar era o mesmo que tu lá encontraste no dia 8 Fev 65. (Amílcar Ventura, 2/9/2009);


(...) Bela vida e boa descrição. Já não conheci Pirada com essa tranquilidade, mas sei que era assim, e que o Soares era homem-grande. Sei que, dessas cumplicidades, foi permitido viver com tranquilidade. E sei de uma senhora que se deslocava de Bajocunda usando um jeep. Ali vivia-se como em África, romântica, misteriosa, solidária.
Manda mais sff.
(José Manuel Dinis, 28/8/2009)

(...) Aqui o Carlos, por meio de períodos claros e sucintos, faz descrições muito interessantes sobre a saga da nossa tropa por matos e bolanhas da Guiné.  Quando pode ainda dá umas ferroadas, ora no regime, ora na estrutura repressiva. Não nos dignifica, mas retrata comportamentos de mal-amados.  Tem havido manifestações exageradas na defesa da honra no convento, mas para a história verdadeirq não podemos ignorar as nossas fraquezas e alguns comportamentos deploráveis.Os meus parabéns. (José Manuel Dinis, 25/8/2009) (...) Curiosamente ao ler os aerogramas que fui trocando com a familia, também sou levado a chegar à conclusão que a guerra da Guiné era um mar de rosas, mas era de tal maneira que nem os familiares acreditavam. Como nós haverá muitos camaradas que o fizeram. (César Dias, 14/8/2009)

________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966


Vd. os restantes postes da série (no total são dez):


23 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4997: Cartas (Carlos Geraldes) (10): 2.ª Fase - Abril de 1966 - Epílogo - O Regresso

15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964

21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo


(**) CART 676:  Mobilizada pelo RAP 2. Partida: 8 de maio de 1964. Chegada: 27 de abril de 1966. Localização: Bissau, Pirada, Bissau. Comandante: Cap Art Álvaro Santos Carvalho Seco.

(***) Último poste da série > 30 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9965: (Ex)citações (180): Defendendo a honra do BCAV 8320/72, Bula, 1972/74, que foi acusado de rebelião, em agosto de 74, e cujo pessoal vai fazer sábado, dia 2 de junho, na Trofa, o seu XXVI Encontro anual (Zeca Pinto)

terça-feira, 29 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9959: Cartas do meu avô (6): Terceira Carta - Em Bissau (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66.  


As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)



B. TERCEIRA CARTA - EM BISSAU


O fôlego da companhia [, a CCAÇ 728,] (**) estava a esvair-se rapidamente com tanta intervenção nas matas. Os intervalos de tempo entre elas, passados  não davam para recompor.
- Para onde e quando será a próxima? - Era a pergunta que assoberbava a cabeça de todos nós.

A baixa do alferes Sasso (***) estava presente. Quando se sai ao mato, não se sabe se se voltará...  A sensação que tínhamos era de que, uma vez atirados às feras, tínhamos de nos "desenrascar", fosse como fosse.

As dúvidas sobre a razão da nossa presença ali, cresciam e alastravam descontroladas.  Não havia qualquer semelhança entre a tropa que desembarcou na Guiné e a que tinha de sobreviver em cada dia.

Os dias que faltavam estavam todos contadinhos, embora ninguém soubesse quando.  Nunca mais ninguém esquece a hora em que a tão esperada notícia se espalhou.  Foi uma explosão de alegria como nunca mais sentimos na vida.  Tinha chegado a ordem da nossa rendição. A uns breves quinze dias.  Que longos nos pareceram.
- E se ainda temos de sair para o mato?... - essa era a grande incógnita.

E assim aconteceu.  O meu sargento Gaspar que era um voluntário das guerras, repetente, tinha cumprido duas comissões em Angola, e estava ali por troca duns contitos de rei... que lhe deu o paizinho do Madail. Na véspera da operação assisti eu à sua consulta ao médico do batalhão. 
Ele era um peso pesado, gorilão. Pesava p'raí uns cento e vinte kg. Largo de tronco e uma agilidade desproporcionada. Pois, ainda conseguia fazer com facilidade impressionante um flic-flac à rectaguarda. Ali estava ele na saleta do médico na enfermaria a desbobinar, com uma convicção, um rosário de maleitas que, a serem verdade, o impossibilitavam de sair para o mato. O poriam de ambulância no hospital… 

O médico piscava-me o olho. Sabia que o sargento Gaspar era casado e com filhos à espera, no Cais da Rocha, em Lisboa, dentro de breve tempo.  Eu, como seu comandante de pelotão, também fechava os meus. Não fazia falta nenhuma. Pelo contrário. Seria menos uma eventual fonte de problemas...

E ficou mesmo em casa.  Já não me recordo do tempo que levamos a chegar a Bissau, desde Catió, numa grande LDM. Vínhamos todos nas nuvens, como num sonho de libertação dum degredo imposto, onde a nossa vida esteve em perigo cada minuto.

Só me lembra que não éramos só nós os viageiros felizes. Uma série de mulheres e crianças nativas vieram, com galinhas e açafates, de boleia, até Bolama e Bissau. De novo no quartel de Santa Luzia, como companhia de serviço, nos três meses antes de regressar, olhávamos para tudo com outros olhos. Era só deixar correr o tempo. 



Havia que fazer o rastreio de saúde no hospital [, HM 241, Bissau, foto à esquerda, arquivo do nosso blogue] . Eu fui lá passar uma semana para expulsar a bicharada toda que bebemos nas bolanhas e se alojaram nas nossa tripas… os …trico céfalos trykiuros...

Também deu para tirar a carta militar… de moto e ligeiros, que depois era só trocar no continente.  E não é que no preciso dia em que estava a fazer o exame de mota, com a preparação de duas ou três lições, me ia estampando contra uma parede, ao fim duma descida, como quem vem de Bissau para SantaLuzia. Confundi o pedal do travão com o do acelerador…Por momentos, eu que estava safo da guerras todas, vi a morte à minha frente… Não tenho dúvida de que foi um milagre da minha devota Senhora de Pedra Maria.
A primeira coisa que fiz quando recebi a carta de mota, foi rasga-la aos pedacinhos. Não fosse o mafarrico tecê-las… e uma jura eu fiz, solene:
- De que nenhum filho meu, com minha autorização, haveria de guiar mota. E cumpri à risca. 



A de carro, ainda é a mesma, à boa maneira do desleixado portuguezinho, troquei-a exactamente no último dia do ano que dispunha para o fazer…para não ter de repetir o problemático exame na metrópole. Foi em Bissau, desta vez, que pude conviver de perto com um casal amigo. Ele, o Silvestre, era alferes no quartel da Amura. No quadro da Administração. Viviam numa parte de casa alugada. Torturados pelo lento e penosíssimo decorrer dos dias à espera do fim da comissão… Era o seu grande lamento. Tinha sido meu companheiro de seminário. Fora pescado para a tropa, quando já tinha o 3º ano de direito. Ela já estava licenciada em românicas. Dava aulas no liceu de Bissau. [Foto acima: vista aérea do Liceu Honório Barreto e da Escola Industrial e Comercial de Bissau; arquivo do blogue].

Para mim, viviam remansosamente. Entretanto, nasceu-lhes lá o primeiro filho, aliás, menina. Fizeram questão de que fosse seu padrinho… e fui. O baptizado foi na Sé de Coimbra. E pasme-se!
- Nunca mais os vi, aos três!...Que vergonha de padrinho!?... Acho que a minha afilhada se chamou e chamará ainda - Luisa.

Esta conta não deu mesmo certa…




Outro que eu lá conheci, desde as minhas surtidas do mato até Bissau, era um outro alferes da administração militar, colega do Silvestre. Este tinha sido obrigado a interromper o curso de filosofia em Lisboa. Era um apaixonado pelos clássicos, gregos e romanos, pela escolástica. Ficou assombrado comigo, quando entabulou conversa lá no bar de oficiais, em Santa Luzia. Eu ainda tinha bem presentes todas essas figuras do pensamento, conhecia bem as suas ideias e achegas.
- Também andas em filosofia? – perguntou.
- Não. Andei.
- E que vais tirar?
- Direito, talvez.
- Oh!,  não faças isso. Andei lá ano e meio e abandonei. Aquilo não presta para nada. É só fogo de vista. Dá para ganhar dinheiro… e mais nada.
-E eu estou cansado desse mundo antigo. Passou. O que deixaram está esgotado…

Ficou de cara à banda.  Nunca mais o vi.

De facto, ele tinha toda a razão. Cedo o reconheci. Tirei o curso de direito, a ferros, jogava no campo inimigo, pois não tinha estofo para o mundo dos tribunais e das obrigações civis. Só me serviu para ganhar a vida…

Também recordo outro episódio, daqueles que só o destino sabe explicar.  Eu estava de oficial de dia ao quartel de Santa Luzia. Onde ficavam altos comandos militares. Uma responsabilidade que não metia medo a quem chega do mato. 

Estava a preparar tudo para passar a pasta ao oficial sucessor.  Nisto, oiço uma voz conhecida, muito familiar, não daquelas paragens.
- Dá licença,  meu alferes?- exclamou a voz.
- Entra.

Levantei os olhos e dei de caras com um 1º cabo, também de farda amarela, um velhote, como eu… muito sorridente, o que, de repente,  me deu tempo para pensar:
- Mas que é que deu a este figurão, para estar a sorrir, sem, antes, me ter visto os dentes?.. 



Era o meu primo Alberto, um meio irmão, que estava ali à frente. E regressaria à metrópole daí a pouco. Lançámo - nos num grande e sentido abraço… como irmãos - os pais dele eram irmãos dos meus. 
- Espera aí que eu vou passar o serviço e vamos já conversar… temos muito que dizer um ao outro… 

Ainda me ocorre outro episódio de assinalar. Em Julho próximo [, de 1966,] eu ia fazer vinte e cinco anos. Um número que se me afigurava então como digno de respeito. A sensação era de que tinham custado muito a decorrer estes vinte e cinco anos.

Na infância, o que desejamos é ser grandes… os anos nunca mais passam, são longos como séculos. A escola primária é uma escada dura de subir. O tempo de seminário foi um calvário doloroso que parecia não ter fim. A tropa foram só uns vinte e dois meses, mas pareceram vinte anos.

Tinha muito presente em mim que iria completar um quarto de século. Um pouco depois, iria regressar à vida civil. Tudo muito incógnito e inimaginável. A descontracção e autoconfiança que sentia ali ao serviço do batalhão, deu-me uma saborosa sensação de êxito pessoal. Muito benéfica para o meu psicológico, sempre muito complicado.

Cumpria o meu dever com naturalidade e exactidão. Pela primeira vez, senti-me admirado. Um superior reparou em mim. O segundo comandante major Jasmim de Freitas.
Antes meu lugar foi sempre nas filas de trás. Lembrei-me de promover uma festa, sob o pretexto dos meus anos. Todos os oficiais do batalhão foram convidados. E anuiram muito prontos e prazenteiros. 



Mandei assar uns leitões na padaria geral da Amura [, foto à direita, do nosso camarada João Martins], comprei uns petiscos e umas bebidas e , na hora marcada, depois da parada, a alegria e fraternidade chegaram em abundância. Foi uma linda festa.

O segundo comandante, cuja mulher era familiar muito próxima do administrador dum banco na metrópole, fez questão de me dar uma carta de recomendação para eu apresentar ao seu cunhado quando chegasse a Lisboa. Estaria afiançado. 



Só que, uma vez chegado à vida civil, fui acometido por uma tremenda crise de adaptação. Senti um choque psicológico estranho e muito perturbador. Insónias sobre insónias. Um frenesim incontrolável. Os comprimidos para regularizar somaram e caí prostrado no extremo oposto. O da letargia apática.

Primeiro que me sentisse apto a defrontar uma entrevista daquela importância, como seria essa com o administrador, demorou muito. O rumo da vida alterou-se. E a oportunidade perdeu-se totalmente. Pelo menos foi o que senti.
__________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 23 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9938: Cartas do meu avô (5): Segunda Carta: Em Catió (Parte IV) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)


(**)  Informação sobre a independente CCAÇ 728 (recolhida pelo nosso colaborador permanente José Martins):



Fichas das unidades - Guiné > Volume VII – Tomo II - página 335

Companhia de Caçadores n.º 728

Unidade Mobilizadora: Regimento de Infantaria n.º 16 – Évora
Comandantes: Capitão de Infantaria António Proença Varão, substituído pelo Capitão de Cavalaria Ramiro José Marcelino Mourato e posteriormente pelo Capitão de Infantaria Amândio Oliveira da Silva.
Divisa: Os Palmeirins
Partida: Embarque em 8 de Outubro de 1964
Desembarque em 14 de Outubro de 1964
Regresso: Embarque em 7 de Agosto de 1966

Locais por onde passou: Bissau, Cachil, Catió, Bissau



(***) Vd. série anterior, Crónica de um Palmeirim de Catió:


20 de Outubro de 2006 >  Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo


22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu


quarta-feira, 23 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9938: Cartas do meu avô (5): Segunda Carta: Em Catió (Parte IV) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió

que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.

B. SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE IV) (*)

Lichtenrade, Berlim, 14 de Março de 2012

6- Da Tormenta à Bonança

Ao cabo de uns meses, as cartas do Funchal começaram a rarear. Como é natural. Em vez delas, as de Lisboa chegavam certas.

A ansiedade pela avioneta do correio começava a crescer. Virá alguma ou não ? Sentia um verdadeiro deleite em ler cada uma que chegava.

O castelo delas ia subindo de altura, perto da cabeceira. Ia-as relendo e saboreando no intervalo de cada vinda da avioneta. Falavam-me da vida serena e pacata duma família aburguesada com os hábitos de Lisboa. As belezas de Sintra [, foto à direita, Palácio Nacional, postal antigo, fonte desconhecida, ] e Cascais que eu conhecia mal,  vinham descritas com mestria, ao contar os passeios de Sábado ou de Domingo, com os pais. Vila Franca e Salvaterra. Alcácer e Setúbal. Ficaram indelevelmente gravados na minha fantasia, como sítios onde teria de ir, uma vez regressado.

As peripécias do curso de biologia e aquele mundo imaginário da universidade, onde eu gostaria de ter entrado já. Histórias do seu gato preto, à mistura com as dos garotos da catequese. Aquelas tricas que há sempre dentro da família. A da Avó que, embora sempre “atrelada” aos passos da família, para todo lado onde fosse, ela ali estava, e no entanto, os mimos e galanteios iam todos para o tio. Que não lhe ligava um chavo…

As idas ao cinema com os pais, decididas de repente ao fim do jantar em dias de semana. Os serões que os pais faziam – ambos eram versados na arte das contabilidades – fora no Instituto Comercial que se conheceram - para darem conta das escritas dos clientes. Para ganharem mais algum. O soldo militar era religiosamente baixo. Por entendimento oblíquo do Salazar. Entendia o mago que o que faltava ao soldo, recebia-o no elevado benefício do estatuto militar… Os militares tinham a obrigação de casar ricos… Para isso usavam farda.

As minhas cartas eram tiradas a ferros. Sentia cá uma dificuldade enorme em redigi-las. Porque, tinham de ficar muito bem construídas. A naturalidade própria da escrita epistolar era-me inacessível. Sentia muita dificuldade em deixar correr a caneta. Mas porque a obrigação “ oblige”… por vezes, ficava até às tantas … Era um parto muito doloroso.



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Vila de Catió >  Foto 16 - "Uma vista tirada da Rotunda, onde se vê uma DO-27 sobrevoando a zona do quartel, à direita a zona da antiga messe de oficiais e a antena dos Correios à esquerda".



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do nosso saudoso  Victor Condeço  (1943-2010) > Vila de Catió >  Foto 17 > " Foto tirada da torre da Igreja no sentido do Quartel, vendo-se o depósito de água deste, a torre dos Correios, em baixo a rua das Palmeiras".




Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 32 > "Cerimónia militar em Fevereiro de 1968. Militares, civis da administração, correios e comerciantes. Da esquerda para a direita, [?], de costas o cap médico Morais, o comandante, ten cor Abílio Santiago Cardoso, quatro funcionários dos Correios e Administração, os comerciantes Srs. José Saad e filha, Mota, Dantas e filha, Barros, depois o electricista civil Jerónimo, e o alf mil capelão Horácio [Neto Fernandes]".






Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 3A > "Vista aérea da Rotunda e Avenida de Catió antes de 1967. O edifício à esquerda na foto era a escola primária que em 1967 já tinha sido modificado".

Fotos (e legendas) de Catió: Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados


Ainda hoje, quando me dá para as reler, do maço em que estão religiosamente guardadas, ali na gaveta da escrivaninha, vejo bem retratado o esforço de as escrever. E lembro-me muito bem do lugar e quando as escrevi… O entusiasmo recíproco era crescente. Havia entre ambos uma empatia indiscutível. Cada um de sua parte, interrogava-se sobre o que aconteceria, após o regresso, se ele viesse a verificar-se.

A mãe dela- confessou-mo ela depois- andava tão preocupada com o entusiasmo que via nela, que lhe perguntou:
- Olha lá,  filha. E se, entretanto, te aparece algum rapaz que goste de ti?...
- Que lhe respondeste? - perguntei eu,  a brincar.
- Que isso não me preocupa. O que tiver de ser,  será.

O á-vontade entre ambos foi se firmando com os meses decorridos. A tal ponto que alguém sugeriu, não me lembro quem e como, que seria bom partilharmos uma fotografia.
Eu mandei-lhe uma em que estava vestido com um “bonito” pijama azul comprado no mercado dos sirianos [, na loja do sr. Saad].

Fiquei à espera da dela. Com muita curiosidade, como é de supor. Qual não foi o meu desapontamento, quando, certa manhã, ao abrir uma carta dei de caras com uma foto, tipo passe, via-se um pouco do tronco ao nível do peito e dos ombros, uma golita branca a sair sobre uma camisola de lã feita pela mãe, à mão, e o rosto muito vivaço duma mocita de treze ou catorze anos!..



Confesso que fiquei desiludido e desnorteado. Nunca imaginei ser isso possível.
- Pronto. Mais um pontapé que me deram à falsa fé… Só pode estar a gozar comigo…

Coincidiu com a licença que o capitão me concedeu para ir a Bissau, tratar dos dentes – um salutar pretexto bem conhecido, para se passar uns dias fora da guerra. Bissau era uma metrópole africana, segura e cosmopolita. Para se passar umas ricas férias.

Entretanto a comissão ia decorrendo. Fui toda a viagem de avioneta,  ensimesmado. A olhar para a foto, de vez em quando.
- Só pode ser uma partida. Mas se é… diz muito mal dela…- pensava eu.

Nem deu para saborear a esfusiante beleza natural do emaranhado verde das bolanhas, matas com os rios em serpente, que se vê lá de cima, durante a meia hora até Bissau.

Os primeiros dias de Bissau foram soturnos. À procura duma explicação plausível. Não a encontrava. Só descansei quando resolvi deitar tudo para trás das costas e aproveitar bem aqueles parcos dias de libertação.
– Vou deixar de escrever-lhe e pronto. Ela, se estiver interessada, há-de explicar tudo muito bem.

Voltava de novo ao ponto de partida. Foi o que fiz melhor. 

Quando regressei a Catió, tinha umas duas ou três cartas. Numa delas vinha uma fotografia. Essa sim. Duma moça viçosa, duns vinte e tal anos. Um rosto duma beleza de linhas, fora do trivial, muito expressiva. E o corpo também. Não era uma boneca banal e estilizada. Tinha garra. Sinceramente agradou-me.
- Então porque mandou a outra, mais que ultrapassada?

A explicação vinha numa das cartas seguintes, à que trazia a foto. Como eu não dava sinal de mim, ela viu-se na necessidade de explicar. Aquilo fora uma reacção sua à minha ideia extravagante de eu ter mandado uma fotografia em pijama…

Na realidade, eu havia-o feito sem qualquer intenção. Não me passou pela cabeça a confusão que iria causar. Caí em mim, aceitei a reacção e pedi-lhe desculpa.

Tudo se recompôs a partir daí. Leviandades de quem é novato…mas não haviam de ficar por aí.

Em Catió havia um posto de correio público. Era vulgar ver por lá a gente nativa em altos berros a falar ao telefone com os faseus familiares doutras regiões da Guiné. Certo dia, deu-me a triste ideia de pedir uma ligação para Lisboa. Ela tinha-me dado o número não sei porquê. Ficava-se à espera tempos infindos que as ligações estivessem feitas.
Mal pensava eu enquanto esperava, o sarilho que havia desencadeado em casa dela…
- Uma chamada da Guiné? - Perguntou a Mãe, à pessoa dos telefones que a fez anunciar.

A Mãe ficou estarrecida. Se calhar há más notícias. O moço morreu. E agora? Chamo ou não chamo a A.T.?... Depois de uns instantes de intensa comoção, chamou-a. Ali apareci eu,  todo prazenteiro e descontraído, pelo menos em relação ao temporal que, sem dar conta, causara naquela casa.
- Apeteceu-me ouvir a sua voz!...- foi a ingénua explicação.

Só mais tarde, quando cirandávamos a namorar pelas ruas de Lisboa,  ela relatou o pesadelo que eu lhes tinha dado…

(Continua)
_____________

Nota do editor:

(*) Vd. último poste da série > 16 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9910: Cartas do meu avô (4): Segunda Carta: Em Catió (Parte III) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9910: Cartas do meu avô (4): Segunda Carta: Em Catió (Parte III) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

Foto à direita: Alemanha, Berlim > Páscoa, 2012 > O J.L. Mendes Gomes com os netos.

Foto: © J. L. Mendes Gomes (2012). Todos os direitos reservados.

1. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigoJoaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.

SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE III) (*)

Lichtenrade, Berlim, 14 de Março de 2012


5- Inesperada evocação esquecida




Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 6 > Porta de Armas  e  ao fundo o edifício da cozinha das praças.


Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 31  >  Cerimónia militar em Fevereiro de 1968, por ocasião da imposição à CART  1689,  da Flâmula de Honra (ouro) do CTIG, atribuída em julho de 1967.  Com a presença das entidades civis e população. Vista parcial do quartel com as tropas em parada


Fotos (e legendas): Victor Condeço (1943/2010) / © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados

   
Tornaram-se prática generalizada, sobretudo nos últimos anos, os encontros anuais de convívio fraterno dos ex-combatentes, por esse país fora. Uma prática cada vez mais frequente que se afigura, desde logo, muito sadia e consoladora.

O reverem-se em cada encontro e as recordações cruzadas que se trocam, sobre tudo o que se passou, lá atrás, naqueles tempos conturbados, sobretudo durante o almoço, o apresentar dos novos familiares de cada, esposas, filhos e netos, propiciam sublimes alegrias que, para a esmagadora maioria, têm mesmo de repetir-se. Tornou-se uma obrigação e uma necessidade.

Eu fui e sou excepção. Apresentei as minhas razões e desculpas, mas só apareci uma vez. Foi no ano em que o promotor era o comandante da companhia. Nas instalações do Regimento de Évora. Para revisitar o quartel onde tudo começou, e se preparou a companhia e donde partíramos para a Guiné.

As razões eram e são estritamente do meu foro pessoal. Há feitios e feitios…Sentia e sinto uma natural resistência a voltar aos sítios onde fui infeliz, onde sofri. Não tem para mim, o efeito reparador e consolador que a maioria sente. Prefiro manter tudo em suspenso, bem guardado dentro de mim e só lá vou quando é preciso. Foi uma vivência que passou.

Estávamos todos no mesmo barco. A jogar o mesmo jogo. Em equipa que o destino reuniu. É preferível deixá-la onde está. Não a inquinar com novos desafios. Aquele acabou, cada um foi à sua vida.

Esta é a base onde assento a minha atitude. Discutível ou censurável. Mas é assim que sinto. Não me arrisco a agravar feridas que nunca sararam. E foi o que aconteceu, nesse encontro de Évora.

Apareci sozinho. A concentração deu-se no largo à frente do quartel. Abeirei-me dos imediatamente reconhecidos: o Gonçalves e o Arlindo. Uma grande festa. O que era de esperar e me agradou. A rapaziada já era muita, em alegre cavaqueira. Penso que não reconheci ninguém, assim como vi e senti que me olhavam de olhar inquiridor:
- Quem é aquele gorducho de barbas brancas ?- confessaram-no depois, durante o almoço.

Eu estava mais gordo e tinha alargado em todas as direcções. Excepto na altura. Não havia nem há grandes semelhanças com o que então era. Mas isso era a regra geral Só que, as duas dezenas de anos decorridos, sem qualquer contacto, deu para que tudo se modificasse e ficássemos irreconhecíveis.

Entretanto chegou o capitão acompanhado da esposa. A mesma festa recíproca. Sempre tive muita admiração e amizade por aquele superior. Sereno e vertical. Seguiram-se umas palavras vibrantes dele para connosco, de exaltação pelo que fomos e de lamentação pelo abandono e ignorância geral da pátria, sobretudo da gente da política, que entretanto se seguiram, relativamente aos ex-combatentes. - “ A pátria que nos mandou para a guerra, não foi nem é a mesma que nos acolheu…”

Seguiu-se um passeio pelo interior. Guiado pel o comandante da altura, do quartel. A revolução estranha, interior, que se desencadeou dentro de mim, de forma incontrolável, confirmava-me a razão de nunca ter aparecido. Foi uma lufada de de memórias em ccortejo que me fizeram reviver, sobretudo, as horas más do passado.

Pensei mesmo em apresentar minhas desculpas, retirar-me e não ir ao almoço. Mas o Gonçalves convenceu-me a ficar.
- O pessoal pergunta sempre e gosta de ti. – dizia-me ele sinceramente.

Durante o almoço, num monte alentejano, dos arredores, já se tinha desanuviado mais estas nuvens carregadas que me toldavam. Alguns dos meus soldados e sargentos manifestaram o gosto de me ver. Vieram falar-me.

No final dá-se o inesperado. Começa aquele esperado número- soube-o depois- o da leitura de quadras pelos mais habilidosos, trazidos já de casa, como já era habitual. A dada altura, pareceu de propósito. Sou eu que entro na berlinda.

O ex-cabo de transmissões, de que me lembrava muito bem, e por quem não sentia grande simpatia, diga-se- e, ele por mim…, começa a desbobinar em versos de pé-quebrado a descrição dum episódio, passado em Catió, numa manhã, em que eu era o oficial de dia.

Confesso que me sentia ainda mais atónito à medida em que ele avançava. Sinceramente, não me lembrava nada de ter feito o que ele, jocosamente, desenvolveu…acompanhado da hilaridade geral e olhar de soslaio da assembleia para ver como eu reagia. 

Penso que a sinceridade da surpresa que manifestei sentir terá dado para os convencer… Então que é que tinha acontecido?

Eu sempre fui exigente com todo o pessoal. Em todas as situações. Desde Évora até ao regresso da Guiné. Sempre impus respeito e disciplina, cá e lá. Era incapaz de desapertar as amarras e deixar passar toda a bicharada. Tratamentos por tu, com os meus sargentos, muito menos os soldados, nem pensar. Era contra essa prática. Visceralmente.

Então aconteceu, naquela manhã em que iria deixar de ser oficial de dia, tocou a corneta para o pequeno almoço, na forma habitual. Passou-se um pedaço de tempo exagerado para a comparência deles. Apenas uns gatos pingados desalinhados e de olhos mais fechados de sono que abertos. Pegaram no seu caneco de café com leite e no pedaço de casqueiro e retiraram-se. Ninguém aparecia.

Eu estava ali ao pé da cozinha.
- Ai é?!...
- Ó nosso cabo, faça o favor de despejar esse caldeiro de café com leite pelo esgoto abaixo.

O cabo olhou-me arregalado, hesitante, sem saber o que fazer.
- Faça o favor.

E aí foi tudo para o lixo… 
Retirei-me danado. Fiz bem?...Fiz mal?... Ainda hoje, continua a parecer-me discutível. O certo foi que, não perguntem como, esqueci completamente este episódio que me perturbou. E a eles também…

Varreu-se-me da memória… até àquele momento. Voltei a sentir o mesmo. Relembrei tudo. Fora verdade. Não sorri muito como esperariam, certamente.

O certo foi que nunca mais apareci a qualquer convívio.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9885: Cartas do meu avô (3): Segunda Carta: Em Catió (Parte II) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)




Alemanha, Berlim > Páscoa, 2012 > O J.L. Mendes Gomes com os netos.

Foto: © J. L. Mendes Gomes (2012). Todos os direitos reservados.


1. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo presentemente em Berlim.


SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ (PARTE II) (*)

Lichtenrade, Berlim, 14 de Março de 2012

4-  Recordações Boas e Amargas de Catió

 Os momentos da chegada ao quartel, depois do esforço e dos riscos que se tinham sofrido, ficaram para sempre inesquecíveis. Desencadeavam em nós um tal bem-estar e satisfação que quase apetecia dizer que, por eles, tudo tinha valido a pena.

Um banho de chuveiro e uma cerveja grande fresquinha bebida, gole a gole, de papo para o ar e o corpo estendido na cama, acabavam por fazer esquecer e dar-nos a insidiosa sensação de que tão cedo não cairíamos noutra…

Mas não era assim, logo a seguir, haveria serviço noturno a desenvolver, com emboscadas montadas em sítios estratégicos, nas imediações de Catió, para criar  insegurança ao inimigo e afastar-lhes a tentação de ataques súbitos. Para isso, havia uma escala de serviço para cada pelotão.

Nunca me esquecerei daquele Domingo, de manhãzinha, em que fui acordado pelo alferes Arlindo Barros, - exercia, por assim dizer, as funções  de  segundo comandante da Companhia – para sair imediatamente com o meu pelotão, porque andavam a raptar populações inteiras em certo sítio, fora de Catió. [, foto do quartel à direita, 1968, foto do nosso saudoso Victor Condeço]

Rapidamente, sem grandes apetrechos, estávamos a caminhar através de matas e bolanhas, guiados por uns elementos nativos que conheciam bem o terreno.  A caminhada durou o dia inteiro. Apenas levávamos connosco o cantil cheio de água. De comer não. 

O calor era tórrido e sem abrigo, em muitos lanços da caminhada.  O que mais falta fez, na realidade foi a água. Eu pensei a sério, em beber a minha própria urina… não sei se alguém o fez. Só sei que tive de beber água escaldante esverdeada dos charcos das bolanhas filtrada na minha camisa.  Para refrescar o corpo, molhava-nos todos onde se podia. Momentos depois a roupa estava seca sobre a pele.


[Foto do bar do quartel  de Catió, à direita, 1968, foto do  Victor Condeço, 1943-2010; na imagem, ele é o primeiro da esquerda]

O regresso a Catió foi lancinante. Para além do cansaço, tinha-se-me esfolado a zona entrepernas a ponto de sangrar.  Terá sido, para mim, pelo menos, a prova mais dura de todo tempo de comissão. E o resultado foi nulo. Não se aprisionou ninguém. A tal ponto que este feito, no final, inesperadamente, determinou- me a atribuição do meu único louvor, pelo comandante de companhia o qual não mereceu, como seria de esperar, nenhum reconhecimento pelo novo comandante de batalhão.

E  houve de facto uma razão forte.  Foi que, este comandante, o tal de tão mau feitio e igual formação, que lhe mereceu uma agressão de alguém, anónima, na cabeça, pela calada da noite, quando deambulava no interior do aquartelamento.

Quando pôde voltar ao almoço na messe, cabeça toda entrapada, recomendou a todos os oficiais que transmitissem aos seus subordinados que ele mesmo promoveria ao posto acima quem denunciasse o agressor. 

Claro que ninguém quis ser promovido, gratuitamente.

Fosse pelo que fosse, eis que, de supetão, decidiu empreender, por sua inteira iniciativa, uma minioperação, que consistia num golpe de mão a um aquartelamento inimigo, algures, para os lados do Cantanhez.

Sairia a minha companhia só, reduzida a dois pelotões, o 2º e o 3º pelotão, o primeiro ficaria de guarda ao quartel.  À frente seguiria o pelotão de nativos,  comandados pelo famoso J. Bacar Jaló [, foto à esquerda, em Catió, em 1967, já graduado em tenente de 2ª linha: foto de Benito Neves].

Foi a nossa salvação.  Este alferes nativo conhecia muito bem o terreno e o que por lá havia.
 - Ó nosso alferes! Isto é uma grande asneira. Muito perigosa. Se tentarmos lá ir tenho a certeza de que seremos todos mortos como passarinhos. – exclamava-me ele atónito, e preocupado, não por si.

Toda a gente sabia como ele era uma pessoa muito séria, do seu valor, coragem e capacidade de comando no terreno. Se o dizia tão desassombradamente era porque era mesmo verdade.

Que é que nós podemos fazer contra tamanha força ali existente, de fonte segura. Nem um batalhão, quanto mais, três pelotões, armados só de G3, bazucas e morteiros. Sem apoio aéreo ou de artilharia. Era um golpe de mão.

Era melhor ser um único pelotão. Por exemplo o meu…continuava ele espumando de raiva.  Eu era o comandante da operação. Pelo facto de ser mais antigo que o comandante do 3º pelotão, o alferes Gonçalves.

 Conferenciei com ele. Logo se veria o que faríamos. Quando já estávamos a pisar terreno de alto perigo, muito próximo da entrada na mata onde ficava o quartel inimigo, apareceu no céu, muito alta, uma avioneta que transportava o autor da operação.

Entrou em contacto comigo via rádio. Informou que estávamos perto do objetivo . Que estava a chegar um bombardeiro de Bissau para metralhar a mata. De seguida e à sua ordem  deveríamos entrar mata dentro.
 - Entendido, nosso alferes?  -  Não respondi logo.

[Foto à direita: pista de Catió, janeiro de
1968. Autoria: Victor Condeço, 1943-2010]


O raio do rádio tinha de avariar naquele preciso momento…
 - Está-me a ouvir ou não? – gritava lá do alto.

Nunca eu sentira tamanha responsabilidade às minhas costas. Sempre pensei que apenas iria cumprir , mas integrado na companhia, à responsabilidade do comandante.

As palavras do J. Bacar Jaló badalavam-me insistentes na cabeça.
- Não. Não vou pôr , tão ingloriamente, em risco a minha e as vidas dos meus soldados. Aconteça o que acontecer. – pensei para mim.

Recusei responder-lhe, a tudo quanto ouvia, simulando uma avaria nas transmissões. O comandante gritava mais e mais.
 - Ó nosso alferes, está desobedecer-me. Vai ser preso quando chegar ao quartel. Por desobediência em teatro de guerra. Por que, de certeza,  me está a ouvir.

E estava mesmo. O Gonçalves disse que eu é que era o comandante. Fazia o que eu dissesse. O J. Bacar Jaló mantinha tudo o que dissera:
 - Vamos morrer todos, nosso alferes!

Não vamos. Decidi. Ficamos ali parados no meio da bolanha.

Às tantas apareceu lá longe o tal bombardeiro. Deu umas voltas em redor e,  subitamente,  orientou-se na nossa direção, picou sobre nós.  Roncando assustador, como uma terrível fera. Ensurdecedoramente.
 - Vamos ser bombardeados, por engano. – Gritei.

[Foto à esquerda, vista aérea de Catió, janeiro de 1968. Autoria: Victor Condeço, 1943-2010]


Não foi preciso mandá-los. Logo uma série de soldados se despiu as camisas para lá de cima verem que éramos nós… e acenavam-nas desesperados,  mirradinhos de medo.

Por momentos, pensei e todos nós que muitos iriam ficar ali para sempre. Foi tudo muito rápido. Assim como picou em direção a nós assim se elevou, sem nada acontecer.

Passados mais uns momentos, começámos a ser atingidos por granadas de morteiro e bazuca vindas da orla da mata. Respondemos como pudemos. O resto foi o bombardeiro quem resolveu. Metralhando ferozmente toda a mata e a orla donde vinha o fogo.

A famigerada avioneta tinha desaparecido há muito nos céus. Que estávamos nós lá a fazer? Mandei regressar.

 No dia seguinte, fui chamado à sala do comando. A tal onde se explicavam as operações.  Estavam todos os oficiais do batalhão e da minha companhia.   Solenemente, o comandante chamou pelo meu nome. Pus-me em sentido.
- Nosso alferes Mendes Gomes, ontem o senhor negou-se a cumprir as minhas ordens.
- Que ordens, meu comandante?
 - Não me diga que não ouvia o que eu lhe disse pelo rádio.
 - Eu não ouvi nada, meu comandante. Está aqui o comandante do 2º pelotão e o alferes J. Bacar Jaló que estavam à minha beira para testemunharem se foi ou não verdade.


[ Foto à esquerda, da autoria de benito Neves Catió > 1967 > Lagoa entre Catió e Príame].


O rosto do comandante toldou-se, não sei se de raiva se de gozo voraz. Iria apanhar-me de certeza- pensou para consigo.
- Nosso alferes Gonçalves, é verdade o que ouviu da boca do nosso alferes Mendes Gomes?
- Sim. É verdade. O rádio não transmitiu nada.
 - Alferes João Bacar Jaló, que me tem a dizer?
- É tudo verdade o que foi dito pelos nossos alferes.

O comandante ficou embatocado. Nunca esperou ouvir o que ouvira.  Parecia que estava tudo combinado. Mas não. As reações dos meus camaradas foram espontâneas. Em total solidariedade. Aquela operação era um suicídio…

Perante tão claros e peremptórios testemunhos, que provas tinha ele do contrário?  Absolutamente nenhuma.  Mesmo assim, já estava tudo decidido.
Mandou ler a repreensão agravada que já vinha preparadinha…

 Uma vez lida, a magna reunião tão solenemente como começou assim terminou.  Respirei de alívio.
 - Quero lá saber da repreensão…- pensei.

Bem temi que iria parar à prisão militar.

[Continua]

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Nota do editor