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quarta-feira, 18 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8295: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (8): As nossas correspondentes e o nosso volume de correio semanal... (Luís Graça)





1. Aproveitando a onda provocada pelo documentário de Marta Pessoa, Quem Vai à Guerra,  podemos perguntar aos camaradas que nos lêem: 

(i) Quantas cartas e aerogramas se terão escrito de e para a Guiné, no período entre 1961 e 1974 ?  E sobretudo, qual era o volume (médio) da nossa correspondência semanal ? Além disso, com quem nos correspondíamos, e nomeadamente com que mulheres ? (*) 


(ii) Para além das nossas mães, irmãs, amigas, esposas, namoradas, etc., qual foi a presença (e o papel) das madrinhas de guerra ? (**)... 


(iii) Por outro lado, qual era o conteúdo das missivas enviadas e recebidas pelos nossos militares ?  De que falavam as cartas e aerogramas em tempo de guerra ? 


Enfim, questões a que interessaria responder para melhor se conhecer o nosso quotidiano. Questões que um dia poderão interessar os nossos historiógrafos. Questões que, para já, suscitam a nossa própria curiosidade... Daí termos realizado estas duas singelas "sondagens", tirando partido das funcionalidades disponibilizadas pelo nosso servidor, o Blogger.


Segundo a biografia de Cecílio Supico Pinto, fundadora, ideóloga e líder do Movimento Nacional Feminino (MNF), criado em 1961,  a  campanha das Madrinhas de Guerra data de 1963, e foi uma das mais bem sucedidas iniciativas do MNF (Vd. Sílvia Espírito Santo - Cecília Supico Pinto: O rosto do Movimento Nacional Feminino.  Lisboa, Esfera dos Livros, 2008).

Qual era o papel socialmente desejado da madrinha de guerra ?


"A madrinha de guerra escreve ao seu afilhado pelo menos todas as semanas. E, ao passo que as cartas de casa são tanta vez deprimentes e lamentosas (a queixarem-se das saudades que têm, das dificuldades que passam, do receio que sentem pela segurança do rapaz), as cartas da madrinha de guerra procuram ser sempre agradáveis, versando os assuntos que mais possam interessá-los. A madrinha de guerra sabe que é importante distrair o seu afilhado.

"E sabe que não basta distraí-lo: que é tanbém necessário fortificar-lhe a coragem, transmitir-lhe confiança, torná-lo psicologicamente mais apto para bem cumprir - e cumprir com satisfação"
(Presença, revista do MNF, nº 1, 1963, pp. 36-37, citado por Espírito Santos, 2008, pp. 78).


Segundo a biógrafa da Cilinha, o MFN terá mobilizado o esforço de cerca de 82 mil voluntárias (número que é difícil de confirmar na ausência do arquivo do movimento, que terá desaparecido em 1974). Já quanto ao número de raparigas e mulheres que terão respondido ao apelo do MNF para dar apoio moral, material e psicossocial aos combatentes da guerra do ultramar, Sílvia Espírito Santo escreve que a estimativa feita - cerca de 300 mil - parece ser verosímil.

Um outro dado interessante era o número de areogramas ou "bate-estradas" (32 milhões) disponibilizados anualmente pelo MNF aos nossos soldados e suas famílias... Era, pelo menos, este o número que constava, como dotação anual, no orçamento ordinário previsional do MNF para o ano de 1974, ascendendo então as receitas (e as despesas) aos 10 mil contos (op. cit., p. 87).

2. Num total de 101 respondentes à nossa sondagem nº 1/2011, apenas um em cada três de nós teria madrinha de guerra... Quatro em cada cinco correspondia-se regularmente com a mãezinha. E sete em cada dez, com a "esposa, noiva ou namorada com quem veio a casar"...  

Fica-se também a saber, apesar de se tratar de uma amostra de conveniência (e seguramente "enviesada", já que a maior parte dos ex-combatentes não têm acesso regular à Internet e não são, portanto, leitores de blogues de ex-combatentes, como este...), que um em cada quatro de nós também se correspondia, regularmente, na Guiné, com "amigas, vizinhas e colegas"... (Vd, Gráfico acima - Sondagem 1/2011).

Uma pequeníssima minoria (como eu...) não escrevia a ninguém (ou a quase ninguém)...Um terço recebia, em média,  por semana, "uma a duas cartas e/ou aerogramas"... Os campeões do correio (os que recebiam mais de dez cartas por semana) não passariam de uma minoria (cerca de 6%), a ter confiança nesta amostra dos nossos leitores (n=95) (Vd. Gráfico acima - Sondagem nº 2/2011)... 

Claro que ficamos sem saber muita coisa: Afinal, quem escrevia mais ? O corneteiro ? O escriturário ? O soldado ? O furriel ? O alferes ? O miliciano ? O operacional ? ... E em que altura da comissão: no princípio, no meio ou no fim ?... Quem estava no mato ou em Bissau ?

Enfim, estes dados valem o que valem, dão pelo menos algumas pistas para "refrescar" as nossas memórias, e sobretudo - espero - são um incentivo para se valorizar os famosos bate-estradas que ainda guardamos no sótão das nossas velharias e que um belo dia destes, quando batermos a bota, correm o risco de ir parar ao cesto dos papéis, ao contentor do lixo, ao fogo da lareira (se for inverno)... quando o seu lugar deveria ou deverá ser o Arquivo Histórico Militar.

O meu/nosso Oscar Bravo (OBrigado) a quem teve a gentileza de responder a estas duas pequenas sondagens... L.G.

____________

 Notas do editor

(*) Último poste da série > 18 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8289: As mulheres que, afinal, foram à guerra (4): Mais fotos da rodagem do filme "Quem vai à guerra"...

(**) Vd. por exemplo postes como este:

27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3803: As nossas mulheres (8): As minhas correspondentes e a minha mulher (José Colaço)


(...) Recebia as cartas da namorada, das duas madrinhas de guerra, duma correspondente espanhola e mais o correio da família que por motivo de vida e saúde estava um pouco dispersa, pois no Hospital do Rego, hoje Curry Cabral,  tinha deixado o meu irmão agarrado aos ferros de uma cama, devido a acidente de moto do qual ficou paraplégico.

(...) Primeiro, a da madrinha de guerra residente em Lisboa que nunca cheguei a conhecer por culpa minha, pois quando faltavam duas semanas para o meu regresso, deixei de lhe dar resposta. Razão nenhuma. Só o que ainda existe aqui em casa, que pode confirmar o que digo, esta foto [, à esquerda,] que tem a dedicatória ao afilhado da madrinha amiga Helena, que envio para embelezar a mensagem [, vd. imagema a seguir].

Da namorada e a outra madrinha que sabiam da existência uma da outra, com as visitas a ambas tudo se desmoronou.

Com a correspondente, também houve um interregno entre 1966 e 1969, mas,  como 1969 estive na Alemanha e sabendo que ela lá se encontrava, resolvi recomeçar a troca de correspondência no que fui bem recebido. Encontrei-me com a Paquita algumas vezes na cidade de Mainz, onde a visitava aos fins de semana, já que eu estava em Dusseldorf. Se já éramos amigos, mais amigos ficámos.

Após o meu regresso a Portugal, ainda esteve combinado um encontro, que devido a um acidente quando a Paquita se dirigia ao nosso País, [não se chegou a realizar]. Desfez o coche e assim se desfez o encontro, possivelmente também por culpa minha,  por se aproximar a data do meu casamento, os contactos tiveram fim. (...)


Outros postes sobne este tema, a título meramente exemplificativo:


sábado, 27 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7351: Controvérsias (112): David Costa, da CART 1660 (Mansoa, 1966/68): Déserteur malgré-lui ? / Desertor à força ? (Jorge Lobo, ex-1º Cabo, CART 1660)

1. Comentário, de 24 do corrente, de um leitor, nosso camarada, que se assina por Jorge (simplesmente) ao poste P3371 (*):


Fui colega do David Costa na CART 1660,  em Mansoa,  e assisti ao vivo e a cores ao incidente que levou o rapaz a desertar do quartel e, bem assim, acompanhei o caso até ao meu embarque para a metrópole, tendo mesmo escoltado [ o David Costa] e assistido ao vivo ao seu julgamento no Tribunal Militar de Bissau.



Tudo começou na caserna. O cabo enfermeiro Chantre vinha-se queixando não ter recebido duas cartas de datas diferentes, ambas com foto da namorada.


Quem por norma trazia o correio era o David Costa, mas, naquele dia (trágico para o David), não tinha sido ele a ir a Bissau trazer o correio onde, mais uma vez, a namorada enviava ao Chantre uma 3ª foto sua dentro da carta.


Desta vez, então, o Chantre recebeu a carta e feliz com a foto, mostrava-a aos colegas de caserna.


Porém, uns dias antes, o David... tinha mostrado a um dos colegas uma foto igualzinha à que o Chantre acabava de receber e mostrava a esse mesmo colega que já tinha visto a outra foto nas mãos do David.


Daí até se descobrir que tinha sido o David quem violou as cartas com as fotos anteriores, foi um pequeno passo. Ao ver-se descoberto, o David desapareceu do quartel e, a partir daí, só ele mesmo sabe o que se passou.


Depois dele ter regressado, três meses depois do início da sua odisseia, contou-nos lá em Mansoa a versão da sua aventura de forma diferente, a uns e a outros dos colegas. (Isto já em prisão, claro).


Sinceramente,  eu passei a desacreditá-lo e mais descrédito [me inspira] hoje em dia, depois de ler em diversos blogues da Internet versões diferentes, segundo parece deixadas por si ou com o seu conhecimento.


Há coisas que não coincidem. Nuns lados ele diz que passou por uns locais e noutros porém fala em outros bem diferentes... Num lado diz que dormitava quando foi capturado pelo IN, e noutras ele diz ter-se esbarrado de frente com os guerrilheiros do PAIGC.


Também me parece estranho como é que ele foi parar a Morés, quando ele tinha dito que, ao sair de Mansoa, tinha entrado na estrada de Bissorã a qual o levaria a um destino bem diferente de Morés.


Estas e outras contradições tornaram o seu livro pouco credível. [Vila Nova de Gaia, Editora Ausência, 2004].(*) (**)

2. Julgo que é o mesmo Jorge, Jorge Lobo, ex-1º Cabo da CART 1660, que tinha dirigido, um dia antes,  a seguinte mensagem ao David Costa [, David Ferreira de Jesus Costa, natural de Fânzeres, Gondomar: incorporado em Julho de 1966, regressaria a casa só em finais de Agosto de 1971]
 (**):

Caro David Costa, sou o 1º Cabo Lobo, da Cart 1660, e presenciei toda a cena da carta com a fotografia da namorada do Chantre, isto na caserna da Cart 1660 em Mansoa. Sabia vagamente o que te aconteceu mas não com todos esses pormenores. Em Bissau quando de cabo de dia antes da partida para a Metropole, cheguei a levar-te as refeições ao presidio.

Desejo do coração que tenhas já esquecido a pior parte dessa tua odisseia e que sejas muito feliz na companhia dos teus. (***)

___________


Notas de L.G.:

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4989: FAP (33): Correio ao Domicílio (Miguel Pessoa)

1. Mensagem de Giselda e Miguel Pessoa (*), ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado, com data de 18 de Setembro de 2009:

Carlos, Luís:
Para compensar o nosso afastamento do blogue por um período de férias dilatado (na verdade ainda continuam...) envio-vos duas pequenas histórias - uma minha ("Correio ao domicílio"), outra da Giselda ("Fartote de legumes").

Como é habitual são ligeirinhas, mas talvez não faça mal, para compensar a caloraça que este Verão trouxe ao blogue...

Um abraço
Giselda e Miguel Pessoa



CORREIO AO DOMICÍLIO

Nas missões que efectuavam por todo o território da Guiné os pilotos sabiam da importância que a chegada do correio tinha para o pessoal exilado nos locais mais recônditos, por ser o principal (às vezes o único) elo que tinham com a civilização.

Sucedeu comigo por várias vezes quando voava no DO-27 que, sobrevoando o território no percurso para o aeródromo de destino, ao passar sobre um aquartelamento, era interpelado por um operador de rádio mais ansioso, de que geralmente resultava uma conversa encriptada, mais ou menos nestes termos:

- Águia, Águia (ó aviador), aqui XX (código do quartel), informe se tem Sierra (serviço) para este?

- XX, Águia, negativo

- OK. Confirme que não tem Charlie (correio) para este?

- XX, Águia, negativo

- OK, Águia, Óscar Bravo (obrigado), o Charlie (comandante) manda um Alfa Bravo (abraço) e uma Bravo Victor (boa viagem)

- XX, Águia, um Alfa Bravo para vocês. Terminado. (**)

E lá continuava eu para o meu destino deixando para trás um interlocutor desiludido.

Deve-se reconhecer que os SPM (Serviços Postais Militares) tinham em consideração, sempre que possível, a necessidade que o pessoal tinha de receber notícias fresquinhas - das famílias, das namoradas, dos amigos. Por isso, estava bem organizada a distribuição dos sacos do correio, de modo a embarcarem no primeiro avião disponível para o local.

Para além de embarcarem o correio de acordo com as missões planeadas, sempre que surgiam missões inopinadas (como as evacuações ou um transporte inesperado), as Operações do GO1201 alertavam os SPM e estes, na medida do possível, levavam à placa onde se encontrava o AL-III ou o DO-27 o correio para o aquartelamento em causa, por vezes também para outros aquartelamentos próximos, a quem o correio seria enviado por terra, a partir do primeiro.

Também por vezes os pilotos tinham a iniciativa de mandar embarcar os sacos de correio dirigidos a outros locais em que não iríamos aterrar, mas que sobrevoaríamos; claro que não se adequava levar encomendas frágeis, que se pudessem partir, pois a ideia era desembarcarmos o saco pela porta lateral quando passássemos a baixa altitude por cima da área do aquartelamento. Mas para o simples correio era uma boa solução de recurso, principalmente em locais isolados sem pista.

Claro que por vezes as coisas podiam não correr tão bem como gostaríamos - o correio podia cair mais longe do que pretendíamos (e o pessoal do quartel também...) e alguns incidentes também ocorreram: por exemplo, um dos sacos que o meu ajudante de carga atirou levou consigo uma antena lateral do DO, outro piloto levou aguerridamente a antena de rádio do quartel. Enfim, foi tudo por uma boa causa, que era afinal a de mitigar as saudades dos nossos camaradas em terra por tudo aquilo que tinham deixado lá longe.


Um Dornier, DO 27, na pista, de terra batida, do aquartelamento.
Foto do saudoso Cap Ref José Neto (1927-2006)


Uma vez, um aviador de Fiat G-91, depois de executar uma missão no sul do território onde largou o ferro que levava, quando regressava a Bissalanca detectou uma anomalia suficientemente grave para o fazer dirigir-se de imediato para o sítio mais próximo que fosse apropriado para pôr o estojo no chão. Lá fez uma aproximação cuidadosa à pista, conseguindo parar o avião dentro do espaço disponível, sem mais problemas para além do susto inicial.

Ainda a recuperar do stress, enquanto saía do avião, vê que a capacidade de apoio do aquartelamento era superior à que esperaria, pois de imediato se aproximam rapidamente do local vários militares. Só então se apercebe das suas intenções quando um deles lhe dispara a pergunta sacramental:

- Traz correio?!

Miguel Pessoa

Fiat G-91 da FAP
Foto de Soares da Silva, com a devida vénia

__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4676: FAP (32): Defendendo a minha dama (Miguel Pessoa)

(**) Código Fonético Internacional

A - Alfa
B - Bravo
C - Charlie (lê-se tchar-li)
D - Delta
E - Eco (lê-se: é-cô)
F - Foxtrot (lê-se: focs-trote)
G - Golf
H - Hotel
I - Índia
J - Juliet (lê-se: dju-liete
K - Kilo (lê-se: qui-lô)
L - Lima
M - Myke (lê-se: mai-que)
N - November
O - Oscar
P - Papa
Q - Quebec (lê-se: qué-beque)
R - Romeo (lê-se: ró - mi - ou)
S - Sierra
T - Tango
U - Uniform
V - Victor
W - Whisky (lê-se: uís-qui)
X - Ex-Ray (lê-se: ecs-rei)
Y - Yankee (lê-se: ian-que)
Z - Zulu

terça-feira, 12 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4327: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (7): O saxofone que não tinha sapatilhas

1. Mensagem de Manuel Traquina, ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70, com data de 2 de Maio de 2009:

Para publicação no blog envio um texto e uma fotografia.

Abraço
Traquina



O Correio /Os Aerogramas


Em tempo de guerra o correio é sem dúvida uma das coisas mais importantes. Poderemos dizer que em situações difíceis é das poucas coisas que exerce grande efeito psicológico na mente de cada um. É o contacto com a família, com a namorada, com a madrinha de guerra, em suma, muitas vezes o único contacto com o mundo exterior.

Naqueles tempos eram utilizadas as cartas, chamadas tipo papel de avião, cujos envelopes tinham uma pequena orla descontinua a verde e vermelho. Porém, eram mais utilizados os aerogramas que ficavam inteiramente gratuitos, os militares chamavam-lhes os aeros ou bate estradas. Desempenhavam um papel importante, eram oferecidos pelo Movimento Nacional Feminino e, transportados gratuitamente pela TAP.

Por graça, alguns militares tinham o hábito de enviar aerogramas para determinada localidade, dirigidos à menina mais bonita, à menina mais simpática, à jovem mais bela, ou outros do género, dependente da imaginação de cada um. Depois ficava o critério do carteiro, seleccionar ou, para se ver livre de mais um aero, entregar na rua, a quem muito bem entendesse.

Desta maneira a brincar, muitos tiveram a habitual madrinha de guerra, a namorada, ou nalguns casos até mesmo esposa! Quero aqui referir e ao mesmo tempo dirigir uma palavra de agradecimento a todas aquelas que foram as nossas Madrinhas de Guerra, umas que mais tarde vieram a ser namoradas e esposas, outras que se ficaram apenas por madrinhas. Naquele ambiente de guerra, é difícil calcular a alegria que se sentia, ao receber uma carta onde por certo vinham palavras acolhedoras e amigas.
Alguns militares endereçavam aeros uns aos outros, e no exterior escreviam contém um gravador. Os gravadores de som tinham feito a sua aparição à pouco tempo e eram uma novidade. Numa época que em Mampatá se trabalhava duramente na abertura de abrigos, alguém terá recebido um aerograma que no exterior dizia, contém uma picareta. Acho que foi mal recebido e rasgado de imediato, é que quem o recebeu estava já com as mãos bastante calejadas pelo uso dessa ferramenta…

A propósito recordo que um militar recebeu resposta a uma mensagem que enviara dentro de uma garrafa, arremessada ao mar quando viajava a bordo do “Niassa”. A resposta que curiosamente não se fez tardar, veio de uma jovem espanhola, (presume-se que de corpo bronzeado desfrutando dos calores mediterrâneos) encontrou a referida garrafa numa praia do sul de Espanha. Sei apenas que se iniciou uma troca de correspondência, que chegou mesmo a namoro!

Também com frequência se escrevia às senhoras do Movimento Nacional Feminino, e pedia-se de tudo. Por vezes lá chegava esta ou aquela oferta.

No Natal de 1968 creio que houve uma oferta a todos os militares, uma pequena embalagem de plástico, que continha um maço de cigarros e um isqueiro a gasolina. Tantos terão sido os pedidos, que um dia tivemos a visita da D.ª Cilinha Supico Pinto.
Esta animada visitante, bastante alegrou os militares reunidos à sua volta na pequena parada do aquartelamento de Buba. Começou por dizer que não fizessem pedidos difíceis de satisfazer. Parece que alguém teria pedido uma namorada, em que era indicada a cor dos cabelos, as medidas da anca, de peito e outras... Mas naquele dia, a ilustre visitante vinha fazer a entrega de um instrumento musical, um saxofone, que o corneteiro da Companhia, o Gentil lhe tinha pedido.

Bastante satisfeito ficou o militar mas, logo a seguir decepcionado. Ao instrumento, já bem usado, faltava aquilo a que se chamam sapatilhas. Mais difícil foi fazer compreender àquela senhora que as sapatilhas (pequenas válvulas do instrumento) faziam falta ao instrumento e não ao militar...
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4019: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (6): Estrada nova Buba - Aldeia Formosa

quarta-feira, 11 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4011: Poemário do José Manuel (27): Um ruído vem do céu / e há cabeças no ar, / hoje é dia de correio...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 , Os Unidos de Mampatá (1972/74) > Pós-25 de Abril de 1974 > Um guerrilheiro do PAIGC e o Fur Mil José Manuel Lopes, dando o abraço da paz e da reconciliação..."Antes um inimigo, que só podia ser visto pela mira da nossa arma, depois um abraço, um sorriso e porque não um amigo" (JML) ...

O José Manuel voltou à Guiné, voltou a Mampatá, 35 anos depois!... Com os amigos e camaradas da CART 6250, o Carvalho (Fur Enf), o Nina (Fur Mec Auto), o Leça (Sold Cond Auto)... Foi surpreendido pelos trágicos acontecimentos de Bissau, do início da semana passada, em que morreram Tagmé Na Waie e Nino Vieira. Já estavam em Buba, quando souberam da notícia, recebida com calma entre a população fula...

Em Mampatá ficaram 4 dias. Conheceram momentos de alegria e de tristeza. Visitaram as escolas locais (duas, uma pública e uma privada)... Deixaram material aos miúdos. Aperceberam-se da dura realidade da Guiné, em que a administração pública mal existe: duas escolas, uma pública, com 400 e tal miúdos; outra privada, com duas dezenas de alunos... Quem era o professor desta ? O José Manuel reconhceu o antigo professor do PAIGC... As famílias, com algumas posses, pagam ao professor, em géneros... O Estado está meses e meses sem pagar um tusto aos seus funcionários...

Visitaram a campa de um dos seus amigos, milícia, que foi fuzilado, a seguir à independência, na praça pública ("Morreu com uma enorme dignidade, de cara levantada, perante o pelotão de fuzilamento; podia ter fugido, avisaram-no, não o fez"...).

Ofereceram-lhes um cabrito... Gente boa, simples, hospitaleira, que continua a imaginar Portugal como um eldorado: o sonho de uma família fula de Mampatá, é ter um filho a trabalhar cá... A remessa de 50 euros, que seja, é uma benção... Até apareceu um filho de um tuga, a chamar pai a um dos nossos camaradas... Enfim, todos os pretetextos são bons para se chegar a Portugal...

Reconheceram (e foram reconhecidos por) velhos amigos da população (fula) e camaradas de armas... Fizeram a estrada que ajudaram a construir, hoje totalmente degradada, irreconhecível: Nhacobá... Salancaur... Estiveram no corredor de Guileje, mas não foram a Guileje, por dificuldades de ligação.

Enfim, lá tiveram de voltar a casa, por que a vida continua: o Carvalho é presidente de uma Junta de Freguesia, em Gondomar; o Nino tem, na Covilhã, uma empresa de comércio automóvel, com bastantes colaboradores; o Zé Manel tem a sua Quinta da Graça, no Alto Douro, onde é vitivinicultor (e tinha a sua Luísa a chorar de saudades); o Leça (que levou a esposa) é uma antigo emigrante em França... Gente extraordinária, que merece as nossas palmas! Ah!, com eles também viajou o Silvério Lobo, que esteve em Aldeia Formosa, e que é mecânico de profissão...

Chegaram ontem ao fim da tarde, cansados... Fizeram a viagem em contra-relógio. Já em Marrocos encontraram também o resto da malta da Tabanca de Matosinhos: o Xico Allen, o Pimentel, o João Rocha... Ainda lá ficaram, na Guiné, o Moreira e a malta de Coimbra, bem como a malta de Lisboa (Carlos Fortunato, Carlos Silva e outros, da Ajuda Amiga...)... Do Camilo e da malta do Algarve não me soube dizer nada.

Falei ao telefone com o Zé Manel ontem à noite... (Estava a ver a bola, a desgraça do Sporting; ele é benquista, mas patriota... Já o meu amigo Pepito é sportinguista e merece um grande abraço de consolo...).

O Zé Manel disse-me que nem tudo correu pelo melhor, na viagem para lá e para cá (em que perdeu o telemóvel)... Na Mauritânia, o Zé Manel esteve detido 4 horas numa esquadra de polícia, por tirar fotografias... A polícia da Mauritânia faz intimação e chantagem aos turistas... Mas isso são outros contos... para outras alturas. O Zé Manel vai fazer um festinha, um dia destes, num fim de semana (talvez a 21), para partilhar connosco as emoções da viagem... O Paulo Santiago já disse que levava o leitão de Aguada de Cima (que é o melhor do mundo)...

Para celebrar o regresso do Zé Manel e demais amigos e na sequência também do poste, bem humorado, do nosso camarada da Força Aérea António Martins de Matos ("Correio com antenas") (*), fui repescar um dos poemas do Josema (**), poesia singela de um tuga, que era (é) um homem sensível e de coração grande, e que retrata aqui, melhor do que ninguém, em traços breves e leves de aguarela, o nosso quotidiano de guerra...

Foto e poema © José Manuel (2008). Direitos reservados.


Um ruído vem do céu
e há cabeças no ar,
hoje é dia de correio,
há novas para chegar,
faz-se a distribuição
com chamada frente ao bar.

Para o Santos nada veio
será que vai desmaiar?
P'ró Zé Manel veio a Bola
com as novas do Benfica,
p’ró Pinheiro uma encomenda
e alguém lhe manda uma dica,
fazendo-se para a merenda.

Sim, de correio foi o dia,
não pode haver melhor prenda,
é altura de alegria,
retiram-se os felizardos,
relêem a mesma carta
até afogar a saudade.

Mampatá 1972
josema

[Revisão/fixação do texto: L.G.]

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P4010: FAP (15): Correio com antenas... (António Martins de Matos, ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74)

(**) Vd. postes de

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3884: Poemário do José Manuel (26): O regresso a Mampatá, 35 anos depois...

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...(...)

27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

sexta-feira, 28 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cananime > Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guileje (1 a 7 de Março de 2008) atravessam, de canoa motorizada, o Rio Cacine, entre Cananime e Cacine... De cima para baixo: o barqueiro, ao entardecer; o José Carlos Marques, jornalista do Correio da Manhã, em primeiro plano, do lado esquerdo; a discretíssima Catarina Santos, da Fundação Mário Soares, com a sua inseparável máquina fotográfica...

Fotos: ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.



1. Mais poemas do dia, do José Manuel Lopes, da Quinta da Graça, no Douro, o José Manuel, muito simplesmente (como era conhecido em Mampatá)... Poemas de um imenso poemário, recebidos, dia a dia, ao longo de uma quinzena, de 16 a 28 de Março de 2008. Foram escritos na Guiné, um por dia.

Por detrás da máscara do José Manuel (que eu não conheço pessoalmente, nem por fotografia, só por voz e por mail), que foi Fur Mil, Op Esp, CART 6250 (Mampatá, 1972/74), há uma voz muito original, pessoal, uma surpreendente revelação da escrita poética sobre a guerra colonial na Guiné... Até agora guardada o baú do sótão...

Muitos dos poemas (assinados por josema) que temos recebido, por e-mail, todos os dias, não têm título. E alguns não estão datados. Vão-se publicando (1), ao sabor da espuma dos dias, e das remessas do poeta, e dos humores do(s) editor(es)... Que já conquistou leitores fiéis aqui, na nossa Tabanca Grande... Eu, o Torcato Mendonça e, seguramente, muitos outros camaradas... Pode morder, que esta poesia é para morder, para comer, para trincar.... (LG).


Calor, cansaço, suor
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior
pois há ali o Corubal
com sombras e água boa
nem tudo é mau afinal
não é o Douro, eu sei
nem o Tejo de Lisboa
são outros os horizontes
falta o xisto e o granito
as encostas e os montes
mas diga-se na verdade
há o Carvalho, há o Rosa
há um hino à amizade
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira
há o Farinha e o Polónia
gestos e solidariedade
há o Esteves e o Pinheiro
amigos e sinceridade
há o Nina e até amor
também sofrimento e dor
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.

Josema
Mampatá 1974


Ouve-se um violão
numa noite de luar
tocado pelo Gastão
p'ra algo comemorar
cantigas de Zeca Afonso
de raíz popular
põem magia no ar
mas eis
outro som a chegar
mais grave e persistente
é Guiledje a embrulhar
é a guerra noutra frente
até que o ataque acabe
a festa é interrompida
e recomeça num brinde
à vida da nossa gente.

s/d


As brincadeiras loucas
acabam por ter sentido
se as alegrias são poucas
neste cantinho perdido

já vi tourear uma cabra
entre os arames farpados
e outros ao beber água
ir pelos ares aos bocados

desde o carreiro de Uane
à estrada para Nhacubá
todo o cuidado é pouco
ninguém quer ficar por cá

chegam do patrulhamento
cobertos de pó a suar
anseiam pelo momento
de se refrescar no bar.

Mampatá 1973
josema


Guernica!
pintura
visão, mensagem, recado?
para quem e porquê?
Pearl Harbour, Hiroshima
Londres, Leninegrado
e tantas mais
Vietnam, napalm
e o mundo não reage
se espera que acalme?
se esquece Nabuangongo
Guidage, Guiledje
e as minas de Mueda
dão graças à sua sorte
os regressados
dos corredores da morte
e agora
eis a bomba inteligente
mais importante
que gente
e o mundo estúpido
consente!

s/d


Quantas batalhas e guerras
geradas pela ambição?
quantos pior que feras
mataram o seu irmão?
sem nunca se aperceberem
das causas e da razão
mortes em troca de quê?
a que preço e porquê?
a resposta está no ganho
no lucro que é tamanho.

s/d


Ao menino do papá
"É mais fácil entrar um camelo no cu duma agulha, que
um rico no reino dos céus"


Metam-lhe a agulha no cu
para ver
se ele acorda
não vá morrer de repente
e venha culpar a gente
do encontro
com belzebu.

s/d


O calor húmido nos envolve
abraça-nos a escuridão
e a noite se faz dia
c’o ribombar do trovão
cai a água em catadupa
numa suave carícia
fecho os olhos
que delícia
até sinto um arrepio
sinto-me bem afinal
até chego a sentir frio
e penso que é Natal...

Guiné 1972
Josema


Neste imenso sofrer
pensar Nele ajuda
mas Ele parece não ouvir
então solta-se a raiva
incham as veias do pescoço
outro homem nasce
e cai-se dentro do fosso.

josema
Guiné 1972


Um ruido vem do céu
e há cabeças no ar
hoje é dia de correio
há novas para chegar
faz-se a distribuição
com chamada frente ao bar
para o Santos nada veio
será que vai desmaiar?
p'ró Zé Manel veio a Bola
com as novas do Benfica
p’ró Pinheiro uma encomenda
e alguém lhe manda uma dica
fazendo-se para a merenda
sim de correio foi o dia
não pode haver melhor prenda
é altura de alegria
retiram-se os felizardos
relêem a mesma carta
até afogar a saudade.

Mampatá 1972
josema


Quero irmas não sei onde
tudo
me parece um delírio
sem sentido nem razão
neste mundo desumano
quero fugir
mas não posso
prende-me
o sentir-me solidário
à união dos Unidos (*)
prende-me
o cheiro a mosto
prende-me
o calor de Agosto
prende-me
um regresso ao Douro
prende-me
uma família que espera
por tudo isso
não posso partir.

Bolama 1972
Josema

(*) Cart 6250, Os Unidos
________

Nota de L.G.


(1) Vd. postes anteriores:

27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?

quarta-feira, 5 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2613: Notícias do Simpósio de Guileje.(Virgínio Briote)

A Guiné vista do ar. O Cacheu e as bolanhas, paisagens de uma beleza que, na altura em que lá estivemos, nem sempre as conseguíamos ver. Com a devida vénia ao Carlos Silva, também presente nesta romagem à Guiné e às suas gentes.

Uma mensagem muito breve do Luís Graça

A nossa Guiné


Amigos e Camaradas co-editores, CV e VB:

Vou hoje fazer a minha apresentação...

Não vos tenho ligado nenhuma. Chego tarde e nem sempre apanho rede. Bissau vive às escuras. No hotel há luz e rede sem fios...
Vou ver se amanhã mando alguma coisa para o blogue...

Faço votos para que o dia de amanhã, seis, corra bem, aos dois e ao restante pessoal, e especial ao nosso Beja Santos.

Vai ser um grande dia, Mário!... Passei por Mato Cão e Finete, vindo do sul (Guileje/Jemberem).

Bambadinca deixou-me deprimido... Mas as grandes bolanhas trazem-nos a nostalgia do passado.

O fim de semana no sul foi fantástico. O Pepito e os amigos são impecáveis e de uma grande hospitalidade.
O Simpósio está a correr muito bem...





O Nino esteve na inauguração e cumprimentou alguns de nós.


O embaixador português limitou-se a ler uma mensagem do Ministro da Defesa.... Há cada burocrata .... Nem uma palavra para os compatriotas!...


Já fiz 3 gigas de fotos e filmes, até ontem...

Um abraço a todos.

Luís
__________

Nota de vb para o Luís Graça:

Do que tenho conhecimento (os Camaradas da Tertúlia não têm dado referências) o Simpósio está a passar praticamente despercebido em Portugal. Televisões, rádios, jornais (excepto uma página de ontem do J. Marques do Correio da Manhã), têm ignorado o acontecimento. O que é uma pena, dada a importância da oficialização da Paz entre os ex-Combatentes, que a outra, a política há muito que está feita, felizmente.
E se não forem os participantes a dar notícias do Simpósio...
Dá um grande abraço a essa gente ( não sei se posso dizer mais de duzentos abraços, espero que sim), ao Pepito e aos seus ajudantes do Simpósio, ao Nuno Rubim e aos Camaradas da Tertúlia por essa magnífica Reunião de Concórdia e de Paz.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2113: Blogoterapia (33): Nós nunca esquecemos as nossas mulheres (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos:

A Conceição Brito Lopes alerta para o papel primordial que tiveram as nossas mulheres, mães, namoradas, irmãs, amigas, avós e outras familiares no desenvolvimento afectivo onde se deve também situar a análise da Guerra Colonial (1). O que exige a todos nós uma reconfiguração dos testemunhos. Talvez a Conceição esteja de posse unicamente dos registos que se fazem dos eventos bélicos, reuniões de ex-camaradas da guerra, narrativas factuais de idas e regressos dos contigentes milítares. Seja como for, o seu apelo deve ser devidamente considerado.

Da minha parte, tive muita sorte: sem aquele correio, o escrito pelo meu punho e o recebido, a minha esperança teria seguramente definhado, aqueles afectos eram água purissíma, era o amor que nos esperava na hora do regresso, a par dos projectos que tinham ficado suspensos (2). Às vezes, diga-se em abono da verdade, água envenenada, nuns casos por incapacidade de se entender as mudanças que se estavam a operar nas nossas mentalidades e daí os choques e os choros, noutros casos recordo miseráveis cartas anónimas que levaram militares ao desespero, tal a fragilidade do isolamento.

A Conceição tem que nos perdoar estarmos ainda numa fase de desabafo, fazendo saltar para a cena o mais traumático e o aparentemente mais marcante. Certamente que muitissímos outros testemunhos como o da Conceição irão reposicionar o trânsito das nossas memórias. Oxalá o apelo da Conceição seja lido por muitas mulheres, as nossas companheiras e nosso sustentáculo para aqueles anos duríssimos que tudo tranformaram, inclusivé o amor que lhes dedicávamos.

Mário Beja Santos

_________

Notas dos editores:

(1) Vd. post de 17 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74: P2112: Blogoterapia (32): Não se esqueçam das mulheres, que apenas podiam morrer de saudade (Conceição Brito Lopes)

(2) Vd. 6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2031: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (57): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6).

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

Lamego > Centro de Instrução de Operações Especiais > 1973 > O 1º cabo miliciano Carvalho

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > o Fur Mil At Inf Op Esp Casimiro Carvalho junto ao monumento aos mortos e feridos da CCAÇ 3325 (que esteve em Guileje de Janeiro a Dezembro de 1971).






Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Casimiro Carvalho no quotidiano de Guileje.


Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

Cartas e aerogramas enviados pelo José Casmiro Carvalho (Fur Mil Op Especiais, CCAV 8350, 1972/74) à família, durante a 2ª quinzena do mês de Junho de 1973 (1). A última carta que publicámos anteriormente era de 30 de Maio, escrita em Gadamael, onde o Casimiro, vindo de Cacine, se juntou à sua destroçada e desmoralizada companhia (2).

Alguns dias depois (?), ele será ferido em combate, em Gadamael, depois de ter ajudado a salvar e a evacuar o seu comandante, o cap Quintas, ferido com gravidade (a 1 de Junho de 1993). Não temos cartas ou aerogramas desse período (1ª quinzena de Junho de 1973), em que os paraquedistas do BCP 12 tiveram que vir aliviar a pressão do PAIGC sobre Gadamael, a seguir ao abandono de Guileje pelas NT (em 22 de Maio de 1973). Não sei se o Carvalho escreveu à família, ou se não o pôde fazer. Ele não fala desse ferimento em combate (que terá sido ligeiro: um estilhaço de morteiro 120) (3).

De qualquer modo é muito interessante cruzar estas informação epistolográfica com as memórias do Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista da CCP 121 que esteve do inferno de Gadamael nesta altura (2), depois do inferno de Guidaje.

A selecção, a revisão e a fixação do texto, bem como os subtítulos, são da responsabilidade do editor do blogue. Mais um vez agradeço ao nosso herói de Gadamael, o Casimiro Carvalho, o carinho, a confiança, o apreço e a franqueza que ele teve para connosco, permitindo-nos entrar na sua intimidade, na intimidade da sua família, conhecer as suas emoções, as suas alegrias e tristezas. Espero que nos ajude a todos a conhecer melhor o duro quotidiano dos nossos camaradas que, em Maio/Junho de 1973, sofreram no sul da Guiné uma das maiores ofensivas do PAIGC em toda a história da guerra (LG) .




Ficar não era heroísmo, era suicídio


Gadamael, 19/6/73

Paizinho:

(…) Estou bem, àparte uma dor de estômago e diarreia, provocadas pela má alimentação e má água (…)

Isto, às 7 da manhã começa-se com cerveja, para acabar às 7 da noite. Já bebi mais cerveja aqui do que você em toda a vida. É o que nos vai aguentando.

Isto está a melhorar, só bombardeiam de vez em quando e fora do quartel, portanto sem consequências. Há agora muitas emboscadas feitas aos paraquedistas que cá estão (2 companhias). Já há alguns que foram evacuados: ficaram malucos com isto aqui. Eu ando porreiro.

Diga lá ao Fernando [ Carvalho, o irmão,] que se torna a mencionar a palavra cobarde, não lhe escrevo mais. Pois se eu fugi da emboscada [descrita em 3] é porque éramos 14 homens só com G-3 e quatro ficaram logo ‘prontos’; a outro encravou-se-lhe a arma e seis fugiram logo. Estava só eu a dar fogo e outro moço, eu fui o único que tirei outro carregador e o disparei. Ficar lá nestas condições, não era um acto heróico mas sim um suicídio. Portanto, cuidado com as palavras, sr. Fernando. Eu não estou zangado. Eu não devia falar na quantidade de homens. Adeus.



Em Gadamael, estamos a dormir nas cabanas dos pretos que fugiram


Gadamael, 20/6/73

Minha querida mãezinha:

Como você me pediu, cá estou eu a escrever-lhe como posso. Se não lhe escrevi mais amiúde foi por causa da situação, pois nem tínhamos com que escrever, roubaram tudo e nem apetecia fazer nada porque andávamos a fugir das granadas, e desmoralizados com isto tudo. Até tínhamos medo de ir tomar banho.

Além de tudo, não tínhamos condições para nada pois nunca parávamos em sítio certo. Agora estamos a dormir e viver em cabanas dos pretos que fugiram , cheias de ratos e mosquitos. Mas pelo menos já dormimos, e eu com um Lusospuma.

Pode acreditar que me encontro bem, felizmente, pois agora acabou a história dos bombardeamentos. Agora só há emboscadas, quando saímos para o mato. Vamos cheios de medo e eu principalmente, pois vou à frente sempre porque, voluntariamente, levo uma metralhadora ligeiro. É uma defesa pessoal e de grupo muito boa. Eu levo 200 balas e a minha equipa 400.

Outro dia eu e o meu grupo comprámos 5 cabritinhos e eu é que os cozinho, Sou elogiado por oficial e soldados que os comem, pois tornei-me AQUELE cozinheiro. Desenrasco-me muito bem. Limparam-me também a máquina fotográfica.

Informem-me também do que se diz acerca disto aí, pois eu gosto de saber. Como já disse, vou outra vez, mais a Companhia, para o Cumeré onde estive quando cheguei à Guiné.

O irmã da Ana [, a namorada,] não está em Catió mas sim em Cufar.

(…) Parece que Guileje fica abandonado. O General Spínola não deu nenhuma ordem acerca de Guileje. A aviação vem aqui todas os dias bombardear à volta do quartel e todos os dias as antiaéreas turras ripostam.

Não vou ficar aqui muito tempo. Ando com uma diarreia maluca. Mas há-de passar. Continuo a sair para o mato.

Vamos para o Cumeré porque a nossa cmpanhia tem muitos mortos e mais feridos, para virem mais soldados completar a Companhia.

Eu devo levar um louvor, e não só mo darão se forem injustos. Pois andei debaixo de fogo a transportar mortos e feridos e a curá-los (não havia enfermeiros) numa BERLIET que eu conduzia e a transportar motores de botes para ser possível fazer as evacuações. Transportei feridos graves (a pé), debaixo de fogo. Mas ESTOU OK!

Seu filho que a ama.



Grande ronco dos paraquedistas, em 23 de Junho de 1973 (2)


Gadamael, 24/6/73

Queridos pais:

Estou óptimo, verdade! E vocês, como têm passado ? Sempre em sobressalto, mas sem razão. Pois isto agora está mais ou menos normal, embora vivamos sem condições de higiene e de habitação.

(…) Ontem, uma das companhias paraquedistas que aqui está, surpreende um grupo de turras, entre os quais cubanos, e pô-los em debandada, apanhando-lhes fardamento, alimentos, armamento, munições, coisas que eles tinham apanhado no Guileje, etc. Dois mortos deles e muitos feridos (2).

Estamos perto de abandonar esta vida, pois devemos ir para Cumeré.

Gosto muito das cartas da mãezinha, nunca deixe de me escrever. Pois dão-me umas horas de vida, enquanto penso nelas. E o meu velhinho ? Então tem-se esquecido do seu filho ? (…).



Vêm aí os periquitos: vai haver bebedeira pela certa


Gadamael, 26/6/73

Now we have peace

Minha querida mãezinha:

É com imensa ternura que, mais uma vez, lhe dedico uns minutos do meu pensamento. Neste momento batem 8 horas numa emissora de London [sic] que ouvimos no rádio.

Então, como têm passado todos aí em casa, enquanto o vosso soldadinho finalmente tem sossego, pois os turras não nos têm chateado, nestes últimos dias ?!

Ontem chegou uma companhia nova aqui, veio substituir a companhia daqui, e há-de vir uma outra, daqui a uns dias, para nos substituir. Vai haver bebedeira, pela certa, e vamos para o Cumeré, para completar a Companhia, substituir mortos e feridos graves. O capitão também foi ferido gravemente, e foi evacuado para a Metrópole. O outro capitão, o daqui, também foi ferido.

Há já alguns dias que vivemos em paz de espírito, e agora, desde há alguns dias fui nomeado instrutor de um novo grupo de milícias (pretos, 40). Ensino-lhes desde armamento a táctica de combate a ginástica. É um passatempo e não saio para o mato, pela primeira vez em oito meses, feitos ontem, dia 25.

Já passou a nuvem negra que tapava o nosso amor, entre mim e a Ana (…).

Parece que há um aumento de 500$00 a partir de Março e que recebemos tudo junto em Agosto. Mande dizer quanto marca o saldo B.B. & Irmão (…).

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 9

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

(2) Vd. post de 19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista)(3)

(...) "13 de Junho de 1973: aliviando a pressão sobre Gadamael

"No dia 13 de Junho, de manhã cedo, preparámo-nos para rumar [de Cacine] a Gadamael, sendo transportados em Zebros do Destacamento de Fuzileiros Especiais Africanos nº 21, dois grupos de combate sendo colocados nas margens do rio nas proximidades de Gadamael para onde seguimos em patrulhamento depois de serem desembarcados os outros dois grupos de combate da 121 que foram deslocados em LDM. No regresso, as embarcações seguiram para Cacine com os paraquedistas da CCP 122, aonde iriam recuperar durante um curto período.

"Chegados ao destacamento [ de Gadamael], verificámos que o estado do mesmo era na verdade aterrador, fruto dos constantes ataques, sendo bem visíveis os buracos dos rebentamentos das granadas do IN. Era evidente que quem lá tinha estado anteriormente, tinha passado por uns maus bocados.

"As nossas duas companhias de paraquedistas que se encontravam aqui estacionadas estavam em permanentes patrulhamentos no exterior do aquartelamento, indo a este simplesmente para remuniciamento e reabastecimento. Desta forma fomos alargando o raio de acção indo até junto à fronteira, para conseguir referenciar os locais de onde o PAIGC fazia os ataques, para dar indicações à nossa Artilharia e Força Aérea. A impossibilidade de referenciar, por ar, estes alvos, levou-nos a ocupar as zonas em que o IN poderia instalar as suas bases do fogo e deste modo a fazê-lo afastar-se. Foi o que, realmente, veio a acontecer.

"A partir desta altura fomos ao encontro dos locais de onde se ouviam os disparos das bocas de fogo e ocupámos essas áreas mesmo junto à fronteira, algumas vezes chegámos mesmo a ultrapassar a linha de fronteira com alguma profundidade - nunca por períodos longos, mas apenas porque havia aí bases de fogo IN. Nunca conseguimos apanhá-los desprevenidos, pois havia sempre forças de infantaria do PAIGC que os alertava com tiros acabando por retardar a nossa progressão.

"No entanto os ataque a Gadamael deixaram de ser tão frequentes, passando as flagelações a a realizarem-se com menos intensidade e sem a precisão até aí evidenciada, além de feitas a partir daí sempre de locais diferentes. Quando as nossas forças aí chegavam, já eles tinham partido para outro local.

"Mesmo já quando as forças do PAIGC não flagelavam o destacamento com tanta frequência, fomos mantendo a actividade de patrulha ao mesmo ritmo, por forma a manter as áreas próximas do braço do rio que dava acesso a Gadamael e que era a nossa única via de ligação para o exterior.

"Consequentemente a eficácia de tiro até aí verificada por parte do IN deixou de existir e a intenção e pressão inicial caiu por terra, as forças do nosso exército voltaram ao destacamento e com os paraquedistas fizeram vários patrulhamentos transmitindo-lhes os nossos conhecimentos e mais confiança nos deslocamentos em plena mata até aí de arrepiar" (...).


"23 de Junho de 1973: atolados num campo minado!


"A 23 de Junho de 1973, recebemos ordens para novo patrulhamento. Manhã cedo arrancámos desta vez saindo pela que era considerada porta de armas virada para o rio, o qual atravessámos. Avançámos para o local indicado pelos nossos superiores, em progressão lenta e com cuidados redobrados.

"Esta zona não era para brincadeiras. Nesse dia éramos acompanhados por 2 militares do exército que eram sapadores e montavam minas no terreno tentando proteger o destacamento da acção do inimigo. Passado algum tempo, recebemos ordens para parar na frente, estávamos num local minado pelos nossos novos companheiros e a sua missão era indicar-nos a localização das minas para podermos contornar o local sem qualquer incidente (...)".
(3) Vd. resenha biográfica do J. Casimiro Carvalho. Não há grande precisão nas datas, por parte do Casimiro Carvalho, no que diz respeito ao período em que esteve em Gadamael. O BCP nº 12, a duas companhias (CCP 122 e CCP 123) é enviado para Gadamael a 2 de Junho, seguindo-se a 13 a CCP 121, do Victor Tavares. Regressa a Bissau a 7 de Julho (as CCP 122 e 123) e a 17 de Julho (a CCP 121). Os páras cosneguiuram travar a ofensiva do PAIGC a partir do momento em que se instalam em Gadamael.
Eis como Carvalho descreve o seu ferimento, que deve ter ocorrido em finais de Maio de 1973 (a situação mais crítica em Gadamel é nos dias 31 de Maio, 1 de Junho e na noite de 1 para 2 de Junho; o cap Quintas, da CCAV 8350, é gravemente ferido na tarde do dia 1 de Junho, sendo ajudado pelo Fur Mil Carvalho, que estava operacional e foi um dos derradeiros defensores do aquartelamento antes da chegada dos páras - CCP 122 e 123 - a 2 de Junho) (4):
(...) "Em Gadamael, fugindo das morteiradas certeiras do 120
"Aqui vão alguns itens, e falo assim para não ser acusado de subverter a verdade dos factos.Em Gadamael não havia casamatas como em Guileje, só valas. Os bombardeamentos eram tão intensos que nem dava para acreditar, quando ouvíamos as saídas, tínhamos 22 ou 23 segundos até as granadas 120 caírem em cima de nós ou , muito raramente, caírem mais além. O pessoal começou a fugir para o rio, e as granadas caíam no rio, o pessoal corria para o parque Auto e as granadas caíam no parque Auto, o pessoal saltava para as valas e as granadas iam cair nas valas.Numa dessas quedas (voos) para a vala - e já lá ! -, senti as nádegas húmidas e, ao pôr lá a mão, esta veio encharcada em sangue... Berrei que estava ferido e fui evacuado num patrulha da Marinha para Cacine (entretanto no barco fui tratado e apaparicado pelos marujos).
"Em Cacine verificaram que era um estilhaço de morteiro 120 do IN, e que não havia necessidade de ser transferido para Bissau, pelo que fui nomeado chefe de limpeza em Cacine (um Ranger, imaginem) .
"Quando começaram a chegar as vítimas desse holocausto, e como ouvia os meus camaradas a embrulhar, deu um clique na minha cabeça e peguei numa Kalash que eu tinha, virei-me para um oficial e disse:- Ou me mandam já para Gadamael onde morrem os meus homens ou eu varro já esta merda!" (...)
(5) Ainda sobre o referido ferimento em combate, o Carvalho continua sem me responder às questões factuais (datas, etc.)... Enfim, a esta distância no tempo e no espaço, não se lhe pode pedir muito mais... Eis o que ele me escreveu, num mail recente:
"Fui ferido em Gadamael, por estilhaço de 120 (?) quando em voo para a vala. Fui evacuado por um patrulha até Cacine, onde me trataram e não viram motivo para ir para Bissau. Fiquei a ser chefe da limpeza em Cacine (um ranger...) até que me passei dos carretos a ouvir os bombardeamentos e a ver os meus camaradas a chegarem feridos aos magotes e resolvi voluntariar-me para regressar a Gadamael (insensatez própria da idade e da valentia de ser especial (Ranger).
"O Fernando é meu irmão mais novo e a Ana era minha namorada e hoje esposa".

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Guiné 63/74 - P1824: O Aeroporto de Jumbembem e os ecologistas 'avant la lettre' (Artur Conceição)

Texto do Artur Conceição, ex-soldado de transmissões da CART 730 (1965/67), actualmente residente na Damaia, Amadora. Esteve em Bissorã, Farim e Jumbembem, ou seja, na actual Região do Oio.




O Aeroporto de Jumbembem
por Artur Conceição

Em 1965/66 o correio na Guiné era lançado a partir de uma avioneta na maioria dos acampamentos espalhados no território. Jumbembem não fugia à regra, e lá para quinta ou sexta-feira vinha a avioneta que largava um ou dois sacos, conforme o volume de correspondência.

Este era sempre um momento de grande alegria mas também de alguma ansiedade, se nos lembrarmos de que os telegramas a dar a notícia da morte de um familiar eram também entregues pela mesma via.

Aconteceu que numa dessas largadas de sacos um deles ficou em cima de uma árvore gigante que se encontrava junto da entrada do aquartelamento. Claro que não ficou lá por muito tempo, dado que apareceram logo exímios trepadores para retirar o saco daquele local.

É a partir deste acontecimento que surge a ideia da construção de uma pista onde fosse possível aterrar uma avioneta de pequeno porte, como era o caso. Poupava-se muito esforço mas por outro lado perdia-se a ida semanal a Farim, para levar o correio a expedir, o que também não agradava a todos.

A localização do novo aeroporto não envolvia qualquer polémica, pelo que, após rigoroso estudo de impacto ambiental, ficou decidido que seria construído a noroeste do aquartelamento no sentido de Farincó.

Foram reunidos os meios materiais, que se reduziam a algumas pás, picaretas e alguns machados e serras, ou seja o material que era utilizado na construção de abrigos, incluindo o corte de algumas palmeiras.

Arrancou-se com todo o entusiasmo, mas as árvores no local eram na sua maioria de grande porte, o que exigia um grande esforço para as arrancar, e a construção da pista lá ia andando um pouco aos soluços, tanto mais que a comissão já ia a mais de meio e o pessoal tinha perdido o entusiasmo inicial. As obras estavam quase paradas...

É nesta fase que surge o episódio do “cabrito escondido com o rabo de fora”.
Nessa altura na Guiné ainda havia manga de vacas só que não eram leiteiras, como certamente se lembram, pelo que o comandante da companhia resolveu comprar uma cabra para dar leite para o pequeno almoço na messe de oficiais. A cabra vinha acompanhada de dois cabritos menores que a chibinha tinha também de alimentar. Alguém muito atento e entendido na criação de cabritos, e amigo dos animais, achou que para a pobre bicha, era um esforço demasiado, alimentar dois cabritos e cinco oficiais...

Então resolveu aliviá-la de um deles. Detectado que foi o desaparecimento do animal foram iniciadas as buscas para o localizar, tendo sido encontrado após algumas horas de busca dentro de um caixote, daqueles onde eram guardadas as botas e outros apetrechos, isto porque o raptor tinha deixado o animal com o rabo de fora.

O raptor e seus cúmplices foram penitenciados a arrancar vinte árvores na pista em construção. Saíam de manhã, vinham almoçar ao meio dia e voltavam da parte da tarde sempre acompanhados de uns baralhos de cartas e alguns alimentos e bebidas.

Para além de gostarem de cabrito, também eram amigos do ambiente, pelo que volvidos quinze dias as árvores continuavam de pé. Para que a penitência não fosse alterada ou agravada foi-lhes dado um prazo e as árvores lá tombaram. Foram as últimas !!...

Depois de tanto esforço nunca tivemos o prazer de ver uma aeronave mesmo pequena a aterrar no Aeroporto de Jumbembem.

Depois da companhia 730, devem ter passado por Jumbembem mais umas cinco ou seis. Tanto quanto sei nenhuma delas concluiu a obra, mas que a 730 começou isso é verdade !!!!.....

Artur Conceição

segunda-feira, 14 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho, no topo de uma Fox, viatura blindada do Esquadrão de Reconhecimento Fox. Estas unidades de cavalaria também possuíam viaturas White (ver foto a seguir) (1).

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > Viatura blindada White, de matrícula MG-34-69, pertencente ao Pelotão de Reconhecimento Fox, estacionado em Guileje. Documento que faz parte do álbum fotográfico do Casimiro Carvalho, sem data nem legenda. Segundo o Casimiro Carvalho, o pelotão chamava-se Os Pipas (LG).



Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): 1ª quinzena de Maio de 1973: Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira (2)

Cartas enviadas pelo José Casmiro Carvalho à família. A selecção, a revisão e a fixação do texto são da responsabilidade do editor do blogue (LG) .


Cacine, 6/5/3


Mãezinha. (…) Chamaram-me no dia 4 e disseram-me: Você vai para Cacine receber os mantimentos para toda a época das chuvas, durante um mês. E cá estou…

Tem praia onde tomo banho todo os dias. Come-se assim: Jantar: arroz de frango (aquele escuro, com sangue), mas com frango; meia pera de conserva, 1 banana, vinho à discrição com gelo; café. Almoço: pato com batatas às rodelas, uma espécie de Espanhola, bastante pato, canja (uma delícia), 2 babanas e café. Como vê !!!?

PS – Junto foto contado o patacão.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho contando o patacão.... Foto enviada à mãe.


Cacine, 6/5/73

Querido pai: A sorte desta vez escolheu-me para ser protegido, pois mandaram-se para Cacine, terra de praia e sol, cocos, mangos, bananas, nada que fazer, nada de patrulhas nem trabalho… Só quando vêm batelões de Bissau é que tenho que conferir tudo (ao todo, durante este mês são 120 toneladas de reabastecimentos) e depois acompanhar de batelão até Gadamael (a 18 km de Guiledje) e voltar para Cacine, à espera de mais.

Sob o meu comando, estão um cabo e um soldado para ajudar. Em dois dias já estou mornaço.

(…) Aqui vai [uma foto de ] um dos carros de combate de Guileje.

(…) Um abraço sincero do seu Operações Especiais que de especial não tem nada. With Love.



Os aviões voltarão a voar, promete o Spínola


Cacine, 13/5/73

Mãezinha: (…) Fui até Gadamael de batelão (isto é que é viajar de barco!) e passei lá uma noite, noite em que Guileje foi atacada.. Também choveu torrencialmente e eu cá fora só de calções a apanhá-la e os soldados, com sabão, debaixo das caleiras a tomar banho” (…)

(…) Todos os dias, praia e banho. Não é nada mau, não acha ? Estou mesmo preto. Ando a sofrer por causa da ‘lica’: são centenas de borbulhinhas que com o suor picam como mil agulhas” (…).


Cacine, 13/5/73

Bijou: (…) Tenho andado aqui de batelão, comido cocos e bananas nem se fala. Mangos (fruta saborosa) há qui aos tombos.

Come-se bem aqui, e continua (hoje bifes de cebolada). Guileje foi atacado outra vez, mas eu não estava lá.

Parece que vai haver aviões outra vez no mato. Disse o Spínola anteontem em Guileje. Um beijo (…).



Carros de combate russos na fronteira

Cacine, 15/5/73


Paizinho: (…) A guerra aqui está cada vez pior. O Hospital de Bissau (3) está repleto (infelizmente). Só em Guidaje ,[ no norte], 40 feridos, alguns dos quais com membros amputados (já a cheirar mal devido a terem esperado 2 ou 3 dias por coluna para serem evacuados). Aviões já não vão lá.

No Cantanhez (todos estes locais que menciono são no sul, onde estou), 13 feridos numa emboscada. Guileje foi atacada outra vez e passados dois dias os melhores homens que tínhamos lá (dois furriéis milicianos) morreram, em consequência de uma mina anticarro que iam levantar. Andamos tods transtornados.

A 18 km de Guileje fica Gadamael e foram para lá 4 canhões sem recuo e 35 homens para os guarnecer. Levaram também granadas anti-tanque, pois foram vistos carros de combate na fronteira da República [da Guiné-Conacri].

O meu serviço aqui é receber os géneros e artigos de cantina que vão para Guileje, para o isolamento, pois com as chuvas ficamos como que numa ilha e não podemos sair de lá, só de avião ou barcos de borracha. Aviões não há. Portanto só de barco (o que é muito perigoso)…

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Notas de L.G.:

(1) Vd. Não sei qual era o nº do Esquadrão. No meu tempo (1969/71), havia um Esquadrão de Reconhecimento em Bafátá, a que pertenceu o nosso camarada Manuel Mata. Vd. posts:

2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (1)

3 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (2)

25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (3)

2 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXI: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Manuel Mata) (4): Elevação de Bafatá a Cidade

(2) Vd. posts anteriores desta série:

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 91

3 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

(3) Vd. post de 7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O espaldão do morteiro à guarda do Fur Mil Op Esp José Casimiro Carvalho.



Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O Furriel Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho, posando para a fotografia com uma das mais temíveis armas do PAIGC: um RPG, lança-granadas-foguete.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > 1973 > O heliporto... Após a queda das primeiras aeronaves, abtidas pelos Strella, de finais de Março a meados de Junho de 1973 deixa de ser possível, à FAP;: dar apoio aéreo ou voar no sul da Guiné. O correio e os víveres chegam com dificuldade, em colunas que vêm de Gadamael, sendo esta por sua vez abastecida de barco a partir de Cacine.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > 1973 > Março/abril de 1973 > Um dos passatempos favoritos do Casimiro Carvalho era a caça... aos pardais.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > O José Casimiro Carvalho, armado até aos dentes, numa saída para o mato, empunhando a um dos nossos lança-granadas-foguete, de calibre 3,7.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) > Março de 1973 > A inauguração do bar!... O acontecimento do mês, depois do ataque ao aquartelamento e à queda do primeiro Fiat G.91 em 25 de Março... Escreveu o nosso camarada a uma bajuda [creio que irmã ou cunhada], em carta de 21/3/73: "Mando-te mais uma foto da inauguração do nosso bar. O careca é o major, o furriel que está à minha direita é o enfermeiro, e vai aí a casa, este mês, recebam-no bem".


Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

Não há correio nem evacuações no sul da Guiné, o que começa a afectar profundamente o moral das NT, acontonadas no perímetro dos aquartelamentos. J. Casimiro Carvalho - nas poucas cartas que escreve, no mês de Abril de 1973, ao pai, à mãe, ao irmão - começa a dar sinais do isolamento e do stresse em que se vive, em Guileje... É incapaz, no entanto, de prever a tragédia que se avizinha, a batalha de Guileje (17 a 22 de Maio de 1973) e que levará à decisão de abandonar, em 22 de Maio de 1973, o aquartelamento e a tabanca de Guileje.

Nessa altura, o Casimiro estava em Cacine e irá escrever aos seus pais a carta que começa assim (e que reproduziremos na íntregra em próximo post): "Cacine, 22/5/73. Queridos pais: Vou contar-lhes uma coisa difícil de acreditar, como vão ter oportunidade de ler: Guileje foi abandonada" (...).

A selecção, a revisão e a fixação do texto são da responsabilidade do editor do blogue (LG) .


Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento


Guileje, 6/4/73
(…) Nos últimos dias o meu grupo tem saído quase interruptamente para a mata e, quando devia descansar, está de serviço. Andamios extenuados. Chiça!

Guileje, 12/74/73
(…) A vontade de escrever não é muita, mas sinto necessidade disso. Hoje, ou melhor, ontem o meu grupo foi dar fogo de treino e ouviu-se dois rebentamentos. Pensou-se logo: rebentaram armadilhas (das muitas que rodeiam o quartel).

Hoje saiu a milícia nver o que tinha sido e estva lá um turra com o pé cortado pela armadilha. Tinha uma arma mauser semi-automática. Outro dia, não sei se disse, apresentou-se aqui um outro turra, com a pila cortada e um testículo… Foi para Bissau.

Como os aviões e avionetas andam a cair devido a uma arma nova, um míssil terra-ar, desconhecido para nós, quase não há transportes para o mato, e portanto o correio atrasa muito (…).

Guileje, 17/4/73

(…) Devem estar admirados com a falta de correio mas a culpa não é minha mas sim é devida à falta de transporte aéreo para as zonas perigosas. Tal é o nosso caso. Os turras têm uma arma que deita a aviação abaixo e agora não há correio, só há em caso de evacuções ou colunas. Portanto, não se admirem.

Houve aqui batuque, é emocionante.

Matei uma espécie de onça, a pele é maravilhosa. Hoje matei uma águia a 350 metros.

Estou óptimo, mas fartíssimo de estar aqui isolado do resto do mundo sem ver coisas novas (…).

Guileje, 22/4/73

(…) Hoje foi um dia de fartura cá em Guileje, recebi nada mais do que 10 cartas. (…) Recebi as cacholas, até dá para gozar. Recebi o salpicão, estava uma delícia (….).

Desde o princípio do mês que não recebia notícias vossas. Não há aviões, nem para feridos que haja. Não há, portanto, evacuações para estas zonas. Isto está mau. Mas não se preocupe (…)..

Guileje, 27/4/73

(…) No último dia 25, quando fizemos 6 meses de Guiné, e um mês que fomos atacados, voltámos a ser flagelados com canhões sem recuo, mas sem consequências, é claro. As granadas caem à volta do quartel, eles não acertam, e foi de noite (…).

Aqui tudo decorre normalmente, com alguns problemas de isolamento e é só.

Guileje, 30/4/73

(…) Esta é mais uma das cartas que eu escrevi e que vai ficar junto com as outras, que vão seguir em coluna auto até Gadamael, donde seguem de batelão até Bissau. Todas juntas, claro. Não se admire, pois a culpa é de não haver aviação.

Estamos num total isolamento, mas vai-se aguentando, e saímos muito pouco do quartel, pois não havendo evacuações não pode haver feridos.

Hoje choveu em abundância (o pessoal saiu cá fora), pela primeira vez, no Guileje. Foi uma festa, mas é só uma pequena amostra do que há-de chover. Junto envio algumas fotos para o paizinho. A da bajuda com o jubi às costas é para si, OK?

Amanhã vou finalmente ter notícias da Metrópole, pois haverá uma coluna (…).

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Abril de 2007

Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 91