1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 7 de Abril de 2014:
Estava em Buba há pouco tempo quando recebi um aerograma do Zé Beiroto, o filho mais velho da Raquel cigana, onde me comunicava que
tal como eu se encontrava em comissão na Guiné e pedia se eu lhe
poderia arranjar um bom lugar para passar melhor o tempo por lá.
Respondi-lhe que como amigo dele, desejava-lhe uma boa estadia mas
que nada
poderia fazer para a melhorar pois eu pouco mandava e não tinha amigos
influentes.
O Zé, mais velho 3 anos do que eu, teria ido como refratário para a
tropa, situação muito comum aos da sua etnia.
Não sabia ler nem
escrever, portanto o aerograma terá sido escrito por um camarada a seu
pedido.
Não sei como terá conseguido o meu SPM. Na altura isso não me
preocupou muito.
Hoje penso que terá sido através da mãe dele, a Raquel cigana.
A
Raquel era uma mulher robusta e larga, que pedinchava pelas portas
mais do que todas as ciganas.
Tanto entre adultos como entre jovens ela despertava pouca simpatia.
A
Raquel parecia daquelas pessoas que não se conformando com a sua má
sorte têm inveja e quase ódio às pessoas melhor instaladas na vida.
Fosse porque deixasse transparecer isso ou por tanto a verem a pedir
de porta em porta, a garotada mandava-lhe ditos pouco agradáveis a
uma distância conveniente para não serem agredidos. Este era o mais conhecido: "
Quem me dera uma canhona morta
para lhe tirar a pele
comia-lhe a chicha toda
e dava-lhe os ossos à Raquel".
Ia muitas vezes pedir à minha casa uma esmolinha, por amor de Deus.
Recordo-me de pedir muitas vezes azeite para temperar o fiolho.
A minha mãe, contra a vontade de alguns de casa, dava-lhe sempre
alguma coisa. Tal uma como a outra tinham muitos filhos e isso devia
mexer com a sua bondade e o seu instinto maternal.
Vista parcial de Brunhoso
Nesse tempo Brunhoso era uma aldeia densamente povoada com muitos
habitantes por casas de habitação. A acrescer a isso havia ainda
muitos ciganos que não tendo residência fixa, passavam a maior parte do
ano na aldeia em instalações improvisadas. Essas instalações eram
alguns palheiros ou curraladas no inverno, que os lavradores lhes
cediam. Já no verão preferiam instalar-se ao ar livre, no Pereiro, um
terreno baldio perto do povo, com muitos olmos debaixo dos quais se
abrigavam à noite e de dia nas horas de mais calor.
O olmo grande,
onde a cegonha tinha o ninho, talvez o maior olmo da terra, dava
abrigo a várias famílias.
Nesse tempo os ciganos pelo seu modo de vida preguiçoso, a sua
pedinchice e alguns roubos sobretudo nas hortas, eram
expulsos, por vezes mesmo escorraçados da maior parte das aldeias. Em
Brunhoso eles eram aceites e por isso muitos consideravam-na como sua.
Havia outras aldeias, raras, onde eles se instalavam provisoriamente
pois como povo errante não gostavam de estar sempre no mesmo sitio.
Há uma tendência entre muitos homens de abusarem do seu sentido
critico para julgar os seus semelhantes. Entre os meus conterrâneos
esse sentido critico devia estar muito esbatido ou então era o seu
sentido de humanidade que era muito grande para aceitarem não só os
seus iguais mas também os "outros", os que tinham hábitos e tradições
tão diferentes que por vezes chocavam com as suas.
O povo de Brunhoso embora ordeiro e trabalhador devia sentir
uma certa atração pela liberdade e despreocupação com que aquele povo
de maltrapilhos vagabundeava pelo mundo vivendo ao ritmo da
natureza mais selvagem, segundo o aconchego que as estações do ano
podiam dar, de preferência mais perto dela e das estrelas, colhendo as
plantas e frutos selvagens que a natureza dava tais como o fiolho,
comendo os animais. vacas, ovelhas, porcos etc. que morriam de doença
aos aldeões (não ciganos), procurando também a ajuda da população
mais caridosa.
Esse tempo de muito trabalho, muita fome, muita gente, muitas
festas, feiras e ciganadas em trânsito, era também o tempo da jovem
mulher mais esbelta e donairosa, muitas léguas em redor, essa cigana,
a mais bela da caravana, que só a evocação do seu nome alimentava
sonhos eróticos nos lavradores do nordeste transmontano e sonhos de
pesadelo nas suas mulheres.
Dela dizia-se que já teria provocado a falência de várias casas de
lavradores. Conheci, fui muito amigo dum camarada nosso, soldado
noutro TO que depois de ter regressado dessa África longínqua se
gabava de ter gozado dos seus favores.
Acho que depois 28 meses
de sacrifício, de canseiras e de sustos merecia essa recompensa.
Ciganos
Os
marinheiros de Vasco da Gama também tiveram como doce recompensa dessa
longa e tormentosa viagem à Índia as ninfas da Ilha dos Amores,
tal como nos conta Luís de Camões nos Lusíadas:
Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo
"Os Lusíadas"
Canto nono
Meu grande amigo, a vida é tão curta. como sabemos, cheia de
sacrifícios e tristezas é bom que também proporcione por vezes algum
prazer.
Seria mais velha que eu quatro ou seis anos. Vi-a algumas vezes e
admirei-a pelo seu porte altivo, elegância e beleza .
Eu e o Zé sempre fomos amigos talvez tenhamos herdado essa amizade das
nossas mães.
Contrariamente aos da sua etnia, mostrava ser bastante
ambicioso, trabalhando um pouco mais do que os outros e sendo também
mais activo noutras actividades noturnas ou clandestinas. Casou com
uma aldeã, contra a tradição do seu povo e penso que ao fazer o
registo do casamento foi "apanhado" para cumprir o serviço militar.
Os
casamentos entre ciganos eram muito festejados mas não tinham
cerimonia civil nem religiosa. Nesse tempo, segundo constava, entre os
aldeões, eram realizados pelo método do chapéu ao ar. Se o chapéu
caísse com a copa para cima, os noivos ficavam casados, se caísse com
copa para baixo ficavam também. Na realidade não havia chapéu, nem
cerimónia, havia somente festa maior ou menor, conforme a comida
disponível.
Já perto do final da minha comissão e estando já eu na CART 2732 em
Mansabá, apareceu-me lá o Zé da Raquel que estava de passagem, para me
cumprimentar. Ainda hoje não sei muito bem como conseguiu
oportunidade para estar comigo e como sabia sempre onde eu me
encontrava. Enfim instinto de andarilho e cigano.
De 1969 a 1973 estivemos na Guiné seis naturais de Brunhoso em
comissão. Que eu saiba e recorde não houve outros, nem antes nem
depois. O José Beiroto, ou Zé da Raquel, soldado; o Joaquim Fermento, furriel da CCAÇ 3327, em Bachile e Teixeira Pinto; o Francisco Magalhães, meu primo, alferes da mesma companhia; eu, Francisco Magalhães Baptista para usar também o apelido Magalhães
que muito prezo e pelo qual sou primo do outro Francisco já que
tínhamos o mesmo avô, também Francisco e logicamente Magalhães; o António Francisco Beiroto, soldado e o José dos Santos Carvalho, soldado.
Com o meu primo e com o Joaquim Fermento cruzei-me uma vez em Bissau,
talvez quando eles chegaram à Guiné e eu ia para a CART 2732 em
Mansabá, depois da CCAÇ 2616 ter regressado em fim de comissão.
O António e o José eram primos do José Beiroto, filhos do António
Francisco Gordo, mais conhecido pelo Mudo Cigano, que aos baldões pela
terra, morreu recentemente com 98 anos. A mãe chamava-se Isaura dos
Anjos Beiroto. O pai embora cigano era muito trabalhador. O casal
tinha muitas bocas para alimentar, criaram 13 filhos, e ele sendo mudo
não podia dedicar-se ao negócio dos ciganos de compra e venda de
burros, cavalos e mulas. Nesse negócio eles eram peritos, conseguindo
enganar frequentemente os compradores, vendendo burro velho por burro
novo.
A mãe deles era uma mulher humilde e resignada que eu recordo de
andar a pedir esmolas pelas portas, quase sempre grávida. O Zé Beiroto morreu de doença há cerca de 30 anos. Paz à sua alma!
Com o desenvolvimento da Espanha no pós-franquismo, os ciganos
emigraram a maior parte para lá. Os olmos do Pereiro, e de toda a
aldeia, morreram através duma doença que os ventos trouxeram da
Europa alguns anos após a sua debandada. Quando morrem os ciganos,
muitos familiares trazem os corpos para Portugal para serem sepultados
no cemitério de
Brunhoso. É a melhor homenagem que podem prestar a essa terra de mulheres e
homens ilustres, pobres e ricos que deixaram essa grande herança de
solidariedade e tolerância aos seus filhos.
P.S.
Se algum camarada conheceu o José Beiroto ou os primos na Guiné,
gostaria que me desse informações sobre as suas vidas por lá.
Um grande abraço
Francisco Baptista
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Nota do editor
Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2014 >
Guiné 63/74 - P12945: Estórias avulsas (77): A história do dia seguinte! (João Alberto Coelho)