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segunda-feira, 10 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6363: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (18): Dia final

Publicamos hoje a 18.ª Estória de Mansambo, série do nosso camarada Torcato Mendonça*, ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 18

Dia Final


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O obús  10,5 mostra a alma

  Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Coisas pesadas,  o obús 10,5 (cm) e o morteiro 81 (mm)







Há datas que nos ficam bem marcadas na memória.

O 15 de Maio de 69 é uma delas. Recordo-a como o dia final, sem qualquer dramatismo, pelo contrário, pois fazia parte do “jogo”. Foi, no entanto, a ocasião que talvez tenha pensado: é desta… recordemos então.

Manhã cedo, com o sol lançando preguiçosamente os seus primeiros raios, começa a azáfama normal da preparação de mais uma coluna entre Mansambo e Bambadinca. A rotina habitual, o roncar das viaturas, a vistoria às armas e outro material bélico, o juntar da papelada preparada na véspera.

Breve “formatura”, olhar rápido, de cada um pelo que lhe estava atribuído, palavras curtas:
-Pronto… está a andar!

Coluna em marcha apeada, picadores à frente com a tropa a seguir entre as viaturas. A picada, nossa velha conhecida, continuava a merecer toda a atenção, como se fosse a primeira vez.

Apeados até Samba Juli, já perto do destino. Suor poupa sangue, as rotinas devem provocar melhores automatismos e não facilidades. Mais devagar ou mais rápido, ao ritmo dos picadores a tentarem detectar minas ou, no sinal de alguém,  a sentir algo vindo da mata.

Já a frente da coluna ia para lá da subida do pontão do rio Almami – zona habitual das emboscadas – alguém, lá atrás, pede para parar. Uma viatura tinha “engasgado” e parado.

Não procuro o Rádio e prefiro gritar a saber o que se passava. Imprudência ou, melhor, estupidez. De pronto recebo a resposta. O IN, com emboscada montada, sentiu quem eu era e abriu rápido a emboscada… parecia ter recebido a ordem de fogo.

Sai a granada de RPG 2 ou 7 e rebenta a meio da viagem. Sorte, treino ou velhice, contrariamente ao habitual, aterro junto a grossa árvore e sinto esta a receber a rajada. Quase simultaneamente, na copa acertam com uma granada de RPG, cai-me algo em cima a aleijar-me o ombro esquerdo. Que penso eu naquelas fracções de segundo… granada e… estou fo… isso. Durou pouco, mas, nessa altura, deve ter parecido uma eternidade. Passou rápido, afastei o ramo que me aleijara e sai dali. Começou a minha resposta, natural, normal, até porque estava ali para “fazer aquele trabalho”. Ligação para Mansambo a pedir apoio dos obuses 10,5; bastava dizer Quebeque (o Cmdt da Artilharia era o Alf Queiroz) e um número. Isto, porque tínhamos a estrada, até ao alcance dos obuses, marcada com números. Portanto as granadas iam, ou deviam ir, para lá.

Segundos depois, aí estavam eles e o 81 a trabalhar. Lindo! Sempre gostei do “assobio” dos obuses.

O resto era connosco e a reacção foi a habitual. Falhou o morteiro 60. Eu bem gritava:
- Manel, o morteiro ! - e os Furriéis Rei ou o Sérgio mais berravam.

Procurei e que vejo eu? O Cabo Campos agarrado ao joelho e o Manel deitado ao lado do morteiro. Não tinham munições e, ao primeiro disparo, segundo a versão deles, resvalou e atingiu o Cabo.

Resolveu-se a situação, funcionou o morteiro e, ainda hoje me interrogo se foi acidente ou, mesmo em homens com ano e meio de comissão e tendo estado tantas vezes debaixo de fogo, naquele dia borregaram… penso que as duas hipóteses podem estar correctas. Não esquecer que o stress era mais forte sobre os que não vinham de férias. Meses e meses naquela pressão louca, corrói, desgasta… e marca… marca para sempre… os jovens a quem não foi dado o direito de ter juventude.

E se fosse comigo? Ou com outro graduado? Vidas e situações a merecerem aprofundamento. Todos são valentes e medrosos… a ocasião é que determina. Eu antes não tinha pensado:
- Vou lerpar… parvo!

Não tivemos feridos, tudo correu bem. Reacções naturais e conhecidas por todos os que sofreram uma emboscada. No fim, já com a malta vinda de Mansambo em nosso socorro, olhei e vi o nosso Primeiro-sargento que tinha apanhado boleia connosco,  pois ia de férias. Ainda estava, com as habituais faces rosadas, brancas… coisas de Profissionais, como ele, de quando em vez dizia:
- Nós (eles) somos profissionais… vocês vêm e vão…

Pois, mas enquanto estávamos fazíamos a guerra. Nem todos, cuidado. Havia excelentes profissionais a fazer a guerra, na nossa companhia ou fora dela. Além disso, o nosso Primeiro era competentíssimo no seu trabalho de secretaria e de ajuda a quem dela necessitasse, eu, do início até ao fim da comissão mantive com ele uma relação especial… entre o detestar e o aguentar. Nunca esqueci um Furriel de Transmissões e…irrelevante agora.

Rescaldo da emboscada para a malta vinda de Mansambo, coluna em ordem de marcha e rumo a Bambadinca. O Camarada Payne, médico do Batalhão, viu o ombro, palmada nas costas depois de ordem ao enfermeiro e vamos à vida. Ainda hoje, de quando em vez dói… mudança de tempo… é do tempo…

Mas aquelas fracções de segundo, estupidamente entendidas, mereceram posterior dose, dupla ou tripla, de uísque no bar. Era, muitas vezes a melhor maneira de regressar a Mansambo… meia garrafa e a picada ficava autoestrada!

Como ouviste,  recordo assim, em traços largos, muito largos mesmo, alguns acontecimentos passados.

Tenho receio de me repetir. Por isso paramos por hoje e na próxima, espero que breve, continuarei e, por estranho que te pareça. Podemos voltar a Fá, Fá Mandinga, Fá de Cima. Bom aquartelamento aquele.
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Nota de CV:

Vd. último poste de 9 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6354: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (17): Uma ida ao Poindom

domingo, 9 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6354: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (17): Uma ida ao Poindom

17.ª Estória de Mansambo, série do nosso camarada Torcato Mendonça*, ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).


ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 17

POINDOM (ou Poidão)


Seco, Mandinga, picador do Xime

Alf Mil Torcato Mendonça

Boa plantação


Tínhamos cerca de quatro horas de progressão. Saíramos do Xime noite cerrada, a chuva a cair fraca abafando os ruídos, arrefecendo ainda mais o pessoal da Companhia. Demos uma volta em direcção quase oposta ao nosso destino. Precaução certamente desnecessária pois, a essa hora, o IN já teria sido avisado.

Caminhávamos lentamente na noite escura como breu, agarrando a arma do camarada que nos precedia. Finalmente, uma breve paragem para confirmar a nossa localização, verificar o equipamento, acondicionar melhor o material e descansar um pouco.

Tudo verificado, confirmadas as informações dos guias, breve olhar para a bússola e a ordem foi passada rapidamente: - está a andar. O cheiro a capim e a terra molhada, o som da mata, a chuva a cair leve, felizmente, por pouco tempo mais. Menos desconforto, mas mais atenção aos sons da mata.

Alto, vamos parar! Descansa, faz-se nova verificação e vamos parar mais tempo. O local, onde devíamos ficar antes do objectivo, estava perto. Consultada a bússola, a carta e vistas as horas, tudo parecia estar certo. Confirma-se com o guia e com o Seco, picador do Xime. Era melhor esperar.

Volta a chuva, talvez um pouco mais forte. Os sentidos estão mais despertos aos ruídos. Mesmo assim o pensamento, ou um pouco dele, consegue vaguear para longe. Um leve som, a atenção e a tensão aumenta na busca de entender o que se passa. De pronto fica esclarecido: quase ao lado um soldado, de joelhos, para minimizar o barulho, “vertia águas” em alívio da bexiga e dos nervos. Descontrair é preciso pois a espera continuaria até clarear um pouco. Sentíamos o despertar de toda aquela fauna. Era o despertar da mata. Milhentos seres indiferentes a nós os predadores que, naquele dia, eram intrusos à vida, à paz e à harmonia de todo aquele sistema.

Nada de os perturbar pois o ruído, principalmente as aves, eram preciosos indicadores de “tropa à vista” ou “turra à vista”… e certamente protestavam com a intrusão… eram o rádio ou telégrafo dos contentores.

Esperamos pouco, de pronto veio a ordem: - sigam e aproximem-se mais. Andamos pouco e paramos.

Passa-se a mão pelo material. Certamente os outros fazem o mesmo. Conferência com os furriéis e ultimam-se os preparativos. Éramos nós, o nosso Grupo, que íamos saltar ou assaltar o objectivo. Esperamos. Todos sabiam o que iriam fazer, se tudo desse certo, funcionavam só os gestos combinados e treinados. São momentos de tensão e é preciso descontrair. Olha-se o relógio, no espaço de quinze minutos, pela terceira ou quarta vez. O aviso: - cuidado, a artilharia vai começar daqui a pouco.

De repente, a saída, o silvo e o rebentamento da granada quase em simultâneo. Uma, duas e deixa-se de contar… avançamos lentamente, a alvorada a clarear, os músculos a apertarem, as armas prontas. Devagar, devagar, a tensão aumenta e diminui. Olhamo-nos. Sabemos o que fazer. A artilharia já tinha parado, aceleramos o passo, rápido, rápido e surge o objectivo… abre-se em leque… e nem se pensa, funciona o treino…saltam… entram… nada se mexe… continuam… atravessam e param à espera dos outros.

Os tipos foram-se. De repente barulho ali ao lado, correrias, gritos e dois ou três tiros. Apanha, apanha… perseguem o inimigo e param à entrada da bolanha. Duas morteiradas para provocar reacção e não obtêm resposta. Nada! Contentam-se com o chapéu cubano com fotos, em recordação, talvez, da mulher e filhos. Voltam. Boné sem cabeça foi o espólio. A artilharia tinha destruído, não o objectivo mas, próximo deste, uma pequena plantação de bananas. Tanto trabalho para um boné e bananas…

Os outros já tinham revistado o local. Além de papeis nada mais, de interesse tinham encontrado. Por isso, só lhes restava puxar fogo às casas de mato.

Saíram rapidamente e iniciaram o regresso por um percurso diferente.

Param passada uma ou duas horas, descansam, aliviam tensões, sorriem uns para os outros, ajeitam o vestuário e material. Abrem os bornais e cantis para um pequeno-almoço leve.

A atenção mantém-se. O inimigo sabe donde vieram e para onde regressam.

Pouco depois continuam, volteiam e, passado algum tempo tomam, em definitivo, a direcção do Xime. Passam a zona dos cajueiros, redobram a atenção e continuam.

Já no Xime ouvem o inimigo a bater a zona. É com eles e compreende-se a sua raiva. Mas não têm razão para isso: - o maior prejuízo foi o bananal…

Descontraem. Recebem a sempre óptima hospitalidade dos Camaradas do Xime (Cart 1746) e preparam a saída. Depois de passar a Ponta Coli e Amedalai, é sempre a andar rápido até Bambadinca. Depois uns para Fá outros para Mansambo.

Era a segunda ida ao Poindom. Talvez ainda regressassem lá outras tantas ou mais vezes. A última foi a cerca de dois ou três meses do fim da comissão. O guia era o Malan Mané. Nem lá se chegou… Operação Pato Rufia a 24 de Agosto. O nome está bem escolhido… patos nós… rufia o Comandante que nos acompanhou, mas de língua!

Caímos nalgumas emboscadas montadas, por vezes bem e com o auxilio dos “internacionalistas” Cubanos.

Recordo uma porque nela cometi um erro e, por isso ia pagando caro. É uma data que recordo bem. Anda sempre comigo uma bala retirada da árvore que pagou por mim. Mandei banhá-la em prata e fazer um suporte com argola. Tenho mais amuletos, chamemos-lhe assim, desse tempo. Sei que pensas ser loucura. Aceito. Mas se me foram ofertados para protecção porque não os usar em singela homenagem àqueles meus amigos?

A emboscada então.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6346: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (16): Milícias

sábado, 8 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6346: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (16): Milícias

Mais uma Estória de Mansambo, série do nosso camarada Torcato Mendonça*, ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).

ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 16

MILÍCIAS


Torcato Mendonça acompanhado de Milícias

Um corte de cabelo com acabmento à navalha

Torcato Mendonça e o Sargento Milícia Mádia Baldé, um companheiro de jornada

O mandinga Seco, picador do Xime

Sem entrar em análises mas, num País devastado pela guerra, com agricultura praticamente sem expressão, as pescas reduzidas ao mínimo, com a economia paralisada, excepto a que era dirigida à “tropa” e esta na mão de comerciantes especiais, onde poderia a juventude, principalmente a que vivia fora de Bissau e de duas ou três pequenas cidades, encontrar meios de subsistência? O que fazer para ganhar algum dinheiro? Restava ajudar ou servir a tropa a troco de ordenados mínimos, ou ir para o PAIGC.

Claro que podem ser apresentadas outras razões. Podem. Mas paremos e relatemos só, o que eram as Milícias, os “picadores” e outros auxiliares das NT.

Mesmo antes da chegada do General Spínola à Guiné havia, Companhias, Pelotões de Caçadores Nativos e de Milícias. Focamos este aspecto porque, por vezes, parece só terem havido guineenses nas NT a partir da sua vinda. As ditas “tropas nativas” existiam à séculos. Era parte integrante da colonização.

Depois da sua chegada, meados de 68, houve, efectivamente, um incremento da participação de guineenses na guerra. Foram dadas melhores condições devido à insuficiência de militares metropolitanos e à politica – por uma Guiné melhor – criaram-se mais Companhias e Pelotões de africanos, enquadrados por metropolitanos. Posteriormente, só com africanos, apareceram os Comandos Africanos e os Fuzileiros, segundo creio.

As milícias, reunidas em pelotões, não tendo militares metropolitanos, só africanos e, geralmente, cada pelotão tinha só homens da mesma etnia. Continuaram no seu trabalho habitual: defesa das tabancas e ajudar a tropa no mato em operações, picagem de estradas e trilhos, guias e outras.

Os grupos de milícias eram geralmente da mesma etnia, como já dissemos. Nas operações os carregadores pertenciam também do mesmo grupo étnico. Curiosamente na operação Lança Afiada tivemos, com grande desgosto e protesto das milícias fulas, carregadores balantas e com óptimos resultados. Sempre a fazer vida aparte mas, devido à sua robustez, conhecimento do mato e mesmo, porque não, por auxiliarem o IN, foram importantes no transporte de material e não só. No final foram recompensados. Sobre a sua ajuda ou não ao IN constatamos uma tomada de posição que nos levou a acreditar nisso. Logo ao segundo dia caímos em forte emboscada. O meu Grupo teve quatro feridos, alguns com alguma gravidade. Pois os balantas rapidamente se dirigiram para junto das diversas armas pesadas, conforme a carga que transportavam. Ajudavam ainda na localização do IN. Ninguém lhes disse ou pediu nada. Ora como ninguém nasce ensinado… depreende-se que… faziam aquele “trabalho”, não para nós mas para outros.

Dependente de Mansambo, estava na Tabanca de Moricanhe o Pel Mil 145. Armados com G3, tinham ainda algumas Mauser, além de granadas e posteriormente dilagramas. Saíram de Moricanhe para Amedalai (Xime), quando da ofensiva do IN em Junho/Julho de 1969.

Foram preciosos auxiliares das NT. Aprendi muito com estes homens, pois tinham, além do conhecimento do mato, a experiência de alguns anos de guerra. Sempre da parte deles senti amizade e colaboração. Confiava neles. Tanto assim que o meu bornal era transportado, não por um milícia do 145, mas um “picador” de Mansambo, podendo, se fosse caso disso ser transportado por um da milícia. O bornal levava dilagramas e respectivos carregadores (a introdução de uma bala real era o meu fim), material, simples, de sapador, mapas, bússola e diversos apetrechos. Só gente de confiança lhe tocava. Claro que o Serra, o eterno guarda-costas, estava sempre presente. Mas eram, picadores ou milícias que o transportava. Só recordar dois casos, que atestam a dedicação destes homens. A saudade que ainda hoje sinto aumenta a revolta, quando tive conhecimento do que aconteceu a alguns. A diferença entre picadores e milícias era mínima. O fuzilamento cobarde de alguns deve ter sido igual…

Na operação Lança Afiada fui evacuado. Nas duas ou três horas antes da partida fui auxiliado pelos homens do 145. Claro que tinha os homens do meu grupo mas eles fizeram questão de me ajudar. Em Galomaro (COP 7), fui destacado para Nova Camsamba. Passados dias tive um forte ataque de paludismo e o Furriel Rei avisou a base. O Capitão Jerónimo apareceu lá e tive que vir com ele. Fiquei num barracão aos cuidados de um médico. Só que junto de mim estava sempre um de dois milícias ou picadores que tinham vindo comigo. Mudavam o colchão, davam-me água e no delírio da febre afastam alguma “visita”. Alfero tu diz manga de chatice… talvez os Camaradas da 2405 se lembrem dessa enfermaria. Quando a febre se foi… toca a ir ter com a malta à Tabanca de Nova Camsamba… tinha sido, talvez o quinto ataque de paludismo.

Havia no entanto um cuidado a ter: a disciplina de fogo. Ou seja, tinham o dedo do gatilho “pesado” e o gasto de munições era grande. Com um pouco de treino, uma conversa, verem a nossa actuação em resposta ou em ataque servia de exemplo.

Recordo ainda hoje, o nome de muitos. Outros esqueci ou tenho receio de trocar os nomes. Mas realço o Alferes Uro Baldé, falecido, vítima de mina A/P, quando perseguia o IN depois do rapto do Soldado Monteiro. O Sargento que depois de ferido persegue o IN pois tinham-lhe raptado um homem. Tinham caído numa emboscada, a 2 de Abril de 69. Cerca de dez homens passam sobre uma mina anti – carro accionada à distância, dois são mortos e projectados em pedaços para a copa das árvores, dois ou três ficam ligeiramente feridos e sem reacção. Os outros reagem forte, sofrem mais um ferido grave (sargento) e um é raptado. O IN, retira devido a uma coluna estar perto e a emboscada ser para ela – Grupo da CCAÇ 2405 – e a sentirem a ajuda de Mansambo. O Sargento persegue-os mas esgotado volta para Mansambo. O prisioneiro, Cabo Lamine, consegue fugir, perde-se e, só três ou quatro dias depois entra no quartel. Dá-nos boas informações. Mas o melhor, o que interessa realçar é a coragem, a determinação destes combatentes e o exemplo por eles dado. Não recordo o nome do Sargento, não era o Mádia esse matava rolas com a G3 com a alça nos 400 metros. Porquê Mádia? Ká sabe…

Gente boa! Quando passei por Amedalai perto do Xime, já a caminho da LDG para o regresso a Bissau e à metrópole, entreguei os meus galões ao Sargento que ia ser promovido e uma promessa: eu volto… não cumpri porque deixei a vida militar… vidas!

Como te disse, era gente que ia connosco nas muitas “operações” que fizemos. Um “santuário” do IN muito conhecido era o Poidom ou Poidão.

Fomos lá mais que uma vez. Vou contar-te uma.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de7 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6333: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2330) (15): Abrigo tipo de Mansambo - A sua construção

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6333: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (15): Abrigo tipo de Mansambo - A sua construção

Mais uma Estória de Mansambo, série do nosso camarada Torcato Mendonça*, ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69). ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 15 ABRIGO TIPO DE MANSAMBO – A SUA CONSTRUÇÃO Como já dissemos anteriormente, no meio do nada, junto a uma pequena tabanca ia surgir um novo aquartelamento com um “simples” projecto da Engenharia Militar; um quadrado de cerca de cem por cem metros de lado, oito abrigos caserna – um em cada canto e mais um no meio de cada lado – num total de oito. Posteriormente seriam acrescentados pequenos edifícios de apoio: secretaria, cozinha, depósito de géneros, enfermaria. Quando apareceu a artilharia fizeram-se “espaldões” de protecção. Estava tudo protegido, digamos melhor: era um “campo” fortificado e a segurança era a prioridade. Como era o abrigo tipo? Tínhamos de dois tipos. Aos cantos em forma de L, e rectangulares ao meio de cada lado, do terreno escolhido. A sua construção era igual, só diferia a forma do abrigo. Assim: - Marcavam-se no chão, como se faz para qualquer edificação simples, um rectângulo ou um L, conforme a localização. As medidas já se esfumaram nos bolorentos baús da memória. Calculo, grosso modo, vendo fotos e fazendo comparações. Os rectangulares cerca de vinte por três metros; em L duas vezes dez (fachadas exteriores) pelos mesmos três metros. - De seguida escavava-se cerca de meio metro, todo o interior e punha-se a terra extraída de lado para futura utilização. Concluída a operação levantavam-se as paredes interiores com blocos de cimento. As paredes eram duplas. A partir do início da escavação, para poupar blocos, erguia-se a segunda parede exterior, afastada da interior, cerca de trinta a quarenta centímetros; esse afastamento seria preenchido pela terra extraída da escavação, restos de material, tudo bem batido. Estas duplas paredes teriam cerca de um metro e vinte ou um metro e meio de altura. Posteriormente ainda seria encostada terra no exterior, em forma de triângulo com base igual à altura sensivelmente. Ficavam portanto as paredes à mesma altura, colocavam-se na frente e laterais blocos de modo a deixar “seteiras”. Depois a toda a volta era feito um lintel. A partir daqui era colocada a cobertura. O mais complicado. Uma fiada de cibes e chapas de bidão por cima, tudo colocado à largura e saindo cerca de dois ou três palmos para a parte exterior. Colocavam-se mais duas fiadas iguais, uma no sentido longitudinal e outra como a primeira. Finalmente estendiam-se duas fiadas de arame farpado, ao comprimento e à largura, sendo depois espalhada uma camada de pedras e cimento, com cerca de vinte e cinco centímetros. As amplitudes térmicas e não só, provocavam a abertura de fendas. Solução: pediu-se à Tecnil (creio eu) um bidão de alcatrão e tapavam-se as fendas. Aquela estrutura aguentava o impacto de granadas de 82 e canhão sem recuo, com que éramos brindados. Estava lá e confirmo. De 120 ou mísseis desconheço… felizmente. A fachada do abrigo virada para a parada era, depois de bem protegida por dupla fiada de bidões cheios de terra, a zona de “convívio” e servia para tudo. Tinha um ponto fraco a sua cobertura, feita de chapas de zinco, por vezes com colmo sobre as chapas, devido ao calor, não aguentava tempestade ou passagem de helicóptero. Não sei, se um espirro, mais forte, faria estragos…granadas nem falar… pedras mais pesadas chegavam para o estrago. Era o local da malta. Estes abrigos ainda sofreram ataques violentos de ratos, percevejos e abelhas. Claro que foi tudo caiado e desinfectado, creio que por gente especializada. Para mim o pior foi o ataque dos percevejos. Fui bastante sugado. Esfregava o peito e esmagava dezenas… abria a luz e punha-os em fuga… desagradável. Pelas fotos podemos ver estes abrigos caserna onde, apesar de tudo, se conseguiu viver com algum conforto. Resistiram a tudo isto e muito mais… muito mais… um dia deixámo-los de herança à “malta” que nos rendeu e rumamos, primeiro a Bissau e ao Puto depois. Dizem-me, gente que lá foi agora há um ou dois anos, ter Mansambo “desaparecido” excepto a fonte. “Aquilo” só servia para a guerra… Mansambo > Abrigo em construção Vidas em Mansambo Mansambo > Periquitos, Oficiais, etc. Mansambo > Bonito e agradável, saudável Mansambo > Vista para Poente Mansambo > Construção de abrigo; juntas de dilatação Mansambo City Fotos © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados. Sem apoio da Engenharia militar lá se foi construindo. A nossa vida tinha preciosos auxiliares. Além dos picadores que estavam, alguns com as famílias, na pequena Tabanca de Mansambo chefiados pelo “Velho” Leonardo Balde, os Milícias. É desta tropa, destes homens que te vou falar. Pouco, muito pouco do que efectivamente te poderia contar. __________ Nota de CV: Vd. último poste da série de 6 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6328: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2330) (14): Construção de Mansambo (Tampão)

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6328: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (14): Construção de Mansambo (Tampão)

Estórias de Mansambo, série do nosso camarada Torcato Mendonça*, ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69). ... Encontramo-nos num quente dia de Agosto. Da Guiné pouco falamos. Combinamos um outro encontro. O tempo correu veloz e já com 2010 iniciado, falamos calmamente. Após breve conversa o José foi direito ao assunto: - Na última conversa sobre a Guiné ficamos em Fá, Fá Mandinga. - É verdade, respondi-lhe e acrescentei: - José, vou então começar por aí. Farei breve síntese, poderei falar até de assuntos diversos sem estarem interligados. Depois, como o anteriormente combinado, tentaremos respeitar o tal fio condutor. Corremos o risco de nos repetir mas “não há nada de mais inédito do que aquilo já publicado”. Tentemos. Gravas e depois escreves. 1 - CONSTRUÇÃO DE MANSAMBO (TAMPÃO) Fá Mandinga foi o primeiro aquartelamento da Companhia Independente CART 2339 na Guiné. Éramos a Companhia de intervenção do BART 1904 sediado em Bambadinca. A 1.ª Operação que fizemos foi ao Galo Corubal. Curiosamente a partida foi de Mansambo. Então pequena tabanca, defendida por uma Secção reforçada de Milícias, quase na berma, exagero meu pois distava talvez cerca de duzentos metros da estrada de Bambadinca para o Xitole. A estrada só se encontrava “aberta” até Mansambo. De lá até ao Xitole era zona de forte implantação do IN e consequentemente a estrada estava intransitável. Essa implantação do In estendia-se, devido aos poucos destacamentos das NT, a toda a zona a oeste de Mansambo até ao Rio Corubal; para sul/sudoeste até ao Xitole; para norte/noroeste até ao Xime. Zonas de implantação não eram sinónimo de ocupação e domínio absoluto. Nós continuávamos a ir a todo o lado. Evidentemente que havia encontros e troca de tiros. O normal numa guerra. O Xitole e o Xime eram os únicos aquartelamentos daquela vasta área. Excepto pequenas tabancas como, Moricanhe, Demba Taco, Taibatá e Amedalai defendidas por Milícias com o apoio das NT. Considero que, para o IN, era a situação desejada. Assim, sem grandes meios, controlavam aquela zona toda e começaram a tentar uma maior implantação e mesmo um mais efectivo controlo da população dessa zona. Para obstar essa progressão inimiga para Este, ou melhor, para Bambadinca e Regulados de Badora e Cossé, era necessária a construção de uma base nossa, com pelo menos uma Companhia, para controlar os acessos para Este e pronta a suster qualquer avanço. A servir de tampão, digamos assim. Essa base, só poderia ser Mansambo devido às premissas atrás aduzidas e à sua boa posição estratégica. O Comando do Sector L1, Bart 1904, decidiu a construção de um aquartelamento naquela tabanca com os seus dois ou três abrigos rudimentares e uma mais que frágil defesa. A Engenharia militar forneceu o projecto, BENG 447. O apoio logístico foi acautelado e um Grupo – o 4.º Grupo de Combate da 2339 – e outro Grupo da Companhia 1646 avançaram para Mansambo em 21 de Abril. As condições de vida, como facilmente se compreende e se atesta pelos registos fotográficos eram más. A 6 de Maio avançou o 1.º Grupo da 2339 e regressou o da 1646. No início, o trabalho consistia em desmatações, reforços das defesas e criar as condições mínimas para se sobreviver. Em 20 de Maio avançou o 2.º Grupo. A Secretaria, serviços de apoio e Comando saíram depois de Fá para Bambadinca. O 3.º Grupo ficou, junto do Comando, para as idas a Mato Cão, proteger as colunas de materiais para o novo aquartelamento e, como toda a Companhia na intervenção do Sector. Ia-se erguendo, hábito secular deste povo, uma fortaleza feia e forte de modo a resistir aos 82, canhões sem recuo e outro armamento usado, nesse tempo pelo IN. A construção está bem documentada pelo Alf Mil Cardoso e Fur Mil M. dos Santos em diaporama e sequência fotográfica. Não é suficiente - seria impossível faze-lo - para mostrar o que foi viver, principalmente os que primeiro para lá foram, em condições tão difíceis. Tudo foi superado. A G3 e outras armas viradas para os “turras” que não suportavam a afronta de construir um quartel naquele local. As pás, outros instrumentos, a força dos braços, o engenho e a arte foram dando forma, não só aos oito abrigos mas a outros “edifícios”: cozinha, armazém de géneros, enfermaria, secretaria e outros para apoio diverso, inclusive um poço e balneários. A Companhia juntou-se em Outubro/Novembro, seis meses depois do início dos trabalhos. O aquartelamento de Mansambo foi inaugurado em 21 de Janeiro de 1969, um ano depois da nossa chegada à Guiné. Esta base foi determinante para dificultar o avanço do IN e a posterior abertura da estrada para o Xitole, além da acção de apoio às populações das Tabancas que receberam armas e entraram em autodefesa (Candamã e Afia). Enquanto se construía o aquartelamento, se fixavam e protegiam as populações, a Companhia sempre continuou com a sua actividade operacional. Finalmente: A 2404 rendeu a 2339 em Novembro de 69. Ainda foram feitas algumas Operações em conjunto, mais de reconhecimento do que ofensivas. A 21 de Novembro, o 2.º Grupo e o Comando saíram de Mansambo rumo ao Xime. Chegaram a Bissau no dia seguinte. O resto da Companhia já lá estava e esperava-nos. Novamente juntos, com embarque à vista, em princípio marcado para 4 de Dezembro, tratamos de o preparar e zarpar até Lisboa. Burako Mansambo > Vigiando o horizonte Mansambo > Abrigo em construção Fotos falantes © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados. Como ouviste quase que sintetizei, por alto, muito por alto o que foi a “vida” de dois anos da Cart 2339 na Guiné. Só que há muito para contar. Continuaremos. Por que não com a construção de um “abrigo tipo”? __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 3 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6305: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (6): Lágrimas secas Vd. último poste da série de 22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5140: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2330) (13): Mistura 79 ou quando tive que mandar o Manel a Moricanhe...

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5140: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (13): Mistura 79 ou quando tive que mandar o Manel a Moricanhe...

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > CART 2339 (1968/69) > Inícios de 1968 (Jan/Abr) > O Alf Mil Torcato Mendonça, com o seu inseparável cachimbo, alimentado com a famosa "mistura 79", comprada numa tabacaria dos Restauradores. Na cabeça, um típico gorro árabe... Guiné > Zona leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > 1969 > O Torcato Mendonça jogando pingue-pongue com um outro camarada (Alf Mil Rodrigues ?) no famoso bu...rako de abrigo do 4º Gr Comb). O Torcato e o seu grupo de combate, o 2º, viedram para Mansambo em Maio de 1968, para construir de raíz o novo aquartelamento. Aqui viveu, lutou e sofrei até Novembro de 1968. Na altura (até Junho de 1968) em Bambadinca, estava sediado o BART 1904, que virá depois ser substituído pelo BCAÇ 2852 (1968/70). Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados 1. Mensagem do Torcato Mendonça (Fundão): Assunto - Outono Caro Carlos e Editores Chove lá fora. Chuva de Outono e frio de Inverno (dizem-me que na Estrela já neva). Assim sendo fui teclando. Devia ter teclado o que por aí há. Não convém. O computas novo borregou. Isto dos novos é sempre um problema. O velho, com maleitas piores que o dono, vai gemendo, protestando...´mas lá responde...lenta, lentamente. Espero que a garantia funcione e o novo seja o que dele disseram. Enfim! Pois lembrei-me do meu cachimbo, ainda vivo mas só a fornalha, e escrevi esta velha recordação sobre um amigo com mais de cinquenta anos. Coisas de velhos amigos ou amigos velhos e podes ter a certeza que são sempre bons. Isto apesar de aparecerem novos com a força da amizade e que vale a pena, mas vale mesmo, cultivar e respeitar. Pára aí, ooh teclador...como há tanto tempo nada mandava, como enviei um mail dirigido a vós e a pensar "no muro de Jerusalém", aqui vai. Isto está mais suave. Talvez a sofrer a influencia dos Gatos...tudo bem. Depois, se tiveres tempo,diz se aí chegou. Não confio no...nada mais digo pois se ele se zanga... Um abração Torcato 2. Estórias de Mansambo II (*) > Mistura 79 por Torcato Mendonça Após o jantar, sentei-me numa daquelas cadeiras fulas esperando a noite ou o nada. Fazer o quê no meio do vazio. Esperava para não desesperar. A noite desceu rápida deformando, apagando as formas, os vultos, à medida que a escuridão aumentava, dos que por ali ficaram conversando. Falavam e riam. Riam pouco apesar da sua juventude, mas ainda riam nestes poucos meses de comissão, ainda se ria. Eu fumava cachimbo, desgastando quer o tempo quer a minha já diminuta reserva de Mistura 79. Ainda durava em poupança cada vez maior à medida que o fundo da lata se aproximava. Lisboa e os Restauradores tão longe, tão longe, tão diferente a vida lá e eu ali entrando em mais uma noite. Certamente o pensamento voava para o meu País, para as suas gentes, os amores breves ou longos, os amigos ou só a recordação da vida, da minha vida interrompida pelo chamamento de uma pátria que diziam ser minha e de mim precisava. Parei então tudo. Aos poucos fui sendo outro, tão diferente do original, do jovem de antes do chamamento da pátria, aos poucos, sem por isso dar, fiquei tão longe de mim. Hoje, pouco desse mim restava. Talvez, quase uma certeza, ser ainda esse pouco o que voava em pensamento para os amores, os amigos em recordação longínqua e, contudo, tão pouco tempo se tinha passado mas, cada vez mais, era recordação difusa, recordação a afastar-se de mim, deste novo eu em conflito ainda entre o outrora e o hoje. Ali estava sentado cachimbando, pensando, esperando a noite e, para animar, a sentir as picadelas de um mosquito e a seguir outro nos tornozelos ou no tronco e eu enxotava, enxotava só. Talvez esse gesto de só enxotar, levasse os meus fantasmas, os meus pesadelos e as minhas raivas para longe de mim nas asas da mosquitada. E a noite ia entrando as vozes dos camaradas a serem cada vez menos. De repente de forma brusca, brutal, inesperada o som do ataque. Sons de rebentamentos e tiros a chegarem como um ruído em espiral de som. - É a Moricanhe (**) a embrulhar. A voz veio de um dos furriéis ali sentados. Olhei os ponteiros luminosos do relógio, fixei a hora e chamei o militar das transmissões. Quase desnecessário porque todos sabiam o que tinham a fazer. Aquilo era uma máquina e todos nós meras peças dela. Se alguma se avariava era de pronto substituída. As outras peças choravam então em silêncio e raiva. Nada mais. Num silêncio similar ao vivido agora, esperando, somente esperando, o fim do ataque à Tabanca a meia dúzia de quilómetros dali. Estava lá o Pelotão de Milícia 145. Tempos antes tínhamos sofrido lá o primeiro morto da Companhia, o enfermeiro Fernando. - Meu alferes, Bambadinca pergunta onde é o ataque. - Diz em claro: Moricanhe. Que merda. Então estava lá o comandante da companhia e outros militares e não viam na carta. Certamente ficaram lixados por deixarem outras cartas. Foi isso, foi isso e foi aborrecido, foi e logo quando algum tinha bom jogo. Foi-se. - Nova mensagem: Bambadinca diz para irem lá amanhã. - Diz que sim e que o ataque já acabou. Agora um oficial vai pôr, na Carta, mais um alfinete na Moricanhe, escreve breves palavras no Impresso das flagelações e rapidamente volta a aconchegar os cotovelos no pano verde. Talvez vá antes ao bar beber um uísque com muito gelo. Má-língua e logo sobre o Batalhão 1904. Mau feitio o meu, mas bebia um uísque agora. Prefiro puro. Agora ia com gelo, muito gelo e Pérrier ou Vichy. Bolas onde há disso aqui, neste buraco? Água da fonte, cerveja e fanta quentes, vinho marado e ainda a coca-cola. Os do meu País só a bebiam em Espanha, a coca-cola claro. - Chama o Manel. - Estou aqui. - Vamos conversar um pouco. - Manel… A voz saiu atabalhoada e limpei a garganta. - Não te atrapalhes, porque já sei: amanhã vou à Moricanhe. - A garganta é do tabaco. Pois tens que ir lá. Vai preparar a malta. Eu vou á Tabanca falar com o Leonardo Baldé (***). É melhor não ir pela picada. Os picadores conhecem bem o trilho. Palmada dupla nas costas e um até amanhã. Fiquei um pouco a pensar, a sentir o mau estar causado pela ordem dada. Conhecíamo-nos há tanto tempo, nove, dez anos ou mais, lá pelo Liceu no sexto ou sétimo ano e depois em Évora no RAL 3, muito antes da mobilização. Tantas farras juntos. Amizade forte e agora eu dizia: - Manel, vais à Moricanhe. Era bom condutor de homens, o Manel. Nomeado para uma Cruz de Guerra que, indecentemente, não recebeu (****). Mas isso foi já a terminar a comissão. Para depois… Isto de dar ordens tem, por vezes, um sentimento estranho. Diabos! Falei com o Leonardo e acordámos tudo rapidamente. Depois falámos um pouco mais e ele foi informando. O velho Leonardo tinha razão. A tropa estava mal distribuída naquela zona. Do Batalhão pouco havia a esperar e a nossa Companhia era pau para toda a obra. O IN assim estava bem. Ainda o sol não se levantara e já o som, som leve, dos homens do 1º Grupo da [CART]2339 se fazia sentir. Eu com os picadores olhava e íamos trocando umas palavras. O Manuel à frente do Grupo aproximou-se. Paragem breve e rápida despedida. Picadores à frente e a Moricanhe era o destino. O pessoal já andava pelo aquartelamento e eu volteei por um lado e outro, ouvido à escuta. Parte de mim ia com eles num sentimento natural. Talvez só se sinta na guerra, nas situações de perigo. Talvez não só e dependa de cada um. Mas esperava e lembrava os obuses já prometidos, a falta de militares ali na construção do aquartelamento. Só ficaram dois grupos e alguns não operacionais – condutores, cozinheiros e outros assim. Um grupo estava em diligência algures às ordens do Batalhão, o outro devia estar de volta com a coluna de abastecimentos e material. O Comando, secretaria e outros, estavam em Bambadinca. Instalações mais condizentes com a protecção de papelada, os altos pensamentos da coordenação militar e a condição de serem profissionais. Nem todos, nem todos. O dia foi passando. Primeiro chegou a coluna com o reabastecimento, material e o correio. Quase ao mesmo tempo uma mensagem a dizer que na Moricanhe tudo estava bem e iam regressar. Esperava. Com o sol já a pique fui alertado pela chegada deles. Ia-os vendo passar, rostos duros, um leve sorriso e um aceno de quando em vez. O Manel aproximou-se com o riso que só ele ainda hoje, quarenta anos depois, sabe dar. - Está tudo bem e também não tivemos qualquer problema. - Pronto. Vai descansar e escreve um pequeno relatório. Depois falamos. - Escrevo, eu? - Claro, não és professor ?!... Afastou-se rindo e eu senti-me mais aliviado. __________ Notas de L.G.: (*) Vd. postes anteriores desta série: 18 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3474: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): De Évora a Mansambo... 28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3538: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CArt 2339) (6): De Évora a Mansambo...instrução, viagem...Adeus ao meu País. 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá 4 de Junho de 2009 Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68 1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4633: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Bafatá, Amor e Ódio 14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4683: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Cansamba II, o Serra e o Burro 11 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4809: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Fá Mandinga, o único sítio onde tive direito ao luxo de um quarto (**) Destacamento de milícias e aldeia fula em autodefesa, a norte de Mansambo, do lado direito da estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole. Será abandonado e meados de 1969 (takvez Julho), por decisão do comando do BCAÇ 2852. (***) Chefe do grupo de picadores e guias que residiam, com as suas famílias, em Mansambo, dentro do "campo fortificado"... O Leonardo tinha vindode Bissau e era um elemento da inteira confiança do Alf Mil Art Torcato Mendonça. (****) Embora o Torcato não goste de identificar as personagens das suas estórias, trata-se do Fur Mil Manuel Mantinhas, natural de Évora, professor primário, que na prática, e na ausência do alferes, comandava então o 1º Grupo de Comnbate. Estudaram juntos no liceu (em Beja), encontraram-se na tropa no RAL 3, em Évora, eram amigos e continuaram amigos pela vida fora... O Manuel devia ter cebido uma cruz de guerra, pela defesa de Candamã, em Julho de 1969, diz o seu amigo Torcato. Continuam a visitar-se, agora um bocado mais velhos e mais surdos... (Inconfidências do José, ao telefone).

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4809: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Fá Mandinga, o único sítio onde tive direito ao luxo de um quarto

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fá Mandinga > CART 2339 (1968/69) > Do álbum fotográfico do Torcato Mendonça, Fotos Falantes II, nº 1: em cima, o quarto do Alf Mil Torcato Mendonça; a meio, o artista, junto à janela; em terceiro lugar, a contar de cima, a ceriomónia do hastear da bandeira... Muitas subunidades passaram por Fá Mandinga, para se ambientarem ao terreno e ao clima da Guiné, antes de seguirem para o seu destino: no caso da CART 2339, foi Monsambo, entre Bambadinca e Xitole, um estratégico aquartelamento construído de raíz pelo Alf Mil Mendonça e seus camaradas da CART 2339. Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados. Estórias de Mansambo II > Fá Mandinga por Torcato Mendonça (*) Finalmente chegaram. Já a tarde ia alta e Fá Mandinga aí estava. Não parecia um aquartelamento. A entrada tinha a cancela com arame farpado, uma leve protecção para o militar da porta de armas e, enquanto rolavam aquartelamento dentro, iam aparecendo os edifícios adaptados à tropa. Coluna parada e ordem para desembarcarem. Deu-se então o reencontro com um alferes e um sargento que, umas semanas antes, por via aérea os tinham precedido a fim de tratarem das burocracias e instalação da Companhia Independente. Tiveram recepção calorosa e a vida, de burocracias e instalação facilitada. Breve formatura, material diverso arrumado e está a tratar da instalação. A ele e ao outro alferes indicaram-lhe uma “vivenda”. Já lá estava o outro alferes instalado. A dita vivenda, certamente de algum antigo colaborador de Amílcar Cabral, tinha quartos para os alferes, messe de oficiais e sargentos, cozinha e arrumos e duas ou três casas de banho. Não sabia que aquele quarto, que agora ocupava e onde ia arrumando as suas roupas, livros e demais haveres, seria o primeiro e único quarto onde viveu na Guiné. Nunca mais teve tal luxo. No futuro seria o abrigo, a morança das tabancas ou, se pernoitasse em Bambadinca ou noutra cidade, lá teria o quarto de empréstimo. Houve outros poisos mas são outras vidas… Bateram à porta e disse: - Entre. Abre-se a porta e aparece um africano com um sorriso alvar e franco. - Sou o Lali e trabalho aqui para os oficiais. Venho acender o Lion Brand. - Vem acender o quê? - disse. O Lali ria, mostrava uma caixa e disse: - É para os mosquitos fugirem. Foi a vez de ele rir. Depois de acender, perguntou se ele precisava de alguma “coisa”. - Sente-se aí, que quero fazer umas perguntas. De pronto o Lali respondeu: - Não posso sentar… Olhou-o e compreendeu. - Logo falamos então. Saiu e dirigiu-se às instalações do Grupo, apanhando o ar, ainda quente, do final da tarde, sentindo aqueles cheiros e sons tão diferentes. Estava tudo a correr bem, conversaram um pouco, viram escalas e serviços e sentia-se, os outros também certamente, deslocado naquele ambiente. Depois do jantar veio até cá fora um pouco e não tardou a regressar ao quarto. Agora é que era e “a dança ia começar”… ____________ Nota de L.G.: (*) Vd. postes anteriores desta série que, por diversas razões, não seguido uma ordem lógica e cronológica: 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá 4 de Junho de 2009 Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68 1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969 3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4633: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Bafatá, Amor e Ódio 14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4683: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Cansamba II, o Serra e o Burro

terça-feira, 14 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4683: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Cansamba II, o Serra e o Burro




Guiné > Zona Leste > Subsector de Galomaro > 2º Gr Comb da CART 2339 (Julho/Agosto de 1969) > Fotos Falantes II (9) e I (20) > Aspectos da vida do 2º Gr Comb, vindo de Mansambo, destacado em Julho/Agosto de 1969, para o reforço do subsector de Galomaro, incluindo as tabancas em autodefesa de Cansamba e Candamã. O Serra, guarda-costas do Alf Mil Torcato Mendonça, em cima, de toalha ao ombro na Tabanca de Candamã (FII, 9). Ou de T-Shirt, branca, num burrinho (Unimog 411), na picada Candamã-Áfia.

Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados.


Estórias de Mansambo II

CANSAMBA – II > O SERRA E O BURRO (*)
por Torcato Mendonça

Há tempos, ao ver, no blogue, a foto de um burro do Saltinho (**) lembrei-me do Serra.

Na vida civil era negociante de gado. Só fez a 4ª classe na tropa. Contudo era, em cálculo mental, de uma agilidade prodigiosa. Contas com Notas – terminologia empregue nas feiras de gado – tinham resultado certo.

Quando tirou a especialidade em Évora não parecia vir a ser grande combatente. A sua parte física era fraca; estava perro, descoordenado. A saltar o muro, mesmo o mais baixo, dizia:

- Não me astrevo... - E ficava grudado ao chão.

Evoluiu com o avançar da instrução. Na Guiné foi excelente combatente e meu guarda-costas. As aparências enganam às vezes; mas só às vezes e raramente. Este caso foi a excepção à regra.

Estávamos em Cansamba e havia ou apareceu por lá um asno. Não me lembro como. Era raro aparecerem burros ou cavalos naquela terra quando, anos antes, havia bastantes. Há Lendas lindas sobre os feitos dos guerreiros, Fulas e Mandingas, com os seus cavalos. Diziam os velhos que o cheiro da gasolina os matou. Claro que não foi. Deve ter sido a febre equídea ou outra parecida.

O Serra descobriu o burro. A alegria foi enorme. Por força queria dar uma volta com o asno. O dono não estava pelos ajustes e, temendo qualquer contratempo, teve que ser convencido pelo dinheiro. Talvez cinquenta escudos. Parece muito dinheiro para aquele tempo. Não sei ao certo.

O que sei é que o Serra cavalgou o burro e ficou tremendamente feliz.

O dono, certamente a temer algo, desapareceu com o burro para desgosto no nosso feirante cavaleiro.

Voltei a encontrar o Serra, em Évora trinta e cinco anos depois mas não falámos em burros. Talvez um dia falemos.


Fá > Junho de 1968 > Carlos Marques Santos, o Costa (Furriel Vag.) e os burros - CART 2339

Foto: © Carlos Marques Santos (2009). Direitos reservados.
________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste anteriore desta série >

3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4633: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Bafatá, Amor e Ódio

(**) Vd. postes de:

1 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2019: Álbum das Glórias (23): O mestre-escola do Saltinho (Joaquim Guimarães, CCAÇ 3490, 1972/74)

Vd. também poste de 6 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2244: Cusa di nos terra (12): Ainda vi burros em Bafatá (Beja Santos)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4633: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Bafatá, Amor e Ódio

1. Mensagem de Torcato Mendonça (*), ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 1 de Julho de 2009:
Camaradas,
Estava no Café e comecei a rascunhar.
Não é uma homenagem. Prefiro uma saudade, um voto que, quarenta anos passados, ainda por cá andem bem ou, se já partiram, estejam num Olimpo qualquer, em "terra de leite e mel" as "Virgens" de outrora, quais esculturas em ébano talhadas pelos Deuses. A Helena, Solemato, Ana Maria e não sei quem mais...
Reli e acabei por rir. De facto há aqui um problema... agora... já voltei a rir e a sanidade mental???
BAFATÁ; Amor e ódio
Era uma vez um homem jovem, tão jovem que, quando lhe perguntavam a profissão dizia: estudante.
Calmo, sorridente, bon vivant, o homem jovem percorria a vida de bem com ele e com os outros.
Um dia os velhos, gentes que não gostavam de jovens, disseram-lhe: - precisamos de ti. A partir de agora vamos tomar conta de ti e serás um tu, um ser com um número. Juntamos-te a outros seres a outros tu’s.
Fizeram-no. A princípio estranhou, protestou em surdina cada vez mais fraca, mais fraca e, de repente ou lentamente, começou a ser o tu, o número metamorfoseado e já diferente. Corria, saltava, fazia correr e saltar, brincava ás guerras com armas verdadeiras, dizia disparates como sendo verdades mais fortes do que leis, vestia como os outros, igual aos outros, vestuário esverdeado. Bonito o tom. Esverdeado.
Um dia pagaram-lhe uma viagem, só de ida e lá foi mar fora. Seguia o rumo outrora traçado pelas caravelas do seu País.
Parou e desembarcou numa terra diferente, terra quente, húmida, avermelhada, com densas matas e rios que eram tejos.
O tempo passou lentamente.
Ah esqueci-me. Era militar. Todos os que o acompanhavam o eram. Eram muitos mais de cento e cinquenta. O grupo dele tinha cerca de trinta, por vezes mais e outras menos.
E que faziam?
Defendiam a pátria. Defendiam um país do Minho a Timor. Só que eles ficaram logo na Guiné. Poupança no cruzeiro. Os velhos, mais um que os outros, eram poupadinhos.
Habituaram-se àquela vida. Eram unidos e defendiam-se em bloco como se fossem um. Porquê? Porque só assim podiam sobreviver.
Viviam, preferencialmente, nas matas em tabancas aqui e acolá. Tinham um aquartelamento meio enterrado, meio tudo e quase nada. O inimigo visitava-os a tiro de armas ligeiras e pesadas. Eles iam á procura deles e zás, catrapás, partiam-lhes as casotas de mato.
De quando em vez iam á cidade.
Primeiro passavam por uma aldeola onde estava o Batalhão. Assim habituavam-se ás casas e aos objectos que outrora usavam.
Quais? Tantos. Dos mais simples até aos mais complicados. Até ás portas. Sim na sede do Batalhão haviam portas. Quando, ao serem fechadas, batiam mais forte, pareciam saídas de armas pesadas… e lá vem ataque… salta macaquinho. Os residentes riam-se e diziam: é a porta… a partir de um mês de Maio começaram a saltar ou a estremecer… é a porta!
Nesse dia ou no outro, já mais adaptados iam até á cidade. A cidade era Bafatá. Tinha luz dia e noite, casas, ruas e gentes ou vestidas como eles ou com melhor roupagem sempre esverdeada. Outros vestiam roupagens garridas e bonitas de vida civil. Mas todos, toda essa gente, ria. Tinham piscina, sim piscina, casa bonitas, restaurantes, lojas de libaneses onde de tudo se vendia, cinema. Sim sala de cinema. Encostada á cidade haviam casas de putas, esculturas de ébano á disposição. Havia tanto.
Eles queriam num dia e numa noite viver tudo, ter tudo. Bebiam, comiam, iam ás putas (gente boa), á piscina para terror de quem lá estava, ao mercado e ás lojas, ao cinema. Tudo num dia e numa noite.
Olhavam os outros iguais a eles, vestidos como eles ou á civil e gostavam de os ver rir. É bom rir. Tentavam rir mas ficavam com a cara dorida.
Tinham pena dos bafatenses se um dia fossem para o mato. Como seria?
Que interessa isso? Será que eles sentiriam por aquela gente um misto de amor e ódio? Ou inveja? Nada disso. Cada um na sua e eles já não sabiam viver de outra maneira. Nem uns nem outros.
No dia seguinte, por vezes logo no final do primeiro, voltavam.
Vestiam e apertavam roupas, cinturões e cartucheiras, granadas e armas, afivelavam a máscara do ódio, do sempre pronto para tudo e partiam. Nunca olhavam para trás. A estrada asfaltada já era igual á picada de mil perigos.
Voltavam a ser números. Será que os homens da cidade, vestidos como eles eram também números? Certamente que sim, números felizes e que sabiam rir. Vidas. Tantas vidas, numa só vida.
Adeus Bafatá até á próxima…
Torcato Mendonça
Alf Mil da CART 2339
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Notas de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em:
1 de Julho de 2009 > 1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969

Guiné > Zona leste > Galomaro > 2º Gr Comb da CART 2339 (Julho/Agosto de 1969) > Fotos Falantes I (10, 11, 12) > Aspectos da vida do 2º Gr Comb, destacado em Julho/Agosto de 1969, para o reforço do subsector de Galomaro, incluindo a tabanca em autodefesa de Cansamba.


Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados.




Estórias de Mansambo II > CANSAMBA I - O 1º de AGOSTO
por Torcato Mendonça (*)


Fotos Falantes I (10, 11, 12)


No dia 1 de Agosto de 69, fomos destacados para a Tabanca em autodefesa, de Cansamba [ subsector de Galomaro]. Mas como e porquê?

Façamos uma breve introdução.

A meio de Julho, dia 13, saímos de Candamã e Afia (**), tabancas em autodefesa, depois de uma estadia de um mês, e regressámos a Mansambo. Pouco descansámos, pois, dia 16 partimos em diligência para Galomaro em reforço da CCaç 2405 e do COP7.

Ficámos então dependentes da 2405, cerca de vinte e cinco militares do 2º Grupo e três ou quatro picadores. Trinta militares ou trinta e dois no total [vd. fotos].

Logo, no dia seguinte ou no outro, assistimos a uma operação, helitransportada, dos pára-quedistas. Efectivamente, era outra tropa. O treino, os meios, a autoconfiança. Isso e muito mais faziam a diferença.

Cerca de meia hora depois, da primeira saída dos helis com tropas já, no regresso, traziam material apreendido. Até uma gazela que o IN estava a esfolar veio... Assim valia a pena. Tinham, em comum connosco o sermos feitos da mesma massa. Óptimos militares a merecerem o meu respeito. Pena nós não termos mais meios. Mesmo com o pouco íamos cumprindo. Curiosamente cumprimos e detesto o termo – tropa macaca – porque não nos sentíamos diferentes dos que eram apelidados de bons… E gostávamos de certas operações. Vidas!

O IN estava muito activo na zona, quer a Sul/Sudeste de Galomaro quer, mais longe, para oeste, à volta de Mansambo. Atacou várias vezes Mansambo, Candamã e Afiá e, naquela zona, atacou Cansamba, onde estava um Grupo, creio que de uma Companhia de periquitos e Madina Xaquili.

Tínhamos acompanhado a Companhia que para lá foi, em 22 de Julho [de 1969], para trazer as viaturas para Galomaro. Não gostámos daquela Tabanca… já tínhamos mais de dois terços de comissão e o cheiro da mata era sentido de forma mais forte. Creio que antes do regresso, o dissemos a um alferes ou furriel, T-shirt de Operações Especiais, a memória pode falhar. Certo é que o IN foi lá experimentar… hoje, tanto tempo depois, parece-me ter sido a CCaç 12.

O IN, com os corredores abertos, mostrava-se com certo à vontade. Na margem esquerda do Corubal (zona leste) onde não haviam aquartelamentos nossos. Na margem direita, vendo a Carta da Guiné, sabendo as nossas posições, é fácil compreender a progressão das forças do PAIGC, aproveitando a época das chuvas. E não só, não só…

No primeiro dia de Agosto, fomos mandados para Cansamba a substituir o Grupo que lá estava. Saíram de lá felizes, os piras.

Antes trocámos breves palavras, recebemos algum material e eles foram-se. A partir daí era connosco. Vimos que era forçoso haver mudanças rápidas. Era uma Tabanca enorme. A cerca de quinhentos metros estava uma outra pequena. A razão era que esta era habitada por futa-fulas. A grande tinha uma mesquita, simples ou humilde, e uma escola (madrassa). Era uma povoação com alguma importância, resultado da junção de várias tabancas.

Assim, demos início ao trabalho.

Os Furriéis (só dois, o Rei e o Sérgio) deram uma volta, falaram com a população, viram as defesas e o que observaram não os agradou. Eu via o material que tínhamos, esperava pelo regresso dos africanos que iam connosco, a passear pela tabanca na obtenção de informações e ia tomando apontamentos.

Depois todos juntos, estudámos rapidamente os elementos que dispúnhamos e estabelecemos uma estratégia. Para o imediato tínhamos que falar com o Chefe de Tabanca, ver o armamento que estava distribuído à população, organizar minimamente a defesa. Na segunda fase, para os dias seguintes, teriam que ser abertas mais valas, colocado mais arame farpado, organizada a defesa e tentar modificar aquilo. Assim, como estava, era um perigo. Num ataque forte entravam por ali adentro com facilidade.

Mandámos chamar o Chefe. Estranhámos a sua ausência e mais estranhámos a sua demora. Estávamos na zona das suas moranças e ele devia já ter aparecido. Demorou. Demorou tempo demais. Quando chegou vimos estar em presença de um homem que nos ia dar problemas. Talvez por isso a alegria da saída do Grupo de periquitos.

Para grandes males grandes remédios. Tivemos que lhe dizer que, a partir daquele momento quem mandava éramos nós. Compreendeu à segunda. Como? Bem… certamente porque não era parvo. Viria a ser, no futuro, um óptimo colaborador. Após ter compreendido porque estávamos ali, respondeu ao nosso primeiro pedido e rapidamente reuniu todos os homens com armas distribuídas. Era uma loucura ver tanta gente com Mausers, G3, dilagramas e muitas munições. Um bando. Nós, à volta de trinta…

Falamos àquele exército, o chefe traduzia e os picadores (milícias) confirmavam com sinais, olhares... nós percebíamos. A linguagem gestual ou por olhares é óptima…

A noite aproximava-se. Mandámos toda a gente em paz e já não fomos à tabanca dos futa-fulas.

Achámos melhor dividirmo-nos em três grupos, separados a uma distância prudente, com possibilidades de entreajuda. Tínhamos bolsa de enfermeiro mas não tínhamos enfermeiro. Tínhamos operador de rádio mas sem aparelho. Claro que estávamos desfalcados, os meios eram os possíveis. Assim se fazia a nossa guerra. A falta de meios, a normalidade.

O Chefe ficava a dormir na sua morança (escolha dele, claro…) mas eu dormia lá também. Cá fora, no telheiro, dois homens, a revezarem-se. As sentinelas eram feitas pelos três grupos, aos pares. De preferência um picador e um soldado. Claro que os turnos cabiam a todos.

Comemos, arrumámos o material, montámos uma precária defesa e preparámos o descanso. De repente uma saída e começou o ataque. Vinham dar as boas vindas. As ordens eram responder o mais forte possível. Alguém já tinha montado a nossa pesada. Ou seja, um bidão aberto totalmente num lado e só metade no outro. Lá dentro uma simples G3 em rajadas curtas, mas a fazer um barulho dos diabos. Estava lá um 82, do IN, que funcionava com as nossas munições e as deles. Nessa noite foi a triplicar.

Mas o pior não foi o inimigo. O pior foi a população. Vinham á porta das moranças e disparavam as Mauser ou as G3. Gritávamos para virem para as valas, mas nada. Pedíamos ao Chefe, que estava ao nosso lado, entre dois militares, para mandar parar o fogo da população. Nada. Nós, no meio, à frente os inimigos, logo atrás os amigos, posição óptima.

Dois ou três militares levantaram o Chefe acima da vala e então, como estivesse a ser capado, berrou e bem. Calaram-se os amigos e pouco depois os inimigos, talvez a esperar melhor ocasião, fizeram o mesmo. Estavam dadas as boas vindas ou feito o teste aos recém-chegados. Por isso, logo no dia da chegada fomos recebidos assim. O nosso 1º de Agosto.

Um morto da população e um ferido. Disparar dilagramas com bala real era terrível. No outro dia começou a instrução, para a não repetição de situações daquelas e melhorar o uso e conservação do armamento. Além disso começámos a estudar onde e como abrir valas e abrigos. Antes visitámos a Tabanca dos Futa-Fulas. Tinham falta de munições e de outras coisas. Parece que tinham estado em Madina do Boé e vindo para a zona após a evacuação do aquartelamento. Gente habituada aos tiros. Se necessário podia contar com eles na protecção de um flanco. Assunto a ser tratado posteriormente.

Recebemos a meio da manhã a visita do Comandante do COP 7, creio que um Major Pára-quedista, porque em Galomaro ouviram o ataque. Não tinhamos rádio. Pusemo-lo ao corrente da situação e fizemos os pedidos de material.

Estivemos até ao dia quinze em Cansamba. Foram quinze dias óptimos. O apoio da 2405 foi excelente. Em Cansamba tivemos ocasião de contactar com a população, falar com Homem grande que ensinava árabe e o Corão aos miúdos. Era homem de grande sabedoria, talvez um marabú. Tive oportunidade e tempo, de falar com ele e assim aprender a compreender melhor aquele Povo e a sua religião. Eu tinha (tenho) o meu nome tatuado, em árabe, no braço esquerdo e sabia fazer as saudações ou cumprimentos. Isso fez com que a aproximação fosse mais fácil. Interrompida, infelizmente, porque estive dois ou três dias fora, em Galomaro, a curar o meu quinto ou sexto ataque de paludismo. Regressei e notei as benfeitorias.

Reforçou-se a auto defesa, a população teve melhor instrução militar, impedimos que a Administração, através de um Cipaio que por lá apareceu (em Galomaro estava um Chefe de Posto), interferisse com a população… perceberam… e foram-se. Certamente causava-lhes prejuízo a população não pagar o imposto!

Quase nos considerávamos em férias. Recebemos nova ordem: apresentar em Bambadinca no Batalhão. Assim foi. Reunião e saída para Candamã.

Missão: procurar onde era o acampamento do Bi-Grupo, reforçado com artilharia que tinha feito tantos ataques na zona em tão pouco tempo. O Comandante, Mamadu Indjai. Descobrimos a acampamento, os Paras destruíram-no e militares da 2339 (3º Grupo) emboscaram-nos fazendo dois ou três mortos e vários feridos, entre eles o Mamadu Indjai.

O Coronel Hélio Felgas não teve razão com a ameaça – só saiem de lá depois de os encontrar… Enganou-se. Pena foi ter-se acabado Galomaro e o sossego de Cansamba. Um mês bem passado, metade em Galomaro, a outra em Camsamba.

Até ao fim da comissão foi sempre a andar…

[Continua]

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá

4 de Junho de 2009 Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68

(**) Vd. poste de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68







Guiné > Mansambo > CART 2339 (1968 / 69) > Fotos Falantes III (de cima para baixo, 6, 27, 24, 31, 30) > Por não ter aqui à mão a lista com as legendas das fotos, não posso dar mais pormenores. De qualquer modo, as fotos falam por si: o Torcato junto ao obus 10.5 em Mansambo; aspectos da vida de uma ou mais tabancas fulas em autodefesa, do regulado do Corubal ou de Bengacia (Duas Fontes), vida essa que se tornou, de meados de 1968 para meados de 1969, cada vez mais complicada, com o cerco do PAIGC ao chão fula.


Alguma destas tabancas podia ser Candamã ou Afiá ou Camará (vd, carta de Bengacia), sítios por onde andei em Agosto de 1969... Também podia ser a da pacata Mussá Ieró, pacata até ao dia em que foi destruída e abandonada, em 24 de Novembro de 1968... A Mussá Ieró não chegava os velhos obuses de Mansambo, sede do subsector e da CART 2339... (LG)


Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Todos os direitos reservados.




1. Mensagem do Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Fá e Mansambo, 1968/69)... Meio alentejano, meio algarvio, português dos quatro costados, beirão, camarada, amigo, mebro do nosso blogue desde Maio de 2006 e, agora, avô babado de um neto, creio que o primeiro, de nome Martim, um nome arcaico mas bem lusitano...


(No dia 29 de Maio, tinha-me escrito o seguinte: Um abraço do Fundão até ao Porto para ti ,meu caro Luis, e para todos do [BCAÇ] 2852 e da [CCAÇ] 12. Lembro-me de alguns. Igualmente para a malta do Norte, um abração. O Carlos Marques dos Santos da [CART] 2339 virou polaco e deve Varsoviar e não só os dias.... Não fui a 23 ao convívio,e devia ter ido, da 2339... Nasceu nessa madrugada o meu Martim, Vidas!)...


Estimados Editores deste Sítio:


Já há tempos que nada envio. Hoje, através do nosso camarada Tertuliano Ten-Coronel José Borrego, consegui falar com o meu terceiro Comandante de Companhia, Cor Moura Soares e ter noticias do quarto Comandante. Fiquei contente. Passados quarenta anos voltamos a falar e a reviver o passado.


Tem razão o Jorge Cabral, este sitio faz com que aconteçam coisas destas...e gostamos até do que não gostamos. É um síítio de afectos...não é? Giro. Devido á idade das peças não convém agitar muito.Pois!


No meu tempo (BART 1904 e BCAÇ 2852) haveria Abades em Bambadinca? Creio que só em Bafatá. Rezaram missa na inauguração de Mansambo, em Janeiro de 1969 e aniversário da Companhia. Não vi, pois estava em Portugal. Pela altura da Páscoa de 1969, como os militares eram crentes (gente do Norte) pediram e eu falei, creio que em Bafatá, a uns Sacerdotes, da possibilidade de irem dizer uma missa. Concordaram. Quando disse que era em Mansambo...oh...eu ainda disse que seriam protegidos lá do alto...


Ainda não havia o Padre Puim e não houve missa. Como depois de o Payne ter saído, também nunca mais apareceu médico por lá. Até se vivia bem em Mansambo. Feitios. Bons ares e Turismo Rural...


Mas anexo Mussa Iéro em versão light. Logo envio outros escritos.


Abraços do Torcato


2. Estórias de Mansambo II > MUSSA IÉRO


por Torcato Mendonça




Era uma vez… Sim, era uma vez uma Tabanca, não muito grande, que, num passado não muito distante, tinha sido bem maior.


Teria agora uma população reduzida a uma dúzia de famílias. Nem tantas.


Muitos já tinham partido para Candamã, a noroeste, ou para nordeste onde estava Dulo Gengelê e Galomaro. Alguns migraram mesmo até Bafatá.


Ficaram poucos, não por teimosia, talvez por amor ao chão, apego à memória dos antepassados, talvez por algo mais ou, por tudo isso, resistiam e adiavam a partida. O perigo aumentava, os avisos dos militares eram mais insistentes. Adiavam. Talvez assim se sentissem mais felizes.


Naquela noite, ainda menina, ainda de olhos não fechados à claridade, sentiram a bestialidade da guerra, a violência gratuita, o ódio fratricida a abater-se sobre eles. Homens, ou simplesmente seres a destilarem ódio, bestas de uma guerra num país que diziam querer libertar, comandados por outros de outras terras ou, se comandados por guineenses, treinados em países longínquos. Só assim se compreende o modo como espalharam o terror, o ódio, a morte e a destruição sobre gente indefesa.


O ataque durou pouco, as granadas foram poupadas e o saque, a bestialidade, os gritos, os gemidos, os risos de feras certamente encheram a noite.


Depois o silêncio que só na morte ou no deserto se pode encontrar. De repente foi quebrado, talvez pelo choro de uma criança a que outros lamentos, outros choros se seguiram.


Não muito longe, em Candamã, uns quantos militares, cerca de vinte, picadores e população, ouviram o ataque e sentiram a impotência do auxílio. Só no dia seguinte e por isso, além de redobrarem os cuidados defensivos, rápido prepararam a saída para a madrugada ainda a demorar. O relógio luminoso foi consultado com mais frequência, as armas ficaram mais perto, o sono foi de sobressalto e, ainda a noite não acabara, estavam preparados. Os guias, alguns elementos da população, picadores e cerca de metade dos militares saíram. Não pela picada mas por um trilho que os guias conheciam. O pouco ruído era abafado pela chuva fraca que teimava em cair.


Pouco depois uma paragem, uma breve conversa a informarem que Mussa Iéro estava perto. Depois o sinal a indicar o ouvido mas, para os militares, demoraria um pouco mais a captação de sons.


De repente a Tabanca estava ali à frente. Ouvem-se vozes; param e esperam um pouco. Avançam com cuidado e logo à entrada uma visão macabra: um corpo, talvez devido a uma roquetada, espalhado em destroços. Um dos picadores aproxima-se e informa ser um milícia da Moricanhe. De facto haviam bocados do corpo coberto pelo camuflado e outras, não cobertas, a chuva tornara-as brancas.


As armas foram mais apertadas, os olhares endureceram, o ódio ia surgindo e os músculos estavam mais tensos. A transformação já se dera naqueles rapazes soldados. Acontecimentos como aquele só os endureciam mais e geravam maior ódio pela violência. Quem eram eles agora?

No centro da Tabanca estavam os feridos e os mortos. O enfermeiro tentou tratá-los o melhor possível. A população esperava ajuda de Dulo Gengelê. Combinou-se então o que fazer. Reunião difícil, longa, demasiado longo para alguns feridos graves.


Finalmente o consenso: os mortos, salvo erro dois ou três, seriam enterrados em Mussa Iéro e o choro ficava para depois, os feridos e a maior parte da população iam para Dulo onde já os esperavam. Outros, a maioria mulheres e crianças, vinham connosco para Candamã.


O regresso foi pela picada e mais rápido. Picadores à frente, militares a seguir e população atrás.


Mussa Iéro tinha ficado para trás. Acabara no dia 24 de Novembro de 1968. Em breve seria invadida pela mata e os homens dela se afastariam.


Meses depois, em Julho e Agosto do ano seguinte, na zona, não longe da antiga Tabanca, o inimigo construiu uma base. Dali saíram fortes ataques às Tabancas em autodefesa de Afiá, Candamã e Camará.


Estávamos em Galomaro (COP 7), mais propriamente em Nova Cansamba, e mandaram-nos regressar. A missão era descobrir a base inimiga. Com o caçador e guia Lhavo localizamos o santuário. Foi bonito vê-los e nada fazer.


Dois dias depois, a 18 de Agosto [de 1969], tropas pára-quedistas assaltaram, destruíram, causaram baixas e fizeram pelo menos um prisioneiro [ Malan Mané]. Acabara a base inimiga e os sobreviventes puseram-se em fuga. Passaram certamente perto de nós sem serem detectados. Caíriam e sofreriam mais baixas, mortos e feridos, numa emboscada montada pelo 3º Grupo de Combate da CART 2339, talvez quinze quilómetros depois na estrada Bambadinca/Xitole, próximo de Mansambo.


Um dos feridos graves foi Mamadu Injai, o Comandante da Zona. À noite a rádio IN pedia auxilio. Os Irãs, apesar de Mussa Iéro ser Tabanca Fula, tinham-se vingado.


O desgaste daqueles dias passou, assim, mais rápido e, pelo menos em mim, apareceu um sorriso e talvez tenha saudado os Irãs.


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Nota de L.G.:


(*) Vd. último poste da série > 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá