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terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22953: Fauna & flora (18): mais dois animais emblemáticos das fábulas guineenses: o búfalo (bufre em crioulo) e o elefante (nhiuá, em fula)








Infografias: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, adapt, de brochura  abaixo citada (s/d), pág. 13 (*)


1. No conto "O Cativeiro dos Bichos", reproduzido no poste P22951 (**), há referência a mais dois "bichos" do "bestiário" da Guiné-Bissau, dois mamíferos, o búfalo e o elefante, que hoje importa conhecer melhor para proteger  (***)


(...) Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair ! (...)


(...) Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante. (...)



2. Não creio que algum de nós, antigos combatentes,  tenha posto a vista em cima de búfalos e elefantes, durante a guerra... A não ser talvez o "básico de Bambadinca" que, contava-se, um dia, quando estava de sentinela, acordou todo o quartel e as tabancas à volta, aos tiros de G3 em posição de rajada... 

 Interpelado pelo graduado que fazia a ronda, jurou que tinha visto uma manada de elefantes junto ao arame farpado... Em Angola e Mooçambique talvez fosse mais fácil, na época,  encontrar elefantes em plena natureza...

Tanto o elefante como o búfalo são hoje animais rarosquer nas savanas quer nas florestas da Guiné-Bissau. (Vd. infografias acima reproduzidas). E, teoricamente, estão protegidos por lei.  Mas a caça furtiva e sobretudo o abate das árvores de grande porte são dois dos factores apontados pelo IBAP (Instituto da Biodiversidade e Áreas Protegidas, da Guiné-Bissau)  para o desaparecimento progressivo (e se calhar irreversível) destas e doutras espécies de animais de grande porte, emblemáticos,  e que, no passado, existiam em abundância.

Acrescente-se os seus nomes tradicionais nalgumas das línguas dos povos da Guiné-Bissau:


O nome científico do búfalo é Syncerus manus planiceros (Bly); em crioulo é Bufre;  em balanta, Impungde; em fula, Edá; e Siô, me mandinga.



Quanto ao elefante: o nome científico é Loxodonta cyclotis (Matsch). Os fulas chamam-lhe Nhiuá; para o futa.fula é Maubá; em madinga diz-se Samom; em manjaco, Olom; em papel, Oinga; e em saracolé, Turé.

_____________

Notas do editor:

(*) Fonte: Guia de Identificação dos Animais da Guiné-Bissau. República da Guiné-Bissau, Direcção Geral dos Serviços Florestais e Caça, Deparatmento da Fauna e Protecção da Natureza, s/l, 34 pp. s/d (Disponível em formato pdf, aqui, no sítio do IBAP ,
https://ibapgbissau.org/Documentos/Estudos/Animais%20da%20Guine-Bissau.pdf)

(**) Vd. poste de 31 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22951: Antologia (83): O Cativeiro dos Bichos, conto de Artur Augusto Silva (Cabo Verde, 1912 - Guiné-Bissau, 1983), escrito na Prisão de Caxias, em 1966, e que era uma fabulosa fábula que tinha também uma contundente crítica, implícita, à hipócrita política colonial do Governo Português da época

(***) Último poste da série > 10 de dezembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22794: Fauna & flora (17): três animais das fábulas guineenses: o leão, o lobo (hiena) e a lebre

Vd. poste anterior > 24 de julho de 2021 > Guiné 61/74 - P22401: Fauna & flora (16): Répteis da Guiné-Bissau que é preciso conhecer e proteger: 2 crocodilos, o crocodilo-do-Nilo (Lagarto) e o Lagarto preto; e duas linguanas (a de água e de mato)

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22951: Antologia (83): O Cativeiro dos Bichos, conto de Artur Augusto Silva (Cabo Verde, 1912 - Guiné-Bissau, 1983), escrito na Prisão de Caxias, em 1966, e que era uma fabulosa fábula que tinha também uma contundente crítica, implícita, à hipócrita política colonial do Governo Português da época


Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido) e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos... Esta casa será durante alguns anos, até à morte do Pepito, a sede da Tabanca de São Martinho do Porto...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos  (edição de autor, Bissau, 2006 ).  Na realidade, tratou-se de uma edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz, em homenagem à memória, ao talento e ao exmplo cívico do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), que viveu na Guiné-Bissau, de 1949 a 1966, e depois, de 1976 até à data da sua morte.
 

1. Porque muitos dos nossos leitores mais recentes, nunca ouviram falar sequer do seu nome, aqui vai um pequeno apontamento biográfico sobre o autor deste livro de contos, Artur Augusto Silva (1912-1983) (, que tem 32 referências no nosso blogue). 

Para quem quiser ter uma informação mais detalhada e contextualizada, ver aqui a sua biografia, profusamente ilustrada, da autoria do seu filho João Schwarz da Silva, na sua página, Des Gents Intéressants" (em francês e em português).

Artur Augusto Silva


(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930);

(ii) ainda estudante, foi director da revista Momento, revista que pretendia ser a réplica lisboeta da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";

(iii) na Metrópole (como então se dizia), "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";

(iv) licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;

(v) em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;

(vi) de 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura: dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, publicados no livro "O Cativeiro dos Bichos", como o Zé Faneca, pescador da Nazaré;

(vii) em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(viii) foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com António Carneiro mas também com  Amílcar Cabral (de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes);

(ix) participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau, onde a sua esposa, dra. Clara Schwarz da Silva, foi professora;

(x) visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um especialista em direito consuetudinário;

(xi) cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";

(xii) em 26 de agosto de 1966,  foi preso pela PIDE, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recordará sempre  "com dor e revolta";

(xiii) esteve preso em Caxias, durante 4 meses, sem culpa formada;

(xiii) em 23 de dezembro de 1966, "por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";

(xiv) em 1967, "Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".

(xv) em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;

(xvi) foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;

(xvii) faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.


2. Em homenagem ao autor, à sua esposa, Clara Schwarz (1915-2016) (que foi durante anos a decana da Tabanca Grande), e aos filhos de ambos,  Iko, já falecido, João Schwarz da Silva (que vive em Paris, e é também nosso grã-tabanqueiro) e  Carlos Schwarz da Silva, Bissau, 1949 - Lisboa, 2012), o nosso querido e saudoso Pepito (cofundador e histórico líder da AD - Acção para o Desenvolvimento), republicamos aquele que é um dos contos que mais gostamos deste livro de contos, e que deu o título à obra, "o Cativeiro dos Bichos" (pp. 57/63).

Trata-se uma fabulosa fábula (, se nos é permitido  o pleonasmo) do tempo em que os animais falavam, e que, escrito em 1966, na Prisão de Caxias, tinha também uma contundente crítica,  implícita,   ao sistema colonial, à sua política e à sua justiça; recorde-se que na época era governador (e comandante-chefe) da Guiné o General Arnaldo Schulz, o mesmo que o expulsou da sua tão amada terra de adopção,  e que o mandou prender, à chegada a Lisboa, através do longo braço armado da PIDE, e que se depois se opôs ao seu regresso à Guiné: em ofício da subedelegação da PIDE de Bissau, de 19/12/1966, é transmitida ao Diretor-Geral da PIDE a opinião do Governador de que "aquele Senhor não deve voltar à Guiné, pelo menos enquanto se mantiver o terrorismo" (sic).

A propósito das "fábulas guineenses", veja-se também a série que temos estado a reproduzir, a partir do livro  "Lendas e contos da Guiné-Bissau", da autoria de J. Carlos M. Fortunato ("Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.],  s/l, Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017,  102 pp,  ISBN 978-989-8661-68-5 (*`*)

Recorde-se que na cultura dos mais diversos povos as fábulas  (, contos populares,) são também uma forma, indireta, de denunciar e criticar  os abusos do poder dos mais fortes.   Muitas delas, incluindo as  fábulas guineenses,  encerram lições segundo  as quais os animais mais fortes, como o leão ou o "lobo" (hiena), podem ser  vencidos pela "audácia", "coragem",  "inteligência" e "cooperação" dos mais fracos. 



O Cativeiro dos Bichos (pp. 57-63)

por Artur Augusto Silva  (*)


A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas.

Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.

Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !

As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.

Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.

Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, 
desde a águia-real, de peito branco e palavra e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e, por fim, chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.

Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.

A águia-real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.

Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
– Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.

Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.

A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
– O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.

Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.

Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:
– As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.

Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.

Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
– O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.

Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.

Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.

O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava crueldade e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.

As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.

O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.

Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.

A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um plano.

Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.

Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.

Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
– Na verdade, na verdade – retorquiu o homem. 
– Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...

Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.

Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a grande assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hora e que a primeira posição fosse tirada à sorte.

Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.

Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.

Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. 

Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal estouvado e brincalhão como todos os pardais.

Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.

Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a seguir fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.

Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.

O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-la, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".

Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta pobreza das partes.

Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".

Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.

A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.

Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.

É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então, lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.

Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.

(Prisão de Caxias, 1966) (***)

 [Revisão / fixação de texto, incluindo negritos,  para efeitos de publicação deste poste: LG, com a devida vénia ]



Arbitrariamente detido pelo PIDE em 26 de agosto de 1966, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, acusado de "exercer actividades contra a segurança do Estado" (sic),  esteve preso em Caxias 4 meses, sem culpa fomada. Foi solto em 26 de dezembro, sem julgamento, por ordem do subdiretor da PIDE, José Barreto Sacchetti.  Repare-se no primeiro documento acima, a assinatura, perfeitamente legível, do agente da PIDE que deteve o advogado Artur Augusto Silva: Benedito Pereira André (que em 1974 era chefe de brigada; terá morrido recentemente, aos 89 anos).


___________

Notas do edtor:

(*) Vd. poste de 20 de maio de  2006 > Guiné 63/74 - P775: Antologia (38): O cativeiro dos bichos de Artur Augusto Silva (Luís Graça)


domingo, 30 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22950: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XI: Conto - O casamento do lebrão





Ilustração do mestre Augusto Trigo (págs. 66 e 67)




O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das págs. 65-68 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)




J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


Conto - O casamento do lebrão 
(pp. 65-68)

O Rei leão tinha uma linda filha, que se queria casar, mas não tinha namorado. Um dia o lobo (hiena) passou pelo portão do palácio do Rei, e viu a princesa que estava a apanhar flores e a cantar, e ficou logo apaixonado por ela. O lebrão (macho da lebre) também passou por lá e ao ver a princesa também ficou apaixonado por ela. 
É mesmo com esta princesa que eu me vou casar - pensou alto o lebrão, quando a viu. 

Como o palácio tinha guardas, que não os deixavam entrar, o lobo e o lebrão passaram a andar à volta do palácio, para ver se conseguiam falar com a princesa. 

Um dia o lobo e o lebrão encontraram-se os dois, junto ao muro do palácio. 
 O que fazes aqui?  perguntou o lebrão. 
 Queria ver a princesa, ela é mesmo bonita e tem uma voz tão doce!  disse o lobo suspirando. 
 Eu também a vi no jardim, gostei muito dela, e quero casar com ela  disse o lebrão. 
 Tu também? Quem vai casar com a princesa, sou eu!  exclamou o lobo
 Não sei como vamos conseguir falar com ela. Os guardas não deixam passar ninguém…  comentou o lebrão. 

A girafa, que estava de sentinela junto ao muro, ouviu a conversa, e com o seu pescoço comprido espreitou, viu o lobo e o lebrão, e disse: 
 O que querem daqui? Vão-se embora. 
 Cala-te, garganta comprida  respondeu o lobo
 Ambos gostamos da princesa e queremos casar com ela – disse o lebrão. 

A girafa foi contar ao Rei, e este mandou chamar o lobo e o lebrão, e disse: 
 A minha filha aceita casar com um de vocês, mas têm que fazer uma  luta sem armas. Só poderão usar a força do corpo e ela casará com o que vencer. Ao vencedor, eu darei a minha filha para casar, dois bois e um lugar no palácio para ele viver. A luta será amanhã às dez horas. 

O lobo todo contente disse logo: 
– Hé! Hé! Eu é que vou casar com a princesa, pois sou o mais forte. 

No dia seguinte, às sete horas da manhã, o lobo já lá estava com o seu grupo, à porta do palácio, a tocarem tambor e a dançarem de contentes, pois tinham a certeza de que o lobo  ia ganhar a luta, mas o lebrão era muito esperto e não desistiu. 
 Huuum..., tenho que arranjar uma maneira de vencer o lobo  pensava alto o lebrão. – Já sei! Vou meter-lhe tanto medo, que ele vai fugir!  disse o lebrão para o seu grupo. 

O lebrão arranjou umas braceletes para os braços e para o corpo, para parecer mais forte, pôs-se em cima dos ombros do macaco e vestiu uma camisa comprida, para esconder o macaco, e assim ficou a parecer um gigante. 

O grupo do lobo ouviu tambores e viu poeira ao longe, e um deles disse: 
 Vem ai o lebrão mais o seu grupo. 

O lobo levantou-se, olhou, e viu um grupo de animais que se aproximava, trazendo à sua frente um animal enorme, e disse: 
 Não pode ser. O lebrão não é assim tão grande, o lebrão é pequeno. Vai lá ver quem é. 

O amigo do lobo foi ver e voltou a correr gritando: 
 É mesmo o lebrão, cresceu muito, agora é um gigante, fujam, fujam. 

Cheios de medo, o lobo e o seu grupo, largaram a fugir. 

E foi assim que o lebrão conseguiu casar com a princesa e ficar a viver no palácio do Rei.


2. Como ajudar a "Ajuda Amiga"?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque, que já foi inaugurada dia 8 deste mês, com pompa e circunstância), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22914: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte X: Conto - O camaleão ganha a corrida ao lobo (hiena)


Ilustração do mestre Augusto Trigo (pág.  63)





O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga




1. T
ranscrição das págs. 63-64 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)



J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau




Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



Conto - O camaleão ganha a corrida ao lobo 
(pp.  63/64) 


Um dia o camaleão e o lobo (hiena) conversavam, sobre quem eram os animais mais rápidos. 
– Qual é o animal mais rápido a voar? – perguntou o camaleão. 
– Eu sou o mais rápido a voar – respondeu o lobo. 
–  O quê? Você não sabe voar! – exclamou o camaleão. 
 Eu sei voar muito bem – retorquiu o lobo. 
– Quem é o mais rápido a nadar? – perguntou o camaleão. 
– Eu sou o melhor nadador. Nado mais rápido do que qualquer peixe – respondeu o lobo. 
– Como pode dizer isso, se você nem sabe nadar… – disse o camaleão, incrédulo com as respostas do lobo. 
– Eu nado muito bem – replicou o lobo com vaidade. - Quem é o corredor mais rápido de todos os animais? – perguntou o camaleão, já aborrecido com as mentiras do lobo.
– Eu sou o melhor corredor, ninguém corre mais rápido do que eu – respondeu logo o lobo. 

Irritado com tanta mentira, vaidade e presunção, o camaleão já não conseguiu ouvir mais o lobo e resolveu dar-lhe uma lição. 
– Eu corro melhor que você! – exclamou o camaleão. 
– Você  não sabe correr –  disse o lobo e começou a rir. 
 – Ah! Ah! Ah! –  ria o lobo apontando para o camaleão. 
Eu corro muito bem. Eu corro melhor que você. Vamos fazer uma corridadesafiou o camaleão. 
–  Você quer fazer uma corrida comigo? – perguntou o lobo admirado. 
– Sim! E eu vou vencer essa corrida! Vamos fazer a corrida já! Eu vou darlhe uma lição! – respondeu o camaleão – Meninos  batam as palmas para dar a partida – pediu o camaleão às crianças que estavam a assistir à conversa. 

Os meninos bateram as palmas, e o lobo começou a correr veloz, mas o camaleão segurou-se com força ao rabo do lobo e não o largou. O lobo correu o mais rápido que conseguiu, até à meta. Depois de passar a meta, o lobo cansado da corrida foi sentar-se, mas quando ia fazê-lo, ouviu uma voz dizer-lhe: 
– Não senta em cima de mim. Vai sentar noutro lado, que eu cheguei primeiro    era o camaleão! 

O lobo abriu os olhos de espanto, nem queria acreditar no que estava a ver, e só dizia: 
– Como foi possível o camaleão chegar primeiro? Como foi possível o camaleão chegar primeiro? 

E foi assim, que o camaleão ganhou a corrida.

(COntinua)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série >  9 de dezembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22791: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IX: Conto - A lebre e o lobo no tempo da fome

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22794: Fauna & flora (17): três animais das fábulas guineenses: o leão, o lobo (hiena) e a lebre


Lobo (hiena) (Crocuta corcuta)



Lobo raiado (hiena malhada) (Hyaena hyaena)





Lebre (Lepus whytei)



Leão (Panthera leo)


Fonte: In Guia de Identificação dos Animais da Guiné-Bissau. República da Guiné-Bissau, Direcção Geral dos Serviços Florestais e Caça, Deparatmento da Fauna e Protecção da Natureza, s/l, 34 pp. s/d (Disponível em formato pdf, aqui, no sítio do IBAP ,

https://ibapgbissau.org/Documentos/Estudos/Animais%20da%20Guine-Bissau.pdf)



1. Sobre os animais, que são protagonistas do conto transcrito no poste P 22791 (*), aqui vai informação adicional , constante das infografias acima reproduzidas (**):

  • Lobo
  • Lobo raiado
  • Lebre
  • Leão
Dos quatro, o leão ´o único que está na lista dos "animais protegidos". 

Na época colonial, e em especial durante a guerra colonial, a lebre era uma das espécies que alguns militares caçavam, à noite, com utilização dos faróis dos jipes ou dos unimog, em geral, nas proximidades dos aquartelamentos. A sua carne era particularmente apreciada.

A hiena malhada  (na Guiné-Bissau, lobo raiado) é a maior representante da família das hienas (Hyaenidae). O seu estado de conservação, na Guiné-Bissau,  não parece ser preocupante.

Quanto ao leão, terá deixado o território com o início da "guerra de libertação"... E acredita-se que terá voltado, esporadicamente, em 2014, quatro décadas depois  do fim da guerra. Pelo mensos avistaram-se peugadas na região do Boé, Mas é pouco provável que se volte a fixar no território: o seu número tem vindo a reduzir-se dramaticamenete em toda a África, com destaque para a África Ocidental e Central, devido à sistemática perda do seu habitat. 

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Notas do editor:

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22791: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte IX: Conto - A lebre e o lobo no tempo da fome




Ilustrações do mestre Augusto Trigo (pp. 59, 60 e 61)



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das págs. 59-62 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato > 
Lendas e contos da Guiné-Bissau




Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


Conto - A lebre e o lobo no tempo da fome 
 (pp. 59/62)


No tempo da fome, a lebre nada tinha para comer, e ela e o seu filho passavam muita fome. Como não conseguia encontrar nenhuma comi da perto de casa, a lebre decidiu partir e ir procurar comida noutros locais. 
Meu filho, tenho que ir procurar comida longe, mas vou voltar o mais rápido que puder  disse a lebre ao filho. 

A lebre procurou em todo o lado, contudo não encontrou nenhuma comida, pois era o tempo da fome e em nenhum lado havia comida. Mas ela descobriu que o lobo  (hiena) (34) tinha muita comida na casa dele, mais do que precisava. 

Apesar de saber que o lobo era mau, que nunca dava nada a ninguém, e até a podia comer, mesmo assim a lebre foi bater à porta do lobo e pedir-lhe um pouco de comida, para levar para o seu filho. 
– Eu só vou dar-te um pouco de comida depois de tu trabalhares, mas a partir de agora terás que ficar sempre a trabalhar para mim  disse o lobo
– Está bem respondeu a lebre. 
– Esta noite, vais ficar toda a noite de guarda à minha casa, para não  roubarem nada, mas não toques na casa do meu vizinho leão  disse o lobo
– Porquê?  perguntou a lebre. 
– Porque o leão é invejoso, arrogante e muito bruto  respondeu o lobo

Durante a noite, quando todos estavam a dormir, a lebre foi a casa do leão, roubou-lhe o filho e escondeu-o na casa do lobo. Quando chegou a manhã, o filho do leão começou a chorar, pois estava cheio de fome. O lobo, ao ver o filho do leão em casa dele e ainda por cima a chorar, ficou muito aflito sem saber o que fazer, pois tinha muito medo do leão. 
 – Como veio o filho do leão aqui parar? O que vou fazer agora? Será melhor escondê-lo?  dizia o lobo, andando de um lado para o outro, sem saber o que fazer. 

O leão, que falava pouco e não gostava de brincadeiras, ficou furioso quando ouviu o filho chorar na casa do lobo
– Como se atreve o lobo a roubar-me o meu filho?  gritou o leão e correu para casa do lobo. O lobo nem teve tempo de dizer nada, pois o leão enfurecido rebentou com a porta e deu-lhe logo uma estalada. 

O lobo fugiu, e o leão correu atrás dele, mas o seu filho começou a chorar e o leão voltou para trás, para junto do filho. Ao ver o lobo fugir, a lebre deu pulos de contente, porque agora tinha comida e podia ficar a viver na casa do lobo, pois o lobo nunca voltaria com medo do leão, e correu a ir buscar o filho. 

Como o lobo tinha muita comida, a lebre dividiu-a com os outros animais que tinham fome. E foi assim que a lebre se livrou do lobo e conseguiu muita comida.

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Nota do autor:

(34) Lobo - palavra com origm no crioulo, é o nome dado à hiena: não existem lobos na Guiné-Bissau.
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Nota do editor:

sábado, 20 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22732: (Ex)citações (396): A maldição da canoa papel está ainda na cabeça daqueles guineenses, etnocêntricos e xenófobos, que continuam a ter muita dificuldade em aceitar a unidade na diversidade (Cherno Baldé, Bissau)



Guiné > Bissau > s/d [. c 1960/70] > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa") (Detalhe).... Colecção: Agostinho Gaspar / Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).

A Praça, com o nome do "colonialista" e "esclavagista" Honório Barreto (1813-1859) (um guineense, de mãe guineense e pai cabo-verdiano, que foi governador do território, ou nelhor, capitão-mor do Cacheu, e também de Bissau,  por diversas vezes, e que como tal defendeu a integralidade da terra que é hoje a Guiné-Bissau, o que não impediu de, um século depois depois, ter sido diabolizado pelo PAIGC), seria rebatizada, em 1975, como Praça Che Guevara, um "internacionalista revolucionário", de origem argentina, e herói da revolução cubana,  que nunca pôs os pés na Guiné... 

E era aqui, neste sítio da  Bissauvelha,  onde, dizia a lenda, estaria enterrada a canoa papel...  Recorde-se a maldição lançada pelos balobeiros papéis: "Quando os estrangeiros se forem embora, esta canoa tem que ser desenterrada, e feita uma cerimónia para acabar com esta maldição, senão nunca mais haverá paz e felicidade na Guiné, por isso os pais têm que passar estas palavras para os seus filhos. Não se podem esquecer de fazer a cerimónia!" (*)
.
Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. A propósito de "a lenda da canoa papel", aqui (re)contada, no  Poste P22726 (*), comentou o Cherno Baldé:


 [ Cherno Baldé: nosso colaborador permanente, e nosso especialista em questões etno-linguísticas, nasceu no chão fula, e é muçulmano; tem formação universitária tirada na antiga União Soviética e em Portugal; é e um acérrimo crítico dos "demónios étnicos" que estão longe de ter sido esconjurados e expulsos do seu país;  além disso, é  membro da nossa Tabanca Grande desde 16/8/2009; com mais de 235  referências no nosso blogue, é autor da notável série "Memórias do Chico, menino e moço"]

Pudera que fosse só uma lenda como todas as lendas do mundo, mas na realidade trata-se de uma maldição com contornos reais na vida politica e social do nosso país e que impregnou fortemente o núcleo da ideologia e dos dirigentes do Paigc que dirigiram o país com mão de ferro. 

Inclusive a própria constituição está contaminada com os resquícios desta xenofobia anti-alienígena que pode constituir um forte obstáculo a construção dos fundamentos da unidade nacional. O ambiente politico e social na Guiné-Bissau ainda respira este sentimento que está associado as origens e a manutenção da lenda da canoa papel.

A lenda dá enfâse ao nome de N'tsinha Té, ou Intchinate,  que conseguiu vencer os rivais e ocupar o lugar do conhecido rei Papel, Bacampoló Có, quem, na realidade, teria concedido o terreno para instalação dos portugueses. Todavia o N'tsinha Té ter-se-ia notabilizado devido ao seu temperamento belicoso que criou sérios problemas na construção do forte, arrastando-se ao longo do tempo desde o séc. XVII.

Também é preciso dizer que, entre os "indígenas" da Guiné não existiam os conceitos de compra e venda quando se tratava da terra, pois que. não sendo seus reais detentores, de forma alguma podiam alienar um bem colectivo (comunitário) à guarda dos espíritos (Irãs). Esta incompreensão criou mal-entendidos e gerou muitos conflitos, mormente na Guiné, dita portuguesa.

Se há uma característa que particulariza os povos do litoral (ditos animistas) em relação  aos do interior (muçulmanos) é o forte espírito de ligação ao seu Chão (o solo) e o sentido patrimonialista que os leva, não raras vezes, a ostracizar os seus próprios compatriotas oriundos de outros Chãos do mesmo país. E isto reflecte-se imenso nas disputas políticas, eleitorais o que, muitas vezes, empresta o modo étnico-tribal como as diferentes comunidades e grupos sociais se posicionam no terreno político-partidário. 

O Paigc, designadamente, apesar do discurso aparentemente apaziguador e unitário nunca foi seguido de uma prática de justiça e de governação unificadoras, dai o desnorte e cacofonias actuais.

No âmbito da politica de reconstrução pós-independência empreendida pelo partido único, fui professor voluntário, na regiāo de Biombo, de 1981/85, e só muito tardiamente constatei que era visto e tratado como um estrangeiro e, sempre que prestava um serviço ou fazia um favor a alguém, no fundo, era percebido como uma obrigação, o pagamento do direito que me concediam pelo direito de viver no seu Chão, igual ao 'Dacha" que exigiam aos portugueses que viviam nas suas terras. 

Esse é o espírito patrimonialista típico do guineense e que, porventura, pode ser muito mais acentuado nos grupos do litoral, designadamente entre os Papéis de Bissau, e quiçá da região de Biombo.

Para terminar, quero confirmar que, efectivamente foram feitas escavações na rotunda Che-Guevara (antiga praça Honório Barreto),  após o golpe de 14 de Novembro de 1980 e foi um desperdício de tempo e dinheiro. A canoa que buscavam no interior da terra, na realidade, estava na cabeça das pessoas que têm dificuldades enormes em aceitar a unidade na diversidade que é a maior riqueza da Guiné-Bissau e a única via para a construção de uma nação forte e unida.(**)

Com um abraço amigo, Cherno Baldé (***)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste da série > 18 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22726: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VIII: A lenda da canoa papel (...ou a maldição da pátria de Cabral)

(**) Vd. também postes de :


quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22726: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte VIII: A lenda da canoa papel (...ou a maldição da pátria de Cabral)




A lenda da canoa papel: 
 ilustrações do   pintor guineense Lemos Djata (pp. 55 e 57): Lemos Mamadjã Hipólito Djatá, de seu nome completo,  conquistou a Medalha de Ouro para a Guiné-Bissau em Paris, França, numa exposição coletiva organizada pela “Associação da Amizade e das Artes Galego Portuguesa”, que decorreu na capital francesa entre os dias 5, 6 e 7 de Outubro 2018, na sala de exposições do "Carrousel du Louvre". 

Nascido em Bafatá, em 1981, filho de Hipólito Djata e de Mariama Foli Baldé. é licenciado em Línguas Estrangeiras Aplicadas, pela  Universidade de Évora. Só em 2000 é que descobre o seu talento artístico. É pintor e escultor.


1. Transcrição das págs. 55-57 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


J. Carlos M. Fortunato >
Lendas e contos da Guiné-Bissau



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5


A lenda da canoa papel  
(pp. 55/57)


Segundo reza a lenda transmitida oralmente pelos papéis, quando os portugueses chegaram à Guiné, os contactos que estabeleceram com os papéis da ilha de Bissau foram amigáveis e estes até lhes cederam um terreno para se poderem instalar e negociar. 
Podem ficar com este terreno  disse o Rei Insinhate (31). 

Nesse terreno está hoje o Forte da Amura, mas naquele tempo era um antigo curral, o que serviu para os papéis se divertirem, fazendo troça dos novos moradores. 

Com o tempo, o poder dos portugueses foi crescendo, e começaram a exercer o seu domínio sobre todas as terras circundantes (32). Os papéis ficaram revoltados, porque os estrangeiros diziam que agora era tudo deles, e decidiram partir para a guerra. 
– Os estrangeiros querem roubar o nosso chão, querem cobrar impostos, temos que os expulsar! – diziam os papéis. 

Travaram-se muitas batalhas, mas nelas os papéis perceberam que nunca conseguiriam vencer pelas armas o inimigo. Então os papéis recorreram aos espíritos para os expulsarem, e dirigiram-se aos baloberos (33),  pedindo auxílio. 

Os baloberos responderam: 
–Podemos lançar uma maldição, que irá lançar a infelicidade nas terras da Guiné, e os estrangeiros ir-se-ão embora. 

Mas acrescentaram: 
– Cuidado, porque não haverá mais paz nem prosperidade na Guiné, enquanto os estrangeiros não se forem embora e não for feita uma cerimónia para acabar com esta maldição. Será tanta a desgraça, que ninguém aqui quererá viver, mas vocês têm que aguentar o sacrifício, se querem a vossa terra de volta.
– Nós aguentamos, façam a cerimónia para expulsar os estrangeiros  responderam os papéis. 

Foi feita uma canoa em madeira, e os baloberos, reunidos em cerimónia, invocaram todos os espíritos malignos, fazendo-os entrar na canoa. A seguir enterraram a mesma. Na altura a canoa foi enterrada no mato, mas nesse mesmo local foi mais tarde construído o palácio do Governador, sendo presentemente o palácio da Presidência da República. O local preciso onde a canoa foi enterrada, foi mesmo em frente do Palácio, no local onde está o monumento aos heróis. 

Depois da cerimónia do enterro da canoa, os baloberos lembraram mais uma vez: 
– Quando os estrangeiros se forem embora, esta canoa tem que ser desenterrada, e feita uma cerimónia para acabar com esta maldição, senão nunca mais haverá paz e felicidade na Guiné, por isso os pais têm que passar estas palavras para os seus filhos. Não se podem esquecer de fazer a cerimónia! 

Os baloberos ainda acrescentaram: 
– Esta canoa anda debaixo de terra. O poder dos espíritos é muito forte, ele faz a canoa mover-se debaixo da terra espalhando o mal por todo o lado. Só nós conseguiremos saber onde ela está. 

Quando Portugal reconheceu a independência da Guiné-Bissau, e retirou as suas tropas, os papéis correram a chamar os baloberos, pois chegara a hora de desenterrar a canoa, mas os baloberos disseram: 
- Os estrangeiros ainda não foram todos embora, o Presidente da Guiné-Bissau é Luís Cabral, um estrangeiro, um cabo-verdiano. 

A 14 de Novembro de 1980, o Presidente Luís Cabral é derrubado por um golpe de Estado encabeçado, pelo mítico comandante militar do PAIGC, o papel João Bernardo Vieira, mais conhecido pelo seu nome de guerra 'Nino' Vieira.

 'Nino' Vieira suspende a Constituição e fica a liderar o país à frente do Conselho Militar da Revolução, com nove membros. Os papéis rejubilaram, a canoa tinha expulsado os portugueses dando-lhes a independência, e agora expulsava os cabo-verdianos; todos os estrangeiros tinham sido afastados, e agora era um papel que detinha o poder. 

Tinha chegado a hora de desenterrar a canoa e anular a maldição, e os papéis correram novamente pedindo a intervenção dos baloberos. Poucos dias depois os papéis reuniram-se no centro de Bissau, na Praça A Lenda a Canoa Papel /  'Che' Guevara, pois era ali que os baloberos diziam que estava a mítica canoa. 

Juntou-se uma multidão à volta da praça, e asfalto, cimento, tudo foi arrancado, sendo aberto um buraco enorme em forma de canoa, mas para desespero dos papéis nenhuma canoa apareceu. 

Os papéis, desiludidos com os baloberos, esqueceram a canoa e deixaram de contar esta história aos seus filhos. O Presidente 'Nino' Vieira seria assassinado a 2 de Março de 2009. Perdida e esquecida, será que a canoa papel continua a navegar debaixo do chão, espalhando a sua maldição? 

Esta é lenda da canoa papel.
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Notas de Carlos Fortunato:

(31) Insinhate – O rei Insinhate deu autorização para construção de uma fortaleza e vendeu o chão para a sua construção, conforme documento celebrado a 2 de Janeiro de 1697, do livro “A Guiné do século XVII ao século XIX”, pag.76.

(32) Ocupação da Guiné  Portugal, à semelhança das restantes potências europeias, decide impor a sua soberania às suas possessões, pois sem uma ocupação real corre o risco de perder os seus territórios em África, é uma intervenção de difícil realização para Portugal face aos
poucos recursos de que dispõe, e que exige alianças locais, capacidade de comando e muita coragem.

A divisão da África pelas diferentes potências tem o seu ponto alto na Conferência de Berlim (1884-1885), e leva a uma maior intervenção das potências europeias nas suas colónias. Os papéis nunca aceitarão o domínio estrangeiro, e os seus ataques serão frequentes, infringindo várias derrotas ao exército colonial. Apenas com a derrota imposta a 20 de Julho de 1915 por Teixeira Pinto, Portugal consegue o domínio total sobre a ilha de Bissau (História
da Guiné II - René Pélissier, pag. 176).

(33) Baloberos é a designação dada em crioulo aos sacerdotes animistas que realizam cerimónias nos locais sagrados, as balobas. Cada balobero  coloca o seu pote com água na baloba, junto ao poilão sagrado, para receber os poderes do mesmo e a poder usar nas cerimónias que realiza. (**)

2. Como ajudar a "Ajuda Amiga" ?

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