Mostrar mensagens com a etiqueta refugiados. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta refugiados. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23483: Ser solidário (249): Divulgação de uma campanha de recolha de fundos que visa construir uma escola em Sincha Alfa, Leste da Guiné-Bissau (Renato Brito)

1. Mensagem enviada ao nosso Blogue, em 27 de Julho de 2022, por Renato Brito, voluntário na Guiné-Bissau, pedindo a divulgação da campanha de recolha de fundos para construção de uma escola em Sincha Alfa no Leste da Guiné-Bissau:

Boa tarde,
Chego ao vosso blogue através de uma publicação do Senhor Mário Beja Santos que a 08 de Março 2013 publica um artigo sobre o músico Lilison di Kinara.

Desde 2015 trabalho no norte de Itália num centro que acolhe refugiados, em grande parte oriundos da África Sub-sahariana, alguns da Guiné-Bissau.
Em fevereiro de 2020 fui conhecer a Guiné-Bissau. Viajei durante 1 mês de bicicleta pelo país. Sincha Alfa é a aldeia de onde é originário o pai de um dos requerentes de proteção internacional que vive onde trabalho.
Constatando as condições deficitárias da escola, resolvi pôr em prática uma campanha de recolha de fundos que visa construir uma escola nesta.

Partilho convosco os “bilhetes-postais” preparados para divulgar esta ideia.
Se acharem pertinente, agradeço o vosso contributo para divulgar este projecto.

Cumprimentos,
Renato Brito


Guiné-Bissau > Localização de Sincha Alfa
Guiné-Bissau > Sincha Alfa > Exterior da Escola
Guiné-Bissau > Sincha Alfa > Interior da Escola
Guiné-Bissau > Sincha Alfa > Regresso da Escola
Cartolinas - Clicar nas imagens para facilitar a leitura


OBS: Em relaçao aos conteúdos da “cartolina 02” deixo o formato texto onde espero possam aceder directamente aos “links” assinalados:

LILISON DI KINARA - Bamatulu (1999) – Luciana
https://www.youtube.com/watch?v=WPfcxOgTiwA

LILISON DI KINARA - Bamatulu (1999) – Fidjus (Soronhas di Lili)
https://www.youtube.com/watch?v=RQMqIr7YCVk

ZÉ MANEL - African Citizen (2003) – Mindjer i um Kumpanher
https://www.youtube.com/watch?v=9n5Z1OyeoQs

IBRAHIMA GALISSA - Tafettas (2004) – Saudade do meu amor
https://www.youtube.com/watch?v=n6j8mNJro34

IBRAHIMA GALISSA - Tafettas (2004) – Yay Balma
https://www.youtube.com/watch?v=SnXcf3JHQgU

BIDINTE - Iran do Fanka’s (2001) – Considjo di Garandis
https://www.youtube.com/watch?v=h3AyKBkoFfI

ENEIDA MARTA - Lôpe Kai (2006) – Mindjer Doce Mel
https://www.youtube.com/watch?v=QGrseiVptSE

ENEIDA MARTA - Nha Sunhu (2015) – Na Bu Mons
https://www.youtube.com/watch?v=Z5YQ4y-fO9A

KARYNA GOMES - Mindjer (2014) – Amor livre
https://www.youtube.com/watch?v=pGyZvhiy-Ts&t=15s

KARYNA GOMES - Mindjer (2014) – Mindjer di Balur
https://www.youtube.com/watch?v=wiIxk1fPCa8

KARYNA GOMES - Mindjer (2014) – Mindjer i Namê
https://www.youtube.com/watch?v=PBJ6tnFMLDA

BINHAN - Lifante Pupa (2017) – Amor so Amor
https://www.youtube.com/watch?v=2URysJEzy5g

Documentário “Kora”
Filme de Jorge Carvalho, rodado na Guiné-Bissau, conta a história de um dos mais importantes instrumentos musicais da África Ocidental.
Documentário completo com legendas em Inglês:
https://www.youtube.com/watch?v=qy1sKOaWZL8

Renato Brito

____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23475: Ser solidário (248): Pedido de apoio para a instalação de painéis solares na Escola Humberto Braima Sambu e angariação de fundos com o objetivo de construir um pavilhão multiusos (Marta Alegre)

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23311: Agenda cultural (812): Exposição no Palácio da Cidadela de Cascais, de 13 de maio a 28 de agosto de 2022: "Portugal e Luxemburgo: países de esperança em tempos difíceis"

 

Cartazes da exposição

1. Informação que nos chega por via do nosso amigo e camarada João Crisóstomo (Nova Iorque) que está em Portugal há mais de um mês, devendo partir no domingo para  a Eslovénia, terra da sua esposa Vilma. Visitou esta exposição, no dia 27 do corrente, na companhia de amigos, adorou e recomenda aos nossos leitores.


Portugal e Luxemburgo – Países de Esperança em Tempos Difíceis


A exposição Portugal e Luxemburgo – Países de Esperança em Tempos Difíceis, com curadoria de Margarida de Magalhães Ramalho e Claude Marx, e que foi criada em 2020 para o Centre Culturel de Rencontre Abbaye de Neumünster na cidade do Luxemburgo, abre amanhã, 13 de Maio, no Palácio da Cidadela de Cascais.

Focada no papel de Portugal durante a II Guerra Mundial como porto de abrigo de refugiados luxemburgueses e de como o Luxemburgo, décadas mais tarde, se tornou o destino de muitos portugueses que fugiam da ditadura e/ou da miséria, a escolha da vila de Cascais prendeu-se com o facto de ter sido na Casa de Santa Maria, fronteira ao Palácio da Cidadela que, no início do seu exílio em 1940, a Grã duquesa Charlotte e a sua família viveram durante alguns meses.

A mostra está subdividida em várias secções relativas ao conflito mundial, que vão desde as razões da ascensão do nazismo e o desencadear da guerra na Europa até ao destino dos que fugiam. Relata também as dificuldades encontradas pelos refugiados na sua rota de fuga e o papel de Aristides de Sousa Mendes no salvamento de milhares de pessoas. 

Aborda ainda a política de neutralidade de Portugal e a passagem de milhares de refugiados por terras lusas, incluindo a estada da família Grã-ducal em Cascais. Por fim, debruça-se sobre a evolução do Luxemburgo no contexto europeu do pós-guerra e a ditadura repressiva portuguesa, que ditou o atraso económico do país e que obrigou muitos a partirem.

Em Cascais, a exposição foi ainda enriquecida com conteúdos contemporâneos ligados a artistas luso-luxemburgueses, como a instalação Memória Episodika do artista plástico Edmond Oliveira, baseada na experiência de vida do seu pai, um dos primeiros emigrantes a chegar ao Luxemburgo; ou as fotografias de Paulo Lobo, que refletem o impacto da presença portuguesa na paisagem luxemburguesa.

O design é da dupla Sara e Pedro Gonçalves e a museografia de Luísa Pacheco Marques. A reposição da exposição em Portugal foi possível graças aos apoios da Câmara Municipal de de Cascais, da Câmara Municipal de Almeida, do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Europeus do Luxemburgo, do Ministério da Cultura do Luxemburgo, do Centro Nacional de Audiovisual e das empresas luxemburguesas POST, WEALINS et LOSCH Digital Lab.


__________

Nota do editor:

Último poste da série > 8 DE MAIO DE 2022  Guiné 61/74 - P23245: Agenda cultural (811): Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, 11 de junho de 2022, sábado, 11h00: Luís Graça apresenta o livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul"

domingo, 20 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23095: Antologia (85): Operação Crocodilo, Guiné-Bissau, junho/julho de 1998 (Revista da Armada, julho de 2013): Em 44 dias de missão e em 23 operações, foram resgatados 3487 refugiados, com o apoio do navio de carga "Ponta de Sagres" da Portline (Correio da Manhã, 17/2/2007)

1. OPERACÃO CROCODILO 

Revista da Armada, julho de 2013, pág. 20

(Com a devida vénia...) (**)

Em 7 de junho de 1998 desencadeou-se na Guiné-Bissau um conflito interno entre forças militares leais ao Governo do Presidente Nino Vieira e aquelas que se viriam a agrupar e torno de uma “Junta Militar” liderada pelo general Ansumane Mane.

A fim de efetuar o rápido resgate de cidadãos portugueses e de países amigos que, fruto da elevada insegurança criada pelo conflito, pretendessem abandonar a Guiné-Bissau, o Estado Português colocou em curso a Operação Crocodilo. (*)

Esta operação envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas, sendo a componente naval constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio. Comandava esta força naval o CMG Melo Gomes.

De forma intensiva e, muitas vezes, simultânea (1), as duas aeronaves foram utilizadas em diversas missões de embarque de cidadãos nacionais e de países amigos para os navios da força naval, na distribuição de ajuda humanitária em diversos locais do território guineense, e em algumas missões de reconhecimento.

Uma das missões de recolha de cidadãos nacionais realizadas pelos dois helicópteros levou-os a cruzarem grande parte do território da Guiné-Bissau até aos Rápidos do Saltinho, nas proximidadesda fronteira com a Guiné-Conacri. 

Após um trânsito realizado a muito baixa altitude, sobrevoandoas vastas e densas florestas guineenses e utilizando a cobertura dos braços de rio e das copas das árvores para evitar uma desnecessária exposição, os helicópteros tomaram imediato contacto com grupos armados da “Junta Militar” logo que aterraram no local de recolha. Desembarcada diversa ajuda humanitária e recolhidos os passageiros ali presentes,  regressaram à Vasco da Gama sãos e salvos.

De referir que as cartas de navegação aérea disponíveis eram fotocópias a preto e branco de cartas aeronáuticas que datavam do início dos anos setenta (2). Sendo que naquela área do globo ocorre frequente perda de cobertura GPS, as aeronaves realizaram grande parte da operação com recurso a procedimentos de navegação tática meramente visual (carta-terreno).

Os helicópteros tiveram ainda uma importante participação no processo inicial de mediação e negociações de paz entre as partes em confronto, realizando diversas aterragens em local sob controlo das forças da “Junta Militar”. Releve-se a missão de transporte de uma comitiva de representantes dos países da CPLP, liderada pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Jaime Gama, de Cape Skirring, no Senegal, para a fragata Vasco da Gama, então a navegar no leito do Rio Geba.

Para poder manter e operar as duas aeronaves que embarcaram durante a Operação Crocodilo, o MUTTLEY, nickname do destacamento de helicóptero atribuído então à fragata Vasco da Gama, recebeu um reforço de dois tripulantes e três técnicos de manutenção.

Num ambiente de elevada volatilidade, o emprego criterioso e eficaz dos dois helicópteros embarcados na Vasco da Gama, associado à sua rapidez e versatilidade, revelou-se de importância muito relevante para o cumprimento da missão da força naval durante a Operação Crocodilo.

P. Conceição Lopes CFR

_________

Notas

1. Muitas das missões aconselharam à operação simultânea dos dois helicópteros. Sempre que possível, o convés de voo do Bérrio era usado em apoio à operação simultânea. Contudo, quando os navios não estavam em companhia, o que aconteceu várias vezes, a realização de operações de voo das duas aeronaves obrigou a uma coordenação e precisão concertada de todo o navio em geral, em particular de toda a equipa de convés de voo, sem margens para erros ou atrasos.

2. Fotocópias tiradas, na véspera da largada da força naval de Lisboa, de cartas da Esquadra 501 (C-130) da Base Aérea nº 6 do Montijo.


2. Informação complementar do jornal "Correio da Manhã", de 18/2/2007 (***), excertos selecionados (e negritos)  pelo editor LG, com a devida vénia:

(...) "Quando a guerra acaba, o pesadelo resiste na memória dos sobreviventes: 10 de Junho de 1998 – Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas –, o País é surpreendido com o agravar dos conflitos na Guiné-Bissau. O então líder da Junta Militar – brigadeiro Ansumane Mané –, que comandava as tropas amotinadas no país, acusava a França de conivência com a intervenção militar do Senegal e da Guiné-Conacri. Por seu lado, o presidente ‘Nino’ Vieira, suportado por 1500 militares (parte deles senegaleses), combatia os revoltosos. 

O nosso País acordava para uma missão imperiosa: a de resgatar os cidadãos portugueses ameaçados por fogos-cruzados

Melo Gomes foi o oficial superior escolhido para comandar a Força Naval envolvida na operação ‘Crocodilo’; na semana passada, sob a égide do hoje Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), a Marinha simulou, em Tróia, um cenário semelhante para testar a intervenção da Força de Reacção Rápida[Exercício ‘Intrex’]

(...)  Recuando à África onde há nove anos se desenrolou uma missão real , desvendam-se contornos, até políticos, decisivos para fazer avançar a operação ‘Crocodilo’. “Criou-se logo uma célula no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e reuniu-se o primeiro-ministro, António Guterres, com o ministro da Defesa e MNE, Jaime Gama, e os respectivos gabinetes”, recorda José Lello, na altura secretário de Estado das Comunidades. Fizeram-se contactos diplomáticos, só que não era possível esperar mais. Pela primeira vez, ponderou-se a hipótese de pedir auxílio a navios civis que estivessem na região.

O feriado festivo – de quarta-feira – ligava por ponte o fim-de-semana do oficial de operações Braz de Oliveira (hoje porta-voz da Marinha). “Recebi a notícia quando estava dentro do carro, com a minha família, a caminho do Algarve”, recorda. Inverteu a marcha em direcção à Base Naval do Alfeite, em Almada, e embarcou na fragata ‘Vasco da Gama’ com o comandante Melo Gomes. “Foi feita a ordem de operações, promulgadas as instruções de coordenação e preparada a largada.” A Marinha tinha 48 horas para se aprontar e fazer--se ao mar quando a tutela decidisse.

O Aeroporto Osvaldo Vieira, em Bissalanca, era palco de confrontos – dominados pelos rebeldes –, impossibilitando que os cidadãos portugueses fossem resgatados por via aérea.

Contra-relógio, do lado do Governo, o secretário de Estado das Comunidades recebia dos Serviços de Informação os dados para avaliar o conflito. “Os relatórios permitiam fazer uma avaliação a cada momento. De antemão, já se sabia que a situação era complicada. Só que África é imprevisível. E, de repente, como não havia organização táctica [nos combates], aconteceu” – disse José Lello. Mas a situação agudizou-se.

“Acordámos com o som dos bombardeiros; a primeira coisa que fizemos foi ligar para a Embaixada”, relata ‘Amir’ Carmali, um português que residia em Bissau. “Ainda não tinham informações concretas para nos dar, só nos aconselharam a não sair de casa.” Ouviam-se rajadas, bazucadas, bombardeios, que tinham como alvo os militares. Na capital, as ruas eram controladas por senegaleses ao serviço de ‘Nino’ Vieira.

Em Portugal havia a certeza: o resgate impunha-se. A Marinha precisava de mais de três dias para alcançar Bissau. Só restava pedir ajuda a navios civis.

 “Houve um contacto que é das coisas extraordinárias: sabíamos que havia um navio lá e não é que o primeiro-ministro [Guterres] consegue, ele próprio, falar com o comandante”, revela Lello.

(...) Na Guiné, a distância obrigou a que fosse o navio de carga ‘Ponta de Sagres’  [ da Portline] o primeiro a tirar portugueses de Bissau.

Contrariando o noticiado na época, o comandante do ‘Ponta de Sagres’ afirma que o navio não foi mobilizado. “Tínhamos carga para Bissau e fundeámos no limite das águas territoriais”, conta Hélder Almeida (#). Foi Stanley Ho – o magnata de Macau e principal accionista da Portline – quem assumiu todos os riscos da operação.

“A Embaixada (##), que tinha os contactos de toda a gente, foi inexcedível no apoio”, garante o refugiado ‘Amir’ Carmali. Os estrondos da guerra aterrorizavam. Mais: tinha chegado o momento de abandonar as casas. A representação portuguesa aconselhou-os a levar panos brancos e pertences leves. Correram até à Sé de Bissau, que servia de ponto de encontro, e seguiram para o cais. “Estavam lá centenas e centenas de pessoas brancas, pretas, tudo.”

Dia 11, perto da hora de almoço (cinco dias depois do estalar da crise) zarpou a ‘Vasco da Gama’. Antes, às 09h00, o ‘Ponta de Sagres’ avançou para Bissau. “Tive noção do risco. Mas decidi sozinho, porque há alturas em que o comandante decide sozinho.” Chegados ao cais, dois navios, um cubano e outro russo, cerravam o espaço. Mais de seis horas depois, o russo cedeu lugar ao cargueiro – ainda com 300 contentores cheios de alimentos, material de construção, roupa e outros produtos. O embaixador Henriques da Silva e a cooperação portuguesa assistiram ao embarque e à filtragem de refugiados feita por senegaleses. Só embarcavam portugueses e cidadãos de países amigos.

“Íamos de calções e camisa; o calor apertava”, conta ‘Amir’, que agarrava apenas uma garrafa de água e um saco com o que se salvou. Para trás, o irmão deixava negócios de importação e exportação. “No porto, as granadas caíam muito perto – nem na Guerra Colonial em Moçambique vi bombas cair tão perto.” Soavam alertas; o chão e o ar vibravam assustadoramente; o assobiar dos tiros atirava os refugiados, encobertos pelas mãos na nuca, para terra. Os estrondosos morteiros só encontravam resposta nos gritos de pânico.

‘Amir’ e mais 30 refugiados, zarparam à boleia do navio russo que transportava para a Índia as cinco mil toneladas de castanha de caju, vendidas por ele e o irmão. Foram para Banjul, Gâmbia. À partida, antes de darem lugar ao ‘Ponta de Sagres’, o agora dono de um restaurante lisboeta, com 54 anos, disse: “Olha, oh Deus, nós já estamos a safar-nos. Agora, Ajuda estas pessoas.”

No ‘Ponta de Sagres’ caberiam cerca de mil pessoas. Embarcaram 2250. Os refugiados, de 30 nacionalidades, fizeram 24 horas até Dacar, no Senegal. “A bordo, a habitabilidade era precária: casas de banho, só algumas mulheres e crianças lá chegaram; eles faziam onde calhava; as messes foram abertas também às mulheres e crianças com alimentação à base de massas, grão e bolachas; à noite passaram frio e, muitos, fome e sede; devem ter dormido sentados”, conta o comandante.

Dia 15 de Junho de 1998, a ‘Vasco da Gama’ entrou em águas territoriais da Guiné – o pior dia, o do ataque da Junta Militar ao quartel de Brá e ao aeroporto. “Estivemos sempre sob ameaça e a própria Força Naval foi bombardeada e alvo de morteiros”, lembra o oficial de operações do Estado Maior. 

Durante os 44 dias de missão foram evacuados, em 23 operações, 1237 refugiados. A fragata ‘Vasco da Gama’, as duas corvetas ‘João Coutinho’ e ‘Honório Barreto’ e o reabastecedor ‘Bérrio’ foram a localidades distantes, como Bubaque, Ponta do Biombo, Varela (**) e Rápidos do Saltinho, buscar pessoas. Faltou um navio polivalente à Marinha.

 (...) Uma semana depois de terem começado os confrontos na Guiné, a população da capital guineense baixou de 300 mil para 130 mil residentes. Fugiram para o interior do país.

“Quando a fragata ‘Vasco da Gama’ se fez ao mar, parti para o Senegal com uma equipa médica e jornalistas”, relata o então secretário de Estado das Comunidades. “Levava um telemóvel satélite para me manter em contacto com o MNE.” O embaixador português em Dacar estabeleceu a ligação entre os refugiados e os voos da TAP que os trariam, sãos e salvos, para o nosso País.

No centro de refugiados, em Dacar, “fomos bem tratados”, garante ‘Amir’, embora muitos portugueses se tivessem queixado das condições. Havia um pavilhão amplo e cheio de camas de campanha para descansarem; comiam ração de combate e uma refeição quente por dia. 

Mais tarde, com as saudades a apertar, embarcaram com destino ao Aeroporto Militar de Figo Maduro, Lisboa. As autoridades verificaram os documentos; os refugiados descansaram e alimentaram-se; quem não tinha casa em Portugal recebeu dinheiro, alimentos e produtos de higiene.

A missão na Guiné terminou com recordações amargadas pelas circunstâncias, mas felizes pelo sucesso no resgate de 3487 refugiados. 

Na semana passada, o ‘Intrex’ deu provas da capacidade de reacção da Armada. E a ‘Vasco da Gama’ seguiu para o Mediterrâneo Ocidental para integrar uma força com o porta-aviões espanhol ‘Príncipe das Astúrias’, em mais um exercício. (...)

__________

Notas do CM e do editor LG:

(#) Hélder Almeida, de 64 anos, comandava o navio de carga ‘Ponta de Sagres’, durante o resgate na Guiné. Recebeu de Jorge Sampaio, ex-Chefe de Estado, a Ordem Militar de Torre de Espada.

(##) Recomanda-se a leitura dos 3 postes que aqui publicámos há mais de 10 anos sobre a origem deste conflito político-militar... São da autoria do antigo embaixador português e nosso camarada Francico Henriques da Silva, membro da nossa Tabanca Grande:

17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)

18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

19 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7818: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (3) (Francisco Henriques da Silva)

 __________

Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)

 (**) Último poste da série > 15 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23082: Antologia (84): Poema dedicado ao Tono d'Amelita, meu companheiro de carteira no velho colégio, morto em combate em Moçambique (Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3853, Aldeia Formosa, 1971/73)

(***) Vd. CM - Correio da Manha - Guiné em Tróia a ferro e fogo: A operação que levou a Marinha à Guiné, em 1998, é mais do que uma memória: é um exercício militar para testar a capacidade de reacção rápida. 18 de Fevereiro de 2007 às 00:00

segunda-feira, 7 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23054: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - III (e última) Parte: 14-15 de junho de 1998, "lar, doce lar"...


Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Centro de Instrução Militar de Contuboel > CCAÇ 2479 / CART 11 (1968/69) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece (mas parece ser uma cara "familitar", a de futuro soldado da CCAÇ 12) ... A placa rodoviária assinala alguns das povoações, mais importantes, mais próximas, anorte: Ginani (17 km), Talicó (22 km), Canhamina (27 km), Fajonquito (30 km), Saré Bacar (39 km), Farim (96 km)...
 
Foto (e legeenda) © Renato Monteiro (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > c. 1972/74 > Rua principal de Fajonquito. Foto do álbum do José Cortes, ex-Fur Mil At Inf (CCAÇ 3549, Fajonquito, 1972/74 

Foto (e legeenda) © José Cortes (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU,
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998


III (e Última) Parte - De 14 a 15 de junho de 1998:  
De Bafatá a Fajonquito


por Cherno Baldé (*)


8º dia, 14 de junho, domingo, Bafatá: recordações dos tempos de estudante e da OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi (1975/79)

Na tarde do dia 14 de junho de 1998, uma semana depois do inicio da guerra ( a 7 de junho), chegámos à cidade de Bafatá. E durante a viagem, para já, o único acontecimento de relevo tinha sido o facto do jovem condutor decidir voltar, ainda, até Nhacra antes de virar o rosto do camião para leste. 

Tive medo sim, por algum momento, por causa dos imprevistos e imponderáveis a que estava sujeito qualquer veículo equipado de motor e assente sobre um monte de ferralha e rodas de borracha. Se acontecesse alguma avaria ao camião seria uma grande desgraça para nós que voltávamos para trás depois de termos alcançado lugares seguros. 

Era uma aventura perigosa. Para me acalmar, dizia a mim mesmo que não havia razão para entrar em pânico e repetia isso várias vezes à minha consciência, mas sempre que olhava para as crianças o medo voltava a me invadir de novo.

Ao atravessarmos a ponte de Finete, perto de Bambadinca, entrámos na zona controlada pelos governamentais que, a acreditar naquilo que tínhamos visto no caminho, oferecia maior segurança as populações civis. Junto à ponte estava um destacamento de tropas da Guiné-Conacri e alguns tanques de guerra dissimulados no meio do arvoredo. Tudo novinho em folha. 

Depois de Bantandjan, finalmente, chegámos à cidade de Bafatá.

Mas antes, o camião atravessou a ponte sobre um braço do rio Geba, por onde corria a água turva carregada de material orgânico com que fertiliza as bolanhas nas suas margens, passou pela antiga fábrica de cerâmica, atravessou a rua Porto, passando pelo Liceu, o nosso velho Liceu onde está situado o memorial de Amílcar Cabral e foi parar no Bairro de Sintchã Bonódji, na saída para Gabú.

Sem contar com o número de pessoas que tinha afluído a esta cidade leste do país, fugindo da guerra de Bissau, não se notava qualquer diferença. Sim, Bafatá era ainda a mesma cidade de sempre, preguiçosamente estendida no dorso de um planalto meio adormecido que tínhamos deixado 27 anos atrás, quando partimos para continuar os estudos em Bissau (em 1979).

Esta cidade não será, certamente, a pior localidade da Guiné, mas para mim foi um inferno durante uns longos anos dos quais conservo uma péssima recordação dos tempos de estudante. Aqui, de rafeiro saído de um antigo quartel de brancos e filho querido de um lojeiro de uma pacata aldeia que, no fulgor da sua inocência, pontapeava o prato de farinha de milho que a avó lhe trazia à noite, tinha-se transformado num verdadeiro cão vadio. Nunca e em lugar algum tinha merecido tanto este animalesco cognome.

Lembrei-me de Boma (situada à frente do quartel), suas árvores frondosas e a água fresca das suas nascentes onde íamos esconder-se das brasas do calor que arrasavam os Bairros situados na parte mais elevada do planalto e a Ponte Nova e onde, também, íamos enganar a fúria das nossas fomes insaciáveis de estudantes sem tecto, fingindo estudar. 

O guarda da plantação de mangueiras e cajueiros nas profundezas de Boma cujo nome era Sekuel (1), nos conhecia de cor e deixava-nos assaltar a sua horta, na certeza de que não adiantava muito tentar impedir-nos. Era uma pessoa dotada de grande humanismo e de bom senso, vacilando entre as suas obrigações de guarda e os sentimentos de piedade para com crianças deserdadas. No princípio ainda tentou, mas rapidamente teria notado que, empurrados pela fome, a nossa insistência e capacidade de resistência eram fora do comum.

 Não tínhamos alternativa. Acabou por nos aceitar como se aceita a presença de animais roedores dentro da própria casa. De facto, durante mais de cinco anos, conseguimos sobreviver graças a nossa perícia em roubar e mendigar peixe e frutas, ora nos mercados ora nas hortas à volta da Cidade.

Foto à esquerda: OPAD - Organização Pioneiros Abel Djassi. Foto de perfil, página do Facebook (com a devida vénia...)


Ali estava Bafatá com os seus habitantes avaros e a sua juventude implacável que aceitava mal a invasão da mocidade mal fardada,  vinda das tabancas ao seu redor a quem apelidavam de mocidade treco (2). 

O certo é que, por qualquer razão, as nossas fardas destoavam sempre dos da cidade. Foi assim no tempo da mocidade portuguesa e foi assim com os pioneiros Abel Djassi. A farda era a mesma, mas a tonalidade das cores era sempre diferente. As meias, calções e sapatilhas não eram tão castanhos como se devia, a camisa era verde ou azul mas não tão verde ou azul como se devia e isto era motivo de chacota e de corre-corre entre os jovens incautos que tinham aceitado a aventura das paradas e acampamentos na cidade. Faziam-no de propósito, para se divertir.

Vindos de Contuboel, Gabú, Sonaco, Cossé, Pirada, Bajocunda, Paunca, Pitche, Bambadinca, Quebo, entre outras localidades, e abandonados numa cidade inospitaleira, o nosso bando era formado por jovens de todas as regiões, de todas as cores, com uma particularidade bem marcante. Todos tinham nascido e crescido com a guerra colonial e todos eram originários de antigos centros de aquartelamento de tropas portuguesas e muitos tinham aprendido as primeiras letras com soldados e oficiais portugueses.

Esta era, para todos os efeitos, a primeira geração formada nas escolas portuguesas dentro da comunidade Fula e talvez de todos os grupos étnicos (chamados gentílicos) na zona leste da Guiné-Bissau. 

A administração portuguesa só tardiamente (com o General Spínola), se tinha resolvido a seguir os conselhos de Teixeira Pinto, ainda no princípio do século XX, de criar escolas para os nativos em todos os postos militares, convencido que, a coragem e irredutibilidade do Guinéu estaria ao mesmo nível do seu obscurantismo (R. Pélissiér – História da Guiné).Mas, no fim, foram o PAIGC e a independência que colheram os louros da formação de quadros,  iniciada na década de 60 e acelerada a partir de 70.

Quando apanhavam um dos nossos durante os saques, os outros vinham em grupo ajudar o companheiro infeliz. Tínhamos regras a que éramos muito fieis, ajudar um ao outro e nunca faltar às aulas, com ou sem fome. Era a mesma lógica no enfrentar das situações de perigo e de necessidade. Roubar ou morrer de fome.


9º dia, 15 de junho, segunda feira, Fajonquito:  "lar, doce lar"...

A nossa estadia em Bafatá, não demorou muito, estávamos apressados. Dormimos uma noite e na manhã seguinte partimos para Fajonquito

Antes de partir, acompanhámos a Djenaba e as suas crianças a fim de apanharem o transporte que os conduziria até Bambadinca donde partiriam para a aldeia dos pais em Cacine, no sul do país. Despendi parte do meu dinheiro para os ajudar a alimentar-se durante o trajecto que seria, longo e, certamente, difícil nessa altura. (Distância Bambadinca-Cacine, 103 km).

Podia estar orgulhoso do meu trabalho, pois apesar das dificuldades, tinha conseguido tirar de Bissau duas famílias, ou seja,  10 pessoas. Também, já não restavam dúvidas que esta guerra iria durar. Foi com este pensamento que me despedi deles e da cidade de Bafatá, rumo à minha terra natal.

Engraçado, agora que estava a alguns quilómetros da minha tabanca, lembrei-me que o meu filho, nascido e criado na cidade, não sabia falar a nossa língua, como dizem os Fulas, era macaco que não sabia trepar

Também eu, alguns anos antes, não sendo filho de gente da cidade, quando me mudei para Bafatá, ainda não falava o crioulo. O meu filho fazia o percurso inverso num contexto e condições diferentes, porém, havia uma constante, era o mesmo país de sempre, a Guiné-Bissau como a Guiné de Cabo Verde, no desequilíbrio da balança, oscilando entre a guerra e a paz.
                                                                   
Bissau, de Junho a Dezembro de 2000
                                                                          
Cherno Abdulai Baldé
__________

Notas do autor:

(1) O sufixo el depois de qualquer nome na língua fula- Sekuel, Gadamael- Contuboel- significa pequenino e, logo, lindo. A beleza, entre os fulas, é algo intimamente associado ao que é pequeno, que não é grande.


5 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998

domingo, 6 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23053: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: de 11 a 13 de junho de 1998, de Safim a Mansoa: uma dádiva de Deus


Guiné > Carta de Bissau (1949) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Nissau, Ajuda , Brá, Bissalanca, Antula, Cumeré, Jal, Safim e Nhacra

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)



Guiné > Região de Bissau > Safim > 1973 > Cruzamento: Bula e João Landim, à esquerda; Ensalme, a 5 km, à direita... (e depois Nhacra e Mansoa)

Foto de um militar português, António Rogério Rodrigues Moura, que lá estava aquartelado em 1973...



RECORDAÇÕES DA GUERRA DE BISSAU,
O CONFLITO POLITICO-MILITAR DE 7 DE JUNHO DE 1998


Parte II-  De 11 a 13 de junho de 1998: De Safim a Mansoa, uma dádiva de Deus 

por Cherno Baldé (*)


5º dia,  11 de junho, quinta-feira, Safim. (*)

Na manhã do quinto dia, 11 de Junho de 1998, decidi que desta vez se a Djenaba, a minha cunhada, irmã mais velha da minha esposa,  não quisesse sair, então eu sairia com a minha família, mulher e filho. 

No entanto, quando lá cheguei, já estavam prontos, na verdade todos os vizinhos já se tinham ido embora. Pegámos nas coisas, metemos algumas provisões num carrinho de mão e rapidamente, atravessámos a bolanha de Bairro Militar, na zona de Brá. Ainda o fluxo da população era enorme. 

Seguimos ao longo da estrada que leva a estrada de volta a Bissau. A nossa caravana estava constituída de 10 pessoas: Eu, a minha esposa, o filho de três anos de idade [Abduramane Santos Baldé], a minha sobrinha de cinco anos, por um lado, e por outro Djenaba, seus quatro filhos e uma sobrinha, com 13 anos. Portanto, três adultos e sete crianças,  dos 3 aos 13 anos.

No caminho, pelas informações que circulavam, soubemos que em Safim a multidão era tanta que já era muito difícil encontrar água. Munido desta informação, decidi seguir a via alternativa. Consultámo-nos rapidamente e decidimos tentar chegar até Nhacra

O percurso seria difícil mas aumentava nossas hipóteses de sobrevivência se conseguíssemos lá chegar. Caminhámos para o cemitério de Antula. A minha intenção era atravessar a bolanha, passar para os lados de Cumeré e seguir até Nhacra a uma distância de, talvez, 20 Km.

Era puro palpite, nunca tinha feito esse percurso antes. O raciocínio parecia correcto mas, todavia, ao chegarmos às portas do cemitério, cruzámo-nos com uma multidão de pessoas que estavam cobertas de lodo dos pés a cabeça, irreconhecíveis, pareciam Nhayés Balantas, informaram-nos que era impossível passar por ali pois o curso d´água estava muito baixo, só pessoas jovens e fortes podiam fazer a travessia, e isto quando havia canoa.

Ao ver o estado deplorável dos nossos interlocutores, não tive qualquer dúvida e tivemos que voltar atrás a fim de procurar o caminho de Safim. Já tínhamos perdido três horas de tempo e as crianças já davam sinais de fadiga. A quantidade de água era insuficiente pelo que comecei a racionar o seu consumo. 

A alegria das crianças abrandou, no caminho, juntámo-nos à multidão que de todos os lados afluía, seguindo depois pela bolanha que separa o Bairro de Afiá ao Aeroporto de Bissalanca, para tentar chegar à estrada que leva a Safim, para os lados de Djáhal.

Ninguém soube porque tinham fechado as vias de saída para fora, por onde todos podiam sair, transportados em veículos, sem grandes dificuldades. Mas eu sei e a resposta, na minha opinião, é muito simples: Ódios e medos que ganharam as hostes dos militares e antigos combatentes desde 1980. Ódios, medos e velhos demónios trazidos das matas de Oio, Cubucaré e Quitáfine, que ainda não tinham sido exorcizados de todo.

Durante o trajecto ouvíamos o som das explosões das BM [, órgãos de Estaline,] e uma vez pareceu-nos que éramos nós os visados ao ouvirmos o assobio,  seguido do impacto de uma bomba à nossa frente e nessa altura tivemos que nos deitar ao chão. 

Foi durante este exercício que o meu filho que viajava em cima dos meus ombros, caiu estatelando-se no chão. Para além dos bombardeamentos contínuos que pareciam nos perseguir, foi, talvez, o único momento em que ele sentiu, de facto, o perigo em que nos encontrávamos e já não lhe parecia tão divertido andar viajando nos ombros do papai.

Chegámos à vila de Safim quando o sol já começava a descair para oeste, pintando o horizonte de vermelho. O maior problema que tivemos foram os bombardeamentos que nos acompanharam ao longo do trajecto, de resto, chegámos em bom estado e, no fundo, a travessia acabou sendo divertida com as crianças a correr de um lado para o outro numa planície largamente aberta e pitoresca. 

As paisagens da nossa terra são lindas. Era uma maravilhosa descoberta para eles, crianças de uma cidade caótica, fechadas entre muros e estradas estreitas. Sentia-se o cheiro acre da terra esbranquiçada da bolanha que os pés libertavam na caminhada qual manada de búfalos em corrida tresloucada.

A confusão em Safim, afinal, não era assim tão grande como se dizia, e não tivemos problemas de maior para nos instalarmos. Era preciso preparar rapidamente qualquer coisa para comer e preparar-se para o que desse e viesse. 

Graças à ajuda de um colega, consegui uma cama para três pessoas. O espectáculo na estrada era impressionante, uma corrente humana afluía de Bissau para o interior, cada um carregando o que podia, acompanhado de suas crianças e até de alguns animais. Esta caminhada era sobretudo difícil, para não dizer impossível, para os idosos. Alguns caiam no caminho completamente esgotados, e muitos acabaram por morrer.

Passámos dois dias em Safim, na vã esperança de que tudo ficava resolvido e que tão cedo como isso voltávamos para casa. Tudo se assemelhava a um pesadelo, que insistia teimosamente em transformar-se na mais dura das realidades, daquelas que não queremos reconhecer como tal mas que parecem gozar com a nossa capacidade de entendimento. Todos os dias víamos pessoas a correr para embarcar em camiões que as levavam para longe dali.

Como da primeira vez, a minha decisão de partir chegou tardiamente, pois a Djenaba estava à espera que o seu marido viesse à sua procura. Também eu desejava que assim acontecesse pois senão teríamos grandes problemas com ela e seus filhos pois o seu destino era para o sul e nós devíamos seguir para leste. Todavia, o marido não aparecia. No dia seguinte, decidimos avançar para o centro da vila na esperança de conseguir transporte.



Guiné > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 (1968/70) > O Alf Mil Inf Paulo Raposo, membro da nossa Tabanca Grande, junto à placa toponímica que indicava as localidades mais próximas: para oeste, Nhacra (28 km), Bissau (49 km)...; para leste, Enxalé (50 km), Bambadinca (65 km), Bafatá (93 km)... De Bissau a Fajonquito, o "refúgio" do Cherno Baldé e família eram caerca de 200 km.

Foto (e egendaO: Paulo Raposo (2006)Todos os os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


7º dia, 13 de junho, sábado, Mansoa:  O perigo ainda a espreita

No centro da vila de Safim, apesar do trabalho contínuo dos camiões que transportavam as pessoas para o norte, o  leste e o sul, ainda a multidão apinhada junto a estrada era enorme e, para conseguir um lugar num desses camiões,  era uma autêntica guerra e para quem tinha crianças e cargas ainda pior. 

Como a desgraça nunca vem só, o transporte não era gratuito,  aliás, os preços tinham subido cinco vezes mais. Fomos parar junto a uma escola, onde pernoitámos. A maioria estendeu-se assim directamente no chão. Consegui arranjar um lugar sentado numa carteira da escola local, apinhada de gente, onde passei a noite com o meu filho ao colo. Na manhã do dia seguinte esperava-nos uma boa surpresa.

O meu colega tinha conseguido, para nós, uma boleia até à cidade de Mansoa. Bem, não era exactamente o que precisávamos mas, nessa altura, com os ruídos e os sinais da guerra cada vez mais perto, o que importava era afastar-se o mais longe possível. Quando me informaram, nem sequer nos preocupámos com o pequeno-almoço. Preparámo-nos rapidamente e fomos pegar o camião.

Depois de muitos anos trabalhando como quadro superior da administração com carro de função e regalias, a sensação que senti, ao embarcar nas traseiras de um camião, foi indescritível. Mais uma vez, isto não era o mais importante, aliás, sem o saber, tínhamos entrado no labirinto onde, cada vez, as coisas tomavam um carácter estranhamente diferente, onde tudo perdia o seu verdadeiro sentido e valor. 

Ali, pela primeira vez, percebi que o mal era irreversível e com ele a desgraça humana que o acompanha sempre que a ordem é abalada. A pensar que, no meu íntimo, tinha desejado esta sublevação armada, logo a desordem. Não, de facto, não era a desordem que desejara mas sim uma mudança. Mas, é possível fazer a mudança sem criar desordem? Era possível criar, algo de novo, sem destruir? Eis uma questão melindrosa para a qual não tinha resposta.

No geral não nos surpreendeu muito esta inversão de situação e, como eu, as pessoas viviam esta situação de forma absolutamente normal, afinal tinham também vivido a independência, acontecimento que tinha virado o país de pernas ao ar há cerca de 24 anos atrás. 

O desespero é apanágio das pessoas de pouca fé. Isto não durará para sempre, dizia-me a mim mesmo para me confortar. Na verdade, o medo do desconhecido roía o meu coração de chefe de família e, chegado a este ponto, lembrei-me do meu pai e da sua coragem nas situações mais difíceis por que tínhamos passado, na infância. Tinha conseguido, finalmente, encontrar a âncora que me faltava neste mar de angústias, o exemplo e a bravura do meu pai.

O camião rolava velozmente para fora de Safim, finalmente tínhamos conseguido sair do inferno situado nos arredores de Bissau. Tentando verificar se estávamos ao completo, acabei reparando em Djenaba, acocorada não muito longe, à minha esquerda. O seu rosto estava banhado em lágrimas. Porque chorava ela? É possível compreender as mulheres? Virou-se para o outro lado como quem queria admirar o andamento das árvores, na verdade, não queria enfrentar o meu olhar recriminatório. Ah, Chita, a nossa cadela, deixámo-la ficar em casa. Era tarde demais.

A nossa partida para Mansoa tinha sido fruto de um puro azar, o que não era de admirar naquelas circunstâncias e, por isso mesmo, não tínhamos ninguém à nossa espera. Descemos do camião e acomodámo-nos na sombra de uma mangueira,  perto da missão católica enquanto ia pensando sobre a decisão a tomar de seguida. 


Sabia do enorme esforço que a igreja estava a fazer para ajudar as multidões abandonadas a si, particularmente naquela cidade. Mas, na verdade, imaginando o trabalho que já teriam tido com toda aquela gente, eu não tinha qualquer intenção de sobrecarregá-la com mais pessoas, por enquanto. Fomos, sim, lá dentro reabastecermo-nos de água.

Foto (à esquerda): Cherno Baldé em Fajinquito  (2010) . 

Mais uma vez, foi um colega que nos encontrou ali casualmente e que nos socorreu, levando-nos para a sua casa. No dia seguinte  já estávamos bastante melhor. Estávamos longe do teatro da guerra, tínhamos tomado banho e recuperado um pouco do nosso juízo e amor-próprio.

Todavia, sabia que ainda estávamos numa área potencialmente perigosa, pois a cidade de Mansoa, situada na confluência das principais vias que atravessam o pais, é um corredor natural de acesso às três zonas em que este se divide, Bissau/Centro, Leste/Sul e Norte/Oeste. E funcionou sempre como um ponto estrategicamente importante em termos militares. 

Por enquanto estava sob o controlo da Junta Militar [de Ansumane Mané,], aliás toda a zona norte estava nas mãos desta, enquanto a zona leste e parte do sul se mantinham fiéis ao governo. Para qualquer das duas partes, pensei, o controlo de Mansoa será indispensável para a conquista do resto do país. Por isso convinha sair dali sem perda de tempo.

A casa do meu colega estava situado na estrada que liga Mansoa a Mansabá e não muito distante do centro da cidade, por isso, deixámo-nos ficar ali à espera mesmo depois de ter despedido dos nossos benfeitores. Comecei, então, a fazer vaivém entre a casa e o centro da cidade à procura de uma solução. 

Foi com grande alívio que vi aparecer um camião que já conhecia, e o motorista, um jovem da minha aldeia, Fajonquito, quando me viu parou para os habituais cumprimentos. Não foi preciso dizer nada pois era evidente que estava ali à espera de poder viajar até Bafatá a partir donde poderia seguir para a aldeia natal. Explicou-me que tinha que ir até Farim mas que, de seguida, voltaria no mesmo dia a Bafatá.

Ficámos à espera, já, mais confiantes e descontraídos. Consegui finalmente comer alguma coisa para enganar a fome,  pois a preocupação e a responsabilidade que pesavam sobre mim não me tinham permitido fazê-lo havia muito tempo. A espera não foi demorada. Pode ser que tenha sido, mas não deu para perceber, estava contente de mais pela dádiva que Deus nos concedera.

(Continua)
___________
 
Nota do editor:

(*) Último poste da série > 5 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23050: Memórias do Chico: Refugiado na sua própria terra durante a guerra civil de 1998/99: 200 km e oito dias de aflição, entre Bissau e Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Bissau, 7-11 de junho de 1998                                 

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Guiné 61/74 - P19032: Agenda cultural (649): Festival TODOS 2018: Lisboa, São Vicente, de 20 a 23 de setembro


Lisboa > São Vicente > Campo de Santa Clara > Oficinas Gerais de Fardamento do Exército (OGFE) > 20 de setembro de 2018, 19h00 > Início da 10ª edição do Festival Todos > Atuação do grupo de batucadeiras de Cabo-Verde "Ramedi Terra" (, que pertence à Associação de Mulheres Cabo-Verdianas na Diáspora em Portugal). Seguiu-se a abertura da exposição sobre as pessoas e a realidade do bairro de São Vicente, e o lançamento do livro TODOS (sinopse fotográfica das anteriores edições, de 2009 a 2017,), livro de distribuição gratuita. Houve depois um "cocktail de sabores do mundo", da Guiné-Bissau ao Bangladesh... Tudo no edifício da OGFE.

Foto: © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Festival TODOS 2018: 

"Criado em 2009, o TODOS-Caminhada de Culturas tem afirmado Lisboa como uma cidade empenhada no diálogo entre culturas, entre religiões e entre pessoas de diversas origens e gerações. O TODOS tem contribuído para a destruição de guetos territoriais associados à imigração, abrindo toda a cidade a todas as pessoas interessadas em nela viver e trabalhar."




Recortes com a devida vénia do sítio oficial do TODOS 

Programa de ontem:

  • 19h - 20h30 : Abertura da 10ª Edição do Festival nas Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento (Campo de Santa Clara) com Cocktail de sabores do mundo, inauguração da exposição de fotografia "São Vicente de Fora por dentro", actuação do grupo de batucadeiras de Cabo-Verde "Ramedi Terra" e lançamento do livro “TODOS”.

• 20h30 – "Vala Comum" (Teatro) de Andresa Soares na Escola Básica de Santa Clara - espectáculo pago (3€)

  • 21h00 – "Viagem Sentimental" (Dança Contemporânea) de Francisco Camacho na Casa dos Gessos do Museu Militar - espectáculo pago (3€)

• 22h00 – Orquestra Todos (Música) na Voz do Operário - Entrada livre

• 23h00 – Rita Só (DJ set) no DAMAS - Entrada livre

Fonte: Página do Facebook do TODOS


Nota do editor LG:

São 3 ou 4 dias que não perco, todos os anos, desde 2009. Vale a pena e recomendo este evento (que de  3 em 3 anos muda de cenário dentro da cidade de Lisboa: Martin Moniz / Intendente / Bem Formoso (de 2009 a 2011); Poço dos Negros / São Bento / Santa Catarina (de 2012 a 2014); Colina de Santana / Campo Mártires da Pátria (de 2014 a 2017).

 Para além da descoberta (e aprofundamento do conhecimento) das diferentes culturas e povos que vivem em Lisboa (, nas escolas do ensino básico da Grande Lisboa é possível encontrar hoje dezenas de diferentes etnias, da Guiné-Bissau ao Nepal, da China ao Brasil), o festival TODOS tem sido para mim (e para a Alice Carneiro) uma (re)descoberta da Lisboa, muitas vezes escondida (ou mesmo inacessível) aos olhos dos próprios lisboetas e dos seus visitantes.

Ontem, por exemplo, fomos aos eventos assinalados, acima,  a negrito.  Nunca tínhamos entrado, por exemplo,  na OGFE e muito menos na famosa Sala do Gesso, do Museu Militar... Em anos anteriores, por exemplo, na Colina de Santana, a Academia Militar abriu as suas portas aos participantes do TODOS. Diversos oficiais superiores das OGFE e do Museu Militar participaram, este ano,  na cerimónia de abertura do evento.

O festival proporciona fantásticas visitas guiadas pelos sítios onde decorre: este ano, em São Vicente. Ponto de encontro: jardim Botto Machado, no Campo de Santa Clara, junto à Feira da Ladra.
_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 4 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P18984: Agenda cultural (648): lançamento do livro "Moçambique: guerra e descolonização, 1964-1975", de Manuel Bernardo, na biblioteca municipal de Faro, dia 18 de setembro de 2018, pelas 18h00

quinta-feira, 15 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18419: Agenda cultural (633): Colóquio: Refugiados em Portugal - História e Atualidade | Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, Telheiras, Lumiar, Lisboa, hoje, das 14h às 18h




1. Chegou-nos, "just in time", a notícia deste evento que se divulga.  A iniciativa é de um grupo de moradores de Telheiras,  com o apoio da Junta de Freguesia do Lumiar. Entrada Livre. Inscrição prévia em vidaculturaarte@gmail.com

Obrigado à nossa amiga Luísa Tiago de Oliveira e ao Gabinete de Comunicação e Planeamento do CIES - Centro de Investigação e Estudos de Sociologia) / ISCTE - IUL













Avenida das Forças Armadas,
Edifício Sedas Nunes, Sala 2W10,
1649-026 LISBOA Portugal

Tel.: 210 464 018 / 210 464 192 (ext. 291802)

www.cies.iscte-iul.pt | www.mundossociais.com

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 9 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18394: Agenda cultual (632): Casa do Alentejo, Lisboa, sábado, 10 de março, às 14h30: comemorando o Dia Internacional da Mulher, com vozes no feminino, plurais e lusófonas, na arte e na música

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17904: Agenda cultural (600): lançamento do livro "Aristides de Sousa Mendes: memórias de um neto", de António Moncada S. Mendes. Lisboa, 31 do corrente, 3ª feira, às 18h30, no Salão Nobre do Palácio da Independência. Apresentação a cargo da historiadora Irene Pimentel.



Convite da editora Desassossego (nova chancela do Grupo Saída de Emergência) para a sessão de apresentação do livro "Aristides de Sousa Mendes: memórias de um neto", no dia 31 de outubro, às 18h30, em Lisboa, no salão Nobre do Palácio da Independência, Largo de S. Domingos, 11. A apresentação está  a cargo da  historiadora Irene Pimentel.

Recorde-se também aqui o papel que tem tido na reabilitação da memória de de Aristides de Sousa Mendes o nosso camarada João Crisóstomo (Nova Iorque, EUA) (sem esquecer o seu amigo, e também mordomo reformado, António Rodrigues, hoje a viver na Batalha).

O autor do livro, António Moncada S. Mendes,  é licenciado em Ciências Políticas,  possui um mestrado em Estudos Russos (Teatro) obtido na Universidade de Montreal, Canadá. Com o seu primo Álvaro Alpoim de Sousa Mendes, major do exército português, dedicou-se à difusão da memória do seu avô no início dos anos 90 e em 2000 aceitou o convite deste primo para criarem a Fundação Aristides de Sousa Mendes.

Ficha técnica:

Título: Aristides de Sousa Mendes - Memórias de um neto
Autor: António Moncada S. Mendes
Chancela: Desassossego
Data 1ª Edição: 13/10/2017
ISBN: 9789899987548
Nº de Páginas: 352
Dimensões: [160x230]mm
Encadernação: Capa Mole
Preço: 15, 93€

Sinopse:

"A história do cônsul Aristides de Sousa Mendes, e de como desafiou as ordens de Salazar para salvar as vidas de 30.000 refugiados durante a II Guerra Mundial, é hoje um legado de coragem e nobreza que constitui um orgulho para todos os portugueses.

Mas quem era Aristides de Sousa Mendes? Por trás da figura heroica esconde-se um homem complexo, profundamente íntegro e religioso, devoto à família e ao país, e que foi forçado a fazer uma escolha terrível entre a sua consciência e o dever profissional, sabendo que as consequências para si seriam implacáveis.

Com recurso a um extenso arquivo fotográfico e documental, em grande parte inédito, o seu neto, António Moncada S. Mendes, desvenda o lado pessoal do cônsul e da sua família, lançando assim uma nova luz sobre a figura de um diplomata que se sacrificou para salvar a vida de muitos inocentes."


GRUPO SAÍDA DE EMERGÊNCIA

Taguspark - Rua Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva,
Edifício Qualidade - Bloco B3, Piso 0, Porta B
2740-296 Porto Salvo, Portugal
Tel: +351 214 583 772
Tlm: +351 963 441 979
www.sde.pt
______________

Guiné 61/74 - P17902: (D)o outro lado do combate (12): Amílcar Cabral e Sékou Touré, em setembro de 1972: alianças e dependências... Dos desertores do PAIGC à recolha de fundos... (Luís Graça)


Amílcar Cabral, secretário geral do PAIGC > c. 1970 > Foto  incluída em O Nosso Livro de Leitura da 2ª Classe, editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)... A primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB.


Comentários do nosso editor aos postes P17898, P17480 e P17537 (*) 


I. Jorge, também se escreve nas entrelinhas ... E até Deus escreve por linhas tortas, segundo a sabedoria popular. Pois, devo dizer-te que do teu paciente e valioso trabalho de leitor e analista da papelada do Amílcar Cabra (AC),  retive duas ideias: o PAIGC tinha problemas comuns com os governos de Salazar e, depois, de Caetano:

(i) a falta de efetivos era dramática e o nº de "refractários, faltosos e desertores" tirava-lhe o sono;

e, por outro lado, (ii) o patacão que não chegava para tudo, muito menos para "alimentar o ventre da guerra"...

Ambos os atores principais desta guerra tinham problemas demográficos, logísticos e orçamentais, o que é normal em todas as guerras... (Daí que todas as guerras têm um princípio, meio e fim,  mesmo a guerra dos cem anos...)..

Em relação ao primeiro ponto, leia-se com atenção uma das propostas que o AC faz ao seu anfitrião, Sekou Touré (ST):

(...) "Em cooperação com as autoridades locais, a JRDA [Juventude da Revolução Democrática Africana] e a Milícia Popular guineense [organização a quem foi oficialmente atribuído, a partir de 1969, um papel equivalente ao exército], recuperação imediata dos combatentes [do PAIGC] que desertaram [sic] da frente para se refugiarem na República da Guiné Conacri (Cadinhá, Djabada, Kanfrandi, Boké, Boffa, Koba, Conacri, Koundara, Gaoual, etc.). O seu retorno imediato às frentes da luta para serem reintegrados nas nossas Forças Armadas." (...)

O AC não escamoteia o problema: o PAIGC tem desertores e não são poucos, diluídos entre a população refugiada, em diversas prefeituras do território vizinho, mais próximas (são referidas explicitamente nove!)...

Não temos números sobre a "deserção" nas fileiras do PAIGC... Mas o problema devia ser "sério", senão mesmo "grave"...

Sabemos que o PAIGC, como no caso de outros movimentos revolucionários em África e por todo o mundo, não podia contar "só" com a militância política, o idealismo e a generosidade dos jovens, o sentimento anti-colonialista do povo, a consciência nacionalista, etc. Tinha que fazer uso de métodos menos "ortodoxos" como o recrutamento forçado, a coação, o rapto, a violência...

O AC não era ingénuo, conhecia bem a realidade da Guiné e de África...

Por outro lado, a vida no mato era duríssima (tanto para as populações sob controlo do PAIGC como para a guerrilha), havia uma refeição por dia, quando havia, as "barracas" (acampamentos do mato) não tinham estruturas fixas, as baixas eram elevadas, os cuidados médicos e de enfermagem muito precários, não havia hospitais no interior da Guiné, apenas "postos de primeiros socorros" na melhor das hipóteses, os feridos e os doentes levavam vários dias a chegar à Guiné-Conacri ou ao Senegal, a guerra prolongava-se sem fim à vista, o moral era necessariamente baixo...

Um homem insuspeito, que combateu ferozmente o PAIGC, como Alpoim Calvão, fez, em tempos, antes de morrer, numa entrevista que deu, uma implícita homenagem ao guerrilheiro do PAIGC que, embora melhor adaptado ao terreno do que os soldados metropolitanos portugueses, era frugal, combativo e sobretudo revelava uma grande capacidade de resiliência, resistência, sofrimento... (Os "meus homens", fulas, da CCAÇ 12, "desarranchados", levavam para dois dias de operações no mato duas mãos cheias de arroz cozido, embrulhado num lenço; nós, os graduados, metropolitanos, tínhamos direito a duas "malditas" rações de combate que, com o tempo e a experiência,. ficavam no quartel em Bambadinca...).

Jorge, um dia destes tens que pegar de novo  neste tema... que tem a sua "delicadeza". Ninguém gosta de falar de desertores, mas a verdade é também os incentivávamos a entregar as suas armas nos nossos quartéis... Não sei se a campanha foi frutuosa, mas houve casos.... Tu estiveste no Enxalé, e sabes do que falo: no teu tempo acolheram-se lá dezenas e dezenas de "refugiados", vindos do "mato"...

Enfim, há muitos mitos, de um lado e do outro do combate. Nós, que já não somos "meninos de coro" (, ou será que ainda os há ?), temos a obrigação de identificar e desvendar esses mitos... Por uma razão simples: é também a nossa história e a história não se faz com historietas da carochinha...


II. Para colmatar as "brechas" nas fileiras do PAIGC, e já que o recrutamento no interior da Guiné, passados os primeiros anos, deixou de ser possível, a base demográfica do PAIGC era cada vez mais restrita, circunscrevendo-se aos núcleos de população "refugiada" nos países vizinhos (Guiné-Conacri e Senegal)... e, em muito menor escala, em Cabo Verde (onde o PAIGC foi buscar sobretudo quadros, bons quadros, de resto).


Daí a explicação para este pedido, algo insólito, ao Sékou Touré:

(...) "Permissão para o recrutamento de jovens (de 17 aos 25 anos), cidadãos imigrantes do nosso país ou descendentes de imigrantes na República da Guiné Conacri.

a) – Concentração destes recrutas em Conacri.

b) – Formação acelerada, em Kindia, no campo de treino da OUA [Organização da Unidade Africana] (...) . A formação dos recrutas visa a sua integração nas frentes da luta." (...).

Kindia fica  a cerca de 130 km a nordeste de Conacri e já era então uma importante base militar da Guiné-Conacri. Era, pois, para lá que eram encaminhados os jovens guineenses da "diáspora", apanhados pelo recrutadores do PAIGC (,seguramente com a cobertura das autoridades da Guiné-Conacri). Temos que admitir que uma boa parte ou até uma grande parte desses jovens recrutas não iria de livre vontade para Kindia e depois para o interior da Guiné, sabendo como se tinha intencificado a guerra, de um lado e do outro. 

Estas propostas do AC ao ST datam 14 de setembro de 1972, quase dois anos depois da invasão de Conacri, em 22 de novembro de 1970 (Op Mar Verde) e a escassos 4 meses da conspiração contra o líder do PAIGC e do seu assassinato (em 20 de janeiro de 1973, em Conacri). Como sabemos, ainda hoje está por esclarecer o papel de ST no assassínio contra AC.


III.  Um dos problemas do AC é que não tinha diamantes nem petróleo. O AC teve que estender a mão à "caridade" internacional: os países do bloco soviético, a China. mas também a Suécia (a partir de 1969) e outros países e organizações ocidentais... A Suécia vai doar quase   6 milhões de euros (em avalor atual) ao PAIGC antes da independência, entre 1969 e 1973.

O Amílcar Cabral humilha-se claramente perante o Sékou Touré, estendendo literalmente a mão à "caridade" do seu anfitrião... para mais sendo a Guiné-Conacri, também ela, um país pobre... 

Era ingenuidade do Amílcar Cabral ou apenas uma forma (cínica)  de lisonjear um homem que, tanto quanto sabemos, tinha ciúmes da craveira intelectual e do prestígio internacional do histórico dirigente do PAIGC ? No fundo, seria uma forma de associar também o ST ao "sucesso" da luta que se travava no território vizinho...

Releia-se, com atenção, esta  outra proposta do AC ao ST:

(...) "No domínio financeiro

1. Comprar, ao melhor preço para o Ministério do Comércio, as quantidades de certos produtos de primeira necessidade (gasolina, sabão, fósforos, alguns tecidos, etc.) quando as nossas disponibilidades não ultrapassem as possibilidades para o consumo imediato.

2. Permissão para que o nosso Partido possa receber quotas (voluntárias) dos cidadãos do nosso país instalados [residentes] na República da Guiné Conacri, para o desenvolvimento da luta.

3. Realização, por intermédio do PDG. [Partido Democrático da Guiné], especialmente da JRDA [Juventude Revolucionária Democrática Africana], da CNTG  [Confederação Nacional dos Trabalhadores da Guiné] e da UNFG [União Nacional das Mulheres da Guiné], de festas, missões, quermesses, etc., para a obtenção de receitas destinadas à luta.

Estas medidas poderiam ajudar o nosso Partido, de modo significativo, a fazer face às exigências cada vez maiores da luta no domínio financeiro." (...)

Também nunca saberemos (, porque os principais dirigentes do PAIGC morreram e poucos  foram ao "confessionário da História"...) quanto rendeu ao PAIGC estas e outras formas de "recolha de fundos" na terra do Sékou Touré... Não acredito que o AC, homem inteligente, tivesse expetativas muito altas em relação  à recetividade e sobretudo à implementação destas propostas (e das outras propostas) apresentadas ao ST em setembro de 1972.

Enfim, é a leitura (seguramente superficial e descontraída...) que eu faço, dos documentos que tu, Jorge, tiveste  a pachorra e a gentileza de ler (em francês) e traduzir para nós...


IV. Jorge: uma guerra, como qualquer conflito, é sempre uma relação (de antagonismo) entre duas partes, ou atores (como dizem os sociólogos). Cada uma da partes, tem depois os seus apoios (externos, internos...) e os seus trunfos, os seus pontos fortes e fracos...No final, há que está melhor posicionado para negociar do que o outro...

Sékou Touré não deve ter sido um "aliado fácil" do Amílcar Cabral e do seu partido, mas é evidente que a Guiné-Conacri foi, desde o início, um "santuário", absolutamente imprescindível para o PAIGC (contrariamenet ao Senegeal de Senghor)... Sem essa retaguarda estável e relativamente segura (não obstante a invasão de Conacri em 22/11/1970...), nunca a luta de guerrilha teria ido tão longe...

É muito interessante o documento que divulgas, para conhecimento de todos nós, até porque é revelador das fragilidades do PAIGC a nível logístico, por exemplo.. O AC tinha plena consciência de que as bolanhas das "regiões libertadas" nunca poderiam alimentar a guerrilha e a população que vivia no mato, sem falar do "estado maior" e forças operacionais e de apoio em Conacri e nas bases de retaguarda, nas zonas fronteiriças.. Amilcar tem que negociar a compra de 100 toneladas de arroz ao "amigo e camarada" Sékou Touré... Ninguém faz a guerra de estômago vazio, apesar do "estômago espartano" do homem africano...

Quando Amílcar Cabral pede 100 toneladas de arroz para o seu pessoal instalado na Guiné-Conacri, incluindo os combatentes junto à fronteira, mesmo que o arroz seja "pago pelo Partido" (o mesmo é dizer, pelos "amigos" suecos, russos e outros...), isso coloca-o numa posição de subalternidade e dependência em relação ao Sékou Touré...

O papel e a personalidade deste homem ainda estão em grande parte por esclarecer.  O brilho intelectual e o prestígio do Amílcar Cabral, dentro e fora de África, deviam-no ofuscar...Amílcar Cabral era de outro planeta, da estatura de um Nelson Mandela... E o Sékou Touré apenas um aprendiz de ditador, com um passado de sindicalista e de nacionalista de "duro de roer" aos olhos dos franceses...

O maior erro de Amílcar terá sido, a meu ver, nunca ter percebido a "pedrinha do sapato" do PAIGC que era a liderança dos cabo-verdianos que estavam a anos-luz dos guineenses... Veja-se como os guineenses aplaudem o miserável golpe de Estado de 'Nino' Vieira contra Luís Cabral..., ditando o fim do mito da unidade Guiné-Cabo Verde... 'Nino' que eu conheci pessoalmente em 2008,  não era uma "estadista", não era um "líder", era apenas um "senhor da guerra", como milhares de "cabos de guerra" que emergiram no caos do pós-colonialismo,  por exemplo, o Ansumane Mané...

Mas... e o combustível para os camiões e os célebres BRDM-2, as viaturas blindadas anfíbias de patrulha e reconhecimento, que ainda hão de aparecer no fim da guerra para dar um arzinho da sua graça ? Chamar-lhes "carros de combate" é uma grosseria, é um insulto à arma de cavalaria... E, tal como as nossas velhas "latas" (as Daimler. as Panhard...), deveriam gastar 100 aos 100 ou mais... Não sei se eram a gasolina ou gasóleo...

Este assunto, das BRDM-2, já aqui mereceu honras de primeira página no nosso blogue... Mas convirá chamar a atenção para os incautos leitores: nesta altura, em setembro de 1972, o PAIGC não tinha viaturas blindadas, nem muito menos combustível para pôr a marchar a sua "cavalaria"... Em qualquer guerra, os "cavalos" são mais mais difíceis de "alimentar" do que os "infantes", para mais nas dificílimas condições de terreno e do clima da Guiné...

Jorge, não podes acabar este conjunto de três artigos sem nos dares algumas pistas sobre o seguimento das propostas: ficou tudo em águas de bacalhau, ou o Amílcar ainda conseguiu,  em vida, ver concretizadas algumas das suas propostas ?

Um abraço com todo o meu apreço pelo teu trabalho de pesquisa, roubado ao tempo de descanso e da família e... se calhar também ao "tempo do patrão"...(**)


Vd. postes anteriores:

17 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17480: (D)o outro lado combate (8): Regime de Sékou Touré e PAIGC: propostas de reforço da cooperação militar, elaboradas por Amílcar Cabral, 4 meses antes de ser assassinado (Jorge Araújo)

3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17537: (D)o outro lado do combate (9): Regime de Sékou Touré e PAIGC: propostas de reforço da cooperação militar, elaboradas por Amílcar Cabral, 4 meses antes de ser assassinado (Jorge Araújo) - Parte II