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domingo, 13 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23075: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXIX: Ìndia, Cochim, novembro de 2016




Índia >  Cochim > 17 de novembro de 2016 >  O autor e a esposa. junto à catedral-basílica de Santa Cruz

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2016) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Cochim, União Indiana, novembro de 2016

por António Graça de Abreu

[Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de três centenas de referências no blogue; texto enviado em 10 do corrente]


Na boca deste rio tem el-rei nosso senhor uma fortaleza mui formosa, 
derredor da qual está uma grande povoação de portugueses 
e de cristãos naturais da terra 
que se fizeram cristãos 
depois de assentada a nossa fortaleza.

Duarte Barbosa, O Livro de Duarte Barbosa, em 1516



Pois, os façanhudos portugueses de antanho, pouco ajuizados, indomáveis, valentes lusitanos da era de quinhentos, Cabral, Gama, Albuquerque. Hoje, na velha Cochim um cemitério holandês e uma imensidão de túmulos vazios. Da fortaleza do tempo de Afonso de Albuquerque resta um pequeno troço da muralha debruçado sobre o mar.

Entro na igreja de S. Francisco, o primeiro templo católico europeu a ser construído pelos portugueses na Índia, em 1503. Lá dentro, lápides e sepulturas de gente da nossa pequena nobreza e a tumba vazia onde esteve Vasco da Gama falecido em Cochim em 1524. O corpo aqui permaneceu até 1539 quando foi transladado para Portugal, pelo seu filho Estevão da Gama. 

Recentemente, uns brasileiros amantes do futebol passaram por esta igreja e tiveram a original ideia de deixar num expositor ao lado do túmulo uma bandeirinha do Club de Regatas Vasco da Gama, homenagem ao nosso navegador. Algum orgulho num não esquecido, ainda faiscante nome português que até deu o nome a um grande clube de futebol do Rio de Janeiro.

Entro numa escola primária, católica, dirigida por freiras. As salas de aula têm as portas abertas para os miúdos verem os turistas estrangeiros, e vice-versa. Rapazes bem dispostos vestem todos umas camisas com quadrados vermelhos, brancos e pretos e saúdam-nos alegremente num inglês macarrónico.

Adiante, fica a catedral-basílica de Santa Cruz. Edificada por portugueses em 1550, foi reconstruída de raiz em 1888. É por isso, um templo mais moderno, imponente, com mil histórias para contar. Um altar com a Senhora de Fátima.

Avanço para o outro lado da antiga de Cochim, com a sinagoga e o quarteirão judaico. Ainda cruzes de David na fachada de seculares habitações e lojas. Existem judeus em Cochim desde o século XI, e a sinagoga, sóbria, com um conjunto notável de candelabros de vidro e o chão revestido com azulejos chineses, foi construída em 1568. A cidade albergou durante centenas de anos franjas de judeus que fugiam das perseguições na Europa, chegados da Holanda, de Espanha, de Portugal, condenados a um distante exílio definitivo. 

Recordo o nosso médico Garcia da Orta (1501-1568) judeu de Castelo de Vide, que por aqui andou e faleceu em Goa. Dizem-me que com a fundação do estado hebraico, em 1948, a maioria dos judeus de Cochim partiu para Israel e hoje apenas meia dúzia de crentes na religião do ramo plural de Abraão e Isaac vivem neste bairro judaico.

Há uma cidade nova de Cochim do outro lado do braço de mar, que não visitei. É nos quarteirões antigos deste burgo que o meu coração melhor pulsa e o sangue melhor circula.

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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23014: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXVIII: Chile, Valparaiso, fevereiro de 2020






Chile, Valparaíso, Fevereiro de 2020 > A primeira foto é da Casa Museu de Pablo Neruda, "La Sebastiana"... Texto e fotos recebidos em 8/2/2022. A última, o autor junto a uma estátua dedicada a  Cristóvão Colombo.

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2022) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Valparaíso, Chile, Fevereiro 2020

por António Graça de Abreu

[Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de  três centenas de referências no blogue. ]


Levantar cedo, partir na impossível-possível descoberta de Valparaíso, terceira maior cidade do Chile, 300 mil habitantes, vidas duras e difíceis. Avisos para ter muito cuidado com as carteiras, as bolsas, os telemóveis, as máquinas fotográficas, para não utilizarmos os transportes públicos e evitar certas zonas urbanas. Enfim, conselhos para sobrevivermos incólumes diante dos amigos do alheio, na aventura de nos lançarmos sozinhos por dentro dos grandes burgos da América Latina.

Subo para um velhíssimo minibus, pago cerca de 50 cêntimos de euro pelo bilhete por um percurso de dois quilómetros. Saio na Plaza Sotomayor, que será o centro histórico de Valparaíso enquadrado por um bonito edifício azul, datado de finais do século XIX onde funciona a Comandancia da Armada. 

Na Plaza, destaque para o monumento e mausoléu aos Heróis de Iquique, uma batalha travada na chamada Guerra do Pacífico, em 1880, entre o Chile e a Bolívia/Peru, vencida pelos marinheiros e soldados chilenos em Iquique, na altura território boliviano e hoje terra do Chile.

A cidade foi fundada em 1536 pelo espanhol Juan de Saavedra que lhe chamou Valparaíso em honra da sua aldeia natal de nome Valparaíso de Arriba, na província castelhana de Cuenca. Desempenhou um importante papel na história do Chile, sobretudo antes da abertura do canal do Panamá, assumindo-se como porto de mar fundamental no comércio do Pacífico e na ligação com Santiago do Chile. 

Fizeram-se e desfizeram-se fortunas nesta terra, construíram-se grandes mansões, igrejas e os mais variados edifícios públicos, alguns deles não resistiram à passagem dos anos, outros mantiveram-se gloriosamente de pé, mau grado os abalos dos terramotos frequentes na região.

Valparaíso, encostada à serrania, alargou-se subindo em escadinha por 45 cerros, tem dezasseis funiculares. Logo a seguir ao porto impera uma confusão de ruas, travessas e vielas que trepam pelos montes. Por isso, se diz que as pernas das mulheres de Valparaíso são as mais bonitas do Chile, esculpidas, alindadas, trabalhadas nestas subidas e descidas pelas trezentas ou quatrocentas escadarias da cidade.

Vou ao encontro da casa que pertenceu a Pablo Neruda (1904-1973). O poeta chileno, Prémio Nobel da Literatura, deu-lhe o nome de Sebastiana, homenageando o seu construtor que a desenhou de raiz, o espanhol Sebastian Collado. 

Era o lugar secreto -- mas conhecido por toda a gente --, onde o poeta se encontrava com as suas amantes e onde acabou por falecer, logo após o 11 de Setembro de 1973. Foi vandalizado depois da sua morte, mas está hoje restaurado como museu. 

Neruda explica como e porquê desejou esta casa: “Siento el cansancio de Santiago. Quiero hallar en Valparaíso una casita para vivir y escribir tranquilo. Tiene que poseer algunas condiciones. No puede estar ni muy arriba ni muy abajo. Debe ser solitaria, pero no en exceso. Vecinos, ojala invisibles. No deben verse ni escucharse. Original, pero no incómoda. Muy alada, pero firme. Ni muy grande ni muy chica. Lejos de todo pero cerca de la movilización. Independiente, pero con comercio cerca. Además tiene que ser muy barata ¿Crees que podré encontrar una casa así en Valparaíso?”

Pablo Neruda encontrou mesmo. E aqui, depois de lapidar mais sortilégios envoltos nas mil magias do fluir da vida, exaurindo, por bem, tanto mundo, o poeta desceu à terra, descansou numa nuvem e mergulhou no mar.

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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22986: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXVII: Castro Laboreiro, Parque Nacional da Peneda-Gerês

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22962: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXVI: Antigua Guatemala, Guatemala, 2016







Guatemala, Antigua Guatemala, 2016


Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo", da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. (*)



António Graça de Abreu

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem já três centenas de referências no blogue.



Antigua Guatemala, Guatemala, 2016


por António Graça de Abreu

Texto e fotos recebidos em 23/10/2021


Nesta América Central, 2016, venho por aí acima, 130 quilómetros desde o Oceano Pacífico, subindo montes, por estradas rasgadas nas encostas de montanhas vulcânicas que se elevam até aos 4.000 metros. Só no caminho, aqui à volta, passamos por quatro vulcões, o Pacaya, o Água, o Fuego e o Acatenango.

A Guatemala tem a particularidade de contar com trinta e um vulcões, quatro deles activos. É, por isso, um país ciclicamente sujeito às calamidades naturais, tremores de terra, erupções vulcânicas com a lava escorrendo por penhascos e desfiladeiros, devorando, ao avançar, terras férteis, vilas e aldeias. 

Para além de todos os desvairos da natureza, os guatemaltecos estão igualmente sujeitos às infindáveis loucuras dos homens. Entre 1960 e 1996 a Guatemala, maior do que Portugal com 190 mil quilómetros quadrados de superfície, viveu tempos de quase permanente guerra civil, em lutas fratricidas por efémeros poderes que se calcula terem provocado 200 mil mortos.

A cidade de Antigua, conhecida localmente como La Antigua, foi fundada por colonizadores espanhóis em 1543, como escrevi encravada entre vulcões. Foi a primeira capital do país, quase totalmente destruída por um terramoto, seguido de grandes inundações, em 1773. Nessa altura construíu-se uma nova capital, a actual cidade de Guatemala, na planura de um vale, mais segura e de mais fáceis acessos, a 50 quilómetros de distância.

Parto à descoberta da Antígua Guatemala, património Mundial pela Unesco. Uma urbe colonial traçada em quadrícula, ruas pavimentadas com um velhíssimo empedrado, casas térreas com pátios interiores quadrados, à moda andaluza, jardins com buganvílias, água a correr, espaços frescos para viver e habitar. Duas dezenas de igrejas e capelas, treze conventos, tudo edificado há três ou quatro séculos, algumas construções já muito arruinadas. É o testemunho dos tempos de Espanha e da fé cristã assumida pelo povo desta terra onde a morte precoce e inesperada espreitava a cada esquina. Implorava-se a protecção de Cristo ou da Virgem Maria, pedia-se um pouco de felicidade em vidas breves, ansiava-se por um descanso eterno. Ingratos, sinuosos, inesperados os caminhos do Céu.

Na Antigua Guatemala metade da população é constituída por pessoas da etnia maia e os traços identitários de cada um saltam à vista. Não contaminados por sangue espanhol, ou europeu, os maias têm a pele mais escura, o cabelo muito negro e liso, os narizes aquilinos, os olhos grandes, encovados que me pareceram sempre tristes. Vestem, no entanto, roupas coloridas em trabalhados entrançados de lã. São a gente mais pobre e desfavorecida da Guatemala, um país onde me dizem que uma dúzia de famílias muito ricas controlam quase toda a produção de açúcar, café, bananas e borracha, as principais exportações do país. Será mesmo assim?

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 24 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22935: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXV: Berlim, Alemanha, 1969

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22884: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXIV: Dazhai, província de Shanxi, China, 1977





Dahzai... China profunda, China toda


Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. C
ontinuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. Texto e fotos recebidos em 23 de dezembro último.


Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais;  autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem já 300 referências no blogue.
 




Dazhai, província de Shanxi, China, 1977


Recordo 大寨 Dazhai, pequena aldeia entre montanhas escalavradas, na província de Shanxi, durante anos bandeira vermelha da agricultura na China porque, em 1964 Mao Zedong lançou o slogan 农业学大寨 Nongye xue Dazhai, ou seja, “na agricultura aprender com Dazhai”.

Com Deng Xiaoping, foi o fim dos desvairos maoístas, das denominadas comunas populares, cresceu a responsabilidade no campo e a criação de riqueza. Dazhai foi silenciosamente lançada para o caixote do lixo do comunismo, tendo-se transformado num estranho pólo turístico, “vermelho” para os velhos nostálgicos do comunismo duro e puro.

Cheguei a Dazhai em Setembro de 1977, com 30 anos de idade, ainda meio maoísta e com um caixote cheio de ingenuidade sínica. No meu diário  – um achado de que muito me orgulho, no meu inédito Diário de Pequim 1977-1983, a publicar um dia –, anotei o que mais me impressionou em Dazhai.

Venho em viagem paga pelas Edições de Pequim a meia dúzia de estrangeiros que lá trabalham. Tenho direito a ruanwoche 軟臥車, ou seja “carruagem cama fofa”. Aprendi que, além desta, existem mais três tipos de carruagens, a yingwoche 硬臥車, ou seja, “carruagem cama dura” com sessenta beliches separados por tabiques, mais o “banco fofo”, almofadado e o “banco duro”, de pau, onde viaja a maioria dos chineses.

Por companheiro – somos apenas dois nas couchettes –, tenho um sudanês enorme, perto de dois metros de altura, de nome Ahmed Kehir, com feições de quase branco e pele negra. Pertence ao Partido Comunista do Sudão, vive exilado na China há doze anos, disseram-me ser poeta, trabalha na revista semanal Pequim Informação, edição em árabe e deve o bom tratamento que lhe é concedido ao facto de, há não sei quantos anos atrás, ter aparecido numa fotografia divulgada por toda a China ao lado de Mao Zedong, em amena cavaqueira com o grande timoneiro.

Comigo, a conversa, em mau inglês. A situação política em Portugal, em África. Pois.

Acordo com a claridade a romper pela janela da carruagem. Lá fora, no lusco-fusco do novo dia, montanhas esventradas, o comboio a avançar, lento e comprido. Túneis, incontáveis curvas e o trem de ferro serpenteando, atravessando pontes, ladeando aldeias penduradas na rocha. A paisagem é bonita, mas bruta. Há desfiladeiros, ravinas, tudo em grande. Isto é a China amarela, China e mais China.

Depois, um autocarro velho e gasto avança para os sessenta quilómetros de estrada até Dazhai. Caminhos estreitos, cheios de camionetas, carroças, carretas com os homens substituindo os animais de tiro. Camiões carregados de carvão, uma das maiores riquezas de Shanxi, motocultivadores barulhentos e fumegantes com um atrelado pequeno transformado em viatura de transporte. Sempre demasiada gente, na berma da estrada mal alcatroada ou a trabalhar nos campos.

Estamos em Dazhai. O chinês da província Shanxi, nestas terras ásperas e ingratas, amalgamou tudo, o suor, o sofrimento, o céu azul, o vento, as tempestades, a alegria, a vida e a morte. Aqui em Dazhai entendo melhor. Os camponeses, na labuta do dia a dia, mergulham na terra, fazem-na sua, são parte deste pó de loess que, depois de tanta luta e suor, lhes dá o pão, o trigo, o milho, o milhete, o sorgo, o algodão, e um dia acolherá os seus corpos.

Dazhai fica a 1.050 metros de altitude, sujeita à permanente erosão das águas e do vento. A pouca terra existente é, ano após ano, arrastada pelas chuvas e pelas enxurradas. As encostas ficam secas, delapidadas e pedregosas, lugares estéreis onde nada cresce. É preciso ir buscar a terra do loess ao fundo dos vales, subi-la, fixá-la nos socalcos também abertos pelas mãos dos homens, construir muros, abrir canais de irrigação. Onde existiam colinas carcomidas pela erosão do tempo vejo agora largas plataformas com 200 ou 300 metros onde amadurece o sorgo, o milho, onde cresce o pão deste povo.

Fico a saber que Jiang Qing, quarta esposa oficial e viúva de Mao Zedong, uma criatura bem pouco amada pelo povo chinês, membro proeminente do chamado “bando dos quatro”, visitou Dazhai em 1975, há apenas dois anos atrás, tendo trazido desde Pequim, no comboio, em carruagem especial, dois cavalos para se passear montando as elegantes cavalgaduras pelos caminhos da aldeia. As crianças da terra diziam que tinha chegado o circo. Os camponeses consideraram isso um insulto e não perdoaram a Jiang Qing. A toda poderosa senhora mandou-o cavar profundos abrigos subterrâneos, prevendo a eventualidade de Dazhai sofrer um bombardeamento atómico. No local que Jiang Qing lhes indicou para os abrigos, as gentes da terra acabaram por construir uma série de pocilgas para a criação de porcos.

À noite, solitário, na cama confortável do quartinho camponês meio suspenso sobre os telhados da aldeia, impressionado com esta terra, escrevo um poema:


Enrijece o milho,
amadurece o sorgo,
florescem laranjeiras.
Os camponeses de Dazhai
transmutam colinas em planícies,
encostas pedregosas em socalcos férteis,
vales inóspitos em searas de trigo.
As raízes vão buscar vida ao loess
adubado com estrume e com sangue,
o suor de cada um é o sémen
circulando no ventre da terra.
Os corações pulsam
ao ritmo da paisagem fecundada,
os meninos, brincam estudam, cantam,
a China cresce.
Mais fácil olhar a montanha que subi-la,
quanto mais elevada mais vasto o horizonte.
Mas haverá sempre outra montanha, mais alta,esperando os homens.

António Graça de Abreu

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Nota do editor:

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22840: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXIII: Atenas, Grécia, 2010







Grécia, Antenas, 2010

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. Texto e fotos recebidos em 27 de setembro  último.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem já perto de 300 referências no blogue.


Atenas, Grécia, 2010


Na capital da pequena/grande Grécia, tentando desvendar esplendores do passado. Com o olhar, ouvir o testemunho de pedras com voz.

Em 2010, a Acrópole em obras, são vinte e cinco séculos de História levantada, esboroada no tempo. No Parténon, conto quarenta e seis colunas sustentando o azul do céu. Frisos depurados em queda, a memória de Fídias, o escultor, transformando o mármore em divindades perfeitas. As cariátades, damas como colunas segurando com a cabeça telhados de alabastro.

Aristóteles, Platão, Sócrates, a democracia, o governo pelo povo, excluindo parte do povo. Quase nada sei. Dos velhos deuses gregos sei que sei ainda menos. Infindáveis parentelas entre as divindades, exemplos de sinuosas e nem sempre edificantes vidas, mitologias de estranha exegese. Muitos destes deuses viajaram para Roma e mudaram de nome. Vénus é a Afrodite grega, que nasceu e cresceu nos arredores da velhíssima Atenas, contemplando o Olimpo. Amamentava o filho Eros, o Cupido romano, desenlaçava um cinto mágico, era esbelta e vingativa. O sinuoso enamoramento do mundo.

Passeio no coração da cidade moderna. Um Stadium, cópia do mesmo de outras eras, algumas igrejas ortodoxas, tudo de passagem. Nossa Senhora, grave e recatada, mais a solenidade faiscante de Jesus e os dourados de Deus, ao modo helénico.

Os guardas do Parlamento, na Praça Syntagma, usam indumentárias estranhas, gorros vermelhos, saias plissadas, meias altas de lã, pompons negros nos sapatos. Desconfio do zelo destes homens.

Bebo um cálice de ouzo, anisado grego para perfumar o sangue. Caminho ao acaso com sandálias de corda. Em Atenas, perto do mar, a sede dos dias, o descambar de utopias face à realidade, apenas o conforto de estar.

António Graça de Abreu
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quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22813: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXII: Salzburgo, Áustria, 2002



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Áustria, Salzburgo e arredores, 2002


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. Texto e fotos recebidos em 11 de novembro último.

Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 290y referências no blogue.



Áustria, Salzburgo, 2002

por António Graça de Abreu


Duas vezes, com intervalo de mais de vinte anos, a viagem de automóvel de Lisboa a Salzburgo, por mil atalhos escondidos na Europa. Não exactamente por causa do Mozart, que aqui nasceu, nem da Família Trapp, cinemografada em filmes de excelência como “Música no Coração”, rodada no palácio de Hellbrun e em mais recantos da cidade, e arredores, com a Julie Andrews, a noviça Maria e as criancinhas a cantar, sob o circunspecto olhar de um capitão Von Trapp a preparar a fuga aos nazis.

Também não vim para o Festival de Salzburgo, com excelsos concertos, ópera e teatro. Passeio pelo empedrado da Getreidegasse, as ruas pedonais da cidade, o rio Salzach dividindo-a em duas partes. O repicar dos sinos na catedral barroca, as primeiras flores nos jardins, um par de noivos fotografando-se em Mirabell Palace.

Subida ao castelo/fortaleza de HohenSalzburg, do século XI. Abarcar a cidade, as torres de palácios e igrejas, os Alpes tudo circundando, Estamos em Abril, as terras altas ainda cobertas de neve.

Aqui em redor, os lagos no fundo das montanhas. Fuschl, que até praia tem, St. Gilden onde nasceu a mãe de Mozart, a vilazinha debruçada no turquesa do lago Wolfangsee. As paisagens da perfeição do mundo.

À noite, pego no carro e faço os trinta quilómetros até ao Mondsee, o lago da Lua. Acho que vim outra vez ao Salzkammergut para o encontro com as magias do Mondsee. A serenidade, o silêncio, a água espelhando luzes raras e a escuridão da noite. Como o poeta Li Bai, há treze séculos atrás, um abraço à lua-cheia, enorme, brilhante, reflectida na evanescente transparência da superfície do lago.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 4 de dezembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22780: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXI: Tahiti, Polinésia Francesa, Oceano Pacífico, fevereiro de 2020

sábado, 4 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22780: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXI: Tahiti, Polinésia Francesa, Oceano Pacífico, fevereiro de 2020


Taiti > Polinésia Francesa > 27 de fevereiro de 2020 > O António e a a esposa, a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai,


Taiti > Polinésia Francesa > 27 ou 28 de fevereiro de 2020 > Uma das praias da ilha


Pormenor do quadro a óleo de Paul Gauguin (1848-1903), "De Onde Viemos? O Que Somos? Para Onde Vamos?
, de 1897. Imagem considerada de domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.

Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. Texto e fotos recebidos em 8 de novembro último.


Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas ao mundo, em cruzeiros. É membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 290y referências no blogue.

Tahiti, Polinésia Francesa, Oceano Pacífico

por António Graça de Abreu


Sob o caramanchão de glicínias lilás,
as abelhas e eu,
tontas de perfume.


Sophia de Mello Breyner Andersen


Lembrei-me de Sophia, cujos versos trago comigo nesta viagem de volta ao mundo, grande senhora da poesia portuguesa do século XX, a quem os deuses concederam o privilégio da exaltação da palavra poética, em lusitanas paragens, mais por grécias do que por polinésias.

Sophia recorda que existem perfumes que nos entontecem, tal como acontece às abelhas, espalhados por todas as proximidades e lonjuras do mundo.

Chego a Tahiti, em finais de Fevereiro de 2020, perdida no imenso Pacífico, protectorado francês desde 1842. Tenho dois dias para tentar descobrir, entender onde estou.

Papeete, com 30 mil habitantes – franco falantes, gente simpática e educada --, é a capital da ilha. Cidade limpa, organizada, no mercado central rivalizam as cores das flores, da roupa e da comida. 

Por aqui, as mulheres costumam colocar uma flor por cima da orelha esquerda ou da orelha direita. A flor na cabeça, à esquerda, significa que a mulher já é casada, ou comprometida. A flor à direita corresponde a uma donzela livre de compromissos, esperando o namoro de um qualquer príncipe ou plebeu. Nesta ilha, esquerda e direita, civilizadas, em flor, são duas opções indiscutíveis. Era bom que fosse assim, em todo o mundo.

Tahiti tem uma superfície de mil e quarenta e dois quilómetros quadrados, um pouco maior do que a nossa Madeira. Nos dois dias de estadia, circundei toda a ilha em transportes públicos, só me faltou avançar para a península de Tahiti Itti, com baías e praias de areia branca em todo o seu esplendor que só visitarei numa próxima reencarnação, quando aproveitar um fim de semana, lá pelas paragens do céu, para regressar a Tahiti, nadar num mar esmeralda e me pôr a tostar em Pointe Vénus, neste pedaço de paraíso na terra.

Na primeira meia volta à ilha procurei, na aldeia de Maitreia, o museu Paul Gaugin, junto à última casa que o pintor habitou, antes do exílio definitivo e morte em Huiva Ao, nas ilhas Marquesas, onde também viveu e foi enterrado o genial Jacques Brel, em 1978.

O museu Gaugin está fechado “para obras” desde 2013. Neste lugar, Paul Gaugin pintou algumas das suas obras-primas, lânguidas mulheres polinésias que soube ou não soube amar, em paisagens de estarrecer. Gaugin, aos cinquenta e muito anos, manteve relacionamentos sexuais e tomou por companheiras raparigas polinésias de dezasseis ou vinte anos de idade e retratou-as em quadros plenos da delicadeza da sensualidade. Será por isso que o actual “politicamente correcto” mandou fechar o Museu Gaugin. Eu entendo. 

Contudo, Paul Gaugin deixa em todos nós um legado mágico, intemporal e louco e é um dos grandes mestres da pintura universal. Basta olhar os seus quadros sobre Tahiti, esfuziantes de cor, a simbiose da alegria e da tristeza, basta beber os seus verdes intensos nas folhas das palmeiras, basta passear os olhos nos azuis acariciando o ondular do mar, basta, tonto pelo perfume da ilha, levitar nos amarelos aquecidos pelo grito do pôr-do-sol.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 21 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22735: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XX: Grécia, Ilha de Rodes, 2010

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22741: Memória dos lugares (431): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte II

 


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Tabatô > Poilões > "A porta do meu coração", diz a Sílivia Margarida Mendes, a portuguea de Évora que conuistaouo coração do "super camarimba" Mamadu Baio (lê-se: Baiô), membro da nossa Tabanca Grande.  

Foto (e legenda): página do Facebook de Sílvia Margarida Mendes... Com a devida vénia...



Mamadu Baio, foto da sua página pessoal no Facebook... Com a devida vénia.  Foi o o fundador e líder dos Super Camarimba.  O João Graça conheceu-o em dezembro de 2009 em Bissau e a sua gente em Tabatô. Vive hoje em Portugal.


(Continuação)


3. O que é hoje Tabatô ?  


Escrevi no poste anterior (*): "Heureca!... A fim destes anos todos (!), descobri finalmemte a localização precisa da famosa tabanca de Tabatô. E mais: vi escrito o topónimo na carta de Bafatá... 

Nunca lá fui no tempo em que estive em Contuboel (de 2 de junho a 18 de julho de 1969)., embora devesse ter andado por lá perto (...).  De facto, nem sequer o nome me ficou no ouvido. A primeira vez que ouvi falar em Tabatô foi através do João Graça que lá passou uma noite, memorável, de 15 para 16 de dezembro de 2009.

Mas pergunta o leitor: porquê a visibilidade dada hoje a esta tabanca perdida no interior da Guiné ?

Tem alguma razão de ser... Na verdade: Tabatô tem beneficiado de bastante "mediatização" nos últimos anos (nomeadamente com o filme "A batalha de Tabatô", do realizador português João Viana) e tem já alguns filhos ilustres, nomeadamente músicos, Jimi Djabaté, Dj Buruntuma, Mamadu Baio, etc. Tabatô é conhecida sobretudo por ser a terra dos antigos "djidius" que percorriam o vasto território do império do Mali e, depois da decadência e fragmentação deste, de reinos locais como do Gabu.

Descobri, entretanto, que qualquer um de nós pode lá passar uns dias úteis e agradáveis, para não dizer umas "férias únicas", como "workawayer", hóspede que paga em trabalho (5 horas por dia / 5 dias por semana) a hospedagem, traduzida em "cama, mesa & roupa lavada"... Ou seja, Tabatô já  está no roteiro mundial do turismo alternativo...

É, de algum modo, uma "tabanca da utopia", no atual panorama da Guiné-Bissau, e oxalá o seu exemplo se multiplique. (Utopia do grego "οὐτόπος", não-lugar, lugar que não existe, mas també, lugar ideal ou idealiado...).

De facto, também  fiquei a saber que a tabanca de Tabatô não é apenas célebre pela sua escola de música, e por ser um grande viveiro da música, dos músicos e dos instrumentos musicais da tradição afro-mandinga. É também uma comunidade viva e aberta, tendencialmente igualitária, e que se tem empennhado na luta por causas nobres e avançadas como os direitos humanos, o desenvolvimento autossustentado, a igualdade de gênero, a mutilação genital feminina, a saúde pública, as alterações climáticas, o ecumenismo, etc.

No sítio Workaway.Info ("a comunidade líder em intercâmbio cultural, férias de trabalho e voluntariado em 170 países"), encontramos a seguinte informação atual, em inglês e em português ,  sobre Tabatõ, da responsabilidade do chefe da Tabanca, de nome Mutaro (, penso que a grafia correta é Mutar).

Workaway  (,do inglês, "trabalhar fora") é uma plataforma, que já existe desde 2002,  que permite aos membros (inscritos) o alojamento  em casa de famílias ou comunidades mediante  intercâmbio cultural. Espera-se que os voluntários ou "workawayers" contribuam com uma quantidade pré-acordada de tempo de trabalho por dia,  em troca de "cama & mesa", que é fornecida por seu anfitrião (Vd. aqui mais na Wipédia).. 

Neste caso, Mutar, o chefe da tabanca de Tabató (, que eu penso ser o Mutar   Djabaté, o velho patriarca do tempo em que lá passou o João Graça, em 2009, ou então um dos seus filhos), dá alojamento e alimentação a dois hóspedes, em troca de trabalho voluntário, de 5 horas por dia / 5 dias por semana, no âmbito das atividades (económicas, sociais, culturais e lúdicas da comunidade). Do género: ensino-te a tocar "balafon" e tu participas na colheita do caju...

 Reproduzimos alguns excertos (negritos e parênteses retos nossos). 



Eis uma primeira descrição de Tabatô:

(...) Tabatô é uma pequena e harmoniosa tabanca,  situada a 10 km de Bafatá, [, a nordeste de Bafatá, e a sul de Contuboel e Jubicunda,] no interior da Guiné-Bissau [, região de Bafatá].

 Nesta tabanca vivem em comunidade 274 habitantes, maioritariamente da etnia mandinga e fula [e uma minoria jacanca, que no passado veio do Mali].

Surpreendentemente, aqui ainda estão muito vincadas tradições que perduram há mais de 4 séculos, sem que estas tenham sido esquecidas ou menos praticadas ,tais como:

  • casamentos tradicionais;
  • danças e músicas afro-mandingas;
  • leituras do Alcorão;
  • "dimbasumo", uma celebração das mulheres;
  • "cambanicafó", uma celebração da união de jovens trabalhadores.

Estas [tradições] conquistam qualquer visitante que espalha a palavra sobre o que é Tabatô, atraindo comoisso muitos visitantes a virem conhecer a nossa comunidade.

O meu nome é Mutar  e sou o lider desta Tabanca. Toco e vivo a música de uma maneira muito intensa desde que me lembro e quero muito transmitir isso mas também aprender sobre (e com outros) estilos de música e de ritmos.

Em Tabatô nós produzimos instrumentos típicos da cultura Mandinga, tais como:

  • Balafon
  • Cora
  • Dumdumtama
  • Neguelin
  • Mirantelen
  • Djembé
  • Cutil
  • Nhanhero
  • Flauta, etc.

Em toda a nossa comunidade, desde os mais novos que ainda gatinham até aos mais anciões, corre a música pelas veias

Tanto usamos a música como uma forma de expressão da nossa cultura e  sentimentos como  também de diversão, e fazemos ações de sensibilização com várias ONG (Médicos Sem Fronteiras, PLAN internacional, TOSTAN Guiné-Bissau,etc) em temáticas de direitos humanos e de desenvolvimento de comunidades como a igualdade de gênero e a sensibilização para que se acabe com a mutilação genital feminina.

Depois de jantar, nós, líderes da comunidade, ensinamos as meninas a cantar e tocar para que lhes seja dada uma oportunidade que não teriam de outra forma. Da venda dos instrumentos musicais e da atuação musical em eventos, conseguimos garantir que todas as nossas crianças tenham acesso às escola.

Somos uma comunidade autossustentável , pelo que usufruímos todos de hortas comunitárias onde produzimos o necessário para nós
  • malaguetas, 
  • quiabo, 
  • "jacatu"
  • tomate 
  • e na época da chuva, amendoim, mandioca, e milho. 

A época da chuva decorre de maio a novembro.

De Março a Junho acontece a apanha do caju, a nossa maior fonte de rendimento.
Ainda na época das chuvas, com o apoio do centro médico de Bafatá, distribuímos na comunidade medicamentos destinados a prevenir a malária e a diarreia.

Se ficaste curioso acerca da nossa comunidade e o nosso modo de vida mas ainda estás com dúvida:
 [ Mutaro, ou mlehor,Mutar, parece ter esquecido aqui o papel, mesmo que modesto, do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné onde o descritor Tabatô tem já cerca de 3 de dezenas de referências; repare-se que esta povoação, qu fica na região de Bafatá,   não teve qualquer papel ou visibilidade, de sinal positivo ou negativo, durante a guerra colonial ou guerra de libertação nacional, conforme o lado da "barricada" em que o leitor se colocar. ] 


Fotogaleria de Tabatô





Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Tabatô > 2021 > Fotos do chefe da tabanca, Mutar Djabaté  / Workaway.Info. Com a devida vénia







Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Tabatô > 16 de Dezembro de 2009 > A tabanca, da etnia minoritária jacanca (leia-se, djacanca), da famíla de Kimi Djabaté (que aqui viveu até aos 21 anos), e onde se aprende a fabricar e  tocar os instrumentos tradicionais (balafón, cora, djembé...) da música afro-madinga... 

 Depois de uma noite memoráve (,a recordar em próximo poste, aqui ficam algumas fotos da despedida do João Graça, médico e músico, membro da nossa Tabanca Grande, em viagem pela Guiné-Bissau, realizada em Dezembro de 2009. Nas fotos, alguns familiares do Kimi Djabaté, filho de Mutar Djabaté.

Fotos (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados.  [Edição e legendagem complemenetar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
]



Sobre as oportundiades de intercâmbio cultural 
e de aprendizagem, diz a "info":


(...) Vais ter a oportunidade de experimentar a vida numa aldeia que funciona como uma comunidade, onde todos trabalham de forma igual para contribuir para o bem e o progresso comuns, mas também para a preservação da sua cultura e presença no mundo.

Por um lado, vais aprender  como cultivamos e consumimos o que produzimos. Por outro, sendo a nossa tabanca tão ligada à música, vais poder emergir na nossa comunidade dançando diariamente. Podemos ensinar
-te a tocar como nós e a fabricar instrumentos e talvez também possas tu ensinar-nos algo de novo! 

Vais poder envolver-te por completo numa atmosfera de energia, música, dança e ritmo

Vais poder perceber e aprender sobre toda uma cultura que perdurou até aos nossos dias, passando pelos tempos da colonização e que, mesmo agora com a globalização, insiste em deixar a sua marca naqueles que nos visitam.


Sobre o perfil dos visitantes/hóspedes ("workawayer") 
mais desejados:

(...) Procuramos pessoas curiosas e flexíveis que queiram contibuir,  com as suas qualificações e competências, para o desenvolvimento sustentável da nossa comunidade de modo a podermos  trabalhar para nos tornarmos totalmente autossuficientes.

Precisamos de ajuda nas nossas hortas e na apanha do caju e também estamos abertos para ouvir sobre técnicas e práticas  agrícolas que não conhecemos

Também queremos pessoas que possam contribuir para o melhor funcionamento e organização de nossa escola primária. Estamos sempre abertos a ideias inovadoras e criativas para que possamos continuar aprendendo.

Em termos de preservação da nossa cultura e tradições, encorajamos a vinda de pessoas com experiência ou interesse em:

  • música e dança, 
  • marketing digital
  • vídeo
  • fotografia
  • gestão de eventos culturais, etc.

Alguns de nós já gravaram algumas músicas e pretendemos continuar produzindo e compartilhando os nossos talentos. 

Atualmente estamos a  construir uma escola de música e também pretendemos construir um mercado para vender os nossos instrumentos para o exterior. Por isso, também damos prioridade a quem possa de alguma forma contribuir com esses projetos. 

Se tu te identificas com algum desses projetos, não hesites em nos contatar! (...)


Como chegar a Tabatô 
e o que fazer lá ?


(...) Temos várias opções, incluindo espaço para instalares a tua caravana, tenda ou carrinha. Se desejares, temos um quarto para hóspedes com um colchão e uma casa de banho onde poderás ficar alojado. 

Alertamos que na época das chuvas haverá muitos mosquitos por isso deverás trazer a tua rede mosquiteira. Temos água corrente e fechadura para a porta para que tenhas a tua privacidade.

Comerás o mesmo que nós, comida típica da Guiné Bissau: muito arroz, acompanhado dos mais variados caldos de peixe e carne. Prepara-te para muita manga, e frutas saborosas com nomes estranhos que te darão saúde instantânea e força. (...)

Embora esta falhe por vezes, temos eletricidade por vía de painéis solares

Falamos  [, além do crioulo, do fula  e do mandinga]:

  • português, fluentemente;
  • francês, razoavalmente;
  • um bocado, o inglês.

Como chegar cá ?

 Vindo do aeroporto de Osvaldo Vieira, em Bissau,  tens duas opções:

(i)  a primeira, apanhando um autocarro às 14h para Bafatá no bairro Internacional, ao lado da mesquita central Atadamu, no bairro da Ajuda; com um custo de 2000 CFA  
 [,3,05 euros,] é a opção mais confortável mas também o mais difícil dos acessos pelo calor e quantidade de pessoas que se deslocam para Bafatá;

(ii) a segunda, apanhando o carro 7plus, a qualquer hora na parada central em Bissau, no bairro do Enterramento, perto do hospital militar; esta viagem custa 2800 CFA 
[,4,27  euros,] mas é mais cofortável.

(iii) chegando a Bafatá, terás que apanhar um táxi para Tabatô mas,  contactando-nos com a devida antecedência, alguém da tabanca irá lá buscar-te.

Nos tempos livres:

Poderás usufruir de passeios de burro pela mata circundante,   ou pelas tabancas mais próximas,  em  passeios de bicicleta. 

Poderás seguir as cantigas alegres que acompanham os trabalhadores no campo, hortas e mato. 

Podes participar de nossos rituais e costumes muito marcantes na nossa cultura. 

No fim de semana, podes ainda ir a Bafatá e Gabú, as cidades mais próximas de nós.

Costumamos passar os tempos livres juntos, ora a cozinhar, ou a conversar, a brincar mas sempre acompanhados de ritmo e música, sempre a cantarolar e a inventar novos sons! (...)

Mais informações que podem interessar o nosso leitor, potencial beneficiário da hospitalidade de Tabató: há acesso à Internet;  há acesso à Internet limitada; o anfitrião, Mutaro, não é  fumador: aceita  animais de estimação; pode alojar uma família e tem parque  para caravanas.


Para saber mais 
sobre este síto "Workaway.Info":

Workawayer, o que é ? 

É um viajante que deseja retribuir às comunidades e aos lugares que visita.  Está disponível para ajudar os anfitriões e usar a experiência para aprender e mergulhar na cultura local.

Workaway-Info é uma plataforma que permite aos membros organizar acomodação em casa de família e intercâmbio cultural. Espera-se que os voluntários ou "workawayers" contribuam com uma quantidade pré-acordada de tempo por dia em troca de hospedagem e alimentação, que é fornecida por seu anfitrião.


 [Adaptação, revisão e fixação de texto para efeitos de publicação deste poste: LG] 
 
(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de novembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22738: Memória dos lugares (430): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte I

domingo, 21 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22738: Memória dos lugares (430): Tabatô, a tabanca da utopia, a 10 km, a nordeste de Bafatá - Parte I

 

Guiné > Região de Bafatá > Carta de Bafatá (1955 ) > Escala 1/50 mil > Posição relativa de Bafatá e de Tabatô que fica a cerca de 10 km, a nordeste, do lado direito da estrada que vai para Contuboel.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)


1. Heureca!...  A fim destes anos todos (!), descobri finalmemte a localização precisa da famosa tabanca de Tabatô. E mais: vi escrito o topónimo na carta de Bafatá... 

Nunca lá fui no tempo em que estive em Contuboel (de 2 de junho a 18 de julho de 1969), embora devesse ter andado por lá perto, uma vez que a CCAÇ 2590 (, futura CCAÇ 12) fez a IAO num raio de 15 km à volta de Contuboel, em farda nº 3 (as praças do recrutamento local), e com espingardas G3 apenas com cartuchos de salva... Só os graduados tinham nos bolsos uma dúzia de balas reais, não fosse o diabo tecê-las... 

Mas na altura o subsetor de Contuboel era um verdadeiro "oásis de paz", com as mais belas tabancas da Guiné,que nunca mais voltei a ver ... (*) Na realidade, nunca devo lá ter ido, a Tabatô, se não, lembrar-me-ia do seu nome... Afinal, os exercícios finais da instrução de especialidade da CCAÇ 2590 decorreram entre 6 e 12 de Julho de 1969, a 10 km a norte de Contuboel, e não a sul (*).

De facto, nem sequer o nome me ficou no ouvido. A primeira vez que ouvi falar em Tabatô foi através do João Graça que lá passou uma noite, memorável, de 15 para 16 de dezembro de 2009 (**).

Já aqui escrevi, há mais de 10 anos atrás: 

"Devo dizer, com toda a sinceridade, que nunca ouvi falar da Tabatô, durante a guerra colonial. (...) Foi o meu filho que me contou a sua experiência ímpar. Passou lá uma noite a curtir a música afro-mandinga e a tocar também 'world music' para os seus novos amigos...

"Tabatô, a aldeia de Kimi Djabaté, é agora a tabanca mais famosa da Guiné-Bissau. É já um lugar mítico, nomeadamente para a malta nova, que não vai em 'turismo de saudade', à procura de lugares e restos do passado, vai à descoberta do futuro, desse continente do futuro, que é a África... E quer ajudar a construir também esse futuro... Nem sei se Tabatô existia no tempo da guerra colonial... Já pedi ao meu amigo Pepito para saber da história da aldeia" (***).


O saudoso Pepito, que tinha uma forte ligação ao subsetor de Cntuboel, onde trabalhou como engenheiro agrónomo, e que representou como deputado na Assembleia Nacional do seu país, deu-me as primeiras coordenadas do lugar (****):

(...) " Luís, Tabató é uma tabanca muito antiga e sempre foi conhecida por ser uma povoação de djidius, isto é cantores, mas cantores que andam de tabanca em tabanca contando a história passada, os feitos individuais e colectivos marcantes e, desta forma, asseguram às novas gerações o conhecimento do passado.

Não me recordo o nome deles na Europa, mas andará à volta de jograis ou trovadores.
[Griots, em inglês e em fancês (LG)]

Alguns são contratados para enaltecerem as qualidades reais ou fictícias de certas pessoas.

É natural que não conheças esta tabanca, uma vez que se situa depois do cruzamento para Contuboel (de quem sai de Bafatá para Gabú), e a cerca de 5 Km da tabanca principal.

É uma tabanca de Djacancas, etnia aparentada aos Mandingas. Abraço, Pepito" (...).

2. Pergunto-me o que será a tabanca hoje ? (*****) E como é que lá se
 chega?  

Tabatô  tem beneficiado de bastante "mediatização" nos últimos anos (nomeadamente com o filme "A batalha de Tabatô", do realizador português João Viana)  e tem já alguns filhos ilustres, nomeadamente músicos. 

Descobri, entretanto, que qualquer um de nós pode lá passar uns dias úteis e agradáveis, para não  dizer umas "férias únicas", como "workawayer", hóspede que paga em trabalho (5 horas por dia / 5 dias por semana) a hospedagem, traduzida em "cama, mesa  & roupa lavada"... Ou eja, Tabatô está no roteiro mundial do turismo alternativo...

Também fiquei a saber que a tabanca de Tabatô não é apenas célebre pela sua escola de música, e por ser um grande viveiro da música, dos músicos e dos instrumentos musicais da tradição afro-mandinga. É também uma comunidade viva e aberta, tendencialmente igualitária, e que se tem empennhado na luta por causas nobres e avançadas como os direitos humanos, o desenvolvimento autossustentado,  a igualdade de gênero,  a mutilação genital feminina, a saúde pública, as alterações climáticas, etc.

Só é pena que as viagens para Bissau ainda sejam caras... E, convenhamos, ainda temos o problema da pandemia de Covid-19 por resolver... Mas pode ser um belo projeto para o futuro... Confesso que ainda lá gostava de ir, mesmo não sendo músico... (LG)

(Continua)


Guiné-Bissau > Bissau > Dezembro de 2009 > No conhecido e conceituado Hotel Spa Coimbra, sito na Av Amílcar Cabral, em pleno centro: da esquerda para a direita, o João Graça, o Mamadu Baio (músico da tabanca mandinga de Tabatô de onde é natural o Kimi Djabaté), o Vitor (cooperante espanhol), a Catarina Meireles (médica, portuguesa, minha antiga aluna na Escola Nacional de Saúde Pública)... Os restantes cinco elementos não sei, de momento, identificá-los. 

O João Graça, músico e médico, na altura interno de psiquiatria, esteve na Guiné duas semanas, em Dezembro de 2009, tendo estado mais tempo em Iemberém (onde prestou cuidados de saúde à população local, durante cinco dias), além de Bissau, e visitado ainda a zona leste (Bafatá, Tabatô, Gabu, Contuboel...) e a região do Cacheu (S. Domingos). Em Bissau conheceu a colega Catarina Meireles. É membro da nossa Tabaa Grande tal como o Mamadu Baio e o Kimi Djabaté.

Foto (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 12 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6720: Álbum fotográfico de João Graça (4): Uma noite memorável na terra de Kimi Djabaté, a tabanca jacanca de Tabatô

(***) Vd. poste de 8 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6695: Memória dos lugares (82): Bafatá, Tabatô, Tabaski 2009:Não há preto nem branco, somos todos irmãos, disse a Fátima de Portugal numa cadeia de união... (Catarina Meireles)

(****) Vd. poste de 11 de julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6713: Memória dos lugares (91): Tabatô, tabanca antiga de Djacancas, berço de didjius, terra de Kimi Djabaté (Pepito)

(****) Último poste da série > 11 de novembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22709: Memória dos lugares (429): Formosa és tu, Cacela... (Poema e fotos do Eduardo Estrela, ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)