segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2487: Guileje, 22 de Maio de 1973 (2): Por mor da verdade dos factos (Nuno Rubim)

Guiné > Guileje > 1973 > Capa do Álbum de fotografias do José Casimiro Caravalho, ex-Fur Mil Op Esp, CCAV 8350 (1972/74). Ele esteve em Guileje de Outubro de 1972 a Maio de 1973 (1). Todas as nossas recordações desses tempos (já lá vão quase 40 anos, para muitos de nós) são fragmentadas. A memória acaba por nos trair em questões factuais, sobretudo datas, nomes de lugares, nomes de camaradas e de unidades, pormenores técnicos do armamento, etc. Daí a necessidade de se recorrer à investigação de arquivo, de procurar fundamentar, na rica documentação do Arquivo Histórico-Militar, e na investigação historiográfica que já se começa a fazer, aqueles pontos, potencialmente polémicos, da guerra da Guiné, e que podem tornar-se questões fracturantes entre nós: por exemplo, a retirada ou abandono de Guileje... Seria bom que também ouvíssemos o depoimento dos protagonistas, mas deixemos também falar os documentos ... (LG)

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > 1973 > O Fur Mil Op Especiais Carvalho, da CCAV 8350 (Guileje, Outubro de 1972/Maio de 1973), montado num dos dois obuses 10,5 existentes em Gadamael.

Guiné > Região de Tombali > Gadamael > O Fur Mil Op Especiais Carvalho, junto à uma das peças de artilharia 11.4, ali existentes em Gadamael. Em Guileje também existiram peças destas, até 16 de Maio de 1973 (altura em que foram substituídas por 2 obuses de 14 cm que entretanto foram capturados pelo PAIGC, na sequência do abandono das NT em 22 de Maio de 1973)... A 18 de Maio, como se sabe, começou a batalha de Guileje (Op Amílcar Cabral, para o PAIGC)...

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.


1. Mensagem Cor Art, na reforma, Nuno Rubim , enviado em 27 de Janeiro de 2008:

Caro Luís Graça

Um abraço

Agradeço-te que publiques no blogue o seguinte:

No blogue de hoje, 27 de Janeiro, deparei-me com uma intervenção do Sr. Prof. Doutor Manuel Rebocho que me causou uma grande perplexidade (2).

Sendo que o blogue teve como ideia original (tua) o vir a constituir um lugar onde todo e qualquer camarada, combatente ou não, que prestou serviço na Guiné durante a guerra colonial, possa transmitir as suas memórias e lembranças desses tempos, o que constituirá um testemunho ímpar para as gerações futuras, tenho vindo a assistir, e cada vez mais, a determinado tipo de intervenções que nitídamente visam "fazer história", o que julgo que se afasta dos propósitos originais, determinando, entre outros graves inconvenientes, o de poder desencadear polémicas que, por o serem, não levam, na maioria dos casos, a qualquer tipo de conclusões objectivas, podendo mesmo induzir os leitores em erros de desinformação.

Mas o que me parece mais grave é que são feitas, muitas vezes, afirmações destituídas de qualquer realidade histórica, i.e., não são apoiadas em documentação oficial que, não sendo de per si inquestionável, ainda é a única base científica susceptível de apoiar o que se escreve ou se diz, como julgo que o Sr. Prof. bem sabe.

Ora no caso vertente o Sr. Prof. Doutor Manuel Rebocho estabelece várias considerandos, um que liminarmente desde já rebato, outro que gostaria que viesse a ser documentalmente apoiada, para assim ser devidamente autenticada.

Afirma o Sr. Prof.:

1- As peças que estavam em Guiledje eram de calibre 10.6, e mais nenhum outro.

Desloquei-me ao Porto, onde vive o Capitão miliciano (claro) que comandava a companhia que fugiu de Guiledje. Ele próprio da arma de Artilharia, conhecedor do assunto, com quem troco frequentes telefonemas e e-mails, e que não me deixa enganar no calibre das peças. Está-me frequentemente a corrigir.



Realmente fico pasmado! O calibre das peças era 11,4 cm, sendo que foram substituídas por obuses de 14 cm dois dias antes do ataque do PAIGC, por já não existirem munições. Foram recebidas em Guileje sem tábuas de tiro e com apenas um aparelho de pontaria ! (Doc 1).

Por outro lado nunca houve material com o calibre 10,6. Existiram, sim, obuses de 10,5 cm de origem alemã Rheinmetall e Krupp), adquiridos durante a 2ª Guerra Mundial.


Doc 1 > Relatório da Acção Bubaque, realizada em 18 de Maio de 1973, na região de Guilege (sic)

(...) "As forças envolvidas foram apoiadas com cerca de 55 granadas de obus 14 cm. No entanto verificou-se que o tiro estava extremamente pouco preciso, facto que está relacionado com certeza com a chegada dos dois obuses, na coluna de antevéspera, em substituição do materail 11,4 cm que seguiu na mesma coluna para Gadamael. De notar que vieram apenas 2 obuses, sem tabelas de tiro e, um deles, sem aparelho de pontaria"


Fonte: Arquivo Histórico-Militar / Nuno Rubim (2008)

2 - O Major Coutinho e Lima, no momento em que ordenou o abandono de Guiledje, já não era comandante do COP 5, pois havia sido substituído no dia anterior. O Comandante era agora o Coronel Pára-Quedista (hoje Major-General) Rafael Ferreira Durão, o mais prestigiado Oficial Pára-Quedista de todos os tempos, por quem tenho elevada consideração e amizade. Coutinho e Lima era, no dia 22 de Maio de 1973, segundo comandante do COP 5, razão pela qual não tinha competência orgânica para dar a ordem que deu.

Não tendo qualquer procuração do Coronel Coutinho e Lima, passo a responder a esta afirmação que, pelos vistos, foi feita sem qualquer fundamento, e que se encontra claramente exposta, pelo menos e cronologicamente, nos Doc. 2, 3 e 4, hoje arquivados no Arquivo Histórico-Militar (atenção aos grupos data /hora ).

Finalmente as suas considerações acerca do Coronel Rafael Durão são perfeitamente
legítimas, mas de nenhuma forma as subscrevo.


Nuno Rubim (2)

-CPM 130, Moçambique 1961-1963
-Ex-Comdt das CART 644, CCmds, CCAÇ 726 e CCAÇ 1424, Guiné 1964-66
-Centro de Instrução de Comandos, Angola 1967-69
-SRT, Guiné 1972-74

Doc 2 > "Em 21 [de Maio de 1973] às 16h00, o Comandante do COP 5 com uma força constituída por 1 Gr Comb / CCAÇ 4743, 1 Gr Comb / CCAÇ 3520 e 1 Sec Pel Mil 235, deslocou-se apeado de Gadamael para Guileje onde chegiu em 21, às 18h30. "Dia 22 de Maio de 1973: Em 22, às 5h30, Guileje foi evacuada.

"O Chefe da Repartição de Operações, Mário Martins Pinto de Almeida, Ten Cor do CEM"

Fonte: Arquivo Histórico-Militar / Nuno Rubim (2008).

Doc 3 > Mensagem do Com Chef Oper para a CCAÇ 4743, com data de 22 de Maio de 1973, às 18h00: " 1652/C. Ref Mensagem Relâmpago de 22 de Maio de 1973, às 12H15, s/ número, solicito informe Cmdt CAOP 3, Cor Pára Ferreira Durão, que Sexa General Comandante-Chefe determinou seja retirado imediatamente do comando COP 5 Maj Art Alexandre da Costa Coutinho e Lima e mandado apresentar QG/CCFAG para efeito auto corpo delito".

Fonte: Arquivo Histórico-Militar / Nuno Rubim (2008)



Doc 4 > Mensagem (relâmpago) do Com Chefe Oper para CAOP 3, com data de 24 de Maio de 1973, às 21h20: "1700C. Sexa General determina retirado comando Major Coutinho Lima desde data m/msg 1652/C [vd. Doc 3] ,devendo seguir via Cacine em Sintex. Tarde de 25 de Maio não deve já estar em Gadamael".

Fonte: Arquivo Histórico-Ultramarino / Nuno Rubim (2008).

Revisão e fixação de texto: LG

2. Comentário do editor L.G.:

Duas das regras de ouro da nossa tertúlia são - passo a citar - a "verdade dos factos" e a "manifestação serena mas franca dos nossos pontos de vista, mesmo quando discordamos, saudavelmente, uns dos outros (o mesmo é dizer: que evitaremos as picardias, as polémicas acaloradas, os insultos, a violência verbal)"...

Ou seja: estamos aqui todos (ex-combatentes, de um lado e de outro, antigos soldados, sargentos e oficiais milicianos e até sargentos e oficiais do quadro permanente, dos três ramos das forças armadas portuguesas), não para dividir, nem para reinar, mas sim porque temos a Guiné... marcada, para sempre, no coração, na memória, no corpo e na alma.

Também é desejável (embora não obrigatório...) que nos tratemos por tu, como camaradas de armas que fomos, no TO da Guiné... Na comunicação entre nós, no blogue, nos e-mails, nos encontros tertulianos, os títulos académicos ou os cargos ou funções actuais bem com as patentes militares (de ontem ou de hoje) não devem ser um obstáculo à construção deste belíssimo projecto que é a partilha, entre nós (e entre nós e os outros), da vivência e da experiência, de cada um, da guerra do ultramar / guerra colonial / luta de libertação...

Dito isto, aqui ficam os esclarecimentos dados pelo nosso querido amigo e camarada Nuno Rubim, que eu espero sejam recebidos pelo Manuel Rebocho (que foi um valoroso combatente pára-quedista, de um batalhão excepcional, o BCP 12, que terá ajudado a salvar muitas vidas de camaradas nossos no sul e norte da Guiné, no final da guerra, entre 1972 e 74...) , e que é também meu confrade nas lides académicas, não sei se actualmente é professor universitário, mas pelo menos é doutorado em sociologia por uma universidade portuguesa, a de Évora), espero, dizia eu, que o Rebocho receba com serenidade, sabedoria, reconhecimento e flair play estes esclaracimentos do Nuno Rubim que pretendem apenas repor a verdade dos factos em relação a dois pontos:

(i) o calibre dos obuses de Guileje;

(ii) quem comandava o COP5 no dia e na hora da retirada de Guileje (o termo fuga é demasiado forte e implica um juízo de valor que pode ser doloroso e até injusto para muitos camaradas nossos que nos lêem)...

Naturalmente que o oficial superior visado, o então Major de Artilharia (e actual Cor Art, na reforma) Coutinho e Lima (que eu conheci pessoalmente no dia da estreia do filme de Diana Andringa e Flora Gomes As Duas Faces da Guerra e que me disse estar a escrever um livro sobre Guileje), tem também o direito de defender o seu bom nome, se for caso disso, nas páginas deste blogue, muito embora ele não faça parte da nossa tertúlia ou Tabanca Grande...

Prezamos muito a liberdade de expressão neste blogue, mas também o bom nome e a dignidade das pessoas... Sabemos que nem sempre é fácil conciliar uma coisa e outra. Isto também quer dizer que não procuramos (nem alimentamos) polémicas, muito menos para fazer subir a blogometria...
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Notas de L.G.:

(1) Sobre o José Casimiro Carvalho (que vive na Maia), vd. entre outros os seguintes postes :

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G91

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)


(2) Vd. poste de 27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2484: Guileje, 22 de Maio de 1973 (1): Pontos (polémicos) por esclarecer (Amaro Samúdio / Nuno Rubim / Manuel Rebocho)

domingo, 27 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2486: Memória dos lugares (5): Bambadinca, 2006 (Rui Fernandes / Virgínio Briote)


Os nossos lugares vistos com outros olhos

Os olhos não são os nossos, são os do Rui Fernandes, o nosso novo companheiro da Tabanca Grande.

O Rui não anda com a G3 nem com granadas na mão, anda com outras armas, indispensáveis para a melhoria das condições de vida dos nossos Amigos Guineenses.

Para reavivar a memória de tantos de nós, que por Bambadinca passaram, juntamos mais algumas fotos que o Rui Fernandes teve a amabilidade de nos enviar juntamente com a mensagem:

Caro V. Briote

Consegui hoje ver o post que colocou. Perfeitamente correcto.

Sei que muitos de Vós vão este ano ao Simpósio e "in loco" rever locais por onde "palmilharam".
No entanto muitos mais não têm essa oportunidade, pelo que penso será um contributo para estes.

(...)

Há pouco escrevi-lhe quase a correr e lamentavelmente não agradeci a inclusão na Tabanca Grande o que me deu uma grande satisfação.

Com os meus cumprimentos,

Rui Fernandes
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Memória dos lugares (5) > Rui Fernandes, um Amigo da Guiné.

Os lugares de muitos de nós > Revisitar Bambadinca (II)




Foto 10. Referência nº 28 (?) encontra-se em ruína e a referência nº 27 (?) não existe. 2006.








Fotos 11, 12 e 13. Referência nº 17 (oficinas de rádio). 2006.
É já há alguns anos o Centro de Saúde.

Em 2003, quando lá cheguei, já era Centro Saúde. Sofreu obras de restauro em 2004 (concluídas em Abril) no projecto da ONG -Associação Saúde em Português (Coimbra), (...), co-financiado pela União Europeia e pela Cooperação Portuguesa.
A casa que se vê à direita foi construída em 2004 e são as instalações da GuinéTelecom (em realce na 13ª foto).
Nota-se em cima e a meio da foto, parte da estrutura do mastro de suporte das antenas.


Foto 14. Referência nº 15 (estrutura à direita), em relação à foto aérea falta uma estrutura entre esta e a da esquerda que não tem referência na foto aérea. A referência nº 16 não existe. 2006.


Foto 15. Sem referência na foto aérea mas são as duas estruturas que se vêem no canto inferior direito. Faltam as duas árvores. 2006.
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Notas de vb: Vd posts de :
Guiné 63/74 - P2475: Memória dos lugares (4): Bambadinca, 2006 (Rui Fernandes / Virgínio Briote)
Guiné 63/74 – P2213: Dando a mão à palmatória (2): Rui Fernandes, o fotógrafo do pintor Augusto Trigo (Virgínio Briote)
Guiné 63/74 - P2177: Artistas guineenses (1): Augusto Trigo, nascido em 1938, em Bolama
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Fotos: © Rui Fernandes (2007). Direitos reservados

Guiné 63/74 - P2485: O nosso armamento no princípio da guerra: G-3, FN, Uzi (Santos Oliveira)

A espingarda automática FN, de origem belga [produzida pela Fabrique Nationale]

A pistola-metralhadora UZI, de origem israelita

A espingarda automática G-3, de origem alemã.


1. Mensagem do Santos Oliveira (1), de 20 do corrente, dirigida ao Mário Dias, com conhecimento aos editores do blogue:

Amigo caríssimo Mário:


Afinal, parece que sou bem mais azelha que o que pensava, pois não conseguia comunicar contigo devido a um simples til.

Mas, já agora, acerca do assunto em esclarecimento (das estrias da G3), não há um Camarada ilustre, o Victor Condeço, que era Mecânico de Armamento? Suponho que é dos anos seguintes aos nossos, mas deve ter documentação mais completa que a minha e da minha curiosidade daquela época me ter guiado para o fresado. Mas, cá vai o que sei e o que penso estar certo.

Mais uma vez, mil perdões por interferir.

Um imenso abraço, do
Santos Oliveira

2. Mensagem enviada ao Mário Dias e ao Virgínio Briote:

Caros Amigos:

Sem criar polémicas, entendo que é um mau exemplo o meu Alferes ter, um dia, transportado a arma naquela posição (2). Eu pregar-lhe-ia uma porrada se fosse da minha competência. Razão, muita razão tinha o nosso Furriel em condenar e censurar.

O Mário Dias ouviu, certamente, o meu desabafo acerca dos equipamentos com que ambos os lados iniciaram a Guerra. Eu disse que a nossa G3 (FBP) não conseguia fazer tiro útil, em determinadas condições de terreno, como, por exemplo, se se molhassem; mas também afirmei que a minha G3 (original Mauser) nunca se encravou.

O ponto de que o Mário fala, as estrias, é o ponto fulcral. Efectivamente só haviam 4 estrias longitudinais, mas cuja diferença era, tão-somente, o tipo de fresado que as diferenciava. Enquanto que o fresado das originais (da minha, por ex.) tinha um ângulo de uns 30 graus (??) as de origem em Braço de Prata eram perpendiculares (90 graus), o que facilitava a acumulação de poeiras e pólvora, que depois de humedecida…

De resto a minha G3 e a minha UZI foram fabulosas, embora a minha função não fosse igual, nem semelhante, àquela que vocês tiveram.

Essa G3, eu também defendo. Ainda deve estar aí para as curvas…

No manual que vos anexo, não há nenhuma referência às estrias do cartucho. Na época, também não se sabia qual arma que viria ser aprovada (se a G3 ou se a FN) e por isso a sua produção, em Portugal, nem sequer era equacionada (3).

Espero ter dado o meu contributo.

A ambos, com admiração, o meu abraço

Santos Oliveira

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Notas dos editores

(1) Vd. poste de 24 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2301: Tabanca Grande (41): Santos Oliveira, 2.º Sarg Mil de Armas Pesadas Inf (Como, Cufar e Tite, 1964/66)

(2) vd.postes de:

19 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2458: Os sulcos... e as estrias da G3 (Mário Dias / Virgínio Briote)

17 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2445: Em louvor da G3, no duelo com a AK47 (Mário Dias)

(3) Sobre armamento usado pelo Exército Português no início da guerra colonial / guerra do ultramar, vd. sítio do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra


(...)
Espingardas: O desencadear das hostilidades revelou, logo de início, em qualquer dos três teatros, a falta de uma arma automática de base: em Angola, os ataques em massa não podiam ser eficazmente contrariados com espingardas de repetição; na Guiné e em Moçambique, os guerrilheiros dispuseram, desde o princípio, de armas automáticas que lhes davam nítida vantagem sobre algumas das tropas portuguesas (caso das unidades de guarnição normal).

Assim, a prioridade, em 1961, foi a obtenção imediata de armas automáticas, mas tendo em atenção a necessidade de garantir o fluxo de abastecimento de munições e sobressalentes, o que só poderia ser plenamente conseguido através do fabrico nacional. Duas armas pareciam corresponder aos desideratos operacionais então formulados: a FN, de origem belga, e a G-3, de origem alemã. Quanto às munições, não havia problema, porquanto o cartucho de 7,62 mm era já fabricado em Portugal e exportado em larga escala, sobretudo para a RFA [República Federqal Alemã].

Foram assim adquiridas (com dificuldades, como veremos), dois lotes destas duas armas:
- FN: 3835 sem bipé (s/b) e 970 com bipé (c/b);
- G-3: 2400 sem bipé (s/b) e 425 com bipé (c/b).

Estas armas foram testadas em operações, “a quente”, tendo-se concluído, de modo genérico, que as FN eram de mais fácil transporte, mas o sistema de regulação de gases levantava problemas com pessoal pouco instruído; quanto às G-3, tinham mais precisão, mas o sistema de travamento de roletes revelava tendência para quebrar. No entanto, ambas foram consideradas como satisfazendo os requisitos operacionais. (...)


Sobre as dificuldades de abastecimento com que se deparou o Exército Português no início da década de 1960, no quadro da guerra colonial / guerra do ultramar:

(...) Na época, qualquer fornecimento de material militar a Portugal era extremamente melindroso, não sendo de admirar as dificuldades encontradas. No tocante ao fabrico, a decisão tenderia naturalmente para a opção alemã, mais que não fosse pelo grande volume de transacções já existente entre a RFA e Portugal (dezenas de milhões de cartuchos 7,62 e centenas de milhares de granadas de artilharia eram fabricadas nas FBP [Fábrica Braço de Prata] e FNMAL [Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras ] e vendidas à Alemanha). O fabrico nacional ficou decidido ainda em 1961, saindo as primeiras armas 15 meses depois (fins de 1962), para o que foi determinante a transferência de tecnologia e a assistência à produção, que permitiram, a partir de 1962, o fabrico de canos e carregadores.

Para acorrer às necessidades imediatas, a RFA [República Federal Alemã] prontificou-se a ceder, dos seus stocks, 15 000 espingardas FN usadas, sem restrições de emprego, que deveriam ser devolvidas depois de beneficiadas e à medida que fossem fabricadas as G-3. De facto, foram recebidas 14 867 FN por esta via, mas quanto à devolução, parece não ter havido pressa, porquanto, em 1965, havia já cerca de 140 000 G-3 de fabrico nacional e estas FN continuavam em Portugal.

Ainda quanto às espingardas FN, foram também adquiridas directamente à fábrica, ou através de outros utilizadores (África do Sul). Mais concretamente, dado o carácter de urgência, houve um lote de armas cedido por este país dos seus próprios stocks, posteriormente repostos pela fábrica belga. No total seriam fornecidas cerca de 12 500 destas armas.

Antes da adopção da G-3, a distribuição prevista de armas automáticas era a de FN para Moçambique e de G-3 para Angola, mas problemas políticos levaram a que, em certo período, a G-3 fosse mantida “fora de vistas” nesta última. O total de armas adquiridas, antes do fabrico nacional, foi de 8000 G-3, 12 500 FN belgas e de 14 500 FN alemãs, repartidas pela metrópole, Guiné, Angola, Moçambique e Timor.

A produção julgada necessária em Junho de 1961 era de 105 000 armas, sendo 75 000 para a metrópole e 30 000 para o ultramar. O conceito inicial era de manter na metrópole o número de armas destinadas à instrução e ter em depósito as necessárias para equipar as unidades mobilizadas, mas o futuro se encarregaria de inverter esta distribuição. É curioso notar que só por despacho de 18/9/65 do CEMGFA a G-3 foi considerada “arma regulamentar”. (...)


Quanto às pistolas-metralhadoras (PM):

(...) a orgânica anterior a 1960, as pistolas-metralhadoras (PM) tinham uma distribuição relativamente elevada (uma por secção de atiradores). Existia mesmo uma PM de concepção nacional, a FBP de 9 mm m/947, que tinha o inconveniente de só fazer tiro automático, problema resolvido com o novo modelo (m/961), que podia fazer também tiro semi-automático.

A adopção de uma espingarda automática relegou as PM para segundo plano, porquanto obrigavam a dois calibres nas unidades elementares e identificavam os comandantes a quem estavam normalmente distribuídas. Apesar disso, foram adquiridas PM, quer importadas (UZI de concepção israelita), quer de produção nacional (FBP m/961), empregues essencialmente na defesa de instalações e nas forças de segurança e de autodefesa. (...)

Guiné 63/74 - P2484: Guileje, 22 de Maio de 1973 (1): Pontos (polémicos) por esclarecer (Amaro Samúdio / Nuno Rubim / Manuel Rebocho)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1971 > Vista aérea, obtida de DO > Foto do então Cap (hoje Cor) Jorge Parracho, da CCAÇ 3325 (Jan 1971/Dez 1971). Esta unidade foi substituída pela açoriana CCAÇ 3477, Os Gringos de Guileje (Nov 1971 / Dez 1972) (contacto: Amaro Munhoz Samúdio) que, por sua vez, foi rendida pela CCAV 8350, Os Piratas de Guileje(Dez 1972/Mai 1973) (contacto: José Casimiro Carvalho).

Foto: © Jorge Parracho / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Catió > Álbum fotográfico de Benito Neves, bancário, reformado, residente em Abrantes, ex-Fur Mil da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67) > Foto 28: "Cufar, 1966 - Artilharia no quartel de Cufar, Obus 8.8 cm".


Foto e legenda: © Benito Neves (2007). Direitos reservados.

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CART 2410 (Junho de 1969 a Março de 1970) > O Alf Mil José Barros Rocha posando sobre a roda de uma peça de artilharia 11,4... Os Dráculas da CART 2410 estiveram em Guileje, de Junho de 1969 a Maio de 1970. Sobre a questão dos calibres 11.4 (peça de artilharia) e 14 (obus), já se aqui publicaram vários postes ( ).

Foto: © José Barros Rocha (2007). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3477 (Novembro de 1971/ Dezembro de 1972) - Os Gringos de Guileje > O Munoz Samúdio, que era 1º cabo enfermeiro, junto à peça de artilharia 11.4, do 15º PELART.

Foto: © Amaro Samúdio (2006). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça junto ao velho obus 10.5, possivelmente de marca Krupp, uma temível arma que vinha da II Guerra Mundial... O obus é, por excelência, uma boca de fogo especializada em tiro curvo, de longo alcance... O seu alcance era, porém, limitado: 10/12 km, no máximo, creio eu, com uma cadência de dois a quatro tiros por minuto, na melhor das hipóteses ... (LG)

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

1. Mensagem enviada pelo editor do blogue ao Nuno Rubim, ao Casimiro Carvalho e ao Amaro Munhoz Samúdio:

Leiam com atenção esta mensagem... Só sabemos que se chama Paiva, e foi furriel de artilharia no pelotão de artilharia, que estava em Guileje, quando esta unidade foi abandonada por decisão do comandante do COP 5, Major Coutinho e Lima... É um testemunho dramático, de um homem que atravessou a nada o Rio Cacine, já na fuga de Gadamael, e foi salvo por um milícia de que não se lembra o nome...

Vou pedir ao Paiva que nos contacte de novo e nos dê as suas coordenadas, sobretudo para o ajudar a reencontrar os seus camaradas (e a reorganziar as suas memórias, doridas, daquele tempo)... Seria uma pena que este pungente testemunho ficasse escondido sob a forma de comentário a um dos nossos postes ...

Nuno, Casimiro: Vocês sabem qual era o nº do pelotão de artilharia que estava em Guileje, no dia 22 de Maio de 1973 ? Amaro, este camarada, o Paiva, ainda é do teu tempo ? Há contactos com esta malta, os artilheiros ? Digam alguma coisa antes de eu poder publicar este texto (que já saiu, anonimamente, como comentário...)... Acrescentem os vossos comentários... Um abraço. Luís


2. Mensagem do Amaro Samúdio (dos Gringos de Guileje, a CCAÇ 3477, Guileje, 1971/72):

Luís Graça:

Naturalmente que vou fazer esforços no sentido de obter informações exactas, que possam ajudar o Paiva a encontrar os seus camaradas.

Exacto é que em 21 de Novembro de 1971,quando a CCAÇ 3477 chegou a Guileje, a Unidade de Apoio era o 15º PELART [Pelotão de Artilharia].

Não foram, nunca o foi dito, os Gringos [da CCAÇ 3477] a viverem os dramáticos acontecimentos do abandono de Guileje [, em 22 de Maio de 1973].

Tenho em mente que os obuses 14 chegaram a Guileje pouco antes de lá sairmos em 15 de Dezembro de 1972 [, sendo substituídos pelo BCAV 8350]. E aqui fica a grande questão
do abandono que já tenho tentado abordar.

Para parar qualquer ataque mais violento ao quartel, os 11.4 sabiam ... Kandiafara.
Qualquer nova base de ataque tinha que ser descoberta e eram as DO, posteriormente, a sobrevoar, que diziam se as coordenadas estavam a acertar no local.

Como é possível, e o Nuno Rubim tem toda a razão, que os [obuses 14] cumprissem a sua missão. Para onde iam actuar... Crime puro e simples.

Um Abraço


3. Resposta do Nuno Rubim (Cor Art, na reforma, especialista em história da artilharia):

Caro Luís

Será de facto um testemunho muito importante. O Pel Art que lá estava, era, segundo os dados que tenho, o 15º. Estava equipado com três 11.4 cm e por terem acabado na Guiné (e cá também ... ) as munições, foi substituído em 16 de Maio [de 1973], dois dias antes do início do ataque do PAIGC, por dois obuses de 14 cm.

Terão vindo de Bissau 3, mas um terá caído pela borda fora ( será possível ??? ) em Cacine ! ( Documentos que encontrei no Arquivo Histórico-Militar).

Ora esse nosso camarada, o Paiva, poderá dar importantes achegas, nomeadamente como foi feita a regulação do tiro ( só veio um aparelho de pontaria e nenhuma tábua de tiro !!!). [não há palavras ... !!! ]

Tenho também notícia que o Alf Cmdt do Pel foi morto num bombardeamento do PAIGC por esses dias.

Há pois várias questões que eu gostaria de lhe perguntar e que podem resolver alguns dos mistérios ainda em aberto.

Um abraço

Nuno Rubim


4. Comentário do Nuno Rebocho (ex-sargento da CCP 123 / BCP 12, Guiné 1972/74, sargento-mor pára-quedista, na reforma, doutorado em Sociologia pela Universidade de Évora):

Só dois ajustamentos:

(i) As peças que estavam em Guiledje eram de calibre 10.6, e mais nenhum outro. Desloquei-me ao Porto, onde vive o Capitão miliciano (claro) que comandava a companhia que fugiu de Guiledje. Ele próprio da arma de Artilharia, conhecedor do assunto, com quem troco frequentes telefonemas e e-mails, e que não me deixa enganar no calibre das peças. Está-me frequentemente a corrigir.

(ii) O Major Coutinho e Lima, no momento em que ordenou o abandono de Guiledje, já não era comandante do COP 5, pois havia sido substituído no dia anterior. O Comandante era agora o Coronel Pára-Quedista (hoje Major-General) Rafael Ferreira Durão, o mais prestigiado Oficial Pára-Quedista de todos os tempos, por quem tenho elevada consideração e amizade. Coutinho e Lima era, no dia 22 de Maio de 1973, segundo comandante do COP 5, razão pela qual não tinha competência orgânica para dar a ordem que deu.

Por esta razão não se pode considerar que a retirada de Guiledje tenha obedecido a qualquer estratégia, porque a estratégia não era da competência de Coutinho e Lima. Então, a retirada de Guiledje só pode ser apelidada de fuga.

Coutinho e Lima (4) foi demitido de Comandante do COP 5, no dia 21 de Maio de 1973, porque Spínola o encontrou no Bar de Oficiais em Bissau, e não lhe perdoou, naturalmente.

Bom. Ficamos por aqui.

Um grande abraço, amigo Luis Graça

Manuel Rebocho
___________________

Notas dos editores:

(1) Vd. poste de 27 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gandembel (ex-Fur Mil Art Paiva)

(2) O nosso especialista em artilharia, o coronel na reforma, Nuno Rubim, diz que o 11.4 é uma peça (de artilharia) e o 14 é que é o obus... Alguns de nós, como eu, fazem confusão sobre os calibres: havia, na Guiné, vãrios calibres de peça de artilharia. Vd. os seguintes postes:

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1443: Contributo para a história da construção do aquartelamento de Guileje (José Barros Rocha, CART 2410, Os Dráculas, 1969/70)

15 de Janeiro de 2007 >Guiné 6/74 - P1434: Artilharia em Guileje: a peça 11.4 e o obus 14 (Nuno Rubim)

6 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1407: Tertúlia: apresenta-se o Coronel de Cavalaria Carlos Ayala Botto, ajudante de campo do General Spínola

8 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1159: Álbum fotográfico (Hugo Moura Ferreira) (2): Bedanda, ontem (CCAÇ 6, 1970) e hoje

6 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1155: Álbum fotográfico (Hugo Moura Ferreira) (1): Bedanda, CCAÇ 6, 1970: O Obus 14 contra o foguete Katiusha

(3) Vd. postes de:

27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça)

5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2083: Em busca de... (10): Coutinho e Lima, o comandante do COP5 que decidiu abandonar Guileje e foi acusado de deserção (Beja Santos)

(4) Vd. curriculum vitae do Cor , na reforma, Coutinho e Lima, um dos oradores do Simpósio Internacional de Guiledje (1 a 7 de Março de 2008):

(...) Ingressou na Escola do Exército a 15 de Outubro de 1953:- Promoção a Alferes a 10 de Setembro de 1957; Passagem à situação de reforma em 1982, como Coronel.- Comissões nas antigas Províncias Ultramarinas: 3, todas por imposição, na Guiné:
1ª – Capitão, Comandante da Companhia de Artilharia nº 494. A CART 494 ocupou as seguintes posições: Ganjola (de Setembro a Dezembro de 1963); Gadamael Porto – (de 17 de Setembro de 1963 a Maio de 1965);
2ª - Capitão, Adjunto de Repartição de Operações de Comando - Chefe das Forças Armadas da Guiné, em Bissau (de 24 de Julho de 1968 a 23 de Julho de 1970);
3ª – Major, em Bolama (de Setembro de 1972 a Janeiro de 1973); em Guiledje, Comandante do COP 5, de 21 de Janeiro de 1973 até 22 de Maio de 1973 (Data da retirada de Guiledje).

Prisão preventiva em Bissau, de 22 de Maio de 1973 até 12 de Maio de 1974. Auto de corpo de delito, por despacho do Sr. General António de Spínola, de 22 de Maio de 1973, com a seguinte justificação:

- Ordenou a retirada das forças sob o seu comando do quartel de Guiledje para Gadamael, sem que para tal estivesse autorizado;
- Mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do referido quartel, bem como material de guerra e munições;
- Não cumpriu a missão que lhe foi atribuída.

O processo foi concluído em 10 de Abril de 1974, no Tribunal Militar Territorial da Guiné e transferido em 2 de Maio de 1974 para o 1º Tribunal Militar de Lisboa, onde se processaria o julgamento. A pena prevista para os crimes supostamente cometidos era de 6 meses a 4 anos de presídio militar. O processo foi amnistiado pelo Decreto-Lei nº 194/74 da Junta de Salvação Nacional e, por decisão unânime dos Juízes do mesmo, foi ARQUIVADO (...).

Guiné 63/74 - P2483: Estórias de Guileje (3): Devo a vida a um milícia que me salvou no Rio Cacine, quando fugia de Gadamael (ex-Fur Mil Art Paiva)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Uma Lancha de Desembarque Média (LDM) com militares e populares no Rio Cacine.

Foto: © Delgadinho Rodrigues / Manuel Rebocho (2006). Direitos reservados.


1. Só sabemos que se chama Paiva, e foi furriel de artilharia, no pelotão de artilharia que estava em Guileje, quando esta unidade foi abandonada por decisão do comandante do COP 5, Major Coutinho e Lima... É um testemunho dramático, de um homem, de fuga em fuga, que atravessou a nada o Rio Cacine, já na fuga de Gadamael, e foi salvo por um milícia de que não se lembra o nome...

Peço ao Paiva que nos contacte de novo e nos dê as suas coordenadas (pelo menos o endereço de –email e eventualmente o número de telemóvel ou telefone), sobretudo para o ajudar a reencontrar os seus antigos camaradas de Guileje e de Gadamael (e a reorganizar as suas memórias, doridas, daquele tempo)... Seria uma pena que este pungente testemunho ficasse escondido sob a forma de comentário a um dos nossos postes (1)...



2. Estórias de Guileje (3) > Fiquei a dever a minha vida, no Rio Cacine, a um milícia de que nunca soube o nome

por ex-Fur Mil Art Paiva

Revisão e fixação de texto: L.G.:


(i) Artilheiro em Guileje, até ao dia do seu abandono: recordando os Furriéis Araújo (de Braga) e Queirós


Começo por pedir as minhas desculpas pelo facto de não utilizar sinais gráficos. Acontece que estou neste momento provisoriamente na Alemanha e o computador de que disponho tem teclado alemão, não reconhecendo assim parte dos referidos sinais.

Por obra do acaso, deparei hoje com alguns blogues sobre os acontecimentos ocorridos em Guileje e Gadamael no período de 1972 a 1974 (2). Porque na oportunidade desempenhava funções de furriel miliciano afecto à Unidade de Artilharia localizada inicialmente em Guileje, e posteriormente retirada para Gadamael (após o abandono do primeiro daqueles aquartelamentos), tomei parte nos referidos acontecimentos.

Embora a minha memória tenha hoje alguns hiatos que a passagem do tempo provocou, a documentação que li parece-me correcta na substância, embora com algumas imprecisões de pormenor.

Em Guileje, parece-me que o pelotão de artilharia era constituído por 3 secções, cada uma delas sob a chefia directa de um furriel (recordo o furriel Araújo, de Braga, e o furriel Queirós, meus contemporâneos, sendo que o Araújo foi posteriormente rendido, salvo erro pelo furriel Santos, de S. João da Madeira) e comandadas por um alferes, posteriormente substituído por outro. Tenho ainda na minha mente a foto mental de ambos, embora lamentavelmente me não recorde já dos seus nomes.


(ii) A retirada do meu Pelotão de Artilharia para Gadamael

Este pelotão de artilharia retirou na totalidade para Gadamael quando foi dada ordem de abandono do aquartelamento de Guileje. Para além dos graduados e oficial acima referidos, retiraram ainda os cabos e praças (estes últimos naturais da Guiné).

Em Gadamael, a artilharia passou efectivamente muito maus bocados mas não ficou totalmente inoperacional, tanto quanto me recordo. O seu alferes teve aliás um comportamento de bravura pois foi ferido e continuou a desempenhar as sua funções, embora numa situação bastante precária.

Também a Companhia que foi envolvida nestes dramáticos acontecimentos não foi a dos Gringos (açorianos); na verdade, esta Companhia tinha já terminado a respectiva comissão de serviço e tinha sido substituída por uma Companhia do Continente. Foi já pois no tempo desta que o teatro de guerra alastrou e se complicou e foi nesta altura que tivemos que abandonar o aquartelamento de Guileje, de conformidade com o relato que é feito e que coincide no essencial com o que se passou.


(íii) Pânico em Gadamael, entre militares e população, com várias mortes por afogamento na atravessia do Rio Cacine

Já agora poderia acrescentar que uma parte dos militares que se deslocaram para Gadamael, acabaram por abandonar também este aquartelamento, acompanhados de parte da população. Porém uma parte dos militares conseguiu aguentar este aquartelamento até à chegada de reforços que entretanto para ali foram enviados.

Alguns oficiais, sargentos e praças (acompanhados de parte da população) - nos quais me incluía eu -, iniciaram uma retirada para Cacine que foi efectuada debaixo de fogo e que se processou em botes dos fuzileiros. Já agora poderei acrescentar que a evacuação não foi totalmente conseguida nesse dia porque entretanto as operações de resgate foram suspensas por ter começado a anoitecer.

Curiosamente não ficou junto da população nenhum oficial, mas apenas dois furriéis, eu e outro camarada de armas, que, com a população, lográmos atravessar para o outro lado do rio (após a maré ter baixado) e ali tivemos, com muito custo, que conter a população em silêncio para não sermos detectados pelo PAIGC. Esta tarefa foi dramática já que connosco estavam muitas crianças que pela sua natureza são habitualmente ruidosas. Passámos ali a noite até conseguirmos ser evacuados no dia seguinte.

Essa experiência foi traumatizante porquanto assistimos a cenas dramáticas, com muita gente a precipitar-se para o rio e para o tentar atravessar a nado, antes que a maré permitisse o seu atravessamento quase total, a pé. Dessa precipitação resultaram mortes por afogamento, pois a corrente ainda forte arrastou alguns.


(iv) Na travessia do Rio Cacine perdi a G3 e ía perdendo a vida

Eu próprio iniciei a travessia antes de se ter completado o vazamento da maré e, porque não era um nadador exímio, e por outro lado com o peso das botas e da G3 e a força da corrente, tive que a meio da travessia me desembaraçar da minha arma (foi para o fundo do rio) para não morrer afogado. E fiquei a dever a minha vida a um milícia guineense que na outra margem do rio - e a partir do lodo onde se encontrava e para onde eu pretendia arrastar-me - me estendeu a coronha da sua arma a que eu, num esforço titânico, consegui agarrar-me. Fiquei a dever-lhe a minha vida e, no meio da confusão e do caos, sem saber a quem concretamente (ainda hoje...).


(v) Helicópteros ameaçando disparar sobre nós

Também poderei acrescentar que houve lamentavelmente algumas situações obscuras, como um helicóptero (recordo-me de um, pelo menos) que nos sobrevoou quando já estávamos a bordo de um bote, retirando para Cacine, e que ameaçou disparar sobre nós se não regressássemos de imediato ao aquartelamento de Gadamael.


(vi) A morte do meu amigo Furriel Faustino, que regressou a Gadamael

Quando chegámos a Gadamael, fui avisado pelo Faustino (Furriel de quem era amigo, pertencente à Companhia) de que o General Spínola se havia ali deslocado e ameaçado com Conselho de Guerra quem não regressasse de imediato a Gadamael. No dia seguinte quando acordei soube que o Faustino, pressionado pela ameaça, havia regressado. Morreu ao fim da tarde desse dia, vitimado por um estilhaço que lhe entrou pelas costas!


(vii) Em busca dos antigos camaradas

Já agora, e para terminar, gostaria de referir que as informações que circulavam era que a precisão de tiro do PAIGC quer para dentro do aquartelamento de Guileje quer para o de Gadamael devia a sua eficácia a uma suposta bateria de cubanos. Por a minha substituição (comummente designada por rendição) se ter processado em regime de rotação individual, não consegui localizar nunca antigos camaradas de armas (quer afectos ao pelotão de artilharia quer às Companhias - duas- com quem estive: à dos Gringos [ CCAÇ 3477, ] e à que se lhe seguiu [ CCAV 8350,] com a última das quais partilhei estes dramáticos acontecimentos que tantas vidas custaram.

Ao fim de alguns dias voltei a ser deslocado para Gadamael numa altura em que a situação continuava perigosa mas já mais controlada. O único que consegui contactar algumas vezes foi o furriel Queirós que entretanto ingressou na Lusalite, em Lisboa, onde o visitei ainda algumas vezes. Porém essa unidade encerrou e nunca mais o vi. Gostaria de reencontrar todos esses Camaradas.

Um abraço. Paiva,

________________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 20 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1860: Gadamael, 2 de Julho de 1973: Um ataque de mais de 4 horas do PAIGC, apenas travado pelo nossos Fiat G-91 (Jorge Canhão)

(2) Sobre a batalha de Guileje e Gadamael, e outros temas relacionados com as unidades que por lá passaram, vd. entre outros mais os seguintes postes:

27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça).

5 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2083: Em busca de... (10): Coutinho e Lima, o comandante do COP5 que decidiu abandonar Guileje e foi acusado de deserção (Beja Santos)

22 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1869: Convívios (19): Os Gringos de Guileje, a açoriana CCAÇ 3477, encontram-se ao fim de 33 anos! (Amaro Samúdio).

18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1856: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (5): Gadamael, Junho de 1973: 'Now we have peace'

24 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1784: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (4): Queridos pais, é difícil de acreditar, mas Guileje foi abandonada !!!

14 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1759: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (3): Miniférias em Cacine e tanques russos na fronteira

13 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1727: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (2): Abril de 1973: Sinais de isolamento

25 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1699: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (1): Abatido o primeiro Fiat G 9

25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)

31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1478: Unidades de Guileje: Coutinho e Lima, ligado ao princípio e ao fim (Nuno Rubim)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1293: Guileje: do chimpanzé-bébé aos abrigos à prova do 122 mm (Amaro Munhoz Samúdio, CCAÇ 3477)

10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1162: Guileje: CCAÇ 3477, os Gringos Açorianos (Amaro Munhoz Samúdio)

5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação do NRP Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, em 1973 (Manuel Rebocho)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P878: Antologia (42): Os heróis desconhecidos de Gadamael (Parte I)

15 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P879: Antologia (43): Os heróis desconhecidos de Gadamael (II Parte)

sábado, 26 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2482: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (12): Notas soltas a quatro mãos (Luís Graça / Pepito)


Guiné-Bissau > Bissau > Video Clip (5 m 39 ss), Grupo Furkuntunda > Djunta Mon - TVKlele

Fonte: © You Tube > TVKlele (com a devida vénia...).

Há um comentário a este videoclipe, de Manuel Feiro, que merece ser repproduzido: BRAVO!!! Furkuntunda está de parabéns!!! Força, continuem a enriquecer a nossa música e cultura, com trabalhos como este, vindo da raiz do nosso folclore. Esperamos por mais e muito mais. Obrigado, porque músicas assim é que nos fazem, nós da diáspora, regressar em pensamento à nossa saudosa Guiné. Nô djunta mon dê, nô kumpo nô Guiné, ke nô kiri tchiu nan e ke kata sai di nô corçon.
Abraços e força sempre!


E eu acrescentei estes comentários:

(i) Quem disse que a Guiné-Bissau não tem futuro ? Estes jovens, estes músicos, são a prova da grande vitalidade, engenho, alegria, criatividade, espontaneidade, vontade de vencer o círculo vicioso da pobreza, do povo da Guiné...

(ii) Eu acredito nos jovens, criativos, deste país-irmão; eu acredito na mulheres, empreendedoras e corajosas; acredito ainda na força telúrica e na generosidade dos homens (e mulheres) que lutaram, com as armas na mão e com as ideias e os valores na cabeça, para que a Guiné-Bissau fosse livre e independente, justa e fraterna, e que os guineenses tivessem a paz, a liberdade, a justiça, a dignidade a que têm direito, no seio da África e do resto do mundo globalizado

(iii) Fazendo a ponte com o passado, não ignorando nem escamoteando os marcos (de sinal mais e menos) do passado, bem como as raízes da guineidade, e construindo a estrada do futuro, que eu só desejo que seja tão grande, larga e fecunda como os rios míticos desta terra, do Cumbijã ao Cacheu, do Geba ao Corubal... (LG)



Amigos e Camaradas da Guiné: Divulguem a cultura da Guiné-Bissau, comprem os seus produtos, a começar pelos seus produtos culturais, por exemplo, a sua música, os CD dos seus músicos !... Mas, para já, eu gostava de saber onde poder encontrar e comprar, em Lisboa, este CD do Grupo Furkuntunda (...ou Levanta Poeira) (LG)


Guiné-Bissau > AD-Acção para o Desenvolvimento > Foto da Semana > 23 de Setembro de 2007

"A Banda de Música Furkuntunda, que significa levanta poeira, acaba de lançar o seu primeiro álbum de músicas, com um grande sucesso na camada juvenil da Guiné-Bissau.

Trata-se de um Grupo constituído por jovens do Bairro de Quelélé, que se foram afirmando de forma crescente pela qualidade da sua música e pelas diferentes coreografias que apresentam durante os seus espectáculos, com base em temas da cultura tradicional".


Foto e legenda: AD - Acção para o Desenvolvimento (2007) (com a devida vénia...)



Ontem troquei com o Pepitpo uma série de notas (soltas) sobre o Simpósio... Aqui vão elas, numa escrita a quatro mãos. As respostas ou os comentários do Pepito vão em itálico (a azul escuro, a bold)

Pepito:

1. A notícia [sobre o lançamento oficial e público do Simpósio] já está na blogosfera...Obrigado pelas fotos.

2. Utilizei ontem também os 'retratos' dos antigos guerrilheiros do PAIGC... São rostos muitos expressivos... Espero encontrá-los em Guileje ou em Bissau, pelo menos alguns... Diz-me se todos estiveram na batalha de Guileje...

Todos estiveram, uns na operação de reconhecimento, mas a maioria na batalha.


3. Queria dar os parabéns ao(s) teu(s) fotógrafos(s) (e operadores de DVD), mas não sei os nomes... Diz-me quem são, para lhes atribuir os créditos fotográficos...É uma justa homenagem.

Estou em dívida contigo: vou mandar a lista do núcleo duro e agora esta que pedes.


4. Quanto às tuas bebidas, elas vão fazer um enorme sucesso. Confirma a minha definição de 'pó de pila'... Achei uma maravilha de humor (africano)... Cá na terra também usamos, na gíria da noite, expressões desse tipo, para os cocktails nos bares e discotecas (em geral, muito sexistas e machistas)... Não consegui perceber qual é a composição... Mas o segredo é a alma do negócio... Julgo que são sumos de frutas vossas...

Olha que não há nenhum segredo. Cada sumo tem a sua composição: cabaceira, tamarindo, farroba, etc, tudo frutos silvestres. O "pó di pila" é exactamente uma aposta nos dois sentidos da palavra: um é o que tu estás a pensar (por isso leva gengibre!!!!!) e o outro refere-se ao pau do pilão...

5. Sou fã do Grupo de Teatro Os Fidalgos. Viu-os em cena no Teatro Dona Maria, em Lisboa, em meados de 2007....Vai ser outro sucesso o teu sarau cultural...

6. Devias mandar para a Lusa a notícia do Lançamento Oficial do Simpósio, se é que não o fizeste... É importante a cobertura mediática para o evento... Gostei do cartaz: Guiné-Bissau, terra de história e de cultura... Vou protestar contra a RTP-África e mandar um reparo à RDP-África...

Tens toda a razão, vou meter a Lusa nisto.

7. Há um camarada, nosso, tertuliano que está a caminho de Bissau: tu conhece-lo bem, é o meu/nosso amigo Xico Allen... Vai com o Fernado, do Clube de Caça do Saltinho... Partiu no mesmo dia em que saiu do Portyo o Padre Almiro Mendes... Deves ter lido a nossa notícia... O Xico voltará depois para partir, de novo, noi Porto, na grande caravana do dia 21 de Fevereiro... Espero que ele chegue bem e te dê um abraço da nossa Tabanca Grande...

Claro que ele será bem vindo, como sempre .


8. Vou fazer um apelo para recolha de objectos, documenntos, fotografias, etc. que possam ter interesse para o teu/nosso museu de Guiledje...

Era formidável!

9. Quero ver se também incentivo a participação de mais malta no fórum do Simpósio (que, diga-se, não é muito amigável, a página está lenta...). Ontem deixei lá um comentário (por lapso, repetido)... Quem é o editor da página ? Está aí ? É alguém de vocês ?

Hoje fica actualizado

10. Boa continuação dos trabalhos. Toma cuidado contigo. Delega... Olha o stresse, que também mata...Luís.

A repercussão do Simpósio está ser extraordinária, cá e aí. Ontem recebi a confirmação da vinda de mais 4 Gringos.

PS - Amigos e camaradas que vão ao Simpósio:

Recados/informações importantes do Pepito:

(i) No nosso site têm estado a sair novas fotos no diorama e notícias nas "informações úteis". Dos militares que virão ao Simposio, alguns não nos mandaram as respectivas companhias. Podes pedir-lhes que dêm essa informação?

(ii) Informa-me se os companheiros que vêm de carro entram por S.Domingos. No caso afirmativo, eles devem passar a saber que a AD dispõe de instalações de acolhimento (alojamento) que eles poderão utilizar gratuitamente. Devem no entanto dizer a data em que por lá passam.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Guiné 63/74 - P2481: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (11): Malan Camará... e a maldição dos 3 G + 1 J (Manuel Rebocho)

Guiné > Região de Tombali > Cantanhez > Cachambas Balantas, próximo de Jemberém (hoje, ois guineenses dizem e escrevem Iemberém)> CCP 123 / BCP 12 (1972/74) >12 de Fevereiro de 1973 > O Cabo Álvaro, o militar à esquerda na fotografia, pouco depois da captura do mais prestigiado chefe da Guerrilha no Cantanhez, o Comandante de Bigrupo Malan Camará, ferido por um disparo de Sneb (1), "que eu próprio mandei disparar" (Manuel Rebocho).


Foto: Costa Ferreira (gentilmente cedida pelo Manuel Rebocho) (2007).


Malan Camará, um antigo guerrilheiro do PAIGC, que operou na zona do Cantanhez, um dos convidados especiais do Simpósio Internacional de Guiledje. No âmbito do Projecto Guiledje, foi entrevistado pelas equipas de investigadores da AD - Acção para o Desenvolvimento (que gravaram o seu depoimento em DVD). O Manuel Rebocho quer saber se é o mesmo Malan Camará, da foto de cima, ferido e capturado pelo seu Grupo de Combate da CCP 123 / BCP 12, em 12 Fevereiro de 1973. Acontece que Malan é um nome vulgar, entre fulas e mandingas, e Camará é também um apelido muito frequente entre os fulas... Na CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) tínhamos vários Malan e vários Camará, embora nenhum Malan Camará (que julgo ser nome de mandinga) (LG).

Foto: Guiledje - Simpósio Internacional (2007) (com a devida vénia...).


1. Texto do nosso camarada Manuel Rebocho, ex-sargento paraquedista da CCP 123 / BCP 12 (Guiné, Maio de 1972/Julho de 1974), hoje Sargento-Mor Pára-quedista, na Reserva, e doutorado pela Universidade de Évora em Sociologia da Paz e dos Conflitos (tese de doutoramento: "A formação das elites militares portuguesas entre 1900 e 1975") (2).


Amigos Luís Graça e Pepito:

Na sequência da publicação, no nosso blogue, de algumas fotografias, de antigos guerrilheiros do PAICG, verifiquei, particularmente, a de Malan Camará (3). Enviei um e-mail para o Pepito solicitando a gravação das declarações de Malam Camará.

O Pepito respondeu-me, de imediato dizendo:

“Conto passar por Portugal no final de Março e nessa altura dar-te-ia a gravação da entrevista do Malan Camará. Vou pedir que me façam uma gravação em DVD.
abraço
pepito”


No meu mail não especifiquei a razão do meu interesse. O que eu pretendo saber é se o Malam Camará que surge no blogue, é o mesmo que está na fotografia em anexo, a qual consta na minha obra de doutoramento.

No blogue diz o Pepito hoje, dia 25 de Janeiro de 2008, referindo-se à apresentação pública do Simpósio sobre Guiledje:

“Como o assunto era relativo à História e Cultura, a televisão nacional e a RTP África, sempre mais preocupadas em dar relevo a outras questões mais relevantes como o narcotráfico e a presença da AL-QAEDA, primaram pela ausência. Critérios....”

Naturalmente que é assim, e assim será no futuro, pois não te esqueças que as histórias são sempre contadas pelos vencedores. E, nem os vencedores (PAIGC), nem os heróis portugueses, de Guiledje e Gadamael, integram “a classe de poder em Portugal”. Nota, que classe de poder não significa classe no poder, são classes diferentes.

As discussões que envolvam Guiledje, Gandamael Porto e Guidaje (os três G’s, como define o nosso amigo Leopoldo Amado) e ainda Jemberém, que eu lhe acrescento, não interessam àqueles que se consideram “os donos do 25 de Abril” e que, a partir de méritos que não são seus, se constituem na classe de poder em Portugal.

Só uma pequena achega para ilustrar um pouco esta ideia que é científica, pois resulta da minha tese de doutoramento, na qual me foi atribuída a classificação máxima.

Na sequência do abandono de Guiledje, em que as tropas portuguesas fugiram para Gadamael Porto, no dia 22 de Maio de 1973, ficaram instalados neste último Destacamento cerca de 600 homens, 4 companhias, o equivalente a 1 Batalhão, a que correspondia 1 Tenente-Coronel, 2 Majores e 4 Capitães. No entanto, aqueles homens eram comandados apenas por dois Capitães, e estes milicianos, naturalmente.

Os capitães milicianos foram feridos e evacuados no dia 30 de Maio de 1973, do que resultou que aquelas 4 companhias, ou aquele amontoado de militares portugueses, ficassem tão só sob o comando de um Alferes miliciano, ou de ninguém, para ser mais preciso.

Ao mesmo tempo, em Jemberém, que fica a cerca de 18 km a oeste de Gadamael Porto, no coração do Cantanhez, como sabemos, estavam colocadas duas companhias, também elas, comandadas por um Alferes miliciano (já nem os Capitães milicianos queriam estar nas zonas de combate, sobrava já tudo para os Alferes milicianos).

Se a guerra tivesse continuado, só lá ficavam os Soldados, estou certo. Como afirmo na minha tese de doutoramento, os Oficiais de carreira fugiram literalmente das zonas de combate.

No dia 22 de Maio de 1973, o dia da fuga de Guiledje, Spínola enviou uma nota ao Ministro do Ultramar, dizendo que não tinha meios para continuar a guerra. Em resposta, o governo fez publicar, no dia 13 de Julho seguinte, o Decreto-Lei n.º 353/73, onde determinava uma nova metodologia de formar Capitães, o que desagradou aos Capitães da Academia, que se viam recambiados para o mato, onde eles não queriam estar.

Para combater esta decisão, que não lhe agradava, revoltaram-se contra quem os formou e lhe atribuiu o estatuto que possuíam. Afirmando-se então, que tal revolta, tinha origens em princípios democráticos, o que não era verdade.

Por tudo isto, há que silenciar estes 4 nomes, [(Guiledje, Gandamael Porto, Guidaje (onde estava colocada uma Companhia de nativos, a 19.ª, cujos graduados eram europeus milicianos, e onde a vergonha ainda foi maior) e Jamberém] que eu não apago da minha memória, mas que, como disse, incomodam a classe de poder.

Portanto, meu amigo Pepito, não estranhes e conta só com o silêncio. Mas nem tudo será mau, contas com muitos amigos e com o nosso blogue que não se cala.

Percebeste um pouco da minha mágoa em não estar no “teu/nosso Simpósio”, mas também percebeste porque não posso.

Nota:

Se o Malan Camará das duas fotografias é o mesmo, posso adiantar-te que o ferimento lhe foi provocado no dia 12 de Fevereiro de 1973, nas Cachambas Balantas, próximo de Jemberém (4), por um disparo de Sneb, que eu próprio mandei disparar – era ele, ou eu e os meus homens – foi assim a guerra, que só a conheceu quem a fez.

Malan Camará, ou os homens sob o seu comando, mataram-me um soldado, o Azinheirinha, e feriram gravemente o Alferes, razão pela qual assumi o comando do pelotão.

Mas como vês, ou se pode ver, Malam Camará foi tratado e evacuado de helicóptero para o Hospital Militar de Bissau, onde foi bem tratado. E não foi evacuado por engano, eu pedi uma quarta aterragem de helicóptero, dizendo expressamente que era para evacuar um elemento IN ferido. O General Spínola, que estivera no local falando connosco, ouviu as comunicações rádio e não se opôs, o que permite que eu afirme que este género de humanidade era assumido pela mais alta hierarquia. (*)

Hoje, os que fugiram da guerra, para o ar condicionado, dizem de Spínola “cobras e lagartos”, mas têm mais defeitos do que ele, enquanto o não assemelham nas virtudes.

A guerra em que eu participei, foi uma guerra violenta, mas humana, dentro do possível claro. Não a do ar condicionado nem a da violência gratuita.

Um grande abraço aos dois

E que o nosso Simpósio seja um sucesso

Manuel Rebocho

________________

Notas de L.G.:

(*) Bold da responsabilidade do editor

(1) SNEB: rocket antipessoal, de calibre 37 mm, que equipava o T-6 e que também era usado pelos pára-quedistas (e depois, por outras forças) como LGFog.

(2) Vd. postes do Manuel Rebocho:

14 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P877: Nós, os que não fazemos parte da história oficial desta guerra (Manuel Rebocho)

"(...) tomei contacto com o vosso/nosso blogue, através do então Furriel Miliciano José Casimiro Carvalho, da CCAV 8350 (a que abandonou Guileje, em 22 de Maio de 1973), o grande herói de Gadamael Porto, que, não obstante isso, também não faz parte da história oficial da Guerra da Guiné"(...).

28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)

4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação do NRP Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, em 1973 (Manuel Rebocho)

5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)

17 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1187: Guidaje: soldado paraquedista Lourenço... deixado para trás (Manuel Rebocho).

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1453: Ninguém fica para trás: uma nobre missão do nosso camarada ex-paraquedista Manuel Rebocho

(3) Vd. poste de 24 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2478: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (9): Inimigos de ontem, amigos de hoje

(4) O Victor Tavares, que pertenceu à CCP 121 / BCP 12, camarada do mesmo batalhão e da mesma arma do Manuel Rebocho (CCP 123 / BCP 12) , já referiu o mesmo episódio, mas as datas não batem certo. Ele diz que quem capturou o Malan Camará foi a sua unidade, a CCP 121, em 22 de Dezembro de 1972. Será o mesmo Malan Camará ? Trata-se de um nome vulgar, mas também já é muita coincidência...

(...) 22 de Dezembro de 1972: captura do comandante do bigrupo de Malan Camará

Dia 22 de dezembro, o primeiro bigrupo da CCP 121 parte para mais um patrulhamento desta vez com destino as Caxambas Balantas, depois de andadas algumas horas atravessando matas, bolanhas e rios alguns de difícil passagem derivado ao imenso lamaçal e arvoredo rasteiro ou Tarrafo aonde nos enterrávamos até à cintura e por vezes mais a cima, tendo que ser ajudados pelos camaradas que mais rapidamente chegavam a margem segura.

(...) Referenciámos três pessoas desarmadas que seguiram o seu destino. Aqui montámos uma emboscada. Passados cerca de 10 minutos aparece uma mulher com uma criança as costas também no mesmo sentido. Poucos minutos passaram e aparecem pela mesma picada mas no sentido inverso 4 Guerrilheiros armados. Quando estes se aproximavam dos nossos homens da frente , estes abriram fogo abatendo de imediato 2 guerrilheiros ferindo os outros dois, tendo um deles conseguido fugir. Capturámos o outro, sendo ele o comandante de bigrupo de Simbeli, Malan Camará. (...)


Vd. poste de 15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2051: Os pára-quedistas no mítico Cantanhez: Operação Tigre Poderoso (II parte) (Victor Tavares, CCP 121 / BCP 12)

Guiné 63/74 - P2480: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (17): Cartas de Bambadinca, Dezembro de 1969

Moçambique > 1969 > O Alf Mil Carlos Sampaio, o grande amigo de Beja Santos, com quem se correspondia regularmente. Os dois tinham projectos para a vida civil, como por exemplo criar uma editora livreira. O Carlos nasceu em Anadia, a 19 de Novembro de 1946 e morreu, em combate, em Moçambique, em Nambude, em 2 de Fevereiro de 1970 (1) (LG).

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Texto enviado pelo nosso camarada Beja Santos (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), em 27 de Novembro de 2007:

Luís,

Aqui vai novo episódio. Não sei como vai ser, mas este novo livro deverá estar pronto até Julho, não sei se tenho saúde para tanto. Os dois livros citados seguem hoje pelo correio. Muito obrigado pelo acolhimentro que deste aos pedidos de imagens do Círculo de Leitores. Estou convencido que aquela imagem do Humberto, na travessia da bolanha bem aguada, vai dar uma capa fabulosa. Segue igualmente uma fotografia do José Braga Chaves, referido neste episódio.

Um abraço,
Mário


Operação Macaréu à Vista - Parte II > Episódio XVII > Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal e outras paragens em África
por Beja Santos (2)

(i) Para Cristina Allen

Meu adorado Amor,

Mal recebi as tuas notícias, e porque tinha que ir buscar o correio a Bafatá, fui de novo à administração tratar da procuração onde faltava o nome e idade dos teus pais (já enviei por correio a procuração anterior, que ficou sem efeito). Confirmo com muita tristeza que não terei direito a férias em 1970, pelo que teremos que decidir o casamento por procuração, aguardando o meu regresso para a cerimónia religiosa.

Lembro-te que continuo sem descanso, Dezembro é sempre um mês com mais medidas de segurança, sobretudo junto ao Natal e ao Ano Novo. Não vejo circunstância, pois, para pensar em casarmo-nos aqui. Vamos esperar serenamente o desenrolar dos acontecimentos.

Pouco mais posso adiantar sobre o meu futuro do que aquilo que já sabes: esta penosa intervenção com idas às tabancas, emboscadas nocturnas, patrulhas, períodos nos Nhabijões e no tal local horrível de que te falei, a ponte de Udunduma. Além disso, temos as operações. Participei há dias numa operação na região de Mansambo a que puseram o nome de Lua Nova. Tu estarás porventura esquecida mas logo a seguir à operação Anda Cá, em Fevereiro, fomos a Mansambo, pouco antes de eu ir a Bissau. O objectivo era bater uma área onde os guerrilheiros tinham feito um santuário e que foi destruído pela aviação. Como sempre acontece na guerrilha, aproveitando-se das dificuldades naturais, sobretudo da floresta galeria que é muito comum naquelas áreas, eles voltaram de novo a instalar-se relativamente perto de Mansambo, supondo-se que em Biro e Galoiel, onde tínhamos estado em Fevereiro. Antes de fazermos esta operação, tinham lá estado forças helitransportadas que destruíram um acampamento em Biro e capturaram material.

O comando de Bambadinca decidiu que voltássemos a Biro para confirmar se os guerrilheiros tinham voltado. Falei-te há algum tempo que tínhamos ido fazer uma coluna de reabastecimento ao Xitole. A natureza ali não é particularmente bela, excepto quando nos aproximamos do Corubal. Disseram-me que os rápidos de Cusselinta são um deslumbramento, penso que para a semana teremos nova coluna de reabastecimento e iremos até ao Saltinho, e então terei a oportunidade de confirmar se esses rápidos são tão impressionantes como dizem.

Bom, os guerrilheiros podem atacar a estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole mais facilmente se conseguirem ter bases avançadas nesta região que se chama Bissari. Saímos a 12 de Bambadinca, fomos até Samba Juli, até aí não é preciso picar, mais à frente um pelotão de milícias e um grupo de combate de Mansambo patrulharam a estrada e chegámos ao quartel a meio da tarde. Lá encontrei o capitão Neves e o Jorge Cabral, o irmão da tua colega Suzete, que está em Fá, povoação não muito longe de Mero e Santa Helena. Saímos de Bambadinca com dois grupos de combate de uma companhia de caçadores africanos. Tivemos um grande sofrimento com o frio, para quem não acredita que não há frio em África, seria bom que tivesse vindo connosco. Lá tivemos emboscados perto do Galoiel que assaltámos ao amanhecer.

Não te sei explicar a sensação de visitar um local que tu sabes que já teve vida, e até recentemente: os vimes e o colmo bem disfarçados sob a floresta serrada, os caminhos que estavam bem batidos, sem nenhum capim no seu interior, as marcas dos refúgios das armas pesadas, os restos das fogueiras. Transidos pelo frio mas muito tensos, lá percorremos todo o antigo acampamento onde não há vislumbre dos grupos que partem de Galo Corubal terem voltado.

Nós não temos ilusões, é tudo uma questão de tempo, logo que eles estejam reforçados hão-de regressar, já te escrevi a dizer que eles estão a fazer muita pressão à volta de Bambadinca, atacam as tabancas, raptam, exigem comida, sempre que podem recrutam guerrilheiros. Regressámos sem problemas mas eu vou demorar a esquecer esta emboscada com um cacimbo de rachar os ossos.

Guiné > SPM 3778 > 5 de Dezembro de 1968 > Envelope de carta estampilhada, enviada pelo Alf Mil Beja Santos, do Pel Caç Nat 52 (Missirá, 1968/69), à sua noiva Maria Cristina Allen. Na época, o custo em selos uma carta por via aérea (?) não era barato: 2$50...

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Obrigado pelas notícias que me dás do Alcino, também a minha Mãe já me tinha dito que ele está pouco falador e recupera lentamente. Fiquei também a saber que o Jolá Indjai está a tratar da sua tuberculose num sanatório embora fale que quer voltar rapidamente. Sentimo-nos muito orgulhosos com as notícias que recebemos de que o Mamadu Camará, Adulai Djaló e Mamadu Djau vão ser condecorados, o processo do Cherno ainda está a ser analisado. O nome desta condecoração é Cruz de Guerra, por heroísmo em combate.

Estou nas lonas, nomearam-me gerente de messe, o que veio introduzir mais actividades como as de comprar chávenas, queijo e conservas para os meus exigentes clientes de bar. Confesso-te que não sei como vou recuperar energia, as insónias persistem e eu às vezes tenho medo de me esgotar. Recebe muitos beijinhos de quem vive sempre saudoso de ti.

(ii) Para Ruy Cinatti

Obrigado pela sua carta, obrigado pelos livros do Erich Maria Remarque e do Francis Ponge. Fico-lhe também a dever a atenção de ter ido visitar ao Hospital da Estrela os meus amigos Fodé, Paulo e Casanova. Desculpe andar arredio da escrita, não consigo habituar-me a este ritmo, não é um problema de caminhadas mais ou menos longas ou operações muito duras. É o ritmo, o viver separado dos meus homens, num estranho quartel onde há um porto importante, de onde partem colunas militares para outras regiões do Leste, a diversidade de tarefas deste patrulhas e emboscadas, vigiar estradas, ir buscar correio, acompanhar trabalhos de um reordenamento de populações que vivem junto ao rio Geba e, claro está, participar nas operações.

Neste lapso de tempo em que não lhe escrevi fui numa coluna ao Xitole, o comandante arranjou-me aqui uma historieta com uma professora gentil e de idade indefinida, a verdade é que até a fiquei a estimar e ela prometeu-me dar-me informações sobre a história do regulado do Cuor antes da guerra. Antes de começar a escrever estar carta, fui chamado ao major de operações que me informou que a partir de amanhã à tarde descansamos um dia pois vamos fazer uma operação numa região do Xime que se chama o Buruntoni, que envolve bastante risco. E à volta do Natal vou para um pseudodestacamento que se chama a ponte de Udunduma para proteger a estrada de Xime-Bambadinca.

O Carlos Sampaio escreveu-me da região de Cabo Delgado, há muitas minas e emboscadas, nesta região do Norte de Moçambique a guerra não dá tréguas. Sinto-o muito triste e vou hoje responder-lhe à carta que me escreveu na semana passada. Como V. é um grande poeta quero dizer-lhe que a capela do quartel do Xitole me tocou muito, pedi protecção a uma cruz em bissilão antes de partir para a estrada que me trouxe de novo a Bambadinca. E ontem, no regresso de Mansambo, parei junto de um poilão à entrada da estrada de Moricanhe onde vi um pedaço de camisa a flutuar ao vento e um dos meus soldados disse-me que aquela roupa está colada com carne e sangue, é o resto de um milícia que se volatilizou quando picava a estrada e foi atingido por um fornilho.

Não querendo abusar da sua generosidade, peço-lhe que visite o cabo Alcino Barbosa que está nos serviços de ortopedia da Estrela. Aproximando-se o Natal, louvo os meus amigos mais queridos, por quem cantam anjos e serafins, desejo-lhe toda a paz, todas as bençãos de Deus e agradeço-lhe todo o bem que me faz e aos quem mais estimo.


(iii) Para Carlos Sampaio

Meu querido Carlos,

Gostei muito que me tivesses escrito mas estou apreensivo com as dificuldades que atravessas. Vejo bem que essa tua guerra não é muito melhor que a minha, mas chocou-me que tenhas escrito dizendo que destruíste todos os teus quadros e praticamente todos os teus poemas, quando estivestes em férias. Para estes há remédio, ficaram cópias e tu não podes entrar em nossas casas. Quero só lembrar-te que deixei ao cuidado da minha Mãe aquele quadrinho que pintaste na Anadia e a quem eu chamo “A noite de Águeda”, em homenagem a toda a noite em que andámos de bicicleta, aproveitando o luar e petiscando nas tasquinhas. Bom seria que não te esquecesses dos projectos que teremos em comum, quando a guerra acabar: nós vamos ser editores, Carlos, escolher os autores, lançar obras de acordo com um bonito projecto editorial.

Vá, não esmoreças, não deixes de fazer poesia, escreve-me um pouco mais, tu não imaginas o contentamento que tenho quando chegam as tuas cartas, a surpresa dos livros que me mandas. Um abraço muito grande, desculpa acabar aqui, vou jantar e depois partimos para uma emboscada a escassos quilómetros de Bambadinca, mas prometo escrever mais antes do Natal, que Deus te acompanhe sempre.


(iv) Para José Braga Chaves

Soldadão e amigo,

Recebi carta da tua irmã que quer estudar enfermagem e também tive notícias da Lúcia de Fátima, muito saudosa de ti. Obrigado pela tua fotografia, tens que me explicar que arma é aquela que pões à ilharga e para que é que precisas da faca de mato ao ombro. Já não estou na região de Missirá, agora estou na sede de batalhão, onde não me consigo aclimatar, são afazeres e obrigações que não matam mas moem. Tanto posso emboscar ou patrulhar como partir subitamente para uma operação ou ficar num destacamento para impedir que os guerrilheiros avancem sobre Bambadinca. Sempre dormi bem, mesmo a vida duríssima que levei em Missirá não me impediu de ter energia, coisa que aqui não consigo e começo a sentir muitas preocupações com as insónias, quero evitar comprimidos para dormir. Mas o médico já me avisou, se isto continuar tenho que ir fazer uma curta cura de sono.

Desejo-te umas boas férias em Lourenço de Marques e fica prometido que vou ao teu casamento, quando a guerra acabar para nós. Muitas felicidades, despeço-me aqui, faço votos para que tenhas um Natal feliz, e agora vou escrever para os Açores.


(v) Para Marino Teves

Meu inesquecível Marino,

Foi tão bom receber as suas orações, saber que não me esqueceu, que todos vós, aí nos Açores, estão em cuidado comigo. Ora quem está em falta sou eu. Nunca lhe agradeci esse admirável romance que é Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway. Li e reli este drama pungente sobre a Guerra Civil de Espanha, nunca mais vou esquecer Robert Jordan, Maria, Pilar, Anselmo, Pablo e tantos outros combatentes. O que me cativa em Hemingway é essa característica de documentário e narrativa tão humanas, a singeleza das frases, a autenticidade dos diálogos. Documentário por que temos ali a crueldade da guerra, os fuzilamentos, o ódio dos fascistas pelos republicanos e vice-versa, ele recorre a expressões duras, a imagens compactas mas elucidativas. Por exemplo, quando ele se refere à pureza de sentimentos que desaparece nos sobreviventes e nos vencedores a propósito da defesa de uma posição e da verdadeira camaradagem, a dureza da disciplina:

Capa do famoso romance sobre a Guerra Civil Espanhola (1936/39), de Ernest Hemingway, Por quem Os Sinos Dobram. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Dois Mundos, 24). Capa de Bernardo Marques.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.

“Sob os obuses os homens acovardavam-se e fugiam, e ele viu esses homens a serem fuzilados e abandonados à beira dos caminhos, sem que ninguém se preocupasse com eles se não para lhes tirar os cartuchos e tudo o que tivessem que valesse alguma coisa. Tirar os cartuchos, as botas e os casacos de couro, era coisa normal. Tirar os valores era apenas realista, o meio de impedir que os anarquistas o fizessem”.

Como se recordará, a missão de Roberto Jordan é de dinamitar uma ponte para impedir a progressão dos exércitos fascistas, quando o general Golz ordenar. Roberto vive num acampamento com os partisans, algures não muito longe de Segovia, é aí que nasce a sua relação com Maria, aí que vem ao de cimo todas as memórias da sua América, as razões da sua luta, são inesquecíveis as suas recordações no Hotel Gaylord, onde encontra Karkov e Kachkine. Jordan é o Inglés para os seus camaradas espanhóis.

Meu querido Marino, a mensagem de Jordan/Hemingway quando vai morrer depois de ter dinamitado a ponte é eloquente, como numa oração ele recorda que o seu combate foi a certeza da sua vida, o mundo é belo e merece que se lute por ele, dói-lhe deixá-lo. Jordan teve uma vida boa, lamenta não poder transmitir o pouco que aprendeu, questiona quem é que aceita melhor este momento de morrer, a religião conforta muito e morrer só é mau quando demora muito tempo e faz sofrer tanto que nos oprima. Serenamente, ele aguarda a passagem do tenente Berrendo para o matar. Agora percebo bem a citação que Hemingway faz de John Donne: “E não me perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Neste preciso instante, estou cheio de saudades do Natal de 1967. Lembro a emoção com que vocês participaram na organização da festa de Natal nos Arrifes, arranjámos lembranças para todos os meus soldados marienses que ficaram retidos em S. Miguel. Fui numa Ford Canadá até à Ribeirinha, com serrotes e machados para cortar ramos de araucária, a finalidade era forrarmos as paredes de uma garagem onde se ia realizar a festa de Natal. No regresso houve um curto-circuito na Ford Canadá mas ao amanhecer entrámos triunfalmente nos Arrifes, ali se montou o presépio com o vosso lindo Menino Jesus, houve cânticos ensaiados pelo padre Agostinho e depois percorremos as ruas dos Arrifes a saudar a população.

Ainda hoje escrevi ao José Braga Chaves, mas esqueci-me de recordar esta história. Lembro-me dos meninos que iam comer as sobras do rancho, o que me doía era a sua alegria espontânea no meio daquela terra de verdura que me lembrava a Suíça. Mudei de quartel mas não mudei de trabalhos. Como estamos no Natal, não vos canso mais com as minhas atribulações. Hossanas para todos vós, a minha gratidão é enorme e beijo-vos muito. Deus permita que vos possa visitar em breve.

Lisboa > s/d > O Mário Beja Santos, com a senhora sua mãe.

Foto: © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


(vi) Para Ângela Carlota Gonçalves Beja

Minha querida Mãezinha,

Agradeço-lhe muito as visitas que faz aos meus feridos. Gosto muito de receber os seus postais e de saber que viaja mesmo cheia de dores com as suas artroses. Olho para o calendário e vejo que dentro de oito, nove meses nos iremos reencontrar. Não lhe quero esconder que estou profundamente exausto e contínuo a não compreender porque é que me diz coisas tão duras nas suas cartas.

Deu-me satisfação ter recebido os livros que me mandou, aproveito logo os policiais para meter no bolso do camuflado e ler aos poucos, nas colunas de transporte ou nas pausas. Achei interessante O caso da Fotografia Misteriosa, de Erle Stanley Gardner. Desta vez Perry Mason confronta-se com um cliente muito inteligente e astuto J. R. Bradbury que lhe vem pedir que contacte Frank Patton, um aldrabão que contratava jovens bonitas para uma empresa cinematográfica à procura de novas beldades. Patton enganava tudo e todos, desaparecia de um local e reaparecia noutro. Agora estava em Nova Iorque, era preciso metê-lo na cadeia ou então obrigá-lo a indemnizar uma rapariga, vítima da sua última maquinação, fazendo Patton confessar a sua intenção fraudulenta. Inicia-se a investigação, Mason descobre Patton assassinado, todas as pistas apontam para um médico que gosta da jovem enganada pelo agiota assassinado.

Capa do romance policial deErle Stanley Grardner, O Caso da Fotografia Misteriosa. Livros do Brasil: Lisboa, 1948. (Colecção Vampiro, 16). Capa de Cândido Costa Pinto.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


A dedução de Perry Mason, e estou em crer que o seu diálogo com J. R. Bradbury no desenlace final, vai passar à história da literatura policial. Confesso-lhe estar muito cansado, aproxima-se o Natal, redobram as medidas de segurança, não paramos um só dia, felizmente que tenho um excelente relacionamento com todos os meus camaradas de Bambadinca.

Vou amanhã a Bafatá enviar-lhe as suas lembranças de Natal. Nós aqui não faremos festa, haverá um rancho melhorado, não sei onde passarei o Natal com os meus soldados. Prometo escrever em breve, tenho muitas saudades tuas, às vezes vou até ao cais de Bambadinca e olha de lá longe até Finete e junto as recordações todas, há momentos de tristeza mas é a quase certeza de que em breve os vou rever que me mantém cheio de vida e optimismo.

Despeço-me escrevendo uma homenagem para si:

“Guardo toda a tua memória, minha querida Mãe, dentro desta caixa com atilhos onde as palavras gravitam o meu ego coral: Missirá, helicóptero, não posso mais, um ferido às costas, a derradeira saudação. Daqui remete fulano tal, SPM 3778. O meu nome não existe ou melhor está desfigurado e transformado noutros como sejam: Cibo, Adulai, Alcino, Cherno ou Teixeira. Isto passa-se porque estou em África e o meu nome renova-se noutros, neste fasto onde me cerco de espelhos voláteis. Às vezes escrevo cheio de raiva, retalho, esventro e entrego à pira os meus soluços, a minha solidão, a minha coabitação, a escrita torna-se pássaro, sol posto, sol coado, tabaco agridoce. Em todos esses momentos cinzelo o teu nome e amo-te sem medir as distâncias, comprovando que o nosso sangue é espesso e que tu és luar textual”.

Um grande beijinho e até amanhã.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

21 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1979: Da Guiné a Moçambique, era (também) assim que comunicávamos a nossa dor (Beja Santos)

11 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1833: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (49): Cartas de além-mar em África para aquém-mar em Portugal (4)

(2) Vd. poste de 18 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2449: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (16): Aqueles dias cinzentos e nómadas de Bambadinca em Dezembro