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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22669: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2021

Queridos amigos,
Estamos no pico da época das chuvas, há muitas entradas e saídas no pelotão de Paulo, parte gente muito amiga, irá ficar uma saudade irreprimível, curiosamente algumas dessas relações terão futuro. Depois de uma vida nómada, é distribuída uma tarefa de responsabilidade mas num quadro de mais acalmia, há que garantir a segurança de quem anda a pôr macadame e tapetes de alcatrão numa estrada que ficará conhecida como a de Xime-Bambadinca. Primeiro desmatou-se, e muito, para dissuadir emboscadas em pontos que outrora deixaram recordações sinistras, como Ponta Coli. O único senão são as tremendas chuvadas, e é numa dessas situações que lembravam o dilúvio universal que Paulo vai conhecer uma dimensão do ódio da boca de um homem civilizado, ouvirá um discurso alucinante que descreveu a Annette com o pedido de o registar por inteiro, era um ódio que depois se soltou na vida da Guiné e em Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adorable Annette, fiquei estonteado com o telefonema do dirigente da Confederação Europeia dos Sindicatos e do seu convite para vir dirigir o departamento dos consumidores. Ao que consta, o meu trabalho voluntário tem sido muito apreciado, a atual dirigente, a italiana Rossana Vittorini regressa a Itália para funções no seu sindicato nacional, devo ir a Bruxelas dentro de uma a duas semanas para conhecer a proposta da confederação, fiquei de orelha arrebitada quando me perguntaram se eu podia meter licença e fazer um contrato até cinco anos. Não embandeiremos em arco, mas, meu amor adorado, vislumbra-se a possibilidade de nos juntarmos. Quando ontem à noite te telefonei senti perfeitamente o eco da tua legítima alegria e comunguei com o choro que se seguiu. Vamos fazer figas e, entretanto, avancemos para o que ainda falta desta comissão. Imagina tu que a mexer nestes últimos papéis encontrei esboços dos preparativos da Operação Beringela Doce de que já falámos, caso tu consideres útil, poderás utilizar estas folhas.

Então, deixa-me ainda falar das saudades que eu sentia naquele tempo. Apareceu Cherno Suane, estava a recuperar do seu duplo traumatismo craniano, tudo tinha a ver com a minha anticarro de Canturé, de outubro de 1969. Foi uma alegria abraçá-lo, deram-no como capaz para o serviço, mas eu sinto que se instalou uma limitação na sua vida, fala mais lentamente e não tem a afoiteza que lhe conheci no andar. Vamos ver. Como recordarás, foi este querido amigo que te apresentei nas férias de verão, fomos visitá-lo no local onde trabalha, no Largo de São Paulo, veio depois jantar connosco. Fiquei com uma enorme gratidão com o Teixeira das transmissões, colaborador impecável, revelou-se incansável na reconstrução de Missirá, nunca recusou andar com aquele rádio monstruoso às costas nas operações. E partiu igualmente o Barbosa, era conhecido pelo Boina Verde, era o seu verdadeiro fetiche. E contei-te também que depois de termos feito uma operação de que resultou uma emboscada com sucesso, já teríamos retirado pelo menos uns dez quilómetros, caminhávamos em direção a Missirá e ele veio dizer-me que tinha que voltar nem que fosse sozinho àquele local, dera agora pela falta da boina, lembrava-se que a tinha posto no chão ao lado onde estava deitado, foi o cabo dos trabalhos convencê-lo que não nos podia obrigar a tal violência, comprometi-me a que voltaríamos no dia seguinte, foi nova operação, temíamos encontrar um grupo do PAIGC naquele local, felizmente nada aconteceu e ele recuperou a boina. E reapareceu também Albino Amadú Baldé, a quem eu ternamente chamava o Príncipe Samba, mantinha a pose de um aristocrata, olha bem para esta fotografia que te envio, a pose natural de alguém que tem linhagem nobre. Fiquei magoado com a decisão de o passar à disponibilidade, ele que teve fraturas e ficou diminuído pela mina anticarro, em Bambadinca entendeu-se que ele podia ficar em regime de colaboração mas sem vínculo nem direito a reforma ou a qualquer tipo de pensão, bem procurei dialogar com os novos senhores do mando em Bambadinca, o Albino está presentemente a dar aulas, mas acho uma tremenda injustiça esta marginalização, ele foi efetivamente o comandante da milícia de Missirá, valoroso e de uma fidelidade sem mágoa. Irei visitá-lo anos depois e sabe Deus o que me custou ouvi-lo dizer que vivia numa discreta miséria, estendia-me a mão a pedir ajuda.

E começou o meu mês de julho, a minha incumbência é a de montar segurança permanentemente não só à equipa da TECNIL como aos trabalhadores que acompanham o alcatroamento da estrada, estamos na fase de trabalhos já depois do Xime e em direção a Amedalai, qualquer coisa entre 8 a 9 quilómetros separam estes dois locais onde decorrem os trabalhos. Junto ao Xime já se alcatroou, desmatou-se tudo à volta até um local que no passado deixou sinistras lembranças, Ponta Coli. A maquinaria é pesada e por isso é obrigatório todos os dias recolher a um porto seguro, decidiu-se que fica toda instalada em Amedalai ao fim da tarde, e com o despontar do dia daqui se parte quer para aprontar o macadame quer para atapetar com alcatrão. Uma parte da equipa do TECNIL parte ao amanhecer do destacamento do Xime, o grosso dos trabalhadores permanece em Amedalai, é daqui que eu e cerca de 20 homens (não mais, estamos em plena época das chuvas, há muita gente a sofrer de malária) os acompanhamos, montamos segurança em áreas desmatadas, tudo com os primeiros alvores do dia, sempre da mesma maneira: na primeira linha um grupo de cinco picadores, depois dois Unimog pejados de trabalhadores, seguem-se as máquinas, das mais potentes às mais ligeiras, nós seguimos os flancos, aqui começa a nossa vigilância de águia.

Nunca te esqueças que a época das chuvas nos reserva a mais completa incerteza, o amanhecer tem sempre alguma neblina, às vezes há uma chuva intensa e depois o dia aquece sufocando-nos as gargantas e as narinas, é quase sempre um tempo de estufa, e por ali andamos como suor a empapar-nos a farda. Às vezes os imprevistos do tempo obrigam a paragens, os trabalhadores estão a lançar o cascalho, cai aquela água toda dos céus, e toda aquela pedra britada escorre para as bermas, dá o seu trabalho ir buscá-la para a fixar na futura estrada. Por ali andamos a patrulhar, só posso falar por estes primeiros dias, não há flagelações, não encontramos indícios da presença de guerrilheiros, na verdade desmatou-se em profundidade em ambos os lados, não nos interessa o que andam as máquinas a fazer nem nos apegamos à barulheira dos trabalhadores, o que nos interessa é detetar a presença guerrilheira e neutralizá-la, nada mais.

Cada um leva a comida no bornal, não há tempo para folgar à mesa, e quem vigia não deve perder-se em cavaqueiras com quem trabalha, mesmo no período da manja. A exceção que abro é quando aparece o responsável pelas obras, um engenheiro que deve ser cabo-verdiano, é de trato afável, um homem que deve estar próximo dos 35 anos, pelo que me é dado ver impõe-se pela sua competência, nada de gritarias nem de insultos, desloca-se entre os grupos que trabalham, dá ordens, presta esclarecimentos aos capatazes, para para retificar, vê-se a olho nu que é respeitado. E assim passam os dias, aproximadamente quando se aproxima o lusco-fusco já estamos todos em Amedalai, temos nessa altura a garantia de que a estrada está picada até à ponte de Undunduma, e assim se chega a Bambadinca e temos quase metade do dia por nossa conta. De vez em quando há exceções, havia uma semana de idas e vindas ao alcatroamento da estrada quando recebemos indicação para seguir para Mansambo dois dias, os de lá partiam para uma operação, competia-nos dar segurança a quem ali ficava. Tudo correu bem e voltámos à rotina de Amedalai. E veio um capricho dessa época das chuvas que me vai arrastar para um episódio que ainda hoje me faz pensar no ódio que vive dentro dos homens, bem camuflado até que chega a circunstância de um desabafo. É o que eu te vou contar a seguir, e permite-me, minha doce Annette, é suficientemente impressivo para constar do nosso romance.

Tive hoje um dia estranho em casa, imagina tu que olhei as coisas com uma certa distância, como se já tivesse a criar o sentimento de que vou viver para Bruxelas. Bom, há que controlar os sonhos para não haver os amargores da deceção. Tenho agora uns dias de muito trabalho com as aulas em Santarém e na Caparica, mas não deixarei de telefonar. Bisous, mas também besinhos para a mulher mais formosa da Bélgica e arredores, ton amoureux, Paulo.

(continua)


Uma vista da tabanca de Amedalai, fotografia de 1997, tirada pelo meu estimado amigo Humberto Reis, seguramente que aqui houve estabelecimento comercial, sabe-se lá se de mancarra ou de venda a retalho
Desculpa as cartas brutais que por vezes te mando (inclui excerto de aerograma de Mário Beja Santos), aguarela de Manuel Botelho
Quando visitei o meu inesquecível Albino Amadú Baldé, há uns bons anos
Cherno Suane, o guarda-costas e o irmão
Entre grandes amigos, Bissau, outubro de 1969, Barbosa, o da Boina Verde, é o primeiro à esquerda, o Teixeira está ao meu lado
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22652: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (75): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Guiné 61/74 - P21496: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (25): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
Os documentos que Paulo Guilherme envia para Annette Cantinaux, exatamente no momento em que ela embarca para Lisboa (passarão as férias de Natal juntos) prendem-se com um dos períodos mais dramáticos da sua comissão: novos sinistros, o sentimento de injustiça daquela punição acompanhada de dois louvores, agora vai a caminho de Bissau, será operado a uma exostose no joelho direito, cambaleia cada vez mais com o sofrimento. O guarda-costas surpreende-o, irá acompanhá-lo até Bissau, quer que não lhe falte nem uma garrafa de água nem as bananas, repetirá em 1995 tal procedimento. Há oito meses que não vai a Bissau, nem pode imaginar que no mesmo dia em que sair do Hospital Militar n.º 241 a ele regressará, de coração contrito, para visitar os feridos de uma flagelação que encheu de cinzas Missirá.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (25): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon amoureuse, amanhã, uma belíssima mulher belga, a Estrela da Manhã da minha vida, chega à minha terra para fazer brilhar a nossa festa natalícia, para brindarmos ao nosso futuro. A arrumar papéis para te enviar (já na tua ausência chegarão à Rua do Eclipse) a sequência dos acontecimentos daquela desastrosa operação que vitimou Fodé Dahaba, encontrei por mero acaso a citação de um poema de Chico Buarque de Holanda que tinha a ver seguramente com um estado de solidão que atravessava a minha vida no Cuor e relendo-a senti algo semelhante ao que era a minha existência antes de tu, providencialmente, te teres atravessado no meu caminho: “Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado… isto é circunstância. Solidão é muito mais do que isto. Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos e procuramos em vão pela nossa alma”.

Na verdade, minha adorada Annette, agora que te dás ao trabalho, quase de tear, de juntar todas estas peças de um jovem que desembarcou em Bissau com dois caixotes monumentais com livros e discos de vinil e gira-discos, parecia que andava com a casa às costas, mas no fundo era um processo de continuidade, uma sequência natural entre passado e presente, os meses vão passando, afeiçoou-se à sua gente, dá-se muito mal com aquela burocracia obtusa e a encenação ríspida de alguns dos seus superiores, no caso daquela desastrada operação pediu repetidas vezes ao tal major de operações que lhe parecia não ter pés nem cabeça pôr uma fila de 300 homens quando havia dois objetivos a alcançar, se acaso se alcançasse um o outro estaria fora de questão, ter-se-ia perdido a surpresa, era uma lógica com que o seu superior não atinava, e ele continuava a insistir que uma Companhia reforçada podia avançar a partir de Mato de Cão ou por Chicri até Madina, a outra Companhia, onde ele se integraria, iria a partir de Missirá para atingir a base de Belel. Fizeram vista grossa dos seus argumentos, toda aquela tropa chegou tarde e a más horas, completamente exausta pela cambança, por palmilhar aos tombos na bolanha de Finete, cada vez que este episódio se lhe aflora à mente é um travo de fel. Mas vamos prosseguir.

Logo a seguir àquela operação desastrosa, como te disse, fomos recuperar o armamento extraviado, ao entregá-lo em Bambadinca, assim de supetão, como se de castigo se tratasse, fui informado que ia participar numa operação na região de Mansambo, o mesmo major que sonhara com a destruição de Madina ordenava agora, com secura, que me apresentasse no dia seguinte, ao princípio da tarde, seguiria em coluna militar para Mansambo. Passando pela enfermaria, recebo o relatório médico para ir ser operado a Bissau, sigo para a secretaria para pedir guia de marcha, com data a partir do regresso de Mansambo. Em Missirá, ponho alguma ordem nos meus trastes, meto livros espalhados no baú, depois de lhes sacudir o pó, contando sempre com a extrema afabilidade e ajuda do meu guarda-costas, Cherno Suane. Primeiro os livros, depois os discos. Prepara-se um saco de roupa, a inevitável farda n.º 2 para me apresentar em Bissau, os artigos de higiene, mudas de roupa interior, um punhado de leituras. Toda esta atividade nas arrumações me faz bem, recordo onde e como comprei aquele livro, onde e como ouvi aquele quarteto, concerto ou sinfonia a que prontamente aderi, é com ternura que afago a correspondência de quem amo, por acaso nesse dia chegaram cartas e aerogramas de Lisboa, de dois pontos de Moçambique, imagine-se, de dois antigos soldados açorianos, recebi incitamentos, apelos à coragem, já comuniquei que me deram dois dias de prisão simples e em simultâneo louvores.

Adorada Annette, aqui segue a documentação que guardei da Operação Fado Hilário, tratava-se de sair de Mansambo e percorrer uma antiga base do PAIGC em Galoiel, não muito longe daquele rio Corubal que mais abaixo passa junto ao Xitole. Recordo acima de tudo o cuidado com que o Capitão Laranjeira Henriques explicou ao detalhe o que se pretendia com a operação e como faríamos o percurso. Será a primeira vez que irei entrar num acampamento de guerrilha abandonado. Ouviremos ao longe tiros de caçadores, no regresso teremos sorte em fugir a um ataque de abelhas. Enfim, um patrulhamento sem incidentes, regressaremos tarde, só na manhã seguinte nos poremos ao caminho para Bambadinca. É então que eu sinto uma exaustão profunda, a necessidade de me isolar um pouco, peço licença para depois do jantar ir para o abrigo, o Chico Buarque parece estar a esporear-me, a convidar-me para um volteio lírico, habituei-me a não ceder a um poetar que é epidérmico, sinto que é pouco sincero. Mas naquele momento eu não resisto, parece que tenho dentro da cabeça os gritos daqueles dois sinistrados, que aquela explosão parece que aconteceu há momentos, estou atarantado, busco o meu caderninho de apontamentos e passo ao papel a lamechice dos meus versos: “Os meus feridos são uma perene voz ululante, uma súplica sem remédio dentro da floresta fechada, os seus gritos esvanecem-se em abóbadas de gás, como se houvesse um concerto polar. Não sei o que fazer à minha solidão, ela ribomba dentro deste espaço protetor num aquartelamento militar, reprime um grito e é para ti minha mãe que eu garatujo a pedir amparo, nos estreitos dos teus braços. Tu és a minha primeira testemunha e a minha ancestral companhia. És a gávea de onde o marinheiro grita terra à vista”. E então não consigo reprimir a comoção, toda aquela mágoa sem qualquer direção, é um choro convulso dentro daquele espaço silencioso. E adormeço, durmo como uma pedra.

Regresso sem novidade a Bambadinca. Tenho guia de marcha e um voo a meio da tarde em Bafatá para Bissau. Despeço-me dos dois furriéis que ficam com farta agenda de cometimentos, não haverá patrão ausente e feriado na loja. Quando me preparo para me despedir do Cherno, ele olha-me de frente, e diz sem hesitar: “Ainda não lhe disse, mas vou de férias para Bissau, sigo amanhã numa embarcação, depois levo-te água e bananas ao hospital. O guarda-costas anda sempre com o alfero”. Imagina tu, adorada Annette, que em 1995 fui operado a uma hérnia discal e uma das primeiras visitas foi a do Cherno, eu conseguira preparar as coisas para ele vir até Lisboa quando trabalhei como cooperante na Guiné em 1991. Veio, foi a uma junta médica que lhe reconheceu as sequelas de um duplo traumatismo em consequência de uma mina anticarro, teve direito a uma pensão, e trabalhava numa loja de eletrodomésticos na Praça de São Paulo, junto do Cais do Sodré. Estou a dar-te estes pormenores porque gostaria que os dois o visitássemos, sei muito bem que ele se sentirá feliz em te conhecer.

Já entrei no Dakota, subimos aos céus e eu vou bisbilhotando todo aquele coberto florestal e os meandros do Geba, o avião inflete para Bissau, saio com a mala na mão e apanho aquele bafo de estufa e sinto prontamente aquele cheiro onde se conjugam resinas de árvores e gafanhotos mortos. Tenho direito a uma boleia de jipe e vou para Santa Luzia, amanhã de manhã serei visto pelo ortopedista, oxalá que a operação exija pouca convalescença e sobretudo que me tire as dores que me tolhem os movimentos da perna direita. E amanhã mesmo espero abraçar o meu querido Fodé Dahaba, o que eu ainda não supus irá acontecer: quando sair deste hospital devidamente tratado a ele regressarei apressadamente para visitar os meus feridos de uma terrível flagelação que irá devastar, deixar em cinzas, muito mais de metade de Missirá.

(continua)

Bafatá, avenida principal com igreja-matriz, 1950. Foto de Ana Vaz Milheiro, 2011, com a devida vénia
O deslumbramento da floresta do Cantanhez
Na Lagoa de Cufada, imagem da Sic Notícias, com a devida vénia
O fascínio da água e da multiplicidade de verdes
Cais do Pidjiquiti, 1968, Diogo Gomes parece estar a receber os recém-chegados, ao fundo o Ilhéu do Rei
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21477: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (24): A funda que arremessa para o fundo da memória

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4866: Bibliografia (30): Eu e os Comandos, artigo de Mário Beja Santos na Revista Mama Sume, da Associação de Comandos

1. Texto enviado por Mário Beja Santos à Associação de Comandos que lhe havia pedido para escrever um artigo a publicar na Revista "MAMA SUME"


Eu e os Comandos
 

por Mário Beja Santos

Fui alferes miliciano na Guiné, onde vivi ininterruptamente entre Julho de 1968 e Agosto de 1970. Contei toda esta história da minha comissão em dois livros publicados em 2008: “Diário da Guiné, Na Terra dos Soncó, 1968 – 1969“ e “Diário da Guiné, O Tigre Vadio, 1969 – 1970”, ambos publicados pelo Círculo de Leitores e a Temas e Debates. Durante 17 meses vivi no regulado do Cuor, como comandante dos destacamentos de Missirá e Finete. A minha principal missão era vigiar e garantir a navegabilidade do rio Geba, indispensável para a continuação da guerra. Comandei, na circunstância, um Pelotão de Caçadores Nativos e dois Pelotões de Milícias. Protegia o rio, emboscava, patrulhava e cuidava de centenas de civis, garantindo-lhes o abastecimento, a segurança, o médico, o professor para as crianças, a correcção nas práticas da justiça, ao lado do régulo.

A segunda etapa da minha comissão foi vivida no sector de Bambadinca, intervindo na área operacional, como comandante de colunas até ao Xitole ou Xime, patrulhando, destruindo canoas do inimigo, apoiando as tabancas em autodefesa, mas fazendo igualmente um pouco de tudo, desde de levar e trazer o correio, levar e trazer doentes, garantindo a segurança dos reordenamentos, protegendo a sede do batalhão num posto avançado infecto, para não dizer desumano. Continuei a combater ao lado dos meus caçadores nativos e na companhia de tropa africana, designadamente a Companhia de Caçadores 12 (foi esse o laço que me transportou, décadas depois, para o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, onde deposito as minhas memórias e o meu indefectível amor àquela terra)

Serve esta apresentação para dizer ao leitor que combati quase sempre com tropa regular que eu apresentei nos meus livros como “alguns dos soldados mais valentes do mundo”, gente que confiou incondicionalmente em mim, a quem confiei missões espinhosas, esgotantes, destemidas.

Os meus soldados ensinaram-me muito, quer os nativos quer os metropolitanos: a crescer entre a solidariedade e a abnegação; e a não fugir ou adiar as missões diárias dos patrulhamentos junto ao Geba, tínhamos nos ombros a responsabilidade de tantas vidas. Eu sei que o leitor considerará inacreditável o que vou dizer: no mínimo dos mínimos, fazíamos 25 km entre Missirá e Mato do Cão, ida e volta, a qualquer minuto de qualquer hora do dia. Missirá ficou praticamente destruída em Março de 1969 e quando partimos, em Novembro desse ano, deixámos um quartel reconstruído, o maior esforço de toda a minha vida. Só foi possível porque contei com dedicação dos meus soldados, que faziam reforços, colunas de reabastecimento, emboscadas nocturnas, não direi sem um queixume (na época das chuvas cheguei a ter 40 por cento dos efectivos acamados) mas com uma elevadíssima capacidade de colaboração. Falo de homens que punham luvas brancas para hastear ou arrear a bandeira portuguesa no mastro três vezes destruído, três vezes renascido, enquanto lá estivemos juntos.

Não combati com os Comandos, dei militares de carácter e de grande valentia para as suas três companhias que se formaram na Guiné:

(i) primeiro, Zacarias Saiegh, meu furriel que comandava Missirá antes de eu chegar. Mantivemos uma relação difícil, mas assente no respeito mútuo, soube em primeira mão da sua decisão em integrar-se na 1ª Companhia de Comandos Africana, que se formou em Fá, e que nos coube proteger durante meses, do lado de cá do rio Geba. Foi fuzilado em 1977, em Porto Gole, nesse estranho drama que foram os fuzilamentos de uma intentona que, enquanto não houver provas, não passou de uma vil purga;

(ii) Mamadu Camará, que quando cheguei a Missirá era o 221, e uma noite, debaixo de fogo, pressentindo que a deflagração de uma morteirada inimiga me ia atingir, atirou-se sobre o meu corpo, tendo ficado com muitos estilhaços nas costas e pernas, foi brutalmente ferido no reencontro na região do Cantanhez, veio em 1972, é cidadão português;

(iii) Cherno Suane, o meu guarda-costas, o mais querido dos meus irmãos, que viveu o inferno do Cumeré, sujeito a prisão arbitrária e às mais horríveis sevícias, entre 1977 e 1980, consegui que viesse em 1992, é também cidadão português, preenche com resignação todos os anos papelada infernal para trazer o filho mais velho, até agora a burocracia delirante é mais forte que o reencontro familiar;

(iv) Queta Baldé, o mais precioso colaborador que tive na preparação dos meus livros, nunca vi memória como a dele, fugiu para o Senegal para não ser morto, em 1974, aqui o temos entre nós, vive na Amadora, tal como o Mamadu e o Cherno subsiste entregue a tarefas humildes para ter os filhos na faculdade;

(v) e Serifo Candé, que fui visitar a Biana, no leste da Guiné, em 1991, e que não acreditou que eu não o tivesse ido buscar para o trazer para Portugal, o Serifo é o meu remorso, é bem provável que eu tenha que voltar à Guiné e trazer este homem de modos tão gentis que nunca percebeu porque é que não volta a hastear, cheio de aprumo, uma bandeira verde rubra que ele prometeu defender até à morte.

Este foi o legado que deixei aos Comandos, este legado é uma das tragédias da minha vida, continuo sem saber aonde arrecadar o sofrimento destes homens que nem sempre puderam refazer o sentido das suas existências.

Deixei para o fim uma sentida homenagem ao meu instrutor em Mafra, já na especialidade de atirador de infantaria. Era pouco mais velho do que eu, um homem seco de carnes, um olhar azul firme e decidido, com uma expressão de rectidão e confiança em tudo o que dizia e fazia. Ensinava com desvelo, era convincente e de bom trato. Tinha uma arte de comunicar, imprimindo sabor, às matérias mais áridas. Ele ficou em Mafra, eu parti para Ponta Delgada, daqui regressei para formar batalhão, fui dado como “ideologicamente inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar Português”, e os meus superiores, à cautela, lançaram-me na rendição individual, acabavam-se assim os incómodos.

Voltei a ver o já então capitão Garcia Lopes num encontro espúrio em Bissau, ele estava nos Comandos, ouviu-o vibrar na descrição de um regresso de operação com os seus soldados feridos: “Custe o que custar, um Comando traz todos os seus camaradas, feridos ou mortos, nem que necessário seja dar a vida”. Guardei esta frase, dolorosamente já tinha trazido nas espáduas o Paulo Ribeiro Semedo, compreendi perfeitamente a mensagem e os sentimentos do capitão Garcia Lopes.

Gostava muito que esta lembrança chegasse aos ouvidos deste distintíssimo oficial. Aprendi na vida que marcamos os outros com uma simples frase, a rectidão de um gesto ou um sopro de coragem.

Os Comandos, por inerência, são gente exemplar na minha vida. Espero que percebam que tenho muito orgulho nestes meus soldados que partiram para outras guerras e que continuam meus compatriotas, heróis anónimos que ganham humildemente o que as pensões não dão para uma vida decente. Tão gente exemplar como aquele capitão Garcia Lopes que aproveitou um encontro espúrio em Bissau para me recordar que a camaradagem é mais exigente nas horas más que nas boas.

[Revisão / fixação de texto: CV/LG]

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9309: Memória dos lugares (170): Regresso a Missirá em Janeiro de 1990 (Mário Beja Santos)


Aqui fica uma prova provada da revolução de costumes em Missirá: a discoteca. O Tangomau não teve coragem de perguntar nada sobre o horário de funcionamento e a natureza dos serviços prestados.



1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2011:

Queridos amigos,
 
Espero que a lembrança vos dê satisfação. Aí a páginas 250 deste calvário que levo na escrita e que tenho que aprontar até ao fim de Fevereiro, reconstituo a visita que fiz a Missirá vinte anos depois de lá ter estado. Foi um encontro inolvidável, o mundo mudara mas aquela paixão pelo Cuor mantinha-se firme. Mantinha-se e mantêm-se.

Desejo-vos do coração um novo ano com a saúde em pleno e sinto-me grato pela vossa amizade,
MBS


O regresso a Missirá em Janeiro de 1990

Maria Leal Monteiro e o Tangomau iam comer regularmente à Pensão Central, na Avenida Amílcar Cabral, sempre superintendida por D. Berta de Oliveira Bento. Foi aqui que conheceram outro cooperante, o Dr. Francisco Médicis, que estava ligado a um projecto da segurança social. Suspirava-se, no fim de uma tarde de quinta-feira, para encontrar um transporte no fim-de-semana para ir até ao Cuor, era mesmo crucial fazer esta visita durante o fim-de-semana, pois estariam de regresso a Portugal na terça-feira seguinte. Com uma enorme candura, o Dr. Francisco Médicis assegurou-lhes que os levava ao Cuor no domingo, aquele domingo ficava por conta de alguém que sentia um enorme fascínio por aquele regulado que ele não conhecia nem nunca ouvira falar. Estava prometido, o Tangomau voltava ao seu chão.

Alvorecia em Bissau quando os três se puseram ao caminho numa carrinha de caixa aberta, de Bissau até Nhacra, antes de Mansoa tomaram a estrada em Jugudul, era a primeira vez que o Tangomau percorria caminhos outrora interditos; não se entrou em Porto Gole, a nova estrada alcatroada seguia por Malafo e passava perto do Enxalé. 

Nesta altura já o Tangomau estava alvorotado, via embevecido as culturas do arroz pam-pam, ao fundo nas lalas os majestosos tabás, os cipós, surpreendeu-se com as culturas do cajueiro, a grande novidade; do Enxalé para a frente, sentia a respiração entrecortada, os olhos suspensos no horizonte, à procura dos meandros do Geba, sentiu-se desnorteado, pois percebeu que o novo traçado da estrada se afastara do rio, era impossível ter perdido de vista aqueles formosos palmares nas vizinhanças de Mato de Cão; viu a indicação da povoação com este nome, muito depois de Saliquinhé, perguntou aos passantes onde estava o rio e todos disseram que estava longe, mais a mais o curso de água encontrava-se na vazante, era impossível aproximar-se daquele local mágico que visitara todos os dias, uma das razões porque se atirara ao caminho, vem pelos homens e vem pelos lugares, vem pelos cheiros, pela fauna e pela flora, está de regresso ao Cuor, que lhe pertence; conformou-se com a desfeita da natureza, mas não deu o tempo por perdido, nesse mesmo Mato de Cão foram mostrar-lhe o planalto, foi então que se apercebeu que por ali houvera um quartel exactamente no local onde pernoitara tantas vezes, que calcorreara em todas as direcções, agradeceu a recepção, a carrinha de caixa aberta, por indicação de outros passantes, mais adiante, em Gambana, inflectiu à esquerda e tomou o caminho da velha estrada do Geba, que ele tão bem conhecia, em dado ponto até exclamou que estava a ver Malandim, no lado direito e ao fundo a opulenta, a luxuriante bolanha de Finete.

É um dia de Janeiro sem uma aragem e escorre pelos corpos um calor fervente, o caminho é acidentado, predomina a zanguizarra dos grilos, aqui e acolá começam a despontar terrenos cultivados, o Tangomau entra em transe, já se avista a curva de Canturé, a carrinha vai sempre em frente, mesmo aos tombos em tantos buracos, disseram em Bissau que é preciso ter muito cuidado pois há muitas estradas alagadas, são os resquícios da época das chuvas, o Dr. Francisco Médicis prefere a segurança deste empedrado que muito mais adiante, de acordo com a carta e a percepção do Tangomau, irá desembocar em Cancumba.

 Agora está um calor de enlouquecer, vê-se uma indicação de Maná, a carrinha prossegue imperturbável, e quão curioso vai o antigo alferes de Missirá, Maná é um percurso de antanho, prenhe de memórias, por ali há um túmulo de um régulo do Cuor, um nome inesquecível de um Soncó; dentro da viatura não se ouve um comentário, tripulante e passageiros levam frequentemente à boca a garrafa de água; o terreno agora é mais escalavrado, o Tangomau tem um arrepio, recordou à esquerda a entrada para Mato Madeira, num ponto alto do alcantilado avista-se uma tabanca à direita, pelas informações que dispõe trata-se de Sansão, foi recriada no fim da guerra, estão pertíssimo de Missirá; agora a estrada alarga-se, melhor dito é a natureza liberta da floresta, temos ali as palmeiras de Cancumba, a carrinha inflecte numa picada, alguém, a caminho das hortas, confirma que é preciso tornear a nova tabanca para chegar a Missirá; o estradão está de facto pejado de hortas, o Tangomau reconhece os altos poilões e o mar de cajueiros, Missirá está em frente, quando a viatura franqueia a entrada ouve-se o gralhar das crianças, começam a sair os adultos das moranças e naquele espaço que fora a parada do quartel a viatura sossega, os viajantes põem-se em terra.

Sempre que descrevia o acontecimento, o Tangomau comentava: entrei e saí de Missirá a soluçar, é uma experiência inenarrável, 20 anos depois sentir a atmosfera, ver alguém que se aproxima e logo se reconhece, é Lamine Mané, a criança tornou-se num homem robusto, guarda a inocência no sorriso, pega o Tangomau pelos ombros e dá-lhe as boas-vindas dentro de um abraço caloroso. Explode a gritaria, o Baké regressara, claudicando aparece Quebá Soncó, depois dos cumprimentos efusivos dá instruções para se juntarem os bancos, vai começar o cerimonial das conversações, mas o Tangomau está frenético, procura as mulheres grandes, encontra duas, partem mantenha, elas fazem a reverência, perguntam pela família, pedem cola; se já vinha desnorteado, dentro de Missirá perdeu a bússola, está tudo modificado, a única referência a que se agarra é ao edifício dos abastecimentos, não o demoliram; o cerco estreita-se, ele tem pela frente alguém que lhe estende os braços e que o ampara, vibrante, é Bacari Soncó, o seu irmão, o Tangomau já não pode mais, soluça encostado a uma estaca de querentim, sente a cabeça à volta parece o dia da ressurreição dos vivos, que andavam tão distantes. Quebá Soncó sente-se na obrigação de pôr ordem, há autoridades do PAIGC que pedem explicações para esta explosão de alegria, trocam-se cumprimentos, as autoridades falam em crioulo e Quebá traduz: nosso alfero é muito bem-vindo.

Cumpre-se o protocolo dos cumprimentos, Quebá perora em mandinga, Maria Leal Monteiro e o Dr. Francisco Médicis estão manifestamente siderados com o cerimonial, olham para a pequena multidão silenciosa, o povo aguarda o ritual dos cumprimentos, parece que voltámos aos tempos bíblicos. A assembleia posiciona-se: no extremo de um longo U um banco para os visitantes, estes já receberam pratos de papaia e copos de água fresca; em frente, sentado numa cadeira de vime, pontifica Quebá, compete-lhe a batuta de toda a conversa; logo atrás todos os homens grandes, estão ali festivos nas suas fatiotas multicoloridas, vêem-se ali os Soncó, os Sani e os Mané; aos lados, temos os jovens adultos e os blufos, a maior parte mantém-se de pé, são obrigados ao respeito, compete-lhes ouvir a confirmação de uma história que já ocupou muitas noites da vida de Missirá, o Baké existe, é um Soncó que regressou nesta visita meteórica, mas existe, não é lenda nem tem a forma de um Deus; ao fundo estão todas as mulheres e as crianças, só as mais velhas estão sentadas, elas tiveram o privilégio de conviver com o branco da família, que não pára de chorar, coisa inconcebível de se mostrar em público, ele deve ter um amor muito entranhado, deve ter vindo amarfanhado pelas saudades para quebrar os deveres da honra, um homem não chora, mais a mais ele é o guerreiro que nenhuma bala pode derrubar.

É longo o discurso de Quebá e mal se faz silêncio um homem jovem, vestido à europeia, começa a traduzir para português, fraseia e articula sem mácula, o Tangomau está intrigado e pede explicações e Quebá prontamente responde: é o nosso irmão mais novo, Abudurramane Serifo Soncó, é professor, está de férias, tinha sete anos quando houve o grande ataque que destruiu Missirá, em 1969. Feita a saudação inicial, levanta-se imponente Aladje, o ancião dos Soncó, lança uma oração de graças, o Deus misericordioso nunca falta ao apelo dos seus crentes, é bom este regresso de alguém que jamais foi e será esquecido, chegou o momento do ilustre visitante falar com a família. O Tangomau, para sua própria surpresa, tem o coração oprimido mas discursa sem nenhuma congestão narrativa, recorda todos os seus amigos, as idas ao médico e os trabalhos do abastecimento em arroz, naquele preciso momento sentia grande comoção em recordar Mussá Mané, praticamente todos os dias o chefe de tabanca lhe vinha suplicar uma coluna extraordinária para suprir carências de toda a espécie, recordou o régulo Malã e aquele dia de despedida em que ele se transformara num Soncó. Aqui a sua voz tremelicou, resolveu abreviar, que ninguém duvidasse que ele nunca esquecera Missirá e Finete, as belezas indizíveis do Cuor, o regulado mais belo do mundo, que vinha para colaborar com a Guiné-Bissau e que sentia uma grande alegria por este reencontro e que pedia licença para ir rezar com os homens grandes à mesquita, dar hossanas e desejar as maiores venturas a quem ali vivia.

O que se passou nas horas seguintes ainda hoje permanece confuso, veio o novo régulo, um Soncó que vivia no Senegal, no tempo da guerra, de nome Mamadi; furtiva ou abertamente, entregavam-lhe bilhetes, trouxe dezenas deles, pedindo equipamentos de futebol, livros, chapa ondulada, bancos para a escola; percorria Missirá de uma ponta a outra quando foi sacudido pela emoção maior: sempre discreto e estendendo-lhe as mãos ali estava Cherno Suane, que tanto sofrera na prisão do Cumeré, andara a monte e finalmente fora autorizado a residir perto de Missirá, em Biassa. 

O Tangomau nunca se arrependeu da promessa impulsiva que logo ali lhe fez: juro-te que tu vais para Portugal, se quiseres. É quando começa o fim do dia que o Dr. Francisco Médicis, com mansuetude, lhe recorda que a viagem até ao tapete alcatroado tem os seus riscos, é melhor partirem, tem consciência de que é muito difícil agora a despedida, apela à sua compreensão. E começa o cerimonial do adeus, garante a todos que é bem provável que volte em breve, na caixa aberta vão as prendas, várias galinhas a cacarejar, com as patas atadas. Cherno Suane vai erecto e altaneiro na caixa, despede-se de todos como se amanhã partisse para Lisboa. Esta despedida é igualmente emocionante, a carrinha está imobilizada à entrada de Missirá, são adeuses sem fim, o Tangomau parece querer congelar no olhar aquele céu sem uma nuvem, agora a temperatura é benfazeja, depois prosseguem pela estrada alcantilada, em Cancumba os habitantes insistem em cumprimentar, correu célere a notícia da presença do Baké, muita desta gente veio de Madina, Belel e Quebá Jilã, se fosse necessário prova mais eloquente de que já se consumou a reconciliação entre guineenses e portugueses, ela aqui estava, neste final feliz da visita.


Esta é a nova Missirá e estes meninos olham para o futuro. Está na hora de partir, o Tangomau sabe que vai voltar, mais cedo do que a população de Missirá pensa. Até porque há muita coisa para ver nos arrabaldes: Madina de Gambiel, Sansão, Maná. Há uma grande nostalgia por percorrer a velha estrada que ligava Bissau a Bafatá. O Tangomau não sairá defraudado. Toda a comitiva entra no carro de combate conduzido por Calilo Dahaba e marcha-se para Mato de Cão. Ponham-se em sentido todos aqueles que ali vigiaram e viveram!


Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9305: Memória dos lugares (169): A CCAÇ 2464 em Biambe e Binar (António Nobre)

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Chegou-se a um momento em que se cruzam os acontecimentos do tempo da guerra com o dos regressos à Guiné, estes, por sinal, festivos e simultaneamente dolorosos. Annette registou conversas, espicaçou o diálogo sobre os retornos, sabia que tinha havido reencontros, tudo com pretextos profissionais, selaram-se novas cumplicidades. Um Soncó volta sempre. É um dever, é uma razão de ser. Paulo aprendeu ao longo dos anos que houve quem regressasse da Guiné profundamente malquisto, magoado, disposto a tratar aquele passado como livro fechado. Ele e a sua circunstância ditaram outro caminho, por isso acedeu facilmente a satisfazer a curiosidade de Annette quando ela lhe perguntou nas curtas férias de Lier, não muito longe de Antuérpia: o que representou na tua vida regressar aos locais de tantos afetos e de tantas violências? E Paulo contou-lhe o significado que ele atribuía aos seus retornos, afinal demonstrativos de que há memórias que nunca se apagam. E repetiu-lhe: um Soncó volta sempre.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureux, trabalhei todo o dia em Gand, era uma reunião promovida pela Comissão com médicos de várias categorias, retive comentários de professores universitários, eminentes cirurgiões, médicos de família também, mas havia na assistência representantes da indústria farmacêutica, farmacêuticos e especialistas em Saúde Pública, não sei se não estou a dizer algum disparate, mas passou-se o dia inteiro a ouvir intervenções sobre automedicação, tudo começou com a intervenção do Comissário da Saúde que tratou a automedicação como um fenómeno inevitável e em expansão, não só para garantir a eficiência dos serviços de Saúde e medicamentos essenciais a preços abordáveis, transferindo os medicamentos não prescritos pelo médico para um novo quadro de responsabilidade entre farmacêuticos e utentes e doentes. Houve para ali uma certa polvorosa, os médicos entendem que os doentes, de um modo geral, ainda não estão preparados para uma automedicação criteriosa. O representante da indústria farmacêutica, por seu lado, mostrou-se entusiasta para que a lista destes medicamentos cresça e revelou que os laboratórios gostariam de fazer uma comunicação direta com os doentes. Não podes imaginar o pandemónio que houve na sala. E recordei-te o dia todo porque no ano em que nos conhecemos tu tinhas vindo a Bruxelas colaborar na primeira conferência europeia sobre a automedicação.

Obrigado pela organização que estás a dar a todos os teus apontamentos até agosto. Tenho uma surpresa para ti. Coligi as nossas conversas em Lier, estava mortinha de curiosidade para saber o que representava a Guiné nos anos subsequentes ao teu regresso. Vê se compreendi bem, e o que estiver impreciso acrescenta ou corta. Pelo desenvolvimento que estás a dar ao romance, parece-me que faz todo o sentido que haja um posfácio, voltaste à Guiné em 1990, uma curta viagem, trabalhaste sensivelmente cinco meses em 1991 como cooperante, ficou-me a impressão de que houve alegrias e deceções profundas.

Retive o seguinte. Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento. Aquele teu furriel cujo sistema nervoso colapsou ainda estava muito débil, quase apático. Recebes visitas frequentes do Paulo Ribeiro Semedo e do Fodé Dahaba. Virão mais tarde outros sinistrados, caso daquele teu grande amigo, Mamadu Camará, era soldado Comando, foi gravemente ferido num calcanhar, tudo se tentou para a sua recuperação, mas a perna gangrenou, houve que a amputar, ainda hoje vocês se encontram. Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996, ele era professor primário, passava longos meses sem receber salário, aproveitou um curso em Setúbal e foi trabalhar para a construção civil. Ri-me imenso quando me falaste de que tinhas preenchido uma declaração dizendo que o Abudu fora admitido em tua casa como criado, ele para ficar em Portugal tinha que ter uma fonte de rendimento, foi esse o expediente encontrado.

A Guiné entrara no limbo no teu quotidiano, mais tarde foste solicitado para escrever em algumas publicações, registei que fora trabalho penoso ir aos escaninhos da memória e encontrar episódios aliciantes, ilustrativos da guerra em que te movimentaste, foi trabalho de pouca dura, sentiste alívio que tudo permanecesse no limbo. Até que um dia, no final de 1989, foste chamado ao teu diretor-geral que te informou que as autoridades portuguesas, no âmbito das reuniões ministeriais que estavam a ter com os novos países independentes de língua portuguesa, para articularem posições quanto à Cimeira da Terra, que se iria realizar no Rio de Janeiro em 1992, o Ministro da Guiné-Bissau, para completa surpresa do ministro português, pedira-lhe cooperação para aprofundar uma política de consumidores no país, coisa considerada urgente. Estava aprazada uma reunião para janeiro, em Bissau, iria a subdiretora-geral e fazia todo o sentido que tu participasses nessa missão, não mais de uma semana, era só para avaliar da viabilidade de tal cooperação e em que termos ela podia ser feita. Foste, foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre. Ficaste assombrado com o funcionamento da administração, uma diretora-geral do Comércio Externo recebeu-vos logo declarando que tinha pouco tempo disponível, precisava de ir para a sua empresa pois tinha um contrato de exportação vantajoso para tratar… E à porta do hospital Simão Mendes viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável. O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá, graças a um outro cooperante, o carro avariou mas ele arranjou uma camioneta de caixa aberta, desde que te aproximaste de Mato de Cão até tomarem a estrada que leva Canturé a Missirá, passando por Cancumba, tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população, tu, a tua subdiretora e o cooperante português (registei o nome, Dr. Francisco Médicis), vocês rodeados dos anciãos, mais atrás os homens mais novos e os jovens adultos, ao fundo as mulheres e as crianças. Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado, olhando para os tetos das casas e recordando o trabalhão que dera a chegada de tanta chapa zincada, entregavam-te papéis à socapa, o professor pedia cadernos e lápis e todos os livros disponíveis, alguém te entregou uma folha a pedir equipamentos de futebol, faltavam sacos de cimento para acabar a reparação da mesquita, noutra folha alguém invocava generosidades pretéritas, precisava de dinheiro para comprar arroz, óleo e sabão, se podia dar uma ajuda de uns escassos milhares de pesos… E tu ainda ficavas mais magoado, não vieras preparado para tanto desembolso. A reunião prolongara-se até meio da tarde, a despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos, era um banido, tinha emprego na empresa Socotran, cortava madeira, mas hoje mesmo viria comigo para Bissau, estava pronto a partir para Portugal. E tu transido, o que responder a este homem que te tinha dado uma amizade desvelada, que naquela amaldiçoada noite de 16 de outubro de 1969 ia no guincho do Unimog 404 e que com o sopro da explosão da mina anticarro voara uns bons metros até aterrar em cima de um morro de bagabaga, trazido para Finete, tu abraçado a quem davas como moribundo, o rosto todo retalhado, em Bissau diagnosticado duplo traumatismo craniano, e que superara o sinistro, como era possível agora dizer-lhe que não? E regressaram a Bissau, o Cherno empertigado na caixa da camioneta onde iam as prendas da população, várias galinhas e sacos com mangas. Mais tarde, o Cherno veio para Portugal, tornou-se uma das mais queridas amizades, encontrou emprego num estabelecimento de eletrodomésticos na região de São Paulo, entre o Cais do Sodré e o Conde Barão, foi o que tu me ditaste, espero que tenha escrito bem.

Estou agora a alinhavar o essencial do que me disseste da tua experiência em 1991, que peripécias, cher Paulo! Eu vou tomando nota de tudo o que te vem à memória, não te quero mentir, há momentos em que me convenço que o que se escreve na literatura é menos empolgante do que se passa na realidade… E pergunto-me a mim própria como é que aquela experiência da Guiné te fez mais forte, te trouxe uma maior alegria de viver. Disseste-me um dia que teres perdido tudo o que trouxeras de Lisboa numa flagelação em que se incendiou a tua casa, não te trouxera grande inquietação, havia que refazer o quartel e tratar dos vivos, os teus trastes foram considerados coisa morta, e havia mais vontade de viver, seria ela capaz de fazer renascer roupas, livros, discos e recordações feitas cinza, e que a grande lição aprendida é que se a vida não renasce é porque se perdeu o respeito por nós e o amor pelos outros. Quando voltas a Bruxelas? Onde passaremos a Páscoa? Que saudades tenho de ti, a despeito de tanta companhia que me dás. Obrigado pela tua joie de vivre, mon adorable, bien à toi, Annette.

(continua)

Local em Mato de Cão onde se fazia a vigilância das embarcações militares e civis no Geba
Edifício dos CTT, Bissau, imagem de Didinho, com a devida vénia
A beleza acrobática da subida da palmeira, um fruto que pode custar a vida, imagem de Didinho, com a devida vénia
Pescador no Rio Grande de Buba
Ainda hoje estremeço nesta panorâmica da velha tabanca de Bambadinca, ao fundo à direita estão os estancos onde se comprava desde a graxa a biscoitos, ali tudo se encontrava, do lado esquerdo, situava-se a loja do Rendeiro, outro fornecedor, detinha uma caverna de Ali Babá para primeiras necessidades, e ao fundo, feita a cambança do Geba, a bolanha de Finete, ao fundo à esquerda vêm-se os armazéns do porto, tudo mudou, a decadência tomou conta de tudo.
Uma imagem que vale por mil palavras
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21769: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (35): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22355: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (60): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Annette interroga Paulo Guilherme quanto à natureza dos seus relatos, pergunta-lhe se tudo quanto ali se diz é a clara certidão da verdade, de acordo com o que a memória permite e os papéis guardam. A resposta surpreende-a: há omissões, há segredos invioláveis, há papéis enganadores, caso de relatórios de operações que não podem ser tomados a sério. E dentro daquela vivência intensa manda o pudor que nem tudo se conte, viu-se gente com muito medo, havia um canalha que procurava permanentemente guias médicas, doía o dedo ou doía o ouvido, sempre doente, por coincidência adoecia na véspera da operação. E há histórias secretas, como a daquele oficial que até se quis mutilar para não aturar quatro alferes que o achincalhavam. Nem tudo se conta, dentro e fora da guerra. Parece que Annette ficou um tanto desconsolada, mas convicta que há segredos sobre os quais ninguém se atreve a escrever.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (60): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adoré Paulo, proporcionaste-me ontem à noite, na longa conversa telefónica que tivemos, momentos intensos de meditação. Quando procurei voltar ao teu passado na Guiné e te pedi que tivesses a maior das franquezas comigo, queria saber se estavas a contar integralmente, e de acordo com as tuas lembranças, tudo o que efetivamente acontecera no período em que foste militar. Surpreendeu-me a tua pronta resposta: há a verdade histórica, há omissões, silêncio mais ou menos absoluto sobre certos factos, em consciência não pretendi adulterar ou perverter a sequência cronológica dos acontecimentos nem dos seus protagonistas. Mas nunca ultrapassei, por razões de pudor, a decisão de os pôr por escrito. Dou às pessoas silenciadas o dever do arrependimento e a liberdade de consciência.

Sentada, enquanto conversávamos, fui tomando notas dos esclarecimentos que prestavas, foste mesmo ao início da tua preparação militar em Mafra, tudo te parecera positivo ali, menos a comida, desnecessariamente abominável, não havia necessidade de aparecer um caldeiro com arroz de frango que metia patas e cabeças, um nojo. Foi ali que descobriste satisfação de te saber capaz de ir a trote até Mafra e voltar, adaptaste-te às marchas, rias-te interiormente das justificações ideológicas para a guerra colonial dadas pelos instrutores. Sentiste benefícios do período da especialidade em que foste exposto a muita dureza. Guardas a melhor das lembranças do período em que foste dar recruta na ilha de São Miguel, vejo nos teus papéis inúmeras referências a um certo deslumbramento quanto à descoberta de que possuías capacidade para liderar, há mesmo uma expressão curiosa que retive de uma carta enviada a um familiar: “Descobri que sei comandar, faço-o sem rispidez ou teatralidade, mas não ponho esse princípio da liderança como primordial quando voltar à vida civil, agora é vital que o aceite e desenvolva, pois irei acabar naturalmente com essa voz de comando”. Não escondes mesmo que houve algum choque adaptativo na vida da caserna e que a primeira noite em Missirá foi determinante para as decisões que tomaste nos dias seguintes, ias formar uma mentalidade ofensiva, procurar melhorar as condições de vida de quem ali vivia. Mas logo nessa noite te confrontaste com o furriel que mostrava frascos com dedos e orelhas, disseste-lhe sem hesitação que tal não voltaria a acontecer enquanto estivesses ali. Quando te falei neste assunto, respondeste que tinha ficado escrito não por razões de moralidade de última hora, era o princípio que exigias a ti e de ti para os outros, somos militares, iremos combater a sério, mas não somos torcionários.

Quando te abordei sobre questões de sexualidade, e tendo tu descrito num documento um episódio passado com um soldado branco e um africano, foste perentório: só me interessou explicar àquele homem as consequências da impulsividade, ele teria que pensar o que sucederia ao outro, daí não ter registado o nome deles, tudo decorreu na confidencialidade, ninguém soube da história. Falaste na complexidade do mando: fazer a guerra, cuidar do abastecimento de militares e civis, zelar pela segurança, em casos extremos fazer a justiça com o apoio do régulo, ser confidente, e disseste ter recebido muitas confissões, ouvido muito desespero, procuraste zelar pelos outros, usando sempre, quando possível, da absoluta discrição.

Viste gente cheia de medo em vários teatros da guerra, jamais contarás a conversa havida com um comandante de Bambadinca que contou a história de um comandante de unidade, altamente deprimido por se sentir desautorizado pelos seus alferes, e tu foste enviado para subtilmente pôr aquela gente a fazer guerra e só ali não voltaste mais porque te garantiram que o dito oficial seria doravante respeitado. Impossível contar a história, trazer nomes à baila. Entendeste que devias passar sumariamente pela profunda depressão de um teu colaborador que teve que ser evacuado e sujeito a tratamento psiquiátrico durante anos, aliás confessaste que te sentias altamente responsável de ter estado desatento a certos sinais e sobrecarregá-lo com tarefas que agudizaram o seu estado depressivo.

De algum modo deixaste-me alarmada quando me falaste no interesse muitíssimo relativo que têm os relatórios das operações e deste-me o exemplo concreto daquele que escreveste sobre o acidente da mina anticarro em Canturé, em outubro de 1969. Ninguém te perguntou nada sobre o relatório que, aliás, viria a ter aspetos úteis no futuro, na medida em que falaste nos sinistrados que ali viste ao duplo traumatismo craniano de Cherno Suane, teu guarda-costas, foi graças a esse relatório que conseguiste muitos anos depois que o processo dele fosse reexaminado e Cherno obteve o estatuto de deficiente das Forças Armadas. O que concretamente me disseste é que em muitos relatórios há referências despudoradas a mortos, que nunca ninguém viu, e também deste o exemplo concreto que te ofereceste para inserir em material destruído durante flagelações a Missirá e Finete as quantidades de material que te pediam em Bambadinca, inclusivamente tiveste um inquérito, veio um coronel a Missirá perguntar como é que tu tinhas desassombro em pôr tantos cobertores, lençóis e fronhas, capacetes destruídos durante as tais flagelações, tudo aquilo somado dava para três contingentes de Missirá e Finete? Tu contaste a verdade, a história acabou por ali.

Terrível é o que igualmente contas do processo de averiguações com aquela criança queimada por uma granada incendiária deixada abandonada num carro de apoio em Finete, em 1966 (dois anos antes de chegares à Guiné), a criança tirou a cavilha e ficou com as costas e pernas literalmente queimadas, era uma granada de fósforo. Recebeste ordens para orientar o processo, inquiriste a mãe da criança, ela própria também queimada quando procurou ajudar o filho, ela confirmou que a granada estava numa viatura militar, mandaste deprecadas para capitão, alferes e sargentos da dita unidade militar, uns não se recordavam de nada, outros não sabiam o que se tinha passado exatamente, alguém se lembrou que houvera evacuação da criança e da mãe, a culpa morreu solteira. E Abudu Cassamá, a criança sinistrada, nunca teve direito a qualquer indemnização de um ato de negligência militar. E em conversa ao telefone, meu adorado amor, tu disseste-me que nada mais podias fazer, para quê trazer nomes à baila, quantos atos desumanos foram cometidos assim, faltando ao dever de justiça?

Continuo, meu amor, a pensar em tudo quanto me disseste, no fundo, a vida em atmosferas tão intempestivas como aquelas que enfrentaste possui as suas conspirações de silêncio, guarda em poços fundos histórias imundas, segredos em que ninguém quer mexer. E, felizmente, como me é dado ver até agora da tua comissão militar não houve horrores de violações, brutalidades dementadas, barbaridades sobre as vítimas da guerra. Estou absolutamente convicta de que esses horrores, a terem existido, nunca te calarias.

Oh, ainda faltam dias para chegares, sei que estás cheio de trabalho, parto amanhã para Bruges, é uma surpresa, uma itinerância com os novos intérpretes, tenho a certeza absoluta que tu adorarias andar comigo nestas viagens. Mas eu depois conto-te tudo. Bisous, meu cavaleiro andante, meu estrénuo senhor do meu coração. Bien à toi, Annette
Quando concluía o meu livro "Nunca Digas Adeus às Armas", os primeiros três anos da guerra da Guiné, Húmus Edições, 2020, pus-me à cata de imagens elucidativas e com as quais eu me identificasse, não só pela qualidade como espelharem factos históricos do referido período. Assim cheguei ao contacto com o João Sacôto, que me autorizou a usar imagens suas estampadas no blogue. No conjunto disponibilizado, duas impressionaram-me muito. A primeira representa a partida do Cachil, um ponto da Ilha do Como onde depois da Operação Tridente criara um destacamento. A segunda notoriamente tem a ver com a partida de regresso, estamos no Pidjiquiti, os militares indumentam-se com a farda que precedeu a cor de sardão, uma imagem serena, trocam-se impressões antes do batelão os transportar para o navio. Como eu gosto destas imagens!
Foi em 2015 que estive pela última vez com o Benjamim Lopes da Costa, meu antigo 1.º Cabo do Pelotão de Caçadores Nativos 52. Zanguei-me com ele seriamente na noite de 3 de agosto de 1969, o Benjamim perdeu a cabeça durante um encontro com uma coluna de abastecimento que apanhámos, na noite escura, desatou aos impropérios, dei-lhe ordem de prisão. A cordialidade que nos unia foi mais forte, restabelecemos a amizade sempre que ele vinha a Lisboa tratar do seu problema canceroso fazia festa. Infelizmente, nunca mais tive notícias do Benjamim.
Pedi ao João Crisóstomo fotografias da sua passagem por Missirá. Como me agrada vê-lo ao lado do régulo Malam Soncó, de quem guardo uma saudade sem consolo, foi um interlocutor espantoso, e o que me surpreende é vê-lo aqui ainda tão viçoso e dois anos depois, quando o conheci, era verdadeiramente um homem grande, cabelo todo branco, ainda direito, mas a amarrecar, os olhos iam perdendo brilho. Mas a lucidez e bom-senso surpreendiam-me a qualquer momento do dia.
O meu mais recente desgosto, preludia seguramente outros que por aí virão, desaparecimento de gente que marcou a minha vida. Mas o que devo a Mamadu Camará não tem qualquer forma de recibo, quer pela dádiva da sua vida, prontificou-se para se sacrificar salvando-me dos estilhaços de uma granada de morteiro 82, em julho de 1969, estávamos em Missirá. Adorava os seus fatos completos, fizera-se um cavalheiro que ia visitar a família à Irlanda. Muçulmano heterodoxo, adorava a atmosfera dos pubs…
O porto de Bambadinca em dia de azáfama
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Nota do editor
Último poste da série de 2 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22335: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (59): A funda que arremessa para o fundo da memória

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1165: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (16): O meu baptismo de fogo

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Um grupo de soldados do Pel Caç Nat 52, em alegre convívio.
Texto e foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.
Mensagem de 3 de Outubro de 2006:

Caro Luís, aqui vai o meu contributo da semana para o folhetim que durará ainda 25 meses, com quatro edições mensais. Tenho tanta pena de ti como de mim: se é verdade que cai sobre mim o ónus da escrita (será que estou a escrever memórias forjadas ou um romance-documentário?) tu tens a pesada incumbência de ilustrar hipoteticas cem edições adiante. Escrever preso à cronologia de uma comissão de cerca de 26 meses passa por manter o auditório interessado com pessoas, situações, vivências, atmosferas que ultrapassam o evento traumático, embebendo a descrição muitas vezes no banal quotidiano. Eu já não estou em condições de voltar atrás, e tu és cúmplice nesta aventura de todo o terreno. E vamos agora ao meu baptismo de fogo.
Mário Beja Santos (ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)

Continuação da série Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (1):
Esta noite improvisa-se

por Beja Santos

Pelas 2:30 da madrugada de 6 de Setembro de 1968 conheci o meu baptismo de fogo. Estava na morança, deitado numa cama de ferro de corpo e meio que pertenceu a Armando Cortesão. Lia As Sandálias do Pescador de Morris West (era um autor de best-sellers publicados em Portugal pela Clássica Editora, de que o mais célebre foi O Advogado do Diabo), a história de um Papa que vinha da Rússia e que no final da história decide oferecer todos os bens da Igreja aos pobres de todo o mundo.


Capa do livro de Morris West, edição da Clássica Editora (colecção Orbe, nº 28; disponível a 6ª edição, 490 pp., no sítio Alfarrabista.com - Livros Usados, Livros Antigos).
Foto: © Alfarrabista.com (2006) (com a devida vénia...)


Estava na página 216 quando o primeiro rebentamento de canhão sem recuo veio cair nas traseiras do meu vizinho, o Padre Lánsana Soncó, com quem, dentro de dias, irei ter uma espinhosa discussão doutrinal acerca do Ramadão e da ira de Deus. Sentei-me tenso até que o estralejar das costureirinhas e o encadeamento de várias morteiradas me levou directamente para um abrigo onde, como em cinemascópio, as frestas central e laterais me permitiram ver alguma latitude da linha de fogo.

Os guerrilheiros apresentaram-se na clareira de Missirá com apreciável potencial de fogo incluindo canhão, morteiros, bazucas e armas automáticas. Os meus vizinhos civis e militares já lá estavam a foguear, e o primeiro entendimento passou por pedir ao Lânsana que não desfizesse o tecto com rajadas, a Quebá Sissé que tomasse conta da Breda, enquanto eu, Gibrilo Embaló, Albino Amadu Baldé e Madiu Colubali fazíamos fogo de G3, apoiados pelos condutores Quim e Setúbal que enchiam os carregadores.

Às tantas, lembrei-me que as funções de Comandante pediam-me um pouco que espingardar, e saí curvado dentro da neblina de pólvora que começava a encher o aquartelamento. Visualizar a situação não era díficil, com duas moranças transformadas em tochas, vi gente a funcionar no abrigo dos morteiros, o monumento no centro da parada onde hasteavamos a bandeira já atingido por uma canhoada, vi passar por mim como uma flecha Campino bazucando para a linha de fogo, depois Cherno Suane com o tubo e o prato do morteiro 60 e um colar de granadas ao peito, pedindo colaboração aos apontadores de dilagrama.

Para que a verdade se respeite, Saiegh galvanizava a resposta, o fogo era ensurdecedor, aprendi que a gritaria não deixa distinguir a coragem, o denodo, o sangue frio da pura histeria ou dos nervos descontrolados, à primeira leitura. Em vez de correr, preferi ir para o centro da parada e juntei-me aos atiradores do morteiro 81.

Ao rememorar os acontecimentos, verifico que 30 minutos de réplica, de reacção enérgica, não esgotam a energia, só senti a bruteza e o estupor do cansaço quando o fogo dos guerrilheiros se foi extinguindo e, tal como eu já tinha lido nos manuais, tiros isolados assinalaram a retirada. O fogo continuou da nossa parte, até igualmente se extinguir.

Pedi ao Saiegh e ao Ferreira, bem como ao Casanova, que chegara há dias, que fôssemos avaliar a situação dentro do quartel. Três moranças ficaram calcinadas, a enfermaria severamente atingida, uma das paredes do depósito de géneros esburacada, procurávamos vítimas entre civis e militares. Pedi um relatório ao Adão, o nosso enfermeiro:
- Ó meu Alferes, eu nunca vi uma coisa assim. Tenho ali sentado o Mamadu Djau que meteu dois tiros num pé. Diz que lhe dói um pouco, dá gargalhadas, já pus água oxigenada, venha ver, ele deve estar em estado de choque, o melhor é pedirmos uma evacuação ao amanhecer.

Lá fomos a um abrigo onde o nosso Djau, um gigante de mais de 1,90 m, fumava e conversava amenamente com outros soldados milícias, com um pé empapado em maços de algodão. Para que conste, o nosso Djau recusou tratamentos em Bissau, pôs-se de pé e pediu para ser visto pelo médico em Bambadinca, numa próxima oportunidade. Enquanto isto se passa, veio a chuva benfazeja, é bom não esquecer que estamos na época das chuvas e que os céus mitigam as calamidades destes fogos postos.

Uma flagelação, comecei a aprender, é primeiro este aperto no coração, depois aprende-se a ir direito ao essencial e responder ao alcance das nossas possibilidades. No rescaldo, se não houver mortos para chorar, como vai acontecer esta madrugada, vamos esgotar a última tensão nervosa com conversa fiada, aspectos anedóticos, previsões descabidas. Fica uma camisa pendurada numa porta reduzida a um passador; Cherno esgravata no solo molhado o prato do morteiro que se afundou com o coice; vou conversando com homens de cara chamuscada e pele queimada pelos cartuchos...

Pelas 5:30 da manhã, com os primeiros alvores, procede-se ao patrulhamento e também aqui a ajuda e a condução de Saiegh revelaram-se irrepreensíveis: explicam-me onde está o rodado do canhão, vejo os cartuchos vazios, seguimos o trilho por onde os rebeldes se internaram na mata, em Paté Gidé. Inevitavelmente, no regresso, começaram as especulações. Eu tinha avisado os furriéis que iríamos sair muito cedo para a zona de Mero, por ordem de Bambadinca. Aturdido pelo facto de alguns soldados me terem dito que tinham ouvido no mercado a notícia de iríamos cair de surpresa nessa povoação sobre a qual impendia a suspeita de colaboração com a guerrilha, suspendi sem data tal patrulhamento. A especulação era de quem intoxicara quem. O assunto deixou-me indiferente, eu já estava a deitar contas à vida quanto às reconstruções, registei os comportamentos valorosos, convidei toda a gente a descansarmos umas horas.

Deito-me, o sono não vem, aproveito para fazer o balanço deste mês caudaloso. Embarquei no Uíge com dois caixotes de dois metros de comprimentos por 80 de largura e 70 de altura. Caixotes com livros e discos que forçaram a risada de muita gente: era a bagagem de quem queria prolongar uma outra faceta da sua vida, continuar a devorar papel em companhia de sons melodiosos de música de ópera, sinfónica, de câmara, antiga e moderna; em Bissau comprei livros proibidos em Lisboa, discos do Zeca Afonso e do Adriano Correia de Oliveira; tomei Missirá muito a sério, oiço, medito, procuro aperceber-me do papel da logística , acho que fiz uma boa aposta na instrução das crianças e dos soldados, penso o mesmo do plano de segurança de Missirá e Finete. A cooperação entre militares e civis reforça-se. A guerra não se ilude, oiço rebentamentos em Mansabá, mas também sons mais surdos, em distâncias mais longínquas.

Estou obcecado pelas obras, por conhecer o terreno circunvizinho, já esclareci dentro de mim próprio que os patrulhamentos a Mato de Cão são só uma das faces da moeda. A mata fascina-me, logo o primeiro patrulhamento na Aldeia de Cuor com as suas ruínas monumentais de construções que quiseram rivalizar com Bambadinca me deixaram a vista assombrada, como se eu estivesse a contactar uma civilização perdida. Os rebeldes deixaram panfletos na fonte. Este quartel é muito especial, estes soldados que ripostaram tão determinados ao fogo rebelde estão-se nas tintas para os esquemas e rituais da ordem unida e do esquerda volver!; Mamadu Camará entrou-me na morança e perguntou-me se eu lhe podia vender um par de sapatos castanhos. Levou-os ofertados, andou-os a exibir com um rádio estridente nos braços.

Perdi a noção dos dias úteis e do fim de semana. Tomo a noção de que as minhas epístolas mandadas para Portugal são relatos minuciosos onde falo de tesouras corta-arame, sacos de cimento, tijolos de adobe, material de restauração e escolar, abate de material desaparecido ou inútil, autos de averiguações... mergulhei num universo insólito, felizmente o conteúdo daqueles dois caixotes faz a ponte com o mundo donde provenho.

Fiz amizade com Mazaqueu, um sobrinho de Quebá Soncó, um menino doente com dois olhos que parecem faúlhas e em permanente rodopio (perguntei há dias a Abudu Soncó se se lembrava dele, já que têm uma idade próxima e com o ar mais natural do mundo ele disse-me que o Mazaqueu trabalha em Portugal e que vai organizar um encontro). Passo próximo do professor que fui buscar ao Bambadincazinho e oiço as crianças a soletrar: casa, pai, manga, arroz, corcodilo... à noite sento-me com dois furriéis e organizamos o dia seguinte.

Assim como chove abundantemente, logo o céu descarregado se inunda de estrelas e a sombra da floresta ergue-se como um fabuloso cenário de teatro de ópera. Escrevo aos amigos e peço que me mandem jornais e revistas com mais notícias sobre a invasão da Checoslováquia. A leitura da poesia de Herberto Helder confirma-me um dos maiores nomes da literatura portuguesa de todos os tempos:

"As crianças falam até ao fim de cada palavra. A morte das crianças é uam fogueira ao lado direito de Deus, fogueira onde Deus aquece as mãos. Aprenderei no sono as submersas crianças mudas, envoltas no sangue. As crianças param no meio das folhas. Destroem o jardim numérico. As crianças ultrapassam a idade que as ultrapassa a elas. As crianças são o instante onde as liras e os dedos são uma única rosa".

Comovo-me e limpo as lágrimas. Aprendo que comandar é estar só, é responder inteiramente pelo que se sabe e até pelo pensamento e os actos alheios. Comandar, nestas circunstâncias, é resistir imperativamente ao desânimo e estimular os camaradas a inventar uma vida melhor com a parcimónia dos meios.

Em Missirá e Finete há carpintaria, há cal e cimento, tapam-se buracos, protegem-se os combustíveis, fazem-se conferências de imprensa para comentar as novas casas de banho para militares e civis. Há adobe fresco, grandes troncos de palmeira dão vigas para novos cavalos de frisa e novos abrigos. Por vezes a chuva inclemente e tropical desfaz o adobe. Mas tudo recomeça.

Verei três vezes Missirá arder e reconstruir-se. Vou habituar-me ao som das picaretas, aos ruídos fabris, ao trabalho dos trolhas, a ver passar a tinta de água, as lixas, os pincéis, o novo mobiliário. É então, enquanto agradeço a Deus a energia indómita, a saúde e o amor pelos homens que adormeço exausto. O homem que vai acordar dentro em pouco vai desafiar o terror com contraterror. Pacientemente, vai esperar, emboscar, à procura de um frente a frente. E antes do Natal virão as dores das primeiras mortes saídas da sua arma.
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1149: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (15): Exmo Sr Alferes: Quero ir para Lisboa

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3048: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (38): No HM241, em Bissau, voando sobre um ninho de jagudis

Guiné > Bissau > Abril de 1970 > "A Cristina em Bissau... A Cristina chegou a 15 de Abril [de 1970],vivemos em Bissau cerca de três semanas, incluindo a minha baixa à neuropsiquiatria, no HM241. Passeámos, fomos muito bem acolhidos, jantámos em todos os tasquinhos da Península. Bissau, confirmo por estas fotografias, tinha um cosmopolitismo de guerra, era um crescimento articial de bem-estar em torno da presença das tropas" (BS).


Guiné > Bissau > Maio de 1970 > "A Cristina chegou a 18 de Abril [de 1970] e praticamente nunca saiu de Bissau a não ser umas curtas visitas a Safim, Nhacra e Quinhamel. Não podíamos, evidentemente, ir passear a quaisquer teatros de operações. Durante os praticamente 20 dias que ela aqui viveu, visitámos as amizades feitas em Bambadinca e Bissau e fomos recebidos regularmente pelo David Payne, Emílio Rosa e mulheres. Não resistíamos à curiosidade de andar pelos mercados, ver artesanato e pequenas festas locais. Muitas vezes, o Cherno acompanhou-nos, insistia que não havia pausas no seu papel de guarda-costas.

"À volta do mercado velho havia uma excitação entusiasmante, era o colorido, os pregões, os encontros imprevistos, a discussão dos preços, os odores de África. Depois da lua de mel no Grande Hotel (nome sofisticado para uma pensão onde se comia razoavelmente) fomos viver em casa do Emílio Rosa e começaram aqui as idas à praça. Recordo a fruta, o peixe e alguns legumes. Fugi sempre da carne na Guiné e nunca esqueci os meus 19 dias a pé de porco com feijão verde enlatado, tudo acompanhado com leite achocolatado holandês" (BS).

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 11 de Abril de 2008:


Meu caro Luís, Segunda-feira mandar-te-ei imagens dos livros aqui referidos. Não te esqueças que tens fotografias da Cristina em Bissau e há igualmente imagens do HM 241. Vê se nos podemos encontrar sexta-feira , 21, para mim era o ideal. Gostava que a nossa reunião de Monte Real aprovasse novos projectos e eu estou disponível para continuar a contribuir com a minha dedicação ao blogue.

Um abraço do Mário



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXVIII > NOS LABIRINTOS DA FEBRE CEREBRAL (*)
por Beja Santos



(i) Os duelos entre o capitão Oliveira e o furriel Alves


O capitão Oliveira, para quem o ouve, repete a todo o instante que quer ver clarificada a razão do seu internamento compulsivo, pretexta em tom muito alto que as evacuações Y eram um dever para quem tem uma mãe tão frágil e só como a sua.

O furriel Alves, que não pára de mexer as mãos, e que também fala em tom muito alto, continua incrédulo por não ter perdido uma grama do seu corpo nas minas que pisou, por não ter uma só fractura, um simples hematoma, lança-lhe um riso escarninho, chama-lhe tarado, um capitão que pede por duas vezes uma evacuação Y para mandar aerogramas à mãe e não percebe a gravidade do seu gesto, insiste ele com o dedo em riste, ou perdeu o siso ou então (aí a sua voz ganha uma cor escura, e vai silabando e escorrendo a insinuação em tom lento) não passa de uma comédia ardilosamente montada para regressar à metrópole. E resmoneia entre dentes:
- Apanhado pelo clima, o tanas!”.

Estes duelos tinham a particularidade de se tornarem mais dramáticos num momento crucial para o meu sono. Passo a explicar. Com o toque de alvorada, o primeiro cabo Morais entrava na enfermaria e ferrava as injecções em três rabos, pondo em cima da mesa da cabeceira os respectivos comprimidos multicolores. Dóceis, seguíamos para o refeitório onde nos aguardava uma cafeteira de alumínio, havia pão e marmelada à disposição. No regresso à enfermaria, o 1º cabo Morais apontava para os comprimidos e seguia a trajectória dos mesmos até às nossas bocas. Dóceis, ingurgitávamos as cápsulas, mecanicamente.

Quando era esperável que serenassem os ânimos e fizéssemos o primeiro sono do dia, o Alves subvertia os efeitos da química, excitava o Oliveira. Em quinze minutos estava armada a cena, eu deitado na cama do meio com vontade de dormir, sujeitava-me à gritaria infrene e quando tenho o corpo já mole e o cérebro noutro sítio, voavam cadeiras, caiam as mesas, soltavam-se os impropérios mais soezes.

No terceiro dia, ainda a tentar adaptar-me a este espectáculo ensurdecedor, vejo os dois em cima das respectivas camas, pegam nas facas da marmelada e ameaçam-se. À cautela, gritei por socorro, já com a voz empastada, foi bom assim, descobri que a loucura é democrática, da enfermaria das praças acorreram dois calmeirões de olhar embrandecido pelos comprimidos, Oliveira e Alves foram separados e levados não sei para onde, respirei de alívio, adormeci até à hora do banho.


(ii) A visita das ilustríssimas senhoras


Enquanto almoçamos comida intragável com o corpo a cheirar a sabonete, o nosso zelador informa:
- Agora vão descansar, atrevam-se a desobedecer-me e verão. Pelas 15h30, vem a esposa do nosso brigadeiro e as senhoras do Movimento Nacional Feminino. Como é a primeira visita que vão ter, digam às senhoras do que é que precisam, elas são prestáveis e trazem umas revistas até em línguas estrangeiras. Vão estar deitados, ai de quem usar de maus modos com as senhoras, carrego-vos na dose dos comprimidos, vocês quando saírem daqui nunca mais serão gente!.

Lá fomos para a deita, tomámos nova porção de comprimidos multicolores, o 1º cabo Morais, à hora aprazada, depois de confirmar a decência da nossa postura, deu passagem a um conjunto de senhoras capitaneadas pela mulher do comandante militar da Guiné, trazia uma bata com as insígnias do Movimento e uma braçada de revistas encostadas ao peito. Sorriu, vinha muito bem penteada e falou suavemente:
- Boas tardes aos três. É muito triste estar doente, viemos para vos fazer companhia, tomar nota se precisam dos nossos préstimos, trazemos aqui algumas revistas para vos aliviar o sofrimento. As vossas mães, as vossas irmãs e namoradas estão certamente intranquilas. Peçam, nós contactamo-las. Façam o possível por ler. Ler promove o espírito.

Eram de facto revistas estrangeiras, Paris Match, Jours de France, havia até uma revista que falava de casamentos e baptizados da realeza europeia. A visita foi confrangedora para quem trazia tanta cordialidade, tiveram que enfrentar o nosso silêncio glacial, nada havia a pedir às senhoras, o 1º cabo Morais recolhia as revistas e agradecia por nós aquela prova de tanta bondade. As senhoras saíram, o 1º cabo Morais felicitou o nosso comportamento.

Uma hora mais tarde, de novo com as mãos fora do lençol, devidamente esticadas, foi a vez de recebermos a mulher do comandante-chefe das forças armadas e a sua comitiva, todas com a indumentária da Cruz Vermelha Portuguesa. Igualmente bem penteada e portadora de um sorriso doce, D. Maria Helena Spínola revelou-se solícita, perguntou se queríamos escrever para a família e foi aí que o capitão Oliveira estragou tudo, contou a história da mãe com a tensão alta e diabética, a simplicidade tocante do seu gesto em querer mandar-lhe um aerograma, a brutalidade das leis militares, ele sabia muito bem que uma evacuação Y não era para uso comum, desviar uma avioneta ou um helicóptero pode ceifar vidas, mas ele era filho único, aquele grupo de seis senhoras avançava para a cama dele, ouviam-no atentamente, o olhar era de puro pesar, alegaram nada poder fazer mas se o senhor capitão entendesse que deviam contactar a mãe, elas fariam isso prontamente.

Com o tronco soerguido na cama, agitando as mãos, o capitão Oliveira, de olhar súplice, lançou um apelo dramático:
- Minhas senhoras, perdi a reputação, sou um homem desonrado, imagino o que me vão dizer quando regressar ao meu quartel, vêem-me aqui rodeado destes dois doentes mentais, o da ponta se as senhoras lhe derem trela não engana ninguém, tem o juízo despachado, pisou umas minas e não pára de falar, este aqui ao meu lado tem a calma fria dos assassinos, até me arrepio quando penso que ele andou a fazer atrocidades lá no mato, quem vê caras não vê corações. Por favor, tirem-me daqui, eu não quero ficar doente, eu sou um bom filho.

Foi aqui que o furriel Alves começou a disparatar, a chamar tratante ao capitão Oliveira, os ânimos aqueceram, as senhoras recuaram com olhar atónito, o 1º cabo Morais atropelou uma explicação dizendo às senhoras que o senhor capitão sofria de um forte distúrbio, pediu-lhes para abandonar imediatamente a enfermaria, à saída de um grupo atarantado e compungido apanhámos com o olhar furibundo do nosso zelador. O 1º cabo Morais regressou momentos depois e deu-nos notícia do castigo: estavam proibidas as visitas às enfermarias, hoje e amanhã. Olhou-me depois da sua sentença e disse-me:
- Um dos médicos psiquiatras, o nosso alferes Payne, quer vê-lo daqui a um bocado. Arranje-se e venha comigo.

(iii) A minha confissão a David Payne


Depois de inúmeras lavagens em autoclave, visto um pijama descolorido, entre o azul desmaiado e o cinzento cor de rato, uso sandálias de plástico e inexplicavelmente apresento-me na consulta com dois livros, na presunção de que vou ter muito tempo para ler. O David Payne gaba-me o ar repousado, o ar bem dormido, os movimentos sem nenhuma tensão. Refere que já falou com o psiquiatra de serviço, saio feita uma semana de enfermaria, fico ainda uma outra semana em consulta externa. Ainda hoje não sei o que se passou, mas senti que me estava a confessar a este grande amigo:
- David, nunca te poderei agradecer esta possibilidade que me deste de estar com a Cristina, o que era impossível aconteceu, senti-me muito feliz por ela ter vindo. Não medi as consequências de um casamento com internamento psiquiátrico forjado, tens que me ajudar a esclarecer esta terrível sensação de estar feliz por ter a Cristina em Bissau e ao mesmo tempo sentir que isto é um estado que me divide e dificulta a exteriorização de sentimentos. Não paro de pensar que tenho que regressar mais uns meses a Bambadinca, ainda ontem aqui esteve o Teixeira das transmissões a despedir-se, regressa dentro de dias à metrópole, falei com o Teixeira como se estivéssemos operacionais activos, houve um momento em que lhe estendi a mão como se fosse receber uma mensagem para ir a Mato de Cão. Não devo ser caso único, mas sinto que este estado não me faz bem nem à Cristina. Vou propor-lhe que cada um regresse ao seu ponto de partida, aceito esta tua ideia de ficarmos mais uns dias juntos, vê lá o que é que me aconselhas como boa comunicação para a nossa despedida temporária.

O David olhava-me com o seu olhar penetrante, fazendo circular a língua nos seus lábios finos, de próximo e centrado na minha cara passou a divagar pelos móveis e paredes da sala, voltou a olhar-me e serenou-me sobre tudo quanto se estava a passar, concordou que o prolongamento da situação poderia ser danoso para os dois, ele próprio iria falar com a Cristina, hoje ou amanhã. E recomendou-me que tirasse partido destas férias à força, não valorizando as tensões que eu presenciava na enfermaria. Mais me informou que a redução dos medicamentos iria permitir-me regressar a Bambadinca numa quase perfeita desabituação terapêutica.


(iv) Um telefonema para Cherno Suane


É quando arrumo o correio enviado à Cristina a partir de Bambadinca, a partir de fins de Maio de 1970, que me assaltam dúvidas e sou instado a telefonar ao Cherno: ele acompanhara a Cristina em Bissau enquanto eu estava hospitalizado, que visitaram, por onde passearam?

Estava eu ainda em Bissau quando a 7 de Maio ocorreu um patrulhamento ofensivo em Sinchã Corubal, a operação “Gato Irritado”, em que participara o Pel Caç Nat 52, e um grupo de combate da CCaç 12, o que é que acontecera? Numa carta datada do início de Junho, referia uma operação que começara por um patrulhamento entre Amedalai e Moricanhe e numa emboscada em Madina Colhido houvera um contacto com uma coluna do PAIGC em que Mamadu Camará alvejara uma mulher, o que é que realmente se passara?

Ele que me desculpasse o inusitado das perguntas, tinha ainda uma outra dúvida sobre a Sociedade Agrícola do Gambiel, sucessora da antiga Companhia de Fomento Nacional, fundada em 1921, ele que tinha trabalhado na Socotran, ali para os lados de Biassa, a partir de 1978, lembrava-se de ter visto alguma vez vestígios dessa empresa no regulado do Cuor?

Do outro lado do telefone, Cherno não se fez rogado: como se estivesse a gargalhar, referiu que ia buscar a “senhora” ao Grande Hotel, primeiro, e, depois, à pensão da D. Berta, junto da igreja dos cristãos. Que iam aos mercados e passeavam pelo cais e depois sentavam-se no café da Associação Comercial; completamente a despropósito, lembrou-me que passámos a levar o morteiro 81 para Mato de Cão a partir de Junho e até Novembro de 1969, e precisou:
- Era Jam Djaló, milícia de Missirá, quem fazia questão de levar o tubo do morteiro em cima do ombro, o Queirós levava um colar de granadas.

Mais informou que um dia saímos numa coluna com um Unimog 404, ia no seu interior sentada Cadi Soncó, mulher de Mussá Mané, chefe de tabanca de Missirá, com um bebé ao colo, ficou aterrorizada quando o Unimog virou em Canturé a caminho de Gambana, ninguém a avisara que íamos primeiro a Mato de Cão e só depois a Bambadinca, sarilhos destes com população civil tinham sido muitos; que o patrulhamento ofensivo de Sinchã Corubal fora uma grande canseira, sim, continuava a haver indícios de presença da gente de Madina no velho trilho, que fora usado diariamente antes da guerra mas não se encontraram canoas; que nos iríamos reunir em breve para se falar da emboscada de Madina Colhido onde se ficara a saber que os do Buruntoni vinham nas calmas abastecer-se na tabanca do Xime, o que não era novidade para ninguém, era pena não se falar com os soldados africanos sobre aquela situação em que os do mato falavam regularmente com as populações que viviam junto dos nosso quartéis; e surpreendeu-me lembrando que eu nunca lhe fazia perguntas sobre as aulas que dava na escola de Bambadinca e as aulas de ginástica nas imediações do quartel, quando eu regressara de Bissau. Agradeci tudo e finalmente fazia-se luz quanto às referências insistentes que eu encontrara no correio dos últimos três meses acerca das actividades escolares e de um estranhíssimo programa de ginástica que metia manutenção e marcha, tudo em calção, para gáudio do BCaç 2852, que partiu no início de Junho, e do BArt 2917, que o viera render.


Nº3 da Colecção Contemporânea, Portugália Editora,1966.Tradução de Marília Guerra de Vasconcelos, capa de João da Cãmara Leme.É, acima de tudo, um romance inesquecível,perdura na lembrança pela originalidade da trama, mensagem, arquitectura da escrita.1943, Londres, bombardeamentos,uma atmosfera de intimidação e resistência.Um homem naufragado,Arthur Rowe,é apanhado numa estranha conspiração,tudo começa na banalidade de ter ganho um bolo posto a prémio numa quermesse.Segue-se uma perseguição, um encarceramento e depois uma redenção ao serviço da pátria.Mais que a intiga atabafante num enredo kafkiano,é o cheiro de um medo sem direcção que perpassa toda a obra e vai ficar quando tudo ,parece, teve um desfecho favorável à salvação do Reino Unido.Só há redenção depois de se sofrer muito com e pelos vivos...


(v) Uma semana de suculentas leituras britânicas

Os livros que sobraçava quando fui à consulta do David Payne proporcionaram-me momentos de grande satisfação. Começando por “O Ministério do Medo”, de Graham Greene, fui reconduzido ao universo kafkiano, uma mistura de espionagem e intriga, havendo a redenção do herói depois do seu profundo abatimento e desorientação.

É uma história estranha. Estamos em plena guerra, em Londres. Arthur Rowe, que se supõe estar a viver um drama por uma acusação de ter assassinado a mulher, vai a uma quermesse, entra numa barraca de uma quiromante, segredam-lhe o peso exacto de um bolo posto a prémio, e é graças a este bolo que começa uma aventura do medo, feito de sucessivos equívocos. A quermesse tinha a ver com as mães livres (isto é, as mães de todas as nações livres), uma estranha associação de que Rowe nunca tinha ouvido falar. Rowe regressa a casa com o bolo, aparece um desconhecido que adopta um comportamento também bastante bizarro, eis quando um bombardeamento alemão destrói a casa. Rowe procura um detective privado com o objectivo de apurar o que está por detrás da ansiedade daquela associação em reaver o bolo que ele, tudo indica, tinha ganho legitimamente. Recebido na associação das mães livres, descobre que um grupo no seu interior persegue outro, também da associação, pretende-se enviar para fora de Inglaterra um segredo importantíssimo. Está estabelecida a atmosfera de intriga, o irracional ganhou plausibilidade, Rowe vive em fuga, um vendedor de alfarrábios vai conduzi-lo a uma clínica que é um universo concentracionário, sob o pretexto de que é necessário reganhar a memória de tudo quanto Rowe esquecera no passado.

A charada não se consegue esclarecer completamente, quem é inimigo de quem, qual a natureza daquele segredo que pode abalar a Grã-Bretanha pelos alicerces. O medo viera para ficar, mesmo na relação amorosa que une o herói e a sua amada: “Durante largo tempo ficaram sentados, imóveis e silenciosos; acabavam de alcançar a orla da sua provação, semelhante a dois exploradores, que do cume da montanha, contemplam a vasta e perigosa planície. Durante uma vida inteira teriam de caminhar cautelosamente, pensar duas vezes antes de falar; e porque se amavam tanto, teriam de espiar-se mutuamente, como dois adversários. Nunca saberiam o que era viver sem o temor de serem descobertos”.

Romance notável, que comprova o elevado talento de Greene, quando falada da traição e da iniquidade, e como a partir do grotesco e do sórdido se alcança a face de Deus.

Nº162 da Colecção Vampiro,tradução de Lima da Costa,capa de Lima de Freitas.Não é a primeira vez que o potencial assassino se revela imediatamente ao leitor, mas a configuração é original.O único filho de um escritor de livros policiais é mortalmente atropelado à porta de casa.Começa uma investigação metódica em estado de vingança por parte do pai que tudo perdeu, à margem da polícia.Rapidamente se descobre quem e como atropelou a vítima inocente. Começa a congeminação de um plano para executar um motorista imprevidente. É como se o leitor estivesse no cinema, os olhos vêem e lêem o sofrimento de alguém, na maior expectativa. Depois, executor e vítima confrontam-se verbalmente, é a ruptura e, imprevistamente, a vítima aparece morta por envenenamento. Um detective é convocado e descobre que todo o diário que lemos inicialmente do potencial executor está ardilosamente forjado. É uma pedra preciosa do romance policial, assinado por um dos maiores nomes da literatura britânica.

Não menos valiosa foi a leitura de “A Fera Tem de Morrer”, de Nicholas Blake. A trama é original. A primeira parte gira à volta de um diário em que um conceituado escritor de obras policiais pretende vingar-se de um motorista desconhecido que lhe matou o filho, Martie, à porta de casa. Diário intimista de Frank Cairnes, aliás Felix Lane ou vice-versa. Por sua iniciativa, acaba por descobrir quem ia na viatura que dera morte imediata a Martie, o filho que era a sua razão de viver. É ele, e não a polícia, quem descobre a jovem que acompanhava George, o motorista imprevidente que fugira cobardemente. Insinua-se perante a jovem e entra assim na vida de George. Escreve metodicamente no diário os preparativos do assassínio de George.
Na segunda parte do livro, dá-se o frente a frente de Felix Lane com George Rattery, ambos estão informados da morte de Martie, ocorre uma discussão brutal, Felix não tem condições para executar a sua vingança. Na terceira parte, entra em cena um detective que é contactado por Felix depois de George ter aparecido morto por ingestão de estricnina. Julga-se ter sido o filho de George a procurar assassinar o pai, o detective, que entretanto teve acesso ao diário de Felix, vai desvendar a maquinação espantosa de um diário concebido para provocar uma grande ilusão. A despeito de uma vivência na enfermaria psiquiátrica, li assim do bom e do melhor.

Em breve, serei restituído a Bissau. Estou emocionalmente dividido e sem escolhas possíveis. A Cristina regressa a Lisboa e eu parto para Bambadinca. Apanho nova transição de batalhões, o pesadelo da ponte de Udunduma, as últimas operações, acompanharei o dia a dia do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca. Mais tarde, para o fim de Julho, converso com o deputado José Pedro Pinto Leite, da ala liberal, em Bambadinca, pouco antes de ele morrer num acidente no rio Mansoa. E, de repente, chega o meu substituto, fonte de grandes preocupações. Tudo isto será aqui contado.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 6 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3027: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (37): Com baixa psiquiátrica, no Hospital Militar de Bissau