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domingo, 28 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10586: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (5): Os cheiros de Lisboa, Parte II: uma sardinhada em Cacilhas (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)













Lisboa > Travessa do Ferragial, nº 1 > Lisboa, o Cais do Sodré, o Tejo, Cacilhas... Um dos mais surpreendentes, deslumbrantes e... inesperados miradouros de Lisboa... O último piso do prédio nº 1 da Travessa do Ferragial onde funciona o ACISJF - Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina que "serve almoços", de segunda a sexta-feira, das 12h00 às 15h00, em regime de self-service, aberto a todo o mundo... Menu: preços desde 2 € (!)... Buffet (mínimo 10 pessoas e menu a combinar) por pessoa: 12 €... Um dia temos que lá levar uma representação da  Tabanca Grande!... Fotos tiradas em 30 de setembro de 2011, num belo dia de outono em que lá fui almoçar com a Alice e a sua tertúlia...

O Mário Sasso, se fosse vivo,  teria gostado de conhecer este miradouro (um dos muitos que fazem desta cidade um sitío estranho, maravilhoso e fascinante  aos olhos dos turistas que nos visitam, e que muitas vezes estão melhor informados sobre os segredos de  Lisboa do que muitos lisboetas...).

Fotos: © Luís Graça  (2011). Todos os direitos reservados...


A. Continuação da nova série do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), jurista da Caixa Geral de Depósitos, reformado [, foto atual à direita].

[ Esta nova série evoca a figura e narra a história alf mil Mário Sasso, da CCAÇ 728 - Os Palmeirins -, nascido na Beira, em Moçambique, de uma família de origem eslovena, os Sasso; o Mário Sasso foi morto em combate no Cantanhez, em 5 de dezembro de 1965].




B. Ficou um palmeirim nas bolanhas da Guiné > 4. Os cheiros de Lisboa > 4.2. Uma sardinhada em Cacilhas

por J.L. Mendes Gomes [foto acima, assinalado com um círculo a vermelho, Catió, c. 1965; foto do autor]


As férias escolares ainda não tinham acabado. Mas, o Mário ainda tinha de vencer o exame de admissão à faculdade. E não era p’ra brincadeiras. Alínea de filosóficas. O mundo das ideias e a sua evolução, através dos tempos, a visão dos povos pelo mundo fora, acerca dos mesmos temas, exercia sobre ele um fascínio insaciável.

Com a ajuda do primo, mais velho, o Virgílio, que passara para o segundo ano de medicina, todas as complicações da inscrição, e tudo o mais, foi fácil. As provas de latim e filosofia, seriam na primeira semana de Outubro.

Toda a gente se entregou às respectivas tarefas, com sentido de responsabilidade. Fruto da disciplina que reinava na casa laboriosa do tio Diógenes.

Durante o dia, havia silêncio, lá em casa. A atenta, tia Judite, ocupava-se, com esmero e dedicação, de todas as lides da casa e da cozinha. Que perfumes… naquela cozinha divinal! Por isso, quando chegou o primeiro sábado, a ideia lançada pelo tio Diógenes de irem para uma sardinhada, no lado de lá do Tejo, caiu, mesmo a matar...

De eléctrico amarelo e ronceiro até ao Cais do Sodré; atravessava-se, depois, o rio largo, nos largos Cacilheiros, achatados, onde tudo cabia, desde as pessoas às bestas aparelhadas, às carroças, aos poucos automóveis que então havia, tudo seguia sobre o terreiro de ripas de madeira, rentinho às águas do Tejo.

Parecia impossível, como tudo não ia ao fundo!… Eram giros os eléctricos, de bancos de madeira envernizada. Muito airosos, por causa das janelas altas, sobre a rua e os passeios da cidade.

De Algés ao centro de Lisboa, a viagem seguia por entre casas afidalgadas e palacetes, alamedas de árvores, em cada lado. As linhas de ferro cintilante seguiam no meio da rua, à vontade.
O guarda-freio, garboso no seu papel e na farda cinzenta, com botões amarelos, a luzir, ia dando sinal com toques secos e repicados de campainha, com o pé no pedal.

Barato. Um tostão, por pessoa. Por cinco tostões ia-se ao fim de cada linha, nos troços mais longos que havia: a Moscavide, à Ameixoeira e Lumiar e o circuito, longo, do Príncipe Real …por Alfama, pelo Castelo.

Como era linda e sossegada a cidade de Lisboa. Tão asseada, nas ruas e passeios, bem lavados, com calçadas de desenhos em pedra florida. As varandas e janelas, engalanadas de vasos de barro com sardinheiras, begónias e outras flores de cores garridas.

As escadas a subir, lentas, por entre o casario aconchegado nos bairros de Alcântara e dos fundos da Bica, pelas encostas, até ao Chiado, da fidalguia e das igrejas sumptuosas, de outros tempos. O elevador da Bica, que pacto lindo, de amizade, no sobe e desce permanente, entre os vizinhos da Ribeira, de São Paulo e os fadistas castiços do Bairro Alto.

Finalmente, o Largo do Cais do Sodré, ali estava. Com muitas árvores, de rica sombra; muitas pombas a voarem buliçosas, no céu à volta da estátuaaltiva, do Mouzinho da Silveira, erguida ao centro. As derivações p’ra o Chiado, para a zona traseira, com muitos bares e cabarets, restaurantes e tascas castiças, com vinho ao copo de três e petiscos…igrejas e casas fartas de comércio, de todo o tipo.

À beira das escadas suaves da formosa e moderna estação do comboio de Cascais, vendia-se flores e fruta, em barracas, toscas, cobertas por toldos de pano crú, muito velho, havia cauteleiros a seduzirem os inúmeros passageiros que, em formigueiro, iam ou vinham para o comboio e os barcos de Cacilhas.

Lá ao fundo, junto ao molhe do rio, ficava o cais de atracar dos tão famosos cacilheiros, pesados, de ferro. Era neles que todos iriam, para Cacilhas. Dos bilhetes tratou o tio Diógenes. A rapaziada subiu as escadas que dão para o topo do barco. Queriam ver tudo, ali à frente…

O Mário sentia que estava, finalmente, numa das zonas mais castiças da lendária Lisboa. Dali do meio do Tejo, imponente, iria poder ver a cidade toda, em painel vivo e ao natural e a fervilhar: o castelo, a esbordar de verdura, a Sé e a Igreja majestosa de São Vicente de Fora, lá no alto, os bairros de Alfama e da Mouraria, o Terreiro do Paço, com a estátua do D. José, a cúpula da Basílica da Estrela, a mata de Monsanto e a encosta fidalga da Ajuda.

Que manancial de surpresas e de encanto a explorar nos tempos mais próximos!

Voltado p’ràs bandas de Cacilhas, o espectáculo também era encantador. As encostas de Almada, misteriosa, com um castelo altaneiro, lá ao cimo, e as escarpas descarnadas sobre o Tejo; à borda d’água, numa nesga de terra, onde parecia nada caber, havia vários pavilhões de fábricas a trabalhar; o casario de Cacilhas, à vista, e a torre saliente e escura da igreja, tudo era desordenado e pobre. As docas negras da Margueira, ali ao pé. O resto seria para ver depois.

Ali estavam elas, as sardinhas, frescas e molhadas de água do mar, em largos açafates, sobre mochos de pau enegrecido, ao pé da porta exterior dos restaurantes fundos, na ruela de Cacilhas, que vai rente à igreja.

O tio Diógenes e a família já eram fregueses bem conhecidos na casa das sardinhadas. Desde a idade do biberão, transitavam aos poucos para os bancos corridos das mesas compridas .
- Ah!. hoje, vem gente nova. - Exclamou o sr Isidro lá ao fundo, quando contou, num relance toda a família e lhe sobrava um.
- É o namorado da menina?…- Avançou a rebentar de curiosidade.
- É um sobrinho que trouxemos de Moçambique. Vem para cá, estudar.
- È bem da pinta do sr. Diógenes. É ou não é? Eu para tirar parecenças ninguém me bate. Oh este nariz grosso e comprido; os lábios gordos; os olhos grandes e saídos; só o cabelo é que não. É escorrido e comprido.
- É verdade, isso vem da mãe dele. Chama-se Mário tem 17 anos. Vai estudar filosofia.
- Ah, está muito adiantado, p’rà idade.!…
- Lá em Moçambique, não havia nada para o distrair, de modo que era só estudar – adiantou o tio.
- É verdade. Aqui em Lisboa, as coisa não são bem assim, pois não, ? Há muita coisa a puxar noutro sentido. Se bem que os filhos do sr. Diógenes não têm deixado mal os pais, pois não?
- Não. De modo nenhum. Aqui o Pedro está no 3º ano de Medicina, com 20 anos. E se é difícil a medicina; a Isabel, com 19, está em farmácia, passou ao 2º ano.
- É bonito ver filhos assim, nos tempos que correm… Aqueles beatles, guedelhudos e desafinados estão a escavacar tudo! Se. fossem meus filhos…Os seus, aqui ao pé dos pais, é maravilhoso. Vamos ver como se porta o primo…
- Ah, não temos dúvidas de que não vai deixar-nos ficar mal. Também, era só ir à bilheteira, comprar-lhe o bilhete de volta às terras de Moçambique.

Meio a sério, meio a brincar, o aviso estava feito. O Mário registou.
- Bom , sr. Isidro. Vamos ao que nos trouxe aqui.
- São uma especialidade, sr. Diógenes. Fresquíssimas. Chegaram esta manhã.
- Sim. De facto não enganam.

Sentaram-se todos em duas mesas. À maneira de sempre. O pai, no topo e a mãe ao seu lado direito. A  Isabel, ao lado da mãe e os dois primos, frente a frente. A mulher do sr. isidro fora-se adiantando, enquanto o homem da casa se entendia com os clientes já familiares.

Uma volumosa caneca de vidro, cheia de sangria,  foi a luz vermelha que se abriu primeiro, naquela mesa. De fresca, até o vidro embaciara e começava a escorrer. Depressa os copos ficaram cheios com a primeira rodada servida pela tia, sempre atenta ao seu papel.

Uma cesta de fatias de broa e pães do forno, tudo da terra do sr. Isidro, a Malveira. Uma travessa grande a esbordar de salada mista, com pedaços de pimentos verdes e fatias de tomate e cebola, espalhadas sobre um mar de alfaces verdinhas, fizeram disparar o apetite a toda a volta da mesa.

Só faltavam as sardinhas. O cheiro já chegara, cada vez mais apurado e perfumado, como só acontece com este delicioso petisco. Toda a família era perdida por sardinhas assadas. Vamos lá a ver como funciona o Mário.

Este estava desconfiado de que não deveria gostar. Por isso, sentia um certo embaraço. Fingir não era com ele. Se não gostasse, não gostava e pronto. O tio já dera a entender que não seria o fim do mundo. O sr. Isidro arranjaria logo umas febras de porco, para salvar a situação. E se eram boas, aquelas fêveras…não ficavam atrás. Mas se era p’rà sardinha, era p’rà sardinha que tinham vindo.

A srª Isasbel , uma senhora avantajada, mas de luzidias faces papudas, com os olhos a brilhar, avançou com primeira rodada de sardinhas: uma dúzia e meia. Bem tostadinhas e gordas quanto baste. Rescendiam vida na pele reluzente e tisnada pelas brasas.

A srª Judite fez a distribuição pelos pratos que se foram abeirando. Três pra cada, para já. Com batata cozida, para quem quis. Ali, era permitido pegar-lhe à mão. O tio apressou-se a dar o exemplo, para que não houvesse dúvidas.

Fez-se silêncio e a voragem desceu, sobre a mesa. Num instante, só espinhas ficaram e bem aparadas, em todos os pratos. Incluindo o do Mário de Moçambique. Depois de provar foi ele o primeiro a devorar as três desditosas... que lhe tocaram.

Uma gargalhada geral cobriu a alegria da mesa. Não havia dúvidas. Tinham ali um parceiro, de respeito O Mário, via-se bem, naqueles beiços grossos, lambuzados, como se fosse já um aficionado inveterado…

Os olhos bugalhudos estralejavam-lhe, de satisfação…e os da família não lhe ficavam atrás…
- A esta hora, estão os teus pais a deleitar-se com um açafate de ostras, lá na Beira. - disse o tio Diógenes, limpando os dedos a um guardanapo branquinho como a neve. Até deu pena vê-lo como ficou…
- Não tenho inveja nenhuma .- atalhou logo o Mário, sem se dar conta, no primeiro instante, do que custou aos pais terem-no deixado vir. Filho único...

A tia pareceu adivinhar o que se passava na cabeça do sobrinho que sentiu ter metido água.
- Já tens saudades dos pais, não tens, Mário?

Os olhos, reluzentes, responderam por si, bem afirmativos, mas resposta não houve.
- P’rò ano, vêm cá eles passar as férias.

Sentiu que a ideia, de todo, não lhe desagradou, apesar de só terem passado umas semanas. Daqui por um ano…nem se fala.

Os pais até são uns companheiraços, para ele.

(Continua)

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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de outubro de 2012 >



segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10553: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (4): Os cheiros de Lisboa, Parte I: a feira popular (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)









Lisboa > Tejo: Rio e Ponte > 29 de maio de 2012 > Paisagens...
Fotos: © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


A. Continuação da nova série do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), jurista da Caixa Geral de Depósitos, reformado [, foto atual à direita].


[ Esta nova série evoca a figura e narra a história alf mil Mário Sasso, da CCAÇ 728 - Os Palmeirins -, nascido na Beira, em Moçambique, de uma família de origem eslovena, os Sasso; o Mário Sasso foi morto em combate no Cantanhez, em 5 de dezembro de 1965].

B. Ficou um palmeirim nas bolanhas da Guiné > 4. Os Cheiros de Lisboa


4.1. A Feira Popular


Estava-se em fins de Setembro. Ainda se via sinais de Verão, por todo o lado. Ele vira, do Uíge, à beira rio, do lado de Lisboa, uma larga faixa alourada, com toldos coloridos, às listas de cima a baixo, esqueletos de pau, de barracas e corpos espalhados, ligeiramente, desnudados. Os fatos de banho davam até ao joelho e protegiam bem o peito e as costas …das constipações… todo o cuidado era pouco.

A praga da tuberculose não perdoava… Além disso, a nudez era coisa mais própria dos animais…pensava a gente, púdica, por formação e pregação…

Quando chegaram a casa, ali ao pé de Algés, ainda foram dar um mergulho nas águas, tão azuis, tão limpinhas e calmas, do rio Tejo, sem jacarés, mas com golfinhos, ali mesmo, depois de passarem a linha pachorrenta do comboio de Cascais.

Os vales suaves da ribeira viva de Algés, cheios de hortas e pomares, a encosta densa da mata extensa de Monsanto, bem penteada, de toucado verde, bem aparado e de fino corte, as colinas arredondadas e sensuais, ali pràs bandas de Linda-a-Velha e Alfragide, com os cumes altos da serra de Sintra, espreitando, lá ao longe.

Também era bonita a natureza, aqui em Lisboa. Menos carregada de folhedo, concerteza, sem onças ou pacaças, mas mais leve e suave, como a vida que se vivia, então.
– E se fôssemos à Feira Popular? … – uma voz de puto, atrevida, lançou a bisca para o ar, a ver se pegava…

A magia daquela feira, frondosa e colorida, instalada na cerca duma casa senhorial, do centro da Lisboa, ali p’ra São Sebastião da Pedreira, doutras eras…

Com tanta vida, brinquedos sem conta, barracas de farturas e tantas guloseimas, o poço da morte, a roda das cadeirinhas, os aviões, os carrinhos eléctricos, com volante a valer, o temeroso carrocel oito, o cherinho a sardinhas, a maçaroca de açucar branco que nunca mais acabava; a alegria dos pais e dos avós espelhada nos rostos vermelhuscos da sangria, com vinho bom, as laranjadas e os pirolitos, com rolha de vidro, os rebuçados embrulhados de papel, um a um, à mão, eu sei lá, era o ponto mais alto da magia, prós putos daquele tempo.
– Se passares nos exames…se te portares bem…se…se…,  havemos de ir à feira…– era a inocente e sadia chantagem que todos os pais, de todas as classes, usavam, para segurarem a trela curta da pequenada.
– Está bem. Está cá o Mário, Vamos lá… – exclamou, bonacheiro, o pai dos Sassos, de Lisboa.

Cá para nós, ele também, já tinha saudades da Feira Popular…

Ó que alegria!…O Mário nunca mais se esqueceu daquela recepção. Não podia ter sido melhor. Naquela noite, no largo quarto onde dormiu com primos, ninguém pregou olho, a reviver a feira popular…

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10500: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (3): No N/M Uíge, com Lisboa à vista (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10500: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (3): No N/M Uíge, com Lisboa à vista (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)



Lisboa > O N/M Uíge em 1968, no Rio Tejo, com tropas a bordo. Foto do álbum do nosso camarada, empregado bancário reformado, a viver em Penafiel, José Rocha, ou José Barros Rcoha, ex-Alf Mil, CART 2410 (que passou por Mansoa, Guileje e Gadamael, 1968/70).

Foto: © José Rocha (2011) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados

A. Continuação da nova série do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), jurista da Caixa  Geral de Depósitos, reformado [, foto atual à esquerda]. 

[ Esta nova série evoca a figura e narra a história alf mil Mário Sasso, da CCAÇ 728 - Os Palmeirins -,  nascido na Beira, em Moçambique, de uma família de origem eslovena, os Sasso; o Mário Sasso foi morto em combate no Cantanhez, em 5 de dezembro de 1965].




B. Ficou um palmeirim nas bolanhas da Guiné >  

3. A Barra do Tejo


Foi o primeiro a subir ao portaló, do garboso Uíge, ao raiar do dia previsto para a chegada. Que ansiedade...

Fazia uma ligeira neblina sobre a extensão de mar, mas dava para ver, ao longe, em recorte de brincar, uma faixa de verdura, salpicada de pontos brancos, avermelhados por cima. Eram as casitas da costa alentejana todas rasteirinhas ao chão.

Não havia ainda aquela praga de betão, a crescer em altura, que havia de surgir, muitos anos, mais tarde. Muito diferente do que estava habituado a ver. Nada que se parecesse com aquela pujança de verde, em altura e densidade.

A luminosidade do céu e a cor da luz do sol eram diferentes. Ali, o sol estava a nascer dos fundos da terra e não das larguras das águas do mar, como na Beira. A bola de fogo não era tão cheia de lume e o vestido do céu era de um azul muito mais ténue, como o de uma criança... O céu era mais alto e transparente até ao infinito, em vez da capa acinzentada a que se habituara, desde pequeno.

Do outro lado do vapor, era o mar imenso, a perder de vista. Já estavam todos fartos de mar, desde a saída, há uns dez dias, sem parar.

Ao fim de uma horas sempre iguais, surge uma grande embocadura, a entrar pela terra dentro. Um farol ao meio, divide-a, em partes diferentes. A do lado direito é amarelada e ondulada; desce, erma e alcantilada, sobre as águas verdes do rio; a do lado esquerdo está cheia de casario estendido pela encosta suave e verde acima, coberta de pinheiros.

O rio vai-se estreitando, lentamente, sem deixar de ter um grande porte…enquanto o casario se vai adensando.

Um frémito nunca sentido invade o jovem Mário que está a sorver tudo, como se fosse uma máquina de filmar. Ali está a famosa Torre de Belém. Tão pequena que ela é afinal…mas é bonita!… Os Jerónimos de telhado rendilhado e com vários torreões esguios lançados para o alto… Um grande palácio ao meio da encosta. Deve ter sido um palácio real. E o casario adensa-se cada vez mais.

O Uíge avança lentamente, em direcção ao cais e deixa ver mais além o Castelo de são Jorge, lá em cima e a Sé, no meio de um mar avermelhado de telhados entrelaçados, sem uma ordem que se percebesse, à primeira vista…A balaustrada do paquete está abarrotar do lado do cais. Lá em baixo há muitos lenços a esvoaçar.

Era a cena que estava sempre a repetir-se. Várias vezes por semana. Os vapores de transporte de passageiros eram o principal, se não exclusivo, meio de ligação da metrópole, pelo mar abaixo, com as extensas e numerosas colónias que formavam o Portugal, de então e com o além-mar, americano.

O avião, sem qualquer carácter de regularidade, ainda estava reservado ao transporte militar.

(Continua)
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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10459: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (2): A cidade moçambicana da Beira,berço do Mário Sasso (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)


domingo, 30 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10459: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (2): A cidade moçambicana da Beira,berço do Mário Sasso (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)




Moçambique > Cidade da Beira > c. 1905 > Rua Conselheiro [António] Ennes > Foto do domínio público, cortesia da Wikipedia ("View of Rua Conselheiro Ennes, Beira, Mozambique. Photograph of original postcard c1905, published by The Rhodesia Trading Co. Ltd., Beira"). A capital da província de Sofala tem o estatuto de cidade a partir de 1907. É hoje a maior cidade de Moçambique, a seguir a Maputo (antiga Lourenço Marques).

António José Enes  (Lisboa, 1848 / Queluz, 1901), mais conhecido por António Enes, diplomado com o Curso Superior de Letras, foi um político, jornalista, escritor e administrador colonial português:  destacou-se  em Moçambique,  onde exerceu as funções de Comissário Régio durante a rebelião tsonga,  na região sul daquele território. Foi o principal organizador da expedição de Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque contra o Império de Gaza, e que levou à prisão de Gungunhana, em 1895.

Enes defendera,  em 1870, a ideia dos Estados Unidos da Europa, temendo que Portugal fosse absorvido pela vizinha Espanha. Foi membro destacado do Partido Histórico e da Maçonaria. Exerceu as funções de deputado, de bibliotecário-mor da Biblioteca Nacional de Lisboa (1886) e de Ministro da Marinha e Ultramar na primeira fase do governo extrapartidário de João Crisóstomo de Abreu e Sousa. Era amigo pessoal de D. Carlos, que lhe atribuiu a grã cruz da Torre e Espada pelos seus "grandes e relevantes serviços", prestados à Pátria e ao ao seu Rei,  em África.

É autor, entre outras obras, de A Guerra de África em 1895. Prefácio de Afonso Lopes Vieira. Lisboa: Prefácio, 2002. 507 pp. [1º edição, 1898].  Fonte: Wikipédia e LG].


A. Continuação da nova série (*) do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) [, foto à esquerda, em Catió, assanaldo com um círculo a vermelho].


B. Ficou um palmeirim nas bolanhas da Guiné > (**)

2. A Cidade Moçambicana da Beira

Situada na costa leste de Moçambique, lá em cima, à borda do Índico, a cidade da Beira, de traçado geométrico, foi a encruzilhada onde se fixaram tanto as gentes do oriente amarelo como as do ocidente, negro e de feição europeia, por efeito da colonização ocidental, secular.

Indianos e malabares, asiáticos e gente de toda a orla mediterrânica, foram-se implantando, ao longo da costa de África, colorindo-a de matizes étnicos originais e muito singulares. Mesmo os que mantinham as linhas fisionómicas europeias comungavam, todos, de um mesmo tipo, anímico, resultante dessa peculiar mistura, visivelmente marcado pelos traços da grandeza ilimitada dos elementos geográficos que a todos abraçava.

Ali arribou, em tempos, gente vinda das costas do Adriático. Os Balcãs foram sempre um sítio sujeito a inesperadas convulsões, radicadas em rivalidades étnicas e religiosas, nunca bem resolvidas. 

Uma dessas famílias dava pelo apelido desconhecido, que não suscitava qualquer significado no linguajar típico, misto de português e de falares, indígenas. Era o ramo dos Sassos, oriundo da Eslovénia. Pacatos, com visível espírito de iniciativa e trabalhadores. Ficaram deslumbrados com a abundância natural que encontraram naquelas paragens. Depressa se tornaram, não só, queridos no meio, como assumiram um papel de dinamização daquelas terras. Desde as pequenas lojas de comércio, sempre a abarrotar das coisas mais modernas e de úteis utensílios, já consagrados nas terras balcânicas, às primeiras empresas empregadoras, em moldes nunca vistos.

O trabalhador duma casa dos Sassos tornava-se, a breve trecho, se demonstrasse razões de confiança, num elemento participativo integral, nos ganhos e nas perdas. A prosperidade florescia, de dia para dia, enquanto os Sassos se afirmavam como indispensáveis à vida e harmonia da cidade.

Foi assim até à 3ª geração. Eslovénia ou Jugoslávia, escondidas para lá do Adriático, já não diziam nada aos netos dos primeiros. Nunca lá foram. Era só o que os velhotes saudosistas iam tartamudeando sobre as velhas lembranças da mocidade difícil que tinham tido, há tanto tempo. Eram ferretes cravados na cabeça que só eles enxergavam.

Quando o Mário fez e 7º ano do liceu, ali na Beira, sem grandes novidades, no dia a dia, tudo era igual, nunca mais largou o pai, a chagá-lo com a de querer ir estudar para Lisboa, da Europa…. Seria talvez o apelo telúrico europeu que lhe corria no sangue a ditar toda a teimosia, que chegava a ser irritante. Tinha lá uns tios a viver. Já não era tão difícil. Na cabeça delirante do puto, tudo girava em turbilhão, à procura de uma porta aberta.

Quis o destino encarregar-se de lhe fazer a vontade. Naquele ano, os tios de Portugal foram passar férias à Beira. Em casa deles. Durante os 3 meses de verão. Fartou-se de acompanhar os primos que lhe encharcaram a cabeça com loas das ruelas e coisas de Lisboa. O Castelo de Lisboa, Sintra e arredores, a vida nocturna de fado, nos românticos bairros alfacinhas…Até a fala típica alfacinha deles o seduziam. Sabe-se lá porquê.

O certo foi que o vapor que os trouxe de volta, teve mais um passageiro a bordo. O Mário, de grandes orelhas e olhos bogalhudos, uma boca com uns lábios grossos que até chateavam…e cabelos lisos, demasiado compridos, atrevidos, à boa maneira dos futuros Beatles, até seriam da mesma idade… Havia de facto, uma certa semelhança entre ele e os futuros reis da fama. Com as suas guedelhas de rebeldia, haveriam de revolucionar o mundo inteiro.

Deixar os pais em África, a dizer adeus, chorosos, no cais da Beira, foi coisa de somenos importância. Eles ficavam bem e o Mário, ainda ia melhor, na ânsia de ver Lisboa, a mítica Coimbra ou as terras verdes do norte.

Que diferença. Uma terra, já com uns bons séculos de existência e a Europa, civilizada, à espreita, a dois passos. França ou Inglaterra eram já ali, para quem estava habituado às distâncias negras africanas… A África era demasiado natural, nas suas florestas carregadas de vida, e de liberdade, nos rios da fartura e muito francos, nas gentes pacatas e sem histórias, sempre iguais… Sentia um certo enjoo de tanta fartura!…

A atracção pelo desconhecido e pela aventura corria-lhe no sangue. Se possível, viver duas vidas numa só…era seu modo de estar, irresistível, sem saber porquê. (Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 25 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10430: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (1): A origem do nome, Palmeirins (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)


(**) Dedicada à memória do alf mil Mário Sasso, da CCAÇ 728, morto em combate no Cantanhez, em 5 de desembro de 1965

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10430: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (1): A origem do nome, Palmeirins (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)



Guiné > Região de Tombali >  Ilha do Como > Cachil > 1966 >  Interior do aquartelamnento

Foto: © Benito Neves (2008). Todos os direitos reservados.



1. Mensagem, de 1 de setembro, do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66).

Olá Luís!

Aqui te mando parte duma novela escrita em memória do nosso saudoso camarada [Mário} Sasso (*). Talvez se enquadre no nosso blogue.


Um grande abraço, extensivo aos tertulianos todos.
Joaquim Mendes Gomes
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FICOU UM PALMEIRIM NAS BOLANHAS DA GUINÉ… > PLANO

1.- A Origem do Nome – “PALMEIRINS”

2.- A Cidade Moçambicana da Beira

3.- A Barra do Tejo

4.- Os Cheiros de Lisboa

Chapter 1

&.- 1 – A Feira Popular

&.- 2 - Uma Sardinhada em Cacilhas

&.- 3 – As Brumas (Ruelas) Fadistas de Alfama e Madragoa

&.- 4 – As Palmeiras da Estufa Fria

&.- 5 – As Vielas da Ameixoeira

&.- 6 – A Feira da Ladra

&.- 7 – A Baixa às ordens de Pombal

&.- 8- O Jardim do Campo Grande

&.- 9- A Estrela Real

&.-10 - Os Bosques de Monsanto



2. Ficou um Palmeirim nas bolonhas da Guiné (1): A origem do nome: "Palmeirins"

por J. L. Mendes Gomes [, foto atual à direita]

“Os Palmeirins” foi o nome de guerra que a companhia de caçadores 728, aplaudiu, em peso, perfilada no sítio habitual do quartel da Ilha do Como, diante do comandante.

Cerca de 200 homens, na flor da juventude, a maioria, alentejanos, viviam, ali, dentro das 4 paliçadas, de toros de palmeira, carcomidos pelos 2 anos de exposição ao rigor tropical dos elementos, já quase reduzidos à carcaça exterior.


Serviam mais de confortável albergue às possantes ratazanas que abundavam e de cortina, muito frágil, p´ra tapar as vistas, do que de desejado fortim protector para a metralha que, a qualquer hora, poderia chover, grossa e medonha, a partir das matas espessas, lá ao fundo.


A companhia já ia, quase, no final do primeiro ano da comissão. Era preciso arranjar-lhe um nome de guerra, como tinham as mais antigas. Deveria ser um nome que, por si, sugerisse ou tivesse alguma coisa a ver com a companhia, em concreto.


O capitão Silva lançara o repto, de um modo especial, aos 18 sargentos e 5 alferes, como era de esperar. Era pena. Mas, ainda havia muitos analfabetos.


Ao fim de uns dias, o comandante do 2º pelotão, o alferes Mendes Gomes, por sinal e feitio, o alferes que já se tinha revelado mais virado para essas questões, ─ passava a maior parte do tempo livre, a mexer e remexer livros, de história, literatura ou de direito, tinha andado no seminário até muito perto do fim, dera aulas de português aos voluntários, da companhia ─ apresentou ao capitão o nome de “PALMEIRINS”…


O capitão riu…Nem sim, nem não… E ficou à espera da explicação. Nunca tinha ouvido falar na novela de cavalaria do Palmeirim de Inglaterra, famosa, pelo menos, para quem tenha estudado história da literatura portuguesa.
Conta a história de uma figura da cavalaria inglesa na Idade Média, semelhante ao nosso lendário, herói e aguerrido cavaleiro, Nuno Álvares Pereira.

Esta relação histórica com o herói de Aljubarrota e a conotação natural da companhia com o mundo das palmeiras, omnipresentes, transformadas na matéria prima por excelência para tudo que era essencial à segurança e ao conforto, conquistou, logo, a simpatia do comandante, dos alferes e dos sargentos.
 
─ Vamos reunir a companhia, a ver o que eles pensam. “Palmeirins”, é um nome que até soa bem ao ouvido  , acrescentou.

Momentos depois de acabar o bem conhecido toque de corneta, os duzentos homens, tresmalhados pelo universo variado daquele mundo, pequeno mas completo, começaram a formar a companhia, em tronco nú e de chicatas de esponja, nos pés, ( o traje habitual que se imponha a toda a gente) apreensivos com o motivo daquele toque inesperado.

Chegou o último soldado, - era sempre o mesmo, o castiço e pacholas soldado Faria, parecia um pouco atrasado da bola, mas não, era assim mesmo, um ensonso, com a sua regra muito pessoal e sem remédio, por mais que o comandante o repreendesse.
─ Ó meu comandante, eu estava a dar de cadeiras quando ouvi o toque a corneta…e não podia… atalhou ele com a habitual inocência.

Uma gargalhada geral. Agora toda a gente sabia o que era isso de dar de cadeiras…como se dizia no Alentejo…
─ Meus senhores. A nossa companhia já não é maçarica. Também não é velhadas…Ainda vai ter de aguentar mais uns anitos, por estas bandas…

Ouviu-se um urro geral, respeitoso, em uníssono, saído daqueles pulmões bem puxados e bravios…─ Anos?… Nunca. Só uns mesitos. Sim…─ gritou um dos mais atrevidos, como os há sempre.

E o capitão continuou. Todas as companhias precisam de um nome de guerra, em vez do número que lhe deram.
─ 728 é lá para os “mangas” da CCS (Os serviços administrativos)
─ É verdade.  ─  crescentou alguém, lá do meio.
─ Aqui, o nosso alferes Mendes Gomes pensou num nome que me parece bem. Vamos ver o que é que vós pensais dele. Ele vai explicar.
─ Então qual é?…gritou um dos tais que nunca conseguem conter-se.

O alferes Mendes Gomes avançou para a frente da companhia, postada, de olhos arregalados e orelhas arrebitadas…
─ O nome que encontrei é “ OS PALMEIRINS”.

Uma risada geral, entrecortada de um nervoso miudinho , logo interrompida, para ouvirem bem a explicação. O nome soava bem mas não lhes dizia nada. Ainda se fosse o nome de algum animal feroz, de meter medo ou respeito a toda a gente…Os Leões…Os Lacraus…Os Panteras… Palmeirins, que é isso?…Deve ter alguma coisa a ver com palmeiras, mas mais nada…
Foram as interrogações que o alferes começou a avançar como sendo as que lhes estava a ler na cara deles. Começou então a contar os traços essenciais da época famosa da cavalaria, nos tempos recuados da Idade Média, em todos os países da Europa e, principalmente, na Inglaterra e Portugal . Citou o exemplo conhecido da maioria, apesar dos muitos analfabetos que havia, do nosso D. Nuno Álvares Pereira, o vencedor da Batalha de Aljubarrota.

Via-se que as coisas já estavam a ganhar algum sentido. Pois bem, quem estudou a História da Literatura Portuguesa, ouviu falar dum romance famoso que conta história de um guerreiro inglês, chamado “ O Palmeirim de Inglaterra”. Foi um livro tão famoso e lido pelas pessoas daquele tempo, como agora se lê a história do Tio Patinhas… [Vd. à esquerda capa da  Crónica de Palmeirim de Inglaterra, de Francisco de Moraes, ed. 1786, publicada originalmente em Lisboa, em 1592, cortesia do sítio Open Library]

De novo, uma gargalhada rebentou. Bom sinal…

Esse Palmeirim era um guerreiro terrível para conquistar castelos. Nem um só lhe resistiu. O simples boato de que o Palmeirim e o seu pelotão de cavaleiros andavam, por perto, era o bastante para toda a gente fugir dos campos e aldeias e se fechar a sete chaves nas muralhas do castelo, até a onda de terror passar.
 
─ Era um “gajo fodido”, meu alferes. ─ avançou, inesperadamente, de forma interrogativa e a resumir, bem à sua moda, aquela lengalenga duma cavalaria, atrasada, movida a fardos de palha que já não dizia nada a ninguém  ─ um dos habituais soldados, desavergonhados, mas com a malandrice toda deste mundo meida na cabeça.

O alferes, que ainda continuava a ser, um tanto, púdico, demais para a maioria, apenas esboçou um ligeiro sorriso, o bastante para se peceber o seu acordo, parcial e continuou a descrever as virtudes daquele energúmeno, inglês, na tentativa de conquistar não só a simpatia como a admiração e orgulho do novo patrono de guerra…Diga-se que sentiu medo de o não vir a conseguir e, no seu íntimo, chegou a arrepender-se de o ter indicado.

Mas quando se lembrou, sentiu tanta alegria e certeza que nunca imaginaria que não fosse aceite. Se o não fosse, seria porque não tinha sido capaz de o apresentar à rapaziada. 
O capitão gostou logo, lembrou-se, de si para si, num esforço íntimo de se mostrar mais convincente.

De repente, uma salva de palmas irrompeu inesperada e estrepitosa. Estava consagrado o acordo de toda a gente. Nem era preciso mais histórias. Que alívio invadiu o alferes Mendes Gomes, já quase a esgotar as ligeiras recordações que ainda se encontravam na memória. Não tinha ali um só livro de literatura, onde pudesse ir beber qualquer coisinha.


Guiné > Região de Tombali > Pendão da CCAÇ 728, Os Palmeirins (1964/66)


Foto: © J. L. Mendes Gomes (2006). Todos os direitos reservados




Pronto. Agora, havia que desenhar o emblema para a bandeira dos “PALMEIRINS”.  Desenho, isso, já não era para a sua mão pesada e cegueta…

Alguém haveria de arranjar um desenho. E arranjaram. A tempo de o nosso famoso Primeiro Sargento, de carreira, levar consigo, para mandar fazer na metrópole, quando fosse de férias…em Julho seguinte. Um fundo preto. Duas palmeiras, fera, altas e esguias, ao centro de um quadrilátero em movimento . Uns traços sugestivos, a amarelo e vermelho e ali estava o futuro símbolo daqueles guerreiros, com muito sangue na guelra, mas que, - a verdade é para se dizer- ainda não tinham tido o seu baptismo de fogo !…

Mais uns tempos e já era corrente o uso fraternal de palmeirim, no trato matinal e saudação de cada novo encontro dentro da companhia.

A ideia do alferes fora um sucesso.

(Continua)
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Nota do editor:

/*) Vd. poste de 29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez


(...) 2.15. O dia final do alferes Sasso

As densas matas do Cantanhez, só de ouvir o seu nome, causavam calafrios aos mais corajosos… Aí, se acoitava uma forte concentração de casas mansas, uns verdadeiros fortins inexpugnáveis, mesmo à força da intensa metralha de artilharia. Podia dizer-se que ali se encontrava o quartel general, inimigo, da zona sul da Guiné.

De lá saíam expedições constantes de grupos a espalhar a insegurança por todos os nossos aquartelamentos, quer por emboscadas quer por ataques às unidades isoladas.

Além disso, controlavam uma população nativa muito numerosa que, voluntariamente ou não, trabalhava os campos, fonte principal do seu abastecimento.

Por todas estas razões tornou-se premente efectuar uma grande operação que desagregasse aquele bastião. Foi o que se pretendeu com a Operação Tornado.


Os três batalhões sitiados no sul, com as unidades de artilharia e cavalaria, mais um grupo de fuzileiros e uma LDM, ajudados pela força aérea, ficaram responsáveis por esse objectivo.

A CCAÇ 728, aproveitando a maré-cheia, saíu, à noitinha, do cais de Catió a bordo de uma LDM; atravessou o estuário do Cacine e foi deixada, nas primeiras horas da madrugada, algures, em terra firme, do território inimigo.

Todo o cuidado era pouco. Tocou ao meu pelotão seguir à frente, logo depois do destemido grupo indígena do João Bacar Jaló.

Caminhou-se toda a noite; quando o dia começava a querer alvorecer, estávamos a atravessar a zona, crítica, de Dar es Salam [na carta de Cacine, Darsalam]. De repente, alguns tiros caíram sobre o pelotão que seguia na cauda da fila, comandado pelo alferes Sasso.

A resposta foi pronta e, depressa, tudo se calou. À frente, nada se tinha passado.

Só quando o dia nasceu e um helicóptero chegou, tivemos conhecimento de que o Mário Sasso tinha sido atingido com um tiro nas costas que lhe vasou o pulmão e coração. A esperança de sobreviver era pouca… e assim foi. (...)

terça-feira, 29 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9959: Cartas do meu avô (6): Terceira Carta - Em Bissau (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)

A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso camarigo Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66.  


As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)



B. TERCEIRA CARTA - EM BISSAU


O fôlego da companhia [, a CCAÇ 728,] (**) estava a esvair-se rapidamente com tanta intervenção nas matas. Os intervalos de tempo entre elas, passados  não davam para recompor.
- Para onde e quando será a próxima? - Era a pergunta que assoberbava a cabeça de todos nós.

A baixa do alferes Sasso (***) estava presente. Quando se sai ao mato, não se sabe se se voltará...  A sensação que tínhamos era de que, uma vez atirados às feras, tínhamos de nos "desenrascar", fosse como fosse.

As dúvidas sobre a razão da nossa presença ali, cresciam e alastravam descontroladas.  Não havia qualquer semelhança entre a tropa que desembarcou na Guiné e a que tinha de sobreviver em cada dia.

Os dias que faltavam estavam todos contadinhos, embora ninguém soubesse quando.  Nunca mais ninguém esquece a hora em que a tão esperada notícia se espalhou.  Foi uma explosão de alegria como nunca mais sentimos na vida.  Tinha chegado a ordem da nossa rendição. A uns breves quinze dias.  Que longos nos pareceram.
- E se ainda temos de sair para o mato?... - essa era a grande incógnita.

E assim aconteceu.  O meu sargento Gaspar que era um voluntário das guerras, repetente, tinha cumprido duas comissões em Angola, e estava ali por troca duns contitos de rei... que lhe deu o paizinho do Madail. Na véspera da operação assisti eu à sua consulta ao médico do batalhão. 
Ele era um peso pesado, gorilão. Pesava p'raí uns cento e vinte kg. Largo de tronco e uma agilidade desproporcionada. Pois, ainda conseguia fazer com facilidade impressionante um flic-flac à rectaguarda. Ali estava ele na saleta do médico na enfermaria a desbobinar, com uma convicção, um rosário de maleitas que, a serem verdade, o impossibilitavam de sair para o mato. O poriam de ambulância no hospital… 

O médico piscava-me o olho. Sabia que o sargento Gaspar era casado e com filhos à espera, no Cais da Rocha, em Lisboa, dentro de breve tempo.  Eu, como seu comandante de pelotão, também fechava os meus. Não fazia falta nenhuma. Pelo contrário. Seria menos uma eventual fonte de problemas...

E ficou mesmo em casa.  Já não me recordo do tempo que levamos a chegar a Bissau, desde Catió, numa grande LDM. Vínhamos todos nas nuvens, como num sonho de libertação dum degredo imposto, onde a nossa vida esteve em perigo cada minuto.

Só me lembra que não éramos só nós os viageiros felizes. Uma série de mulheres e crianças nativas vieram, com galinhas e açafates, de boleia, até Bolama e Bissau. De novo no quartel de Santa Luzia, como companhia de serviço, nos três meses antes de regressar, olhávamos para tudo com outros olhos. Era só deixar correr o tempo. 



Havia que fazer o rastreio de saúde no hospital [, HM 241, Bissau, foto à esquerda, arquivo do nosso blogue] . Eu fui lá passar uma semana para expulsar a bicharada toda que bebemos nas bolanhas e se alojaram nas nossa tripas… os …trico céfalos trykiuros...

Também deu para tirar a carta militar… de moto e ligeiros, que depois era só trocar no continente.  E não é que no preciso dia em que estava a fazer o exame de mota, com a preparação de duas ou três lições, me ia estampando contra uma parede, ao fim duma descida, como quem vem de Bissau para SantaLuzia. Confundi o pedal do travão com o do acelerador…Por momentos, eu que estava safo da guerras todas, vi a morte à minha frente… Não tenho dúvida de que foi um milagre da minha devota Senhora de Pedra Maria.
A primeira coisa que fiz quando recebi a carta de mota, foi rasga-la aos pedacinhos. Não fosse o mafarrico tecê-las… e uma jura eu fiz, solene:
- De que nenhum filho meu, com minha autorização, haveria de guiar mota. E cumpri à risca. 



A de carro, ainda é a mesma, à boa maneira do desleixado portuguezinho, troquei-a exactamente no último dia do ano que dispunha para o fazer…para não ter de repetir o problemático exame na metrópole. Foi em Bissau, desta vez, que pude conviver de perto com um casal amigo. Ele, o Silvestre, era alferes no quartel da Amura. No quadro da Administração. Viviam numa parte de casa alugada. Torturados pelo lento e penosíssimo decorrer dos dias à espera do fim da comissão… Era o seu grande lamento. Tinha sido meu companheiro de seminário. Fora pescado para a tropa, quando já tinha o 3º ano de direito. Ela já estava licenciada em românicas. Dava aulas no liceu de Bissau. [Foto acima: vista aérea do Liceu Honório Barreto e da Escola Industrial e Comercial de Bissau; arquivo do blogue].

Para mim, viviam remansosamente. Entretanto, nasceu-lhes lá o primeiro filho, aliás, menina. Fizeram questão de que fosse seu padrinho… e fui. O baptizado foi na Sé de Coimbra. E pasme-se!
- Nunca mais os vi, aos três!...Que vergonha de padrinho!?... Acho que a minha afilhada se chamou e chamará ainda - Luisa.

Esta conta não deu mesmo certa…




Outro que eu lá conheci, desde as minhas surtidas do mato até Bissau, era um outro alferes da administração militar, colega do Silvestre. Este tinha sido obrigado a interromper o curso de filosofia em Lisboa. Era um apaixonado pelos clássicos, gregos e romanos, pela escolástica. Ficou assombrado comigo, quando entabulou conversa lá no bar de oficiais, em Santa Luzia. Eu ainda tinha bem presentes todas essas figuras do pensamento, conhecia bem as suas ideias e achegas.
- Também andas em filosofia? – perguntou.
- Não. Andei.
- E que vais tirar?
- Direito, talvez.
- Oh!,  não faças isso. Andei lá ano e meio e abandonei. Aquilo não presta para nada. É só fogo de vista. Dá para ganhar dinheiro… e mais nada.
-E eu estou cansado desse mundo antigo. Passou. O que deixaram está esgotado…

Ficou de cara à banda.  Nunca mais o vi.

De facto, ele tinha toda a razão. Cedo o reconheci. Tirei o curso de direito, a ferros, jogava no campo inimigo, pois não tinha estofo para o mundo dos tribunais e das obrigações civis. Só me serviu para ganhar a vida…

Também recordo outro episódio, daqueles que só o destino sabe explicar.  Eu estava de oficial de dia ao quartel de Santa Luzia. Onde ficavam altos comandos militares. Uma responsabilidade que não metia medo a quem chega do mato. 

Estava a preparar tudo para passar a pasta ao oficial sucessor.  Nisto, oiço uma voz conhecida, muito familiar, não daquelas paragens.
- Dá licença,  meu alferes?- exclamou a voz.
- Entra.

Levantei os olhos e dei de caras com um 1º cabo, também de farda amarela, um velhote, como eu… muito sorridente, o que, de repente,  me deu tempo para pensar:
- Mas que é que deu a este figurão, para estar a sorrir, sem, antes, me ter visto os dentes?.. 



Era o meu primo Alberto, um meio irmão, que estava ali à frente. E regressaria à metrópole daí a pouco. Lançámo - nos num grande e sentido abraço… como irmãos - os pais dele eram irmãos dos meus. 
- Espera aí que eu vou passar o serviço e vamos já conversar… temos muito que dizer um ao outro… 

Ainda me ocorre outro episódio de assinalar. Em Julho próximo [, de 1966,] eu ia fazer vinte e cinco anos. Um número que se me afigurava então como digno de respeito. A sensação era de que tinham custado muito a decorrer estes vinte e cinco anos.

Na infância, o que desejamos é ser grandes… os anos nunca mais passam, são longos como séculos. A escola primária é uma escada dura de subir. O tempo de seminário foi um calvário doloroso que parecia não ter fim. A tropa foram só uns vinte e dois meses, mas pareceram vinte anos.

Tinha muito presente em mim que iria completar um quarto de século. Um pouco depois, iria regressar à vida civil. Tudo muito incógnito e inimaginável. A descontracção e autoconfiança que sentia ali ao serviço do batalhão, deu-me uma saborosa sensação de êxito pessoal. Muito benéfica para o meu psicológico, sempre muito complicado.

Cumpria o meu dever com naturalidade e exactidão. Pela primeira vez, senti-me admirado. Um superior reparou em mim. O segundo comandante major Jasmim de Freitas.
Antes meu lugar foi sempre nas filas de trás. Lembrei-me de promover uma festa, sob o pretexto dos meus anos. Todos os oficiais do batalhão foram convidados. E anuiram muito prontos e prazenteiros. 



Mandei assar uns leitões na padaria geral da Amura [, foto à direita, do nosso camarada João Martins], comprei uns petiscos e umas bebidas e , na hora marcada, depois da parada, a alegria e fraternidade chegaram em abundância. Foi uma linda festa.

O segundo comandante, cuja mulher era familiar muito próxima do administrador dum banco na metrópole, fez questão de me dar uma carta de recomendação para eu apresentar ao seu cunhado quando chegasse a Lisboa. Estaria afiançado. 



Só que, uma vez chegado à vida civil, fui acometido por uma tremenda crise de adaptação. Senti um choque psicológico estranho e muito perturbador. Insónias sobre insónias. Um frenesim incontrolável. Os comprimidos para regularizar somaram e caí prostrado no extremo oposto. O da letargia apática.

Primeiro que me sentisse apto a defrontar uma entrevista daquela importância, como seria essa com o administrador, demorou muito. O rumo da vida alterou-se. E a oportunidade perdeu-se totalmente. Pelo menos foi o que senti.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 23 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9938: Cartas do meu avô (5): Segunda Carta: Em Catió (Parte IV) (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)


(**)  Informação sobre a independente CCAÇ 728 (recolhida pelo nosso colaborador permanente José Martins):



Fichas das unidades - Guiné > Volume VII – Tomo II - página 335

Companhia de Caçadores n.º 728

Unidade Mobilizadora: Regimento de Infantaria n.º 16 – Évora
Comandantes: Capitão de Infantaria António Proença Varão, substituído pelo Capitão de Cavalaria Ramiro José Marcelino Mourato e posteriormente pelo Capitão de Infantaria Amândio Oliveira da Silva.
Divisa: Os Palmeirins
Partida: Embarque em 8 de Outubro de 1964
Desembarque em 14 de Outubro de 1964
Regresso: Embarque em 7 de Agosto de 1966

Locais por onde passou: Bissau, Cachil, Catió, Bissau



(***) Vd. série anterior, Crónica de um Palmeirim de Catió:


20 de Outubro de 2006 >  Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo


22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu


segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7238: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (4): O Funchal era uma festa...

1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66 (**).


Oficial e cavalheiro (4): O Porto Santo ao longe

Pouco depois de amanhecer, já corria que mais um pouco e a ilha do Porto Santo se iria ver. A manhã estava transparente em todos os sentidos.

O bombordo era o lado preferido de todos os madrugadores. Com os olhos postos ao longe, já se sentia necessidade de ver terra firme para quebrar o primeiro e natural acesso de monotonia. Um vulto mais escuro começou a divisar-se, longe, para a frente do barco, a estibordo, a sair, lentamente, da superfície imensa do mar.

Mais um pouco e um grande lagarto se estendia matreiro e preguiçoso, de areias refulgentes sob o dorso, mais o filhote soerguido, ali, ao pé. Lentamente, foram ficando para trás, sem se esconderem de novo, curiosos. Cada vez mais pequenos.


Agora, era um grupo de vultos ponteagudos que iam avançando para o ar e crescendo em tamanho para os lados mais baixos, esverdeados, a descer em grandes rugas pedregosas, até à tona das águas, rendilhadas de brancura. Com a ajuda de binóculos, tão na moda, pudemos antecipar a visão do que pouco depois se alcançava a olho nú. Encostas serranas, bravias e muito alcantiladas, vestidas de verde, a rigor, pareciam tapar qualquer hipótese de ser animado. Um ermo, como era quando a frota do Gonçalves Zarco [c. 1390-1471] lá chegou, séculos atrás [vd. foto da estátua, no Funchal; estátua da autoria de .

Os primeiros barcos a motor, quais formigas brancas, atrevidas, surgiram no horizonte das águas, a dar-nos as boas-vindas e ficaram a rodopiar à volta, sem esforço e destemidos, até ao termo. Um pouco mais adiante ia abrir-se o deslumbramento inesquecível. Uma mancha salpicada de casas brancas e telhados vermelhos, disseminadas, sem regra, pelas encostas ao sabor da mais pequena reentrância natural da encosta, estendia-se cada vez mais densa, desafiando o alcantilado das serras; aqui e ali era o cocuruto de uma igreja que parecia desafiar as alturas da encosta, vigilante das bem contadas ovelhas do seu redil; veredas estreitas serpenteavam por entre aquele casario, orladas de mil flores refulgentes de cor; uma maviosa sinfonia de beleza perfumava e fascinava o nosso olhar boquiaberto.

Apetecia saltar sobre as ondas mansas e correr para aquele pedaço de terra escondido atrás do mar imenso e sem fim. Não demorou muito e o barco, já habituado, entrava docemente num recanto pacato, que fazia de salão de visitas, duma cidade viva e gaiata, a estender-nos os braços acolhedores. Insensivelmente, dei comigo a apertar-me as carnes, procurando provar que tudo aquilo não era um sonho divinal.

O ar, fresco e rico entrava por nós dentro, inebriando-nos dos perfumes da terra, nunca antes saboreados. O imenso quadro polícromo que se desdobrava diante de nós não podia ser mais harmonioso. O fortim secular, altivo e muito bem colocado a meio da encosta foi o primeiro a arrrebatar os meus olhos. Fez-me imaginar as repetidas escaramuças com os visitantes predadores daquele éden, vindos das brumas das águas. A torre da Sé [v. foto acima] erguia-se afável do seio do casario por ela abençoado. As ruas cercadas de frondosas ramagens sulcavam toda aquela metrópole, misto de sabor ocidental e africano, buliçosa nas gentes e nos carros automóveis e, ainda, puxados a bois…

Uma vontade enorme de sair nos invadia e arrebatava. Tivemos de esperar desensofridos as formalidades da ordem. De novo, um carro militar nos aguardava atento e nos trouxe, depressa, para o B.I.I.19 [, Batalhão Independente de Infantaria nº 19], bem dentro da cidade. Depois foi o primeiro contacto com as pessoas já habituadas à surpresa dos recém-chegados. Em cada momento que passava, inflamava-se e acescentava o nosso contentamento, geral e irresistível.


Oficial e cavalheiro (5): O Quartel do B.I.I.19

O carro militar que nos transportava, saíu da rua que contorna o porto e entrou no seio da cidade. A abundância de árvores e jardins, com sabor verdadeiramente tropical e a predominância abundante, de turistas nórdicos, refastelados pelos bancos públicos e nas amenas esplanadas, os grandes e festivos paquetes cor de rosa, de tamanho duplo do nosso Funchal, tornados verdadeiros hóteis flutuantes a bordo, encostados ao cais, foram as primeiras notas de que tínhamos chegado a uma terra, diferente, cheia de encanto, quase irreal.

Subimos por uma rua estreita, à esquerda e parou-se ao meio de muro elevado, bem rentinho àquela. Um militar avançou da guarita e começou a mover a espingarda, que segurava diante de si, em jestos de braços e pernas, decididos e respeitosos. Uns 3 ou 4 vieram, de dentro, postar-se a seu lado, perfilados, também com a arma no ombro, altivos. O carro entrou pelo portão, para uma parada de aspecto sombrio e pardacento.

A primeira sensação foi de pobreza e acabrunhamento, perante as diversas entradas que davam para aquela parada, tosca, de terreiro de pedras negras e irregular. A porta larga que dava para uma cozinha térrea, com cobertura a verem-se os caibros do telhado, enegrecido e gordurento pelo fumo que saía das bocas do fogão gigante e das panelas enormes, os tanques rudes de cimento, junto à parede, para lavagem de todas as loiças e talheres de alumíneo do batalhão, os cozinheiros e seus ajudantes, destacados, por missão ad hoc, com os barretes brancos sujos, nas cabeças e tamancos de madeira engordurada.
Um quadro sombrio que, na metrópole, nos faria remontar à idade média… A adaptação pareceu-me impossível, mas estava muito enganado. Outra porta dava para a oficina dos carros da tropa, em modelos antiquados, com muitos milhares de km a mais que os previstos na origem. Ferramentas ultrapassadas, com muito recurso a cordas e muito madeirame encardidos pelo óleo queimado. Outro quadro de oficina muito recuada nos tempos, já muito ultrapassados no continente.

E o lugar para instrução? Aquela parada seria necessariamente pequena para um batalhão. Outra surpresa. Entrava-se por um túnel interior, coberto pelas instalações dos serviços administrativos, militares, salas de oficiais e sargentos, alguns gabinetes; descia-se para um primeiro terreiro interior, ao jeito do claustro conventual, que fora, outrora, cercado de uma beirada de telhado protector nas alturas de chuva, rara; desse terreiro, passava-se, sucessivamente, para mais dois, com a mesma configuração.

Era neles que toda a instrução militar dos vários pelotões se tinha de desenrolar, com muita improvisação. Alguns soldados de aspecto um tanto desalinhado cirandavam por ali. Olharam-nos com um ar nublado de inesperada timidez. 

Fomos levados para a sala de oficiais, depois de percorrermos um corredor e subirmos umas escadas em madeira já muito gasta e empenada. Um pequeno bar, despretensioso, mas com uma óptima esplanada com vista sobre a encosta verde da cidade, servido por um magala mais aprumado. Umas mesas e cadeiras espalhadas. Revistas e jornais com atraso de alguns dias, ao dispor. O transporte do continente ainda era feito apenas pelas carreiras marítimas regulares.

O aeroporto era, ainda, um sonho ou um projecto em concurso. Lembro que as terras de Santa Catarina ou do Paúl da Serra eram as duas hipóteses em confronto. Os camaradas mais antigos começaram a chegar e a meter conversa connosco. A maioria era madeirense e formada por ex-seminaristas do Funchal. Eram uns senhores, para o círculo apertado da cidade. Tinham gozado das bênçãos da venerada herarquia clerical; disfrutavam, agora, das não menores que a farda militar, ali, lhes oferecia. 

Nós beneficiámos, logo, daquela honra acumulada. A nossa chegada até teve honras de notícia, com os nomes e categorias, nos jornais do dia seguinte. Fomos chamados ao gabinete do Comandante do Batalhão, um coronel, já de idade madura, ali, habilmente, acoutado pelas hostes continentais, para cumprimentos de boas-vindas.

Foi agradável e cerimoniosa a recepção. O alojamento tinha de ser custeado por nós, num dos quartos que as gentes do Funchal estavam habituadas a dispensar aos oficiais de passagem. O custo era reduzido, mas a nossa mesada era um suplemento que lhes sabia bem. Eu, o Gomes e o Gonçalves fomos parar a casa de uma solteirona, solitária, com mais de 50 anos, de olhar matreiro… Só dormir e roupa lavada. Andava por lá um cinquentão, vigilante…

As portas estavam à nossa conta. O almoço era por conta da tropa. O jantar era pago, com preços firmados, na hora, pelo antigo cozinheiro, de voz rouca, de um navio mercante. O que pagávamos constituía o bom engodo ara o manter ao seviço na cozinha. Ainda hoje me lembro dos saborosos filetes de espada preto e de bifes de atum, como nunca mais provei.

Os primeiros dias foram para conhecer os bares, cafés, ruas e costumes da cidade, em uniforme militar, como convinha. O café Apolo, com uma boa esplanada, ali juntinho à velha Sé, não podia ser mais acolhedor e melhor situado. Visita diária obrigatória para a nata do Funchal. O Sunny-Bar, na formosa Avenida do Mar [, e que ainda hoje existe]. A rua de Fernão Ornelas, a mais recheada de montras e de comércio, exótico, fervilhante.

O mercado dos lavradores [, foto à esquerda, pormenor de azulejo], mercado municipal, pegado àquela artéria central, onde vinham desaguar as suculentas hortas do campo, em fruta tropical, flores e tudo o mais. O terreiro, ladeado de uma protecção simples, em tubos de ferro forjado, saído da avenida do mar avançava uma centena de metros pelas águas do porto dentro. Era o festivo ponto de encontro de toda a gente, especialmente, no final da tarde e noite dentro. Ponto de mira para as longínquas desertas, erguidas sobre as águas azuis do oceano e, sobretudo, para a vista total da cidade que se estendia mansamente, pelas encostas íngremes da serra, exposta num abraço largo, de beleza surpreendente.

Para as pessoas do Funchal, um passeio descontraído por estes recantos, à mistura com os turistas sempre renovados, sobretudo, pelos regulares paquetes nórdicos, era uma necessidade diária e embriagante.O liceu, as escolas particulares e uma superior de música refrescavam, de juventude, de costumes ainda bem controlados, toda a vida da cidade.

Os carros turísticos de bois, engalanados como os seus boieiros e ajudantas, com as cores garridas das vestes típicas, iam semeando de aromas odorosos, bem tolerados, as lajes escuras das artérias principais. Os jardins recheados de árvores tropicais e abundantes flores exóticas.

O de Santa Catarina, de vegetação luxuriante e labiríntica, lá ao cimo da avenida do Infante, sobranceiro ao porto e à cidade, a dar saída para a Câmara de Lobos, o centro piscatório mais próximo; o da Senhora da Esperança, de vegetação densa e cheio de chafarizes a irradiar frescura, mesmo no coração do Funchal.

As duas ribeiras íngremes a escorrer da serra, cobertas por um manto de verdura e flores constantes, cortando as ruas da cidade, até ao mar. As bordadeiras coloridas, a laborar em bancos pequenos, em plena rua, à vista curiosa de quem passava.

As esquinas da Sé e da fortaleza central eram embelezadas pelas vendedoras de formosas orquídeas, tecidas pela mão da natureza, em veludo natural, desenhadas em linhas de traço impecável. O Funchal era uma festa rija e permanente. O trato das gentes era doce e afável, mas envolvido numa subtil resignação, oculta e insular. Tal como a musicalidade da sua voz e o falar entoado e castiço. Difícil de entender, nos primeiros tempos.

 

[Continua]

[ Revisão / fixação de texto / selecção de fotos / título:  C.V.]

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Notas de C.V.:

(*) Vd. último poste da série > 15 de Outubro de 2010


Guiné 63/74 - P7131: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (3): Oficial e cavalheiro: Cruzeiro até à Madeira, no paquete Funchal






(**) Vd. postes da série Crónica de um Palmeirim de Catió:

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu