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sexta-feira, 3 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25474: Notas de leitura (1688): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Não vale a pena insistir na tecla de que este Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa da Guiné só excecionalmente fazia referências ao que se passava no continente, num ponto mal definido que tanto podia ser chamado por Senegâmbia Portuguesa, como Costa de África ou Estabelecimentos de Bissau e Cacheu. Procurando folhear toda a documentação de Boletins em depósito na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, passou-se a pente fino 1850 e 1851 e estou em crer que o leitor não perderá o seu tempo a tomar notícia das atribuições que um governador-geral da Guiné entregava ao recentemente empossado comandante interino da praça de S. José de Bissau, tenente-coronel Alois de Rolla Dziezaski e ficar informado que chegara um negócio próspero à agricultura da Guiné. a amêndoa de mandobi, a mancarra.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (1)


Mário Beja Santos

Para se ter uma prova provada de que aquele ponto da Guiné, tratado como Costa da Guiné, era uma quase excrescência do Governo Geral de Cabo Verde, é indispensável folhear o Boletim Oficial dos anos anteriores à autonomização da Guiné como província (1879). Desde já previno o leitor que o Boletim é surpreendente, quer no que é designado como parte oficial e parte não oficial, há folhetins, há divulgação cultural, há crítica literária, comenta-se as obrigações do sacerdócio…, mas praticamente tudo centrado num conjunto de ilhas cabo-verdianas, só em termos residuais vamos ter conhecimento do que se passa em Bissau e em Cacheu. É um documento que se lê e recebe compensações, veja-se o tratamento dado ao fim do cabralismo e à chegada do Duque de Saldanha a Lisboa, prenunciava-se a Regeneração. E havia muita esperança naquele D. Pedro V, homem culto, interessado na prosperidade portuguesa, adorado por famílias reinantes, isto num tempo em que os Saxe-Coburgo Gotha estão presentes em todas as famílias reinantes (o rei D. Fernando, pai de D. Pedro V, pertencia a esse ramo de família alemã).

No Boletim Oficial N.º 20, ano de 1850, 18 de maio, dá-se a seguinte notícia:
“Terça-feira passada entrou no porto da Furna desta ilha (Brava), a escuna de guerra Cabo Verde vinda de Guiné com escala pela vila da Praia. Durante alguns dias da sua comissão naquela paragem, lutou com um temporal forte do qual milagrosamente puderam salvá-la. Um dos seus dignos oficiais, o senhor tenente Manuel da Silva Caldas, foi presa da morte! Uma febre adquirida em Cacheu, lhe foi roubar os dias de mocidade em Bissau. Perdeu a Armada Portuguesa um mui digno oficial; a sua jovem com sorte um extremoso marido! Os seus numerosos amigos que já sabem do seu prematuro fim, o têm chorado sinceramente; - e quantas lágrimas não lhe serão ainda tributadas! Por certo, porque um cavalheiro como o senhor Caldas tem direito a tais provas de saudade.”

Vejamos agora o N.º 71, ano 1851, 20 de setembro, vamos saber de nomeação do Tenente-Coronel Alois de Rolla Dziezaski, nos seguintes termos:
“Sendo de urgente necessidade nomear para o Governo da importante Praça de S. José de Bissau um oficial de experimentada capacidade, o governador-geral determina que o Tenente-Coronel Alois de Rolla Dziezaski passe imediata e interinamente a exercer aquele governo, por ter neste oficial a maior confiança em razão da firmeza com que sempre tem sabido manter a dignidade da Coroa Portuguesa, e da moderação e prudência que presidem a todos os seus atos; ficando o mesmo tenente-coronel exonerado do comando militar da ilha de São Nicolau e que exerceu com a sua costumada aptidão e probidade.”
Assina Fortunato José Barreiros, Brigadeiro, Governador-Geral.

Duas páginas à frente e de novo o Brigadeiro Barreiros se dirige ao Tenente-Coronel Dziezaski:
“Sendo urgentíssimo ocorrer às instantes necessidades dos diferentes Estabelecimentos da Costa da Guiné, os quais, pela distância em que se acham deste arquipélago, muito sofrem com a demora das prontas providências que reclamam: convido outrossim dar unidade à ação governativa daquela colónia, e fazer com que as autoridades civis, judiciais, militares e fiscais não só tenham uma autoridade central próxima a que recorram, para as apoiar no exercício das suas funções, quando os meios locais para isso forem insuficientes, mas também para que essa autoridade central próxima possa vigiar se os empregados subalternos cumprem com os seus deveres, e compeli-los a tal cumprimento quando necessário seja: e tendo plena confiança na capacidade governativa do Tenente-Coronel Alois de Rolla Dziezaski, governador interino da praça de S. José de Bissau, o qual, pelos bons serviços que já tem prestado, assina o arquipélago como na referida Costa da Guiné, dá suficientes garantias de que saberá fazer um melhor uso da autoridade e agora se lhe confere, e cujo exercício o governador-geral do província o autoriza:
1.º - A residir no lugar do seu Governo interino, que julgar mais conveniente ao serviço.
2.º - A tomar contas às autoridades de todas as classes; examinar a escrituração oficial de todas as repartições, para conhecer se tem sido até agora, e está sendo, feita com a devida regularidade; assim como, se todas as ordens e manadas deste Governo Geral, têm recebido pontual cumprimento, e quais os motivos que houverem demorado a execução de algumas que ainda não o tiverem sido; fazendo-as pôr logo em prática, quando disso não resultem inconvenientes ao serviço.
3.º - A suspender e fazer autuar e processar na conformidade das leis e ordens em vigor as autoridades que, por desleixo, conivência, ou por fraude, tiverem prejudicado a Fazenda Pública, enviando essas autoridades, depois de competentemente processadas, para este arquipélago.
4.º - Do mesmo modo, mandar proceder a Conselho de investigação contra as autoridades militares que, esquecidas da própria dignidade e dos seus deveres, descerem ou tiverem descido à baixeza de mercadejar com os seus subordinados, e não mantiverem, ou houverem deixado de manter entre eles a instrução e disciplina a que são obrigados.
5.º - Mandar proceder aos orçamentos para a despesa que exigirá a reparação da muralha de revestimento da Praça de S. José de Bissau, e os outros pontos fortificados pelo seu Governo interino, propondo os meios mais compatíveis com o estado da Fazenda da Província, para se proceder a essas reparações, e procurando convencer os habitantes desses pontos, que é da sua particular conveniência, que eles se prestem a adiantar as somas precisas para tais reparações, mediante contratos iguais ou semelhantes àquele que propusera o falecido tenente-coronel Caetano José Nozolini para Bissau: enviando os contratos que neste sentido fizer, para serem examinados por este Governo Geral e aprovados pela Junta da Fazenda Pública da Província, no caso que convenham.
6.º - Passar uma escrupulosa inspeção à Força Armada, e ao material de artilharia existente na Costa da Guiné, enviando o resultado com as propostas de melhoramento de que precisam, e indicando os meios que lhe parecerem mais favoráveis à Fazenda, para se conseguirem esses melhoramentos.
7.º - Tomar todas as medidas que estiverem ao seu alcance para ocorrer ao bom tratamento dos doentes que houver em toda a extensão do Governo interino que lhe é confiado, assim como as que disserem respeito à boa polícia, e salubridade das habitações, pedindo motivadamente as que de dependerem deste Governo Geral.
8.º - Finalmente, exercer provisoriamente na Costa da Guiné, em casos urgentes, toda a autoridade, que pela Lei e Ordens em vigor compete ao Governador Geral, dando de tudo, e sempre que houver embarcação para este arquipélago, uma conta circunstanciada das providências que adotar.

O que tudo se comunica ao referido tenente-coronel, pela sua inteligência e execução, esperando do seu reconhecido zelo que desempenhará esta importante comissão da maneira como sempre se tem havidas das anteriores.”


Temos também N.º 59, ano 1851, 7 de junho, uma portaria ao Diretor da Alfândega de Bissau que reza o seguinte:
“Tendo requerido João Severiano Duarte Ferreira uma licença de dois meses para vir tratar a este arquipélago a sua arruinada saúde, como mostra por um atestado do cirurgião António Joaquim Ferreira; e querendo anuir a este requerimento, sem que seja possível nas circunstâncias atuais nomear outro empregado idóneo que vá substituir o suplicante; que por tão justos motivos ordeno: - Que, se ao receber desta portaria se não achar aliviado dos seus padecimentos o dito diretor da alfândega de Bissau, João Severiano Duarte Ferreira, lhe seja permitida entregar interinamente o serviço da mesma alfândega a um indivíduo da sua confiança, para sob a responsabilidade do suplicante exercer aquele emprego enquanto ele, suplicante, vem gozar dos dois meses de licença que pede.”

E deixámos para o fim o Boletim Oficial N.º 93, 1852, 25 de maio. Alguém que assina pelas letras M.F.L. expõe o proveito que está a trazer ao Estabelecimento de Bissau a amêndoa de mandobi, geralmente conhecida com o nome de mancarra, começou a ser procurada em Bissau no ano de 1846; e os navios estrangeiros, que a buscavam, levaram nesse ano toda a que encontraram, em 400 bushels (velha unidade de medida), no valor de 200 pesos: este pequeno lucro animou logo a sua cultura; e a contínua e sucessiva diligência de navios franceses, americanos, e alguns belgas, para a obter, a fez crescer a tal ponto que no ano findo de 1851 a sua exportação chegou a perto de 100$000 bushels, no valor aproximado de 50 mil pesos, e perto de 2.000$000 de reis de direitos para a Fazenda Nacional; assegurando-se que no corrente ano será muito maior a saída da mancarra, tendo-se feito grandes sementeiras dela, nas ilhas de Bolama e das Galinhas. A mancarra está sendo para Bissau que é a semente de purgueira para estas ilhas. Mais adiante, o autor entende explicar as utilizações da mancarra:
“É não só estimada para comer, para confeitarias, e no sul da França para diversas composições; como para fazer excelente azeite, para temperar, e para luzes: o sabor deste azeite na comida é bom, e a sua luz clara, sem fumo, sem mau cheiro, e não suja. O seu fabrico é facílimo, e materialmente se obtém levando a mancarra ao pilão, para a descascar; depois do que se coze a vapor, pelo mesmo método que se usa para fazer cuscuz, servindo de binde uma tagarra grande; e estando a amêndoa suficientemente amolecida, se passa a uma prensa, encanada em palha, e desde logo sai o azeite: a massa ou bolo que fica desta operação, dizem ser boa nutrição, que a compram a troco de frutos.
Os terrenos soltos são os mais próprios para a cultura da mancarra. Em terreno solto apanha-se arrancando a planta e traz com ela a amêndoa. A rama da mancarra é também ótimo sustento para o gado e dá bom sabor à carne. A mesma rama deixada na terra, toma diferentes raízes e brota novamente sem necessidade de outra semente, em terrenos húmidos: semeia-se no tempo das águas.”


M.F.L termina o seu texto de um modo quase apoteótico:
“A agricultura é a única e verdadeira fonte de todas as riquezas; sem os produtos da terra, nem o comércio, nem a indústria prosperam. Houve tempo em que a urzela enriquecia esta província; hoje veio substituí-la a semente de purgueira; e os mercados da Europa e da América se abrem à mancarra que, como já se viu, está dando tão avultado interessa na Costa, e acha pronta denta: o que tem reanimado o decadente comércio de Bissau, renovado a sua povoação e promovido plantações de outros produtos, que servem consideravelmente ao seu comércio, e aumentam os rendimentos públicos. Oxalá que este pequeno brado possa excitar os nossos concidadãos neste arquipélago a adquirir mais um meio de subsistência tão pronto, tão útil e de tão pouco trabalho. Convençam-se que a terra abre verdadeiramente os seus tesouros a todos aqueles que os procuram.”

Era a consagração da mancarra como a matéria-prima que, finda a escravatura parecia destinada a alavancar o desenvolvimento da Costa da Guiné.

Clicar na imagem para ampliar
Vista antiga de Cacheu
Visita do Príncipe Real D. Pedro (D. Pedro V) a Londres, onde visitou o Palácio de Cristal e empreendimentos científicos; debruçado está o Infante D. Luís (futuro Rei D. Luís I) e de costas a Rainha Vitória. A Imperatriz das Índias dizia abertamente que D. Pedro era o seu sobrinho dileto, chegou a magicar um casamento dele com uma das filhas, algo que não escandalizasse a religião anglicana. Há repetidas menções a D. Pedro V no Boletim Oficial do Governo de Cabo Verde.
Imagem antiga da Fortaleza de S. José de Bissau
Imagem do século XIX de Vila da Praia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 2 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25468: Notas de leitura (1687): "Poemas de Su Dongpo", introdução e notas de António Graça de Abreu (Lisboa, Grão-Falar, 2023, 177 pp.) Parte I

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25467: Historiografia da presença portuguesa em África (421): A Guiné e os tempos da Restauração da Independência, por Leite de Magalhães (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
O Coronel Leite Magalhães deixou um apontamento escorreito neste trabalho coletivo intitulado "A Restauração e o Império Colonial Português", que a Agência Geral das Colónias editou em 1940, no âmbito das comemorações do centenário. Ainda hoje se pode ler com agrado o que Damião Peres escreve sobre o império português na hora da Restauração ou a reconquista em terras brasileiras, trabalhos de Pedro Calmon e Hélio Viana. O antigo governador da Guiné entendeu espraiar-se pelos acontecimentos de Alcácer Quibir e as consequências decorrentes do desastre, descreve depois a Costa da Guiné até à dominação filipina, retrocede até ao programa do Infante D. Henrique, deixa-nos um esboço do que representou a fragilidade da presença portuguesa durante o período do domínio filipino na Costa da Guiné e a resposta dos Bragança para procurar reconquistar o Império, no caso da Costa da Guiné era já muitíssimo tarde, tínhamos ficado confinados entre o Casamansa e a Península de Cacine, escusado é dizer que foi presença ténue até às exigências impostas pela Conferência de Berlim.

Um abraço do
Mário



A Guiné e os tempos da Restauração da Independência, por Leite de Magalhães

Mário Beja Santos

Em 1940, a Comissão Executiva dos Centenários/Agência Geral das Colónias editou o volume A Restauração e o Império Colonial Português, nele colaboraram personalidades como Damião Peres, Pedro Calmon, Hélio Viana, António Leite de Magalhães e o general Ferreira Martins. A comunicação do coronel Leite de Magalhães prende-se com a costa da Guiné, introduz as consequências do desastre de Alcácer Quibir, aludes às Cortes de Almeirim e depois às Cortes de Tomar que consagram Filipe II de Espanha rei de Portugal, começa agora a sua extensa leitura dos acontecimentos da dominação filipina na costa de África. Inevitavelmente, retrocede ao plano henriquino, às viagens posteriores à passagem do Cabo Bojador, aos relatos que Zurara faz na sua Crónica da Guiné quanto à expedição de Lançarote de Lagos, Gonçalo de Sintra, Diogo Gomes e o mapeamento da costa, porque as viagens sucedem-se. Pouco antes da morte do Infante D. Henrique, Álvaro Fernandes, sobrinho de Gonçalves Zarco alargara os reconhecimentos chegando à ilha de Arguim. E depois da morte do Infante, escreve o antigo governador da Guiné, a Costa da Guiné estendeu-se na viagem de Rui Sequeira, em 1475, até ao Cabo Catarina. Foi este o último dos navegadores, que nos termos do contrato celebrado entre Fernão Gomes e D. Afonso V fizeram o descobrimento da costa desde o Cabo Mesurado – onde havia chegado Pedro de Sintra, após a morte do Infante, até ao extremo do golfo de Biafra. O autor passa naturalmente em revista a natureza do comércio e o tipo de presença que os portugueses iam estabelecendo em feitorias. Nada de especial vai acontecer nesta região até à ocupação de Lisboa pelas tropas do Duque de Alba, em 1580. As jurisdições da capitania de Arguim, para norte do rio Senegal, e a de Santiago de Cabo Verde, entre o rio Senegal e a Serra Leoa, e a da capitania de S. Jorge da Mina, desde a Serra Leoa até ao Rio Real, mantinham-se inalteradas.

Se era facto que Portugal já não tinha condições para impedir a concorrência estrangeira na região, a União Ibérica agravou, e muitíssimo, a situação. Os franceses intentavam uma expedição ao Castelo da Mina, os navios normandos desciam com cada vez mais frequência até à Costa da Guiné. É o próprio André Álvares de Almada que refere no Tratado Breve que ingleses e franceses são uma presença constante na região. Estes franceses e ingleses faziam comércio na Goreia, hoje Senegal, entendiam-se muito bem com os lançados portugueses. E, por isso, Almada escreve no seu Tratado Breve que os resgates na Costa do Cabo Verde até ao rio de Gâmbia estavam perdidos.

A derrocada do poderio português e do império sofre um rude golpe com as destruições da Invencível Armada, perderam-se 77 navios e cerca de 10 mil homens e mais de 100 milhões de ducados. Com o enfraquecimento da posição portuguesa intensificou-se o curso e é dado assente que a penetração inglesa na Costa da Guiné ganhou forma desde 1588. Os inimigos de Espanha eram os inimigos de Portugal. Filipe II obrigou Portugal a participar na luta que se tratava nos Países-Baixos, isto numa altura em que se formava a Companhia das Índias Orientais que passavam a ter um monopólio de comércio para além do Cabo da Boa Esperança. Tudo se vai tornando cada vez mais difícil para a presença portuguesa, assaltos ao Castelo de S. Jorge da Mina, a audácia da pirataria holandesa nas ilhas de Cabo Verde. Os franceses não ficaram atrás. Os traficantes de Dieppe e Ruão associaram-se em 1626 para a fundação da Compagnie Normande que passou a ter o privilégio de dez anos entre o Senegal e o rio Gâmbia. Na Goreia, os holandeses fizeram da ilha a sua base de operações. Os três fortes portugueses que havia ao longo da costa – Arguim, Axem e S. Jorge da Mina – tornaram-se o alvo da sua cupidez. Os holandeses movem-se por toda a parte, chegam ao Brasil, ali se implantam, o mesmo acontecerá com a fortaleza de S. Paulo de Luanda, em 1648.

Com a Restauração, apenas Axem ficara de pé, e o no cômputo geral do que fora a nossa presença na Costa da Guiné nada mais nos ficara de que um pequeno bocado compreendido entre o rio de Casamansa e Cacine. D. João IV tinha muito que acudir, desde a presença espanhola, a salvar o Brasil, a reconquistar a região de Angola. Para lutar contra a Espanha, o rei de Portugal firmou tratados de aliança com a França, a Holanda e a Inglaterra; no Brasil os holandeses vão conhecer reveses fatais, em África reconquista-se Angola. Faz-se um tratado de paz com Holanda, perde-se posição no Oriente. E de forma mitigada regressa-se a Cacheu, faz-se fortaleza, retomam-se outras feitorias, tudo modestamente.

Como observa no seu texto o coronel António Leite de Magalhães a presença portuguesa nessa velha Costa da Guiné ainda se ia mantendo e mantém-se as designações geográficas das terras que a pilhagem arrebatou; e nas populações cristãs que os seus missionários, tantas vezes ingloriamente, catequizaram; e até nas citrinas se deixou nome, mais tarde Teixeira da Mota e outros investigadores farão inventário dos nomes portugueses que constam na topografia da Costa da Guiné por onde cirandámos durante séculos, até se ter diluído a nossa presença.

É este em síntese o documento que Leite Magalhães, que foi governador da Guiné de 1924 a 1931 (afastado depois dos acontecimentos da Revolta Triunfante, pois na Guiné houve um golpe republicano que foi rapidamente jugulado, o governador é preso, afastado, regressará a Bolama por pouco tempo, até ser substituído) nos deixou no trabalho coletivo sobre a Restauração e o império colonial português.

Clicar na imagem para ler o texto
População de Cacheu buscando água numa fonte, 1900
Padrão português que Cacheu conserva
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Nota do editor

Último post da série de 24 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25443: 20.º aniversário do nosso blogue (11): Seleção de poemas do "corredor de Guileje" ou "corredor da morte" (José Manuel Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "O Furriel Gomes, do Pelotão de Caçadores Nativos (Pel Caç Nat 68), o Amadú, um guia e amigo do mesmo pelotão, e eu, carregado de cadernos e livros apreendidos no 'corredor da morte' [ou corredor de Guileje]. De salientar a quantidade de livros escolares em português que o PAIGC tentava fazer chegar às zonas por eles controladas".


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Um momento de descanso nas operações diárias de patrulhamento, picagem e montagem de segurança aos trabalhos da nova estrada Aldeia Formosa (Quebo) - Mampatá - Salancaur...  Lendo e escrevendo... O fur mil arm pes inf, op esp, MA, José Manuel Lopes (Josema, como poeta). 

Fotos (e legendas) : © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
1. É um apanhado de alguns dos melhores poemas do Josema, escritos com "sangue, suor e lágrimas", no Sul da Guiné,  no "corredor de Guileje" ou "corredor da morte", entre 1972 e 1974, em lugares tão estranhos e já esquecidos (hoje,  à distância de 50 anos) como Mampatá, Nhacobá, Colibuía, Salancaur, Uane... 

A fonte é a série "Poemário do José Manel",  por nós publicada,  entre março de 2008 e setembro de 2009 (trinta postes, muitos deles com mais de um poema). A maior parte dos poemas não têm título, e nem todos são datados.  

Esta seleção, pessoal, feita pelo nosso editor LG, é também uma forma singela de homenagear o poeta de Mampatá (e do Douro) e de  o associar aos 20 anos do nosso blogue (**),


Naquela picada havia a morte,
havia a morte naquela picada,
de vinte e quatro
foi tirada a sorte,
para um foi a desgraça,
o diabo o escolheu
ou foi Deus que o esqueceu,
havia a morte naquele caminho,
naquela picada havia a morte.


Estrada de Nhacobá, 1973

Olhos semi cerrados 
querendo ver
para além das árvores,
passo controlado,
procurando caminho
já calcado e pisado,
orelhas a pino,
a querer ouvir
além da neblina,
todos os sentidos
são poucos,
escaparão com vida?
não ficarão loucos?

Carreiro de Uane, 1972

 

O sol queima em Colibuía,
e nas tendas de campanha
sentimos o seu abraço,
logo, logo, pela manhã
e é só o começar
de uma semana de rações,
sete dias de suores,
milhares de comichões,
de bons e maus humores
e outras complicações.

Os dias lá vão passando
entre picagens,
patrulhamentos,
em cordões de segurança
à construção da estrada
que avança lentamente,
como cobra gigantesca,
pelo matagal imenso.

A semana chega ao fim,
volta-se a Mampatá,
um paraíso afinal
e o bálsamo ideal
do inferno quinzenal.

s/l, s/d


Estradas amarelas

corpos cobertos de pó,
pica na mão à procura delas,
o polegar ferrado no pau,
tac, tac, tac, tac, tac, tac,
tateando por sons diferentes,
o Fernandes com cara de mau
espeta no solo o ferrão da pica,
tac, tac, tac, tac, tac, TOC...
o calafrio,
depois o grito,
anunciando o perigo,
o grupo é mandado parar,
chega o Vilas à frente
e todos manda afastar,
de joelhos no chão,
numa simulada carícia,
afaga a terra com a mão,
com gestos simples e perícia,
vai cavando devagar:
hei-la... está aqui,
lisa preta a brilhar;
parece inofensiva, a maldita,
deita-lhe a mão e grita:
és minha, já te tenho;
volta-a,
tira-lhe o detonador
e, entre dentes, diz:
esta não,
esta não causará dor.

s/l, s/d


Pior

que o inimigo
é a rotina,
quando os olhos já não veem,
quando o corpo já não sente,
quando já se não recorda
o nosso último abraço,
e a arma se tornou
um apêndice do braço;
pior
é quando nos esquecemos
dos afagos e carícias
que uma mão pode fazer,
da mensagem e melodia
que uma canção pode conter;
pior
que as chagas nas virilhas
ou o aço a entrar no corpo,
são os delírios sem sentido,
e o procurar esquecer
as pessoas mais queridas;
pior
é o despertar
do mal que há em nós,
e é preciso pensar
e é preciso parar
e é preciso sentir
que ainda estamos a tempo.


Salancaur, março 1973


Sangue derramado

Puseste o pé em sítio errado,
um som violento, o pó levantado,
escondeu por algum tempo
teu corpo violentado.

sem pensar em outras minas
correram em teu socorro,
o sangue fugia de teu corpo
e o hélio não chegava.

tua cara, ainda de criança,
ficava cada vez mais pálida,
tudo, num silêncio angustiado.

apesar dos teus vinte anos,
a vida fugia-te em golfada.
porquê tanto sangue derramado?

s/l, s/d

Sabes o que é morrer

com a vida por viver?
sabes o que é sentir
toda uma vida a fugir?
ter de cerrar os olhos
para voltar a sorrir?
eu fecho-os
para ver as vinhas e os montes,
eu fecho-os
para ver o Douro correr,
eu fecho-os
para ver uma mulher,
eu fecho-os
para não pensar
nem me lembrar
que também posso morrer.


Mampatá, 1973

Gostava de vos falar
dos esquecidos,
dos heróis que a história
não narra,
que as viúvas choraram
mas já não recordam,
daqueles
que nem tempo tiveram
de ter filhos
que os amassem,
descendentes
que os lembrassem,
daqueles
que nunca tiveram
o dia do pai,
vítimas de guerras
que não inventaram,
em tempo que já lá vai,
falar deles é prevenir,
se bem que de nada lhes valha,
de guerras que possam vir,
geradas pela ambição
dos que nunca morrerão
num campo de batalha.

s/l, s/d


Calor, cansaço, suor,
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior,
pois há ali o Corubal,
com sombras e água boa,
nem tudo é mau, afinal,
não é o Douro, eu sei,
nem o Tejo de Lisboa,
são outros os horizontes,
falta o xisto e o granito,
as encostas e os montes,
mas diga-se, na verdade,
há o Carvalho, há o Rosa,
há um hino à amizade,
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira,
há o Farinha e o Polónia,
gestos e solidariedade,
há o Esteves e o Pinheiro,
amigos e sinceridade,
há o Nina e até amor,
também sofrimento e dor,
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.

Mampatá, 1974

As duas faces da verdade 

a outra face da verdade
é só
o outro lado da história,
é apenas
outra maneira de sentir,
é só
o reverso da medalha,
o outro ângulo,
outra maneira de ver,
e põe em causa
a minha razão,
mas terei nunca
vergonha
desta farda que me cobre,
quero sim é entender
a outra face da verdade.

Mampatá, 1974

Ao Albuquerque (#)

O teu sangue não manchou
só a terra onde caiste,
apagou o futuro e
os filhos que não terás,
causou dor
nos que te perderam,
despertou loucuras
em noites perdidas
a recordar-te,
o teu sangue vertido
marcará para sempre
bem fundo, dentro de nós,
prometo não mais chorar,
quero rir por ti,
quero viver por ti,
quero gritar ao mundo
como foi inútil o teu sacrifício,
assim nunca serás esquecido.

Mampatá, 1973



É tempo de regressar às minhas parras coloridas

e ver a água a gelar,
esquecer mágoas e feridas,
e a todos abraçar, 
olho por cima dos ombros,
vejo a mata, lembro Amadú,
e nem tudo são escombros,
há a ilha de Bolama,
há Susana, há Varela,
as ilhas de Bijagós
e a vida pode ser bela,
se nunca estivermos sós,
houve prazer e amor
em terras de Mampatá,
senti a raiva e a dor,
saudades do lado de lá,
a distância e tanto mar,
mas não há ódio ou rancor
e um dia... vou voltar.


Bissau, 1974
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Nota do autor:

(*) O Albuquerque era um soldado do 3º grupo de combate. A segunda baixa da nossa companhia em Abril de 1973. Vítima de uma mina antipessoal quando o seu grupo procedia à picagem na frente de trabalhos da estrada [Quebo-Salancaur] que a Engenharia estava a abrir. 

Todos os dias se fazia a picagem até à frente de trabalhos, foram detectadas dezenas de minas antipessoal e anticarro. Era um trabalho que aqueles homens faziam com muito rigor e segurança, e que correu bem até aquele dia. 

O Albuquerque era um jovem alegre, quase sem barba, ainda hoje o vejo na vespera de Natal de 1972 a tourear uma cabra entre os arames farpados de Mampatá. O furriel Vieira um dos furriéis do 3º. grupo assistiu também à cena pois já o ouvi num dos nossos encontros referir-se a ela.

(Seleção, revisão e fixação de texto: LG)
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Notas do editor:

(*) 25 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25442: No 25 de abril eu estava em... (33): No regresso de uma operação no mato, já no dia 26, com a malta (que tinha ficado no aquartelamento) a gritar, eufórica, no heliporto, à nossa espera: ""Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou"...A notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, rádio-amador na vida civil (José Manuel Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)

Guiné 61/74 - P25442: No 25 de abril eu estava em... (33): No regresso de uma operação no mato, já no dia 26, com a malta (que tinha ficado no aquartelamento) a gritar, eufórica, no heliporto, à nossa espera: "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou"... A notícia tinha sido escutada na BBC por um dos um militares, rádio-amador na vida civil (José Manuel Lopes, ex-fur mil, CART 6250/72, Mampatá, 1972/74)




Guiné > Região de Quínara > Buba > Julho de 1974 > A LDG carregada com o material da companhia, a CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74), a sair do cais de Buba, a caminho de Bissau, depois de terminada a comissão.


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Em quase todos os aquartelamentos do CTIG, houve a seguir ao 25 de Abril de 1974, entre maio e junho, tentativas mais ou menos bem sucedidas de aproximação do PAIGC às NT, com vista ao cessar-fogo, ao fim da guerra e à reconciliação (e vice-versa, das NT em relação ao PAIGC). Nesta foto, vemos o ex-fur mil José Manuel Lopes (o poeta Josema) com um guerrilheiro do PAIGC.  Mais difícil foi, de facto,  a aproximação entre o PAIGC e os militares e mlícias guineenses que estavam do lado das NT, como foi o caso dos Comandos Africanos.

Fotos (e legendas): © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 1. O José Manuel Lopes, o Josema (pseudónimo literário), o Zé Manel da Régua (terra da sua naturalidade), vitivinicultor (Quinta Senhora da Graça),  foi Fur Mil Inf Armas Pesadas.

É  uma figura, muito querida e popular, da nossa Tabanca Grande.

Soube do 25 de Abril, já no dia seguinte, quando vinha de uma operação no mato e viu um grupo  de camaradas da CART 6250/72,  à sua espera, no heliporto de Mampatá, agitadíssimos, muito eufóricos, a gritar "Meu furriel, a guerra acabou, a guerra acabou!" (*).

Como noutros lados, pela Guiné fora, a notícia tinha sido escutada na BBC, por um dos um militares, que na vida civil era rádio-amador.

2. Recorde-se que a sua  unidade esteve entre 1972 e 1974, sempre em Mampatá, subsector de Mampatá,  sector S2 (Aldeia Formosa).

A tropa vivia misturado com a população (maioritariamente, futa-fula, razão talvez por que nunca foram atacados). Não tinham artilharia, só mais tarde é que passaram a ter obus 14, que dava apoio às operações de segurança de construção da estrada Aldeia Fomorsa (Quebo)-Mampatá-Salancaur. Também aqui, em Salancaur, abriram um destacamento (arame farpado, valas e tendas).

O essencial da missão da companhia era fazer segurança aos trabalhos da nova estrada Aldeia Fomorsa (Quebo) - Mampatá - Salancaur, que ficou asfaltada antes do 25 de Abril... Tratava-se de uma obra que ia ao encontro da estratégia do Spínola, a da contra-penetração nas regiões libertadas do PAIGC. A obra parou com o 25 de Abril: o novo troço deveria ter uns 30 quilómetros.

Segundo a história que nos contou ao entrar para a Tabanca Grande (em 27 de fevereiro de 2008) (**)  , tinha sido inesperadamente mobilizado para a Guiné, já com 18 meses de tropa... Trabalhava numa empresa inglesa de vinhos (se não ero). Juntou se à malta da CART 6250, que era constituída por gente do interior/72 (do Alentejo, das Beiras, do norte)... A unidade mobilizadora foi o regimento de Vila Nova de Gaia.

Após realização da IAO, de 30jun72 a 26jul72, no CIM, em Bolama, seguiu em 29jul72 para Mampatá, a fim de efectuar o treino operacional e  a sobreposição com a CCaç 3326.  Em   Buba tiveram logo o baptismo de fogo.

Em 24ago72, assumiu a responsabilidade do referido subsector de Mampatá, ficando integrada no dipositivo e manobra do BCaç 3852 e depois do BCaç 4513/72, sendo orientada, inicialmente, para a segurança e protecção dos trabalhos da estrada Marnpatá-Buba e depois para a contrapenetração no corredor de Missirã, em conjugação com outras subunidades do sector. 

Em 10fev73, a CART 6250/72  destacou dois pelotões para Colibuia, no mesmo subsector, para construção do aquartelamento respectivo e execução dos trabalhos de reordenamento das populações.

Em 6set73, após substituição pela 2ª Comp/BCaç 4516/73, os pelotões recolheram à sede da subunidade, voltando, em 9nov73, a destacar um pelotão para Colibuia, a fim de integrar um destacamento, em conjunto com outro pelotão de outra subunidade, o qual substituíu a 3ª Comp/BCaç 4516/73, ali colocada do antecedente.

Em 22 e 23lu174, após ter sido substituída no subsector de Mampatá por forças do BCaç 4513/72, recolheu a Ilondé, a fim de aguardar o embarque de regresso.

 
3. Ele e a companhia dele seguiram os acontecimentos de Guileje em maio de 1973, e saíram de Mampatá para fazer segurança à CCAV 8530, restantes forças e população civil, que andaram perdidos, nesse perigoso campo de minas, que era todo o corredor de Guileje, montadas umas pelo PAIGC e outras pelas NT. 

Aliás, a sua CART 6250 foi uma das unidades que mais minas levantou, durante a guerra e no final da guerra; recorda-se que se pagava mil escudos por cada mina levantada...

Durante a sua comissão, ele próprio costumava andar com um lápis e um caderninho n0 bolso, onde nomeadamente ia escrevendo os seus poemas... Fez versos  que depois  eram acompanhados com músicas conhecidas da época, de autores contestatários como o Zeca Afonso. Chegou a fazer um poema por dia. A maioria foi destruída, já depois da "peluda"... Salvaram-se umas escassas dezenas, que fomos publicando na série "Poemário do José Manuel" (trinta postes, desde março de 2008: o último em  29 de setembro de 2009)...

Durante anos não falou da guerra colonial com ninguém... Teve conhecimento do nosso blogue, porque viu o programa Câmara Clara, da RTP Dois, a Paula Moura Pinheiro, edição de 24 de Fevereiro de 2004, que foi dedicado à literatura sobre a guerra colonial, e teve dois convidados em estúdio, os escritores Lídia Jorge (autor da Costa dos Murmúrios...) e Carlos Matos Gomes (que assina Carlos Vale Ferraz, o autor de Soldadó, Nó  Gordio, Geração  D).

Nessa edição, o fundador e editor deste blogue foi entrevistado; o nosso blogue foi amplamente divulgado; o programa passava também na RTP África e na RTP Internacional.

Ficou muito sensibilizado e até emocionado, e foi visitar o blogue de que passou a ser visita diária nessa altura...
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quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Desconhecia inteiramente a existência de Bissau como capital do distrito da Guiné em 1835. Rebusquei em autores da época, como Lopes de Lima, em historiadores como Veríssimo Serrão, nenhuma referência a Bissau capital, ainda por cima no ano seguinte ao fim da guerra civil. Mas os factos documentais comprovam a nomeação. Bastou-me ler a indispensável Memória de Honório Pereira Barreto que diz verdades com punhos, que fala de um governador que não governa, de uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de condições e a um quadro administrativo caótico, e tudo o mais que se recolhe neste artigo, acrescendo que Cacheu não se conformou com a criação da capital em Bissau e viveu-se no enigmático território guineense com dois distritos, o de Bissau e o de Cacheu durante cerca de 10 anos. Esta é a verdade dos factos, tenho que agradecer a Philip Havik a iluminação que trouxe para esta questão que era dada como inexistente.

Um abraço do
Mário



Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941

Mário Beja Santos

Até recentemente, dava como certo e seguro de que a Guiné portuguesa jamais tivera capital até ser desafetada de Cabo Verde, o que ocorreu em 1879. Ao longo dessa década resolvera-se a questão de Bolama, houvera o dramático desastre de Bolor, Lisboa tomou a decisão de dar autonomia a um território que não possuía fronteiras precisas, a Carta Constitucional não referia a Guiné, mas mencionava Cacheu e Bissau, porque havia o sobe e desce de Praças, Presídios e Feitorias. Num livro respeitante aos cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, um dos coordenadores, um investigador com créditos firmados, Philip J. Havik, assumiu que Bissau obtivera o estatuto de capital em 1835. Escrevi para o blogue um artigo “Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941?”, vasculhei em obras da época qualquer referência à capital, nada encontrei até que se me deparou um despacho do Visconde Sá da Bandeira datado de 29 de abril de 1858 referindo Bissau como a capital da Guiné portuguesa e residência do respetivo governador, erguendo a povoação à categoria de vila com a denominação de vila de Bissau.

Estava armada a confusão, e na altura desafiei um conjunto de investigadores a pronunciarem-se sobre a questão. Philip Havik respondeu, e do modo seguinte:
“As reformas feitas na sequência da revolução liberal em Portugal foram decididas de aplicar a reorganização administrativa por decreto de 16 de maio de 1832 à Guiné em 1834, criando uma Prefeitura de Cabo Verde e a Guiné. Por conseguinte, o distrito da Guiné transformou-se numa comarca, ainda dependente de Cabo Verde, com a sua sede em Bissau, governado por um Subprefeito. Isto foi feito através do decreto de 30 de agosto de 1835. Bissau serviu como capital da Guiné até que se tornou uma província independente com um governo autónomo em 1879, com capital em Bolama através da lei de 18 de março de 1879.”

E o investigador recomendava referências na obra de João Barreto, A História da Guiné (1418-1918), Lisboa, 1938, e no artigo de Arnaldo Brasão, A Vida Administrativa da Colónia da Guiné, publicado no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, volume II, n.º 7, 1947. Não posso esconder a minha surpresa, eu tinha lido a importante obra de Lopes de Lima, de 1844, e não se mencionava qualquer capital em Bissau. Um artigo publicado por Teixeira da Mota e Fausto Duarte sobre as efemérides da Guiné portuguesa referia a criação da comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, mas nada se mencionava sobre a capital, uma comarca é só reorganização administrativa, vinha na sequência do ambicioso projeto de Mouzinho da Silveira de alterar em profundidade a administração do território, gerando municípios, comarcas e entidades apropriadas da administração, desde a justiça à atividade aduaneira. Lendo a História de Portugal de Veríssimo Serrão, encontrei a referência à criação do lugar do governador da Guiné, com residência em Bissau.

Impunha-se, pois, apurar a densidade e a operacionalidade desta capital de que desconhecia qualquer referência. Procurei um verdadeiro tira-teimas, Honório Pereira Barreto e a sua Memória sobre o estado atual da Senegâmbia portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar, Lisboa, 1843. Lendo este importantíssimo texto, constata-se que o território desta Senegâmbia tinha uma dimensão fluida, a presença portuguesa era submetida a uma permanente hostilidade e os recursos escassíssimos, como Barreto logo abre a sua introdução: “Se nesta província houvesse um Boletim de Governo aonde se estampasse os ofícios e relatórios das diversas autoridades, não me veria obrigado a escrever esta Memória, cuja matéria é tão superior a minhas forças; porque então apareceria em público o verdadeiro estado destas Possessões.” É um discurso sempre franco, duro e doloroso: “Vive-se em Senegâmbia portuguesa sem segurança alguma; a todos os momentos seus habitantes são vexados pelo gentio, fere-se e assassina-se impunemente, e em Lisboa lê-se no Diário do Governo que as Possessões Portuguesa, nesta parte, estão em ordem, e vão florescendo.”

E a sua narrativa não esconde a inexistência de poder político, da vida das instituições, enfim, o caos reina por toda a parte: “Desgraçadamente se pode dizer que nestas Possessões há um governador e comandante; mas que não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o primeiro até ao último, ignoram quais são as suas atribuições, e, por consequência, quais são os seus deveres: só tratam de seus negócios, pois são negociantes. Não há lei administrativa (nem outra) que vigore, e por isso é suprida pela vontade dos governadores. A vontade deles faz a lei; o capricho executa; as paixões julgam; os rogos dos Gentios, dos amigos fazem minorar, e perdoar as penas.”

É facto que falando do concelho de Bissau, Barreto dirá que é composto da Praça de Bissau, capital do governo, do presídio de Geba, do ponto de Fá, da ilha de Bolama e do Ilhéu do Rei. E apresenta Bissau deste modo: “É uma Praça situada na ilha deste nome, e construída segundo o sistema de Vauban; mas não foi acabada. Não tem obras algumas exteriores, à exceção dos fossos já quase entulhados, e aonde se planta algodão, milho e índigo. O quarto da tropa está quase a cair, e por isso a maior parte dos soldados moram em palhosas; o indecente quartel dos oficiais aonde chove como na rua; o arruinado armazém do governo; e a pequena e destelhada capela com invocação de S. José, que é o orago da praça. O governador mora no quartel dos oficiais em uns quartos pequenos e ridículos.” Há, pois, uma capital do distrito da Guiné portuguesa, da Guiné não se conhece bem a configuração e a importância da capital é dada pelo governador que anda a comprar parcelas do território de diferentes régulos, e em todas as direções. É vila, por despacho do Visconde Sá da Bandeira, será cidade em 1914 e terá mesmo o seu primeiro plano de urbanização concebido pelo engenheiro Guedes Quinhones; o governador Vellez Caroço dar-lhe-á em 1923 o seu primeiro foral.

Philip Havik refere João Barreto e Arnaldo Brasão. Para mim, continua a ser um mistério a data de 1835. João Barreto refere que em 1851 o Governador-geral de Cabo Verde, Fortunato José Barreiros, tomara a iniciativa de unificar o governo da Guiné fixando a sua sede na vila de Bissau e escreve que a partir de 1852 deixou de existir o governo autónomo de Cacheu, passando a existir um distrito único com sede em Bissau. Alegou o governador ter tomado esta resolução para dar unidade à ação governativa. Era nomeado interinamente governador da costa da Guiné (já ouvimos falar de Possessões, de Senegâmbia e de Guiné portuguesa…) o Tenente-Coronel Alois Dziezaski com algumas competências do governador-geral. Bissau é capital do Distrito da Guiné portuguesa.

Arnaldo Brasão, no seu artigo, chama a atenção para a Guiné constituída como uma unidade administrativa, em 1834, com atribuições conferidas por legislação de 1835, referindo igualmente o papel do governador, a quem ficavam sujeitos todos os serviços públicos. “Os governos inferiores, presídios, estabelecimentos marítimos ou do interior, formavam governos subalternos que se regulavam pelo que estava determinado para o governo das praças do reino.”

As lutas entre absolutistas e liberais refletiram-se nas colónias, e adianta Arnaldo Brasão: “Cacheu, que fora o primeiro núcleo de colonização e de povoamento não poderia conformar-se com uma situação de subalternidade em relação a Bissau, que passar a ser a capital desde 1835, e por isso solicitou a sua separação que o governo cartista se apressou a satisfazer em março de 1842, passando desde então o território guineense a ser constituído por dois distritos, mas subordinados ainda ao governo de Cabo-Verde. Esta situação durou perto de 10 anos, porque em setembro de 1851 procede-se à unificação administrativa, sendo escolhido novamente Bissau para sede do governo.”

Considero totalmente corretas as observações expendidas pelo investigador Philip J. Havik, em 1835 Bissau tornou-se a capital de distrito de um território com dimensões indefinidas e dentro de um quadro que um lídimo protagonista da época, Honório Pereira Barreto, mostrou que se tratava de uma capital de ficção. Um governador sem governo, uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de comodidades e cercada por populações hostis.

Dou como esclarecida a existência de uma capital de ficção, numa província de ficção, que passou a uma realidade depois do sobressalto de Bolama e com contornes definidos depois de a França nos ter subtraído o Casamansa, as fronteiras ficaram parcialmente definidas em 12 de maio de 1886, o governador da Guiné terá a sua capital em Bolama.


Monumento a Honório Pereira Barreto, em Bissau, em tempos coloniais
O que resta da Bolama dos tempos áureos
Um pormenor da fortaleza de S. José da Amura na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25424: In Memoriam (503): Agradecimento a René Pélissier (1935-2024) que ao blogue é devido; paraninfo a um devotado historiador (Mário Beja Santos)

Fotografia oferecida por René Pélissier ao blogue, o historiador está na sua biblioteca em Orgeval, França


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Dito cabalmente por quem agora nos deixou, a única vez que este notável historiador colaborou com um blogue, foi connosco, ofereceu-nos uma meditada reflexão sobre a dimensão caleidoscópica sobre a literatura da guerra colonial. E jamais esqueci a observação que ele me fez, em jeito de admiração, quanto à singularidade dos nossos encontros de veteranos, para ele era a prova provada de que as tribulações da guerra jamais se apagam, a elas se volta nesses encontros de partilha, foi nesse convívio que diariamente todos arriscaram a vida, o encontro, segundo ele, tão mais do que a recordação dos que partiram era a lição ao vivo de quanto pesa a solidariedade e a camaradagem.

Um abraço do
Mário



Agradecimento a René Pélissier que ao blogue é devido; paraninfo a um devotado historiador

Mário Beja Santos

Acaso ou destino, no exato momento em que tive a infausta notícia do falecimento daquele que terá sido o historiador francês que mais se dedicou a investigar o império português, fundamentalmente do século XIX aos tempos da descolonização, folheava na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa o Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa de Guiné, a décadas que vão de 1840 a 1860, o início do trabalho de Pélissier na sua História da Guiné. É chocante o contraste entre a documentação oficial e a realidade que se vivia naquele momento no enclave português daquele ponto da costa ocidental africana, a França a procurar “despejar” a presença portuguesa das margens do Casamansa e os britânicos a querem apossar-se do Rio Grande de Bolola e de Bolama, dava-lhes jeito em termos de feitorias até à Serra Leoa.

Pélissier desvela o tráfico de escravos quase oficial, as sublevações de Bissau que exigiram a implantação de tropas preparadas naquela que vai ser a capital da colónia, mas aonde os Grumetes não dão descanso ao Governador da Praça. Isto para dizer ao leitor que Pélissier nos prestou um grande serviço tratando de forma rigorosa e verosímil a nossa presença, naquele também bastante circunscrita aos rios e rias da faixa litoral, as menções a Gabu só serão conhecidas em meados do século XIX.

Há um texto do notável historiador no nosso blogue, uma importante apreciação da literatura saída do punho dos militares, convido os confrades a relê-la, continua atual.[1]
Pélissier andava sempre a bater à porta das editoras pedindo-lhe livros não só referentes à literatura da guerra colonial como historiografia vária. No princípio do século ele só tinha sido publicado na Editorial Estampa: "História das Campanhas de Angola", "História de Moçambique" e esta "História da Guiné" circunscrita ao período de 1841 a 1936 (como se tivesse desenhado um arco histórico entre o término formal da abolição da escravatura e a pacificação de Canhabaque), conheceu edições posteriores ligadas à Faculdade de Letras do Porto. Era colaborador assíduo de publicações científicas.

Não me cabe fazer a laude do cientista, é trabalho para historiador avisado, que eu não sou. Mas sinto-me agradecido a Pélissier, ele distinguiu o nosso blogue, não se sentia animado a participar nas redes sociais, enviou-me cartas manuscritas e exigiu rever o que dele procurei adaptar. Há um aspeto para mim muito tocante da leitura que ele fazia da literatura da guerra e que se prende com os encontros regulares dos veteranos. Ele não escondia o seu assombro, a sua leitura, disse-me numa carta, passava por aquela camaradagem e solidariedade comuns que se prendia com as condições precárias, a tensão permanente e os medos partilhados. Tratava-se de um património que marca a existência até ao fim dos dias. Esses tais encontros podiam ser assumidos como um hino à vida, depois de tanta devastação e companhia do horror e das tribulações do quotidiano, tivesse a vida tido os êxitos que teve na existência de cada um, nada demais exaltante que estar um dia por ano com quem nos acompanhou naquele que terá sido o acompanhamento mais importante da vida de cada um. Agradeço esta lembrança a este historiador francófono cuja imponente biblioteca veio para Portugal.

René Pélissier (à direita), quando distinguido pela Universidade de Lisboa como Doutor Honoris Causa, 2022[2]

Obras de René Pélissier sobre a Guiné colonial
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Notas do editor:

[1] - Vd. posts de:

26 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11159: Bibliografia de uma guerra (67): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (1) (René Pélissier / Mário Beja Santos)
e
28 DE FEVEREIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11173: Bibliografia de uma guerra (68): Alguns comentários sobre a guerra na Guiné e a sua literatura (2) (René Pélissier / Mário Beja Santos)

[2] - Vd. post de 7 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23150: A Universidade de Lisboa, sob proposta da Faculdade de Letras, atribuiu o grau de Doutor Honoris Causa a René Pélissier como reconhecimento de mérito Académico, Científico e Profissional na área da História de Portugal

Vd. post anterior de 19 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25413: In Memoriam (502): Historiador René Pélissier (1935-2024), que dedicou vasta obra literária às antigas possessões portuguesas em África