segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1114: Pensamento do dia (8): Matar ou morrer ? ... Morrer, não, que não tenho tempo! (Joaquim Mexia Alves)



Os emblemas das três unidades por onde passou, de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, o nosso camarada Joaquim Mexias Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, que pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ).

Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Mensagem do Joaquim Mexia Alves , de 18 de Setembro último:

Caro Luis Graça

Ao ler o último post escrito pelo Mário Beja Santos (1), chego à conclusão que apesar de tudo o tal emblema [com a ínsígnia Matar ou Morrer] vingou, porque quando eu cheguei ao [Pel Caç Nat] 52, era esse emblema que se usava.

Lembro-me que o achei mauzinho e até um pouco incomodativo, mas não sabendo a génese da coisa achei por bem deixar ficar o que já estava.

Lembro-me ainda de ter ironizado com a frase e de ter dito qualquer coisa como:
- Matar ainda vá que não vá, para me defender, mas morrer... não tenho tempo!!!

Enfim, pensamentos da época!!!

Já tens esse emblema, que te mandei há tempos numa mensagem, bem como o da CART 3492 [Xitole] e CCAÇ 15 [Mansoa] [vd fotso acima].

Abraço do
Joaquim Mexia Alves

__________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

(...) "Em meados do mês de Agosto, regressávamos do abastecimento em Bambadinca quando o Saiegh me mostrou triunfante, enquanto esperávamos a piroga, as insígnias em plástico que ele concebera para o Pel Caç Nat 52: era uma coisa assim apiratada com caveira e tíbias, um verde fluorescente e a frase "Matar ou Morrer". O meu olhar gelou e o Saiegh não resistiu a dizer-me: - Já vi que não gosta. Será por a iniciativa ser minha?" (...)

Guiné 63/74 - P1113: Notas de leitura (1): Dez razões para ler 'Em tempos de inocência', diário do Embaixador A. Pinto da França (Beja Santos)

Recensão bibliográfica do livro Em tempos de Inocência – Um Diário da Guiné-Bissau, de António Pinto da França. Lisboa: Prefácio, 2005.192 pp. (Prefácio de Francisco Seixas da Costa).


Em tempos de inocência

por Beja Santos


De 1977 a 1979, António Pinto da França (1) foi embaixador de Portugal acreditado na Guiné-Bissau. Ele regista em forma de diário estes primeiros anos da independência, descrevendo com simplicidade e por vezes uma atmosfera quase mágica a vida da Embaixada, os membros do corpo diplomático, as compras, os passeios, os encontros, os ambientes múltiplos, alguns momentos históricos. Há pitoresco, desabafo íntimo, melancolia, registo meticuloso daquilo que não mudou no tempo africano.

"Em Tempos de Inocência, um diário da Guiné-Bissau", por António Pinto da França (Lisboa, Prefácio, 2005) é uma obra de indiscutível interesse para conhecer os tempos ingénuos e tumultuosos que se seguiram à nossa passagem na guerra colonial. Um diário que tem total cabimento ser conhecido por todos. Como vou procurar demonstrar.

Primeiro, a saborosa observação do quotidiano íntimo, anotando ambiguidades, vaidades de políticos e diplomatas, cooperantes idiotas, populações aderentes à independência do País e ao amor a Portugal. Naquele tempo Bissau era uma cidade limpa, com a sua atmosfera extravagante dada pelos sons, as cores das gentes, o fervilhar de um cosmopolitismo pobre mas divertido.

Segundo, as notas sobre a classe política têm uma importância primordial, registando o poder mestiço de gente muitas vezes proprietária e convicta de mudanças prodigiosas em curto espaço de tempo.

Terceiro, a compreensão do grande vulto que foi Amílcar Cabral.

Quarto, a crítica poderosa à incompreensão dos diplomatas acreditados sobre a realidade da Guiné-Bissau.

Quinto, uma água-forte da cooperação portuguesa, dividida entre a dedicação pura, os interesses materiais e os partidários.

Sexto, um registo do espaço e do lugar que certamente os historiadores irão um dia a visitar. Oiçamo-lo a falar das suas visitas por Bissau nas compras: "Hoje, não tem papel higiénico, mas tem, por uma pechincha, uma travessa de prata alemã, miragem impossível em Lisboa. Ontem não tem pasta de dentes, mas está ali a Enciclopédia do Humor português esgotado em Portugal. Anteontem, não tem cola, mas encontra-se por acaso um motor para a central da Embaixada que, há semanas, se pede inutilmente ao Ministério, ou um álbum para fotografias que há meses aguardo ansioso de Nova Iorque... Nas lojas, paira no ar, não sei porquê, um cheiro asiático a especiarias. As mercas saem poeirentas de recantos insuspeitos e assalta-me a sensação de um mundo escondido inacessível e uma saudade como daquelas coisas que se finam e não voltarão jamais".

Sétimo, lança um olhar feliz e comprometido sobre a cimeira de Bissau, que reuniu Ramalho Eanes e Agostinho Neto e depois a visita oficial de Ramalho Eanes ao país.

Oitavo, sente-se o prazer pela comunicação escrita, a vontade irreprimível de por no papel aquilo que não cabe na viva voz. Assim: "Gosto cada vez mais de escrever e menos de conversar. No papel as ideias alinham-se serenas, direitinhas, e as palavras encadeiam-se escolhidas, apropriadas umas às outras. Enquanto se escreve nada nos distrai de nós próprios e descobrimos, de repente, que uma charada nossa, por longo tempo indecifrável, surge no papel resolvida, clara e evidente. A palavra, a conversa, é sempre desde o início um duelo. Mais que chegar a uma conclusão, importa marcar pontos no jogo do diálogo. As ideias entram no jogo e vão traindo a fonte, para se ajustarem ao fim primordial de se sobreporem às palavras dos outros".

Nono, o registo daquela direcção do PAIGC, que depois se veio a descobrir que depositava os seus adversários na vala comum e que escondia irresponsavelmente a questão fundamental do contencioso Guiné/Cabo Verde pela presença portuguesa. Obviamente que o pensamento de Amílcar Cabral ainda era omnipresente e a nova classe política apercebeu-se do significado de falar português e de cultivar memórias como enclave no meio da cultura francesa.

Décimo, o orgulho pela obra feita, o Centro Cultural Português, inaugurado durante a visita de Estado, em Fevereiro de 79 (2).

Ao despedir-se do leitor, Pinto da França diz-nos: "Achei emocionante ser testemunha dos primeiros passos de um novo país em condições tão desastrosas. Por vezes tive a sensação de assistir a um parto dramático... Vai comigo uma suave recordação do povo guineense, da sua nobreza, da sua afabilidade, da sua hospitalidade, da sua sensibilidade da sua resignação ao sofrimento, da sua inocência. Ensinaram-me algumas coisas importantes".

A História, com efeito, preparava-se para um grande salto. Em breve a Guiné vai conhecer mais esperanças e novos sofrimentos. Mas isso será a História para outro diário de embaixador...

__________

Nota de L.G.

(1) Segundo a Lusa (9 de Março de 2006), António Pinto da França iniciou a sua carreira diplomática em Jacarta, Indonésia, como Encarregado de Negócios (1965-1970), tendo depois passado pela Embaixada da Delegação Portuguesa junto do Conselho da NATO, em Bruxelas. Foi na Guiné-Bissau que, pela primeira vez, exerceu funções de embaixador de Portugal. Angola, Alemanha, Santa Sé e Malta foram outras representações diplomáticas portuguesas que chefiou posteriormente.

(2) Informação constante do sítio do Instituto Camões: Abertura: 1994. Responsável: Frederico Silva . Localização: Av. Cidade de Lisboa, CP 76, Bissau. Tel +245 203 395 / 212 741; fax +245 201514; e-mail: ica.ccpbissau@sapo.pt

De entre as obras já publicadas pelo Centro Cultural Português, cite-se a título de exemplo o livro Poemas, de Artur Augusto da Silva (Bissau, Centro Cultural Português, 1997, 77 pp.). O autor, já falecido, era o pai do nosso amigo, camarada e irmão Pepito (ou Carlos Schwarz). Artur Augusto da Silva é também autor do delicioso livro de contos O Cativeiro dos Bichos (Bissau, 2006): vd. posts de

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)

Guiné 63/74 - P1112: Os mortos do Talhão do Ministério do Exército: o caso do Agostinho, da CCAÇ 4150, Guidaje (Albano Costa)


Excerto da carta enviada pelo ex-capitão miliciano Armando Figueiras ao Albano Costa, em 7 de Maio de 2006 sobre os restos mortais do soldado Manuel Agostinho Mendonça Oliveira, da CCAÇ 4150 (Guidaje, 1973/74).

Imagem gentilmente cedida pelo Albano Costa (2006)



Guiné > Região de Cacheu > Guidage > CCAÇ 4150 (1973/74) > Vista panorâmica do quartel de Guidage. Dezembro de 1973

Foto: © Albano Costa (2005)


Texto Albano Costa (ex-1º cabo da CCAÇ 4150, Guidage, 1973/74):

Caro Luís Graça

Sobre a reportagem [da RTP1] dos mortos que ficaram na Guiné, eu sempre o soube... Aliás em Guidage, zona aonde eu cumpri parte do meu serviço militar, foi com uma certa tristeza que, quando viemos embora de Guidage, eu tinha a consciência que lá tinham ficado colegas nossos que foram obrigados a ir para a guerra e que o nosso Estado não se achou com a obrigação de os devolver às famílias. Isso, todos os governos antes e depois do 25 de Abril devem assumir que falharam e muito, porque não venham dizer agora que não têm dinheiro, ou que é muito difícil. Não, não era, porque nós ficámos sempre com muitas boas relações com o povo guineense.

Faço, pois, um alerta ao actual e futuros governos: tragam os nosso mortos para as suas terras, e entreguem às suas famílias.

Mas eu já nada me surpreende!... Fomos carne para canhão, e salve-se quem puder, foi o lema do regime da altura. E esta democracia, o lema foi e é sempre, não é nada com nós, eles (os familiares) que resolvam!...

Agora vou contar como foi o tratamento que o Estado deu ao colega da minha companhia [CCAÇ 4150] que morreu em Guidajge: fez-se o funeral, um funeral digno, de Guidage para Bissau, e julgando que ele iria continuar a ter um funeral digno até ser entregue aos seus familiares, para minha tristeza venho a saber, ao fim de quase trinta anos (!), que o enviaram para Portugal e aí sepultaram-no no cemitério do Lumiar, em Lisboa - Sepultura nº14, do Talhão do Ministério do Exército.

Eu aí contactei o ex-capitão da minha companhia, que ficou admirado, e entrou em contacto com a familia. Os familiares também ficaram admirados, já que na altura foram informados que o corpo tinha ficado sepultado em Bissau. Por sua vez, os pais faleceram com a mágoa de não ter o filho por perto... Por isso, hoje nada me surpreende.

Envio parte da carta (1) da conversa tida pelo meu ex-capitão com os familiares, para que fique resistado para a história. Realmente é preciso que não se deixe que os historiadores amanhã queiram fazer a história à maneira deles.

Um abraço,
Albano Costa
____________

Nota de L.G.:
(1) Transcrição do excerto da carta, reproduzida acima, da autoria de Armando Figueiras:
Faro, 07.05.06

Caro Albano:

Espero que esteja tudo bem contigo e teus familiares.

Pois bem, sobre aquela informação que me deste sobre o Manuel Agostinho Oliveira Mendonça, consegui por intermédio da C.M. de V. Pouca de Aguiar o nº de telemóvel do Presidente da Junta de Freguesia de Soutelo de Matos, de onde ele era natural. Foi muito simpático e receptivo. Falámos um pouco.

Escrevi depois a um dos irmãos dele que vive ainda na freguesia, e mais tarde a esposa telefonou. São pessoas muito humildes, trabalhadoras. Disse-me que os pais já faleceram, mas disseram-lhes na altura que os restos mortais tinham ficado em Bissau.

O Agostinho tem 2 irmãos que vivem no Porto e mais um irmão que está em França. Não manifestaram interesse em que os restos mortais fossem transladados para a freguesia, e eu compreendo, já passaram 32 anos, e os pais em vida não tinham meios nem conhecimentos para tratar do assunto. Os pais, pelo que a cunhada do Agostinho me disse, nunca recusaram o corpo, e sofreram muito por não poderem tê-lo perto deles.
(...)

domingo, 24 de setembro de 2006

Guiné 63/74: P1111: A primeira mina, os primeiros suores (Joaquim Mexia Alves)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > CART 3492 (1972/74) > 1972 > O Alf Mil Mexia Alves ostentando o seu ronco, a primeira mina que levantou na estrada Bambadinca-Xitole. O Mexia Alves era de operações especiais e esteva na Guiné, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973: pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ).

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)

Caro Luis Graça:

No início da nossa estadia no Xitole e salvo o erro, logo na primeira coluna vinda de Bambadinca à qual a nossa Companhia montou segurança, calhou-me, a mim, e ao meu pelotão, como não podia deixar de ser, o ponto mais afastado do Xitole para montar segurança à dita cuja.

Se bem me lembro era junto a um pequeno pontão, pois a partir daí era terreno da Companhia de Mansambo [, a CART 3493, 1972/73].

Aí chegados enquanto colocava o pessoal na mata, os guias e picadores foram picando a estrada junto ao pontão e chamaram-me porque detectaram uma mina.

As penas de periquito ainda esvoaçavam por todo o lado e, cheio de sangue na guelra, decidi levantar a mina.

Mandei afastar os que estavam mais perto e lançei-me ao trabalho, não me lembrando agora se tive alguma ajuda no início.

Depois de escavar a coisa,passou-se à parte mais dificil que era desarmar o detonador, para depois, pelo sim pelo não, puxar a dita mina com uma corda, não fosse o diabo tecê-las.

A mim pareceu-me que tudo isto demorou uma eternidade, mas segundo me disseram até foi rápido. Sei que suei rios de água e não era por causa do calor.

Lembro-me de pensar em desistir a meio e rebentar com aquilo, mas o orgulho e o pensar o que é que o pessoal vai dizer, levaram-me a continuar e acabar o trabalho.

Ao que sei, foi a primeira mina levantada no Batalhão [BART 3873, Bambadinca,1972/1974).

Na minha fraca memória, vem-me à ideia que deixámos uma qualquer mensagem de ronco no sítio da mina. Enfim, gabarolices.

Diziam que pagavam não sei o quê pelas minas levantadas, mas não me lembro de ter recebido nada.

Mais tarde e já no Pel Caç Nat 52, com o clima e outras coisas, cometia a rematada estupidez louca de ir pisando o caminho à frente do Pelotão, o que os soldados africanos muito apreciavam, só me valendo o facto de Deus nunca estar distraído.

Envio prova fotografica do feliz evento, chamando a atenção para a qualidade da revelação da fotografia, feita num estúdio de um qualquer curioso militar no Xitole, de qual não lembro a identificação.

Abraço do
Joaquim Mexia Alves

sábado, 23 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim


Guiné > Região do Oio > Guiné > Região do Oio > Mansaba > CART 2732 (Mansabá, 1970/72) > 3.º Pelotão, Secção do Fur Mil Vinhal (primeira fila, à direita, ladeado pelo seu amigo Ornelas). Embora mais velhos, os madeirenses estavam afectos ao COP 6 (Mansabá), e cruzaram-se em operações com os açorianos da CCAÇ 2753, a que pertencia o Alf Mil Vitor Junqueira.

Foto: © Carlos Vinhal (2006)


Post do Vitor Junqueira, ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72). Hoje é médico e vive no Pombal. Infelizmente ainda não temos nenhuma foto deste nosso estimado camarada (1).


Camarada e amigo Luís Graça,

Num simpático email teu que recebi há dias, falavas da possibilidade de a minha Companhia (a açoriana CCAÇ 2753) e a do Carlos Vinhal (a madeirense CART 2732) (2), se terem cruzado algures na região de Farim. É verdade, só que eles atingiram a veterania muito primeiro do que nós, mas ainda fizemos algumas operações em conjunto com outras forças.

Como aqui há uns tempos, alguém do nosso grupo de amigos disse que não havia muita informação sobre esta zona e as unidades que por lá passaram, e querendo enviar um sinal de grande apreço e respeito àqueles que em qualquer ponto da Guiné, com ou sem armas, voluntariamente ou por imposição, cumpriram com o que na altura... teve de ser (!), a todos dedico este pedaço de prosa. Sem pretensões, mas em todo o caso na expectativa de conseguir reavivar as emoções fortes, porventura traumáticas para alguns, de uma guerra que nos foi imposta quando tínhamos vinte e poucos anos. Podemos hoje, assim o espero, vivenciá-las com a tranquilidade que a idade, a paz e o tempo passado nos concedem.

Peguei num pequeno relato que anteriormente tinha feito circular pela tertúlia (1), editei-o e acrescentei umas coisas. Procurei fazer coincidir datas, factos e até nomes com a realidade. Ficou um bocado longo... se calhar maçador. Podes passá-lo ao news group?

Conto poder estar no encontro da Ameira [dia 14 de Outubro próximo].

Um abraço,
Vitor Junqueira


Um dia no mato, na região de Farim

Texto dedicado a todos os camaradas tertulianos
com um abraço do
Vitor Junqueira

Guiné, Fevereiro de 1971.

Estamos quase lá...

A nossa Companhia era uma das Unidades que compunham o COP 6, cujo comando estava sediado em Mansabá. Fazia parte do Agrupamento T tendo-lhe sido atribuída a missão a seguinte missão - passo a transcrever dos registos oficiais (História da Unidade e Feitos e Factos da CCAÇ 2753):

Assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá – Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados. Na segurança dos trabalhos, as forças adoptam o dispositivo com as seguintes missões:

- Montam a segurança próxima dos trabalhos em ordem a garantir a interdição de itinerários de aproximação, eliminando a possibilidade do IN exercer acções de flagelação sobre a zona dos trabalhos, para o que monta emboscadas nas possíveis bases de fogos e executam patrulhamentos na ZA atribuída;

- Garantem a segurança imediata dos trabalhadores e equipamentos, detectando ou aniquilando quaisquer elementos IN infiltrados através do dispositivo próximo, para o que realiza patrulhamentos frequentes nas imediações da zona de trabalhos e ocupa posições sobre os eixos da mais possível infiltração;

- Realizam acções ofensivas sobre as áreas fulcrais do Morés, Canjaja e Biribão em ordem a anular a pressão do IN sobre o eixo Mansabá – Farim
.

Havia anos que nenhuma força militar portuguesa tivera condições para se movimentar naquele itinerário a partir de, e para norte de Mansabá até ao K3 [antiga Saliquinhedim].

A região estava agora a ser (re)conquistada diariamente, palmo a palmo, metro a metro. Por sua vez, o IN tentava a todo o custo impedir ou retardar o avanço dos trabalhos, pois aquela era uma via que, uma vez interditada às NT, se tornara estratégica para o desenvolvimento das suas acções. Nela desaguavam os corredores do Sitató e Lamel, através dos quais as forças do PAIGC dispunham de uma ligação fácil e rápida entre as suas bases junto à fronteira sul do Senegal e o coração da Guiné (Oio, Morés e região dos Sares). Movimentação de tropas e operações de natureza logística por parte do IN decorreram com toda a facilidade e segurança ao longo deste eixo numa base praticamente diária, durante anos.


O impressionante dispositivo das NT afecto à segurança da construção da estrada Mansabá-Farim

Até que alguém decidiu que aquela via tinha de ser recuperada. Para esse efeito é então criado um importante dispositivo, notável pelo significativo conjunto de meios envolvidos e, a meu ver, pelo enorme sucesso alcançado face aos objectivos atrás enunciados. Penso que é uma fase pouco conhecida da guerra da Guiné à qual nunca foi dado o devido relevo político-militar.

Constituído pelos Agrupamentos F1 e T do COP 6 (Comando Operacional Nº 6 – Mansabá) envolvia no seu conjunto forças das seguintes unidades:

CART 2732 (bém conhecida como a Companhia dos Madeirenses do nosso amigo e camarada Carlos Vinhal)(2)
CCP 121
CCP 122
Esq Rec AML 2641
27.ª CComds
CCAV 1/ 286.º Pel Milícia
1 Pel Art 8,8
1 Pel Art 14
1 Pel Art 10,5
3 Sec Mort 81
1 Sec Sapadores
1 Dest Engenharia
Pelotão de Milícia 253
57.º Pel Caç Nat
CCAÇ 2549 / Pel Milícia 282

E bem cá no fundo, mas apenas por modéstia (!), a Companhia dos Açorianos, CCAÇ 2753 da qual esta praça fazia parte ...


Baptismo de fogo em Bironque

A primeira aproximação que tivemos com a guerra a sério e àquilo que iria ser o nosso estilo de vida nos meses vindouros, ocorreu a partir de um ponto localizado no mapa entre Mansabá e o K3, onde antes da guerra existira uma pequena povoação, chamada Bironque.

Para o Destacamento Temporário do Bironque segue em 1 de Dezembro de 1970 um GC da CCAÇ 2753, tendo os restantes chegado a intervalos de uma semana ficando a operação concluída em 21 de Dezembro de 1970. Com a chegada da CCAÇ 2753, a CCAÇ 17 retirou!

Algum tempo antes, tinha havido uma espécie de motim com cenas de tiros entre os oficiais e sargentos daquela Companhia e os seus elementos nativos, de etnia maioritariamente manjaca. Estes, fartos de bordoada, recusaram-se a sair para o mato, alegando que a terem de levar porrada forte e feia, preferiam apanhá-la defendendo o seu Chão. O general Spínola resolveu o contencioso através de umas despromoções e da transferência da Companhia para Bula.

De Bissau, avançam os Barões da CCAÇ 2753 até então afecta ao COMBIS como força de reserva. Passam assim da noite para o dia de uma espécie de tropa VIP, bem alojada, bem alimentada, bem montada (vários jipes!) e com tarefas aligeiradas, ao grau mais elementar de tropa arre-macho.

Cheirando ainda a periquito, sem qualquer treino operacional, não tendo beneficiado de rodagem por sobreposição com tropas mais experientes, vêem-se entregues à bicharada, obrigados a aprender à sua custa os rudimentos da arte de safar o próprio coiro. Certo é que vieram a provar ser dignos do lema que orgulhosamente ostentavam nos crachats Noblessse Oblige!

Na minha memória preservo ainda em imagens technicolor as principais cenas do meu primeiro dia de mato.

Tínhamos partido de Bissau muito cedo em coluna militar, com armas e bagagens. Arribámos ao Bironque seriam par aí umas dez da manhã. Enquanto alguns dos recém chegados descarregavam para o meio do nada os caixotes com as batatas e cebolas por entre os quais se escapuliam ratazanas que, ninguém sabe como, tinham apanhado boleia, já outros desfechavam os dentes preparando-se para alinhar nas diversas tarefas para que estavam escalados. O cacimbo pesado da madrugada dera lugar a uma manhã linda, luminosa. O silêncio e a paisagem, magnífica, eram avassaladores!

Com um pé apoiado sobre um cunhete de munições e um púcaro de aço inox na mão de onde ia sorvendo uma mistela (nunca gramei leite em pó nem café de cevada), contemplava aquele paraíso quando de repente...

Parecia o fim do mundo! Não vou poupar em adjectivos. Grandioso, empolgante e... aterrador, nem em imaginação conseguiria conjecturar um tal espectáculo. À distância de um quilómetro ou dois do acampamento, irrompe um fogachal tão intenso que até os passarinhos das redondezas levantaram voo procurando refúgio noutras paragens. O ruído das explosões acompanhado pelo matraquear das armas ligeiras e aqueles balões de fumo negro no ar, ofereceram-me o primeiro vislumbre, uma espécie de iniciação visual e auditiva, música e letra de um fado a que teria de me habituar! Naquela manhã a rifa premiada tinha calhado a um GComb dos madeirenses.

Por aqui, as escaramuças eram frequentes. Durante o dia, emboscadas às forças empenhadas na segurança próxima e imediata e flagelações sobre a frente de trabalhos, com baixas entre operários e danos nas máquinas, após o pôr-do-sol, invariavelmente pela hora do jantar, era preciso estar atento ao som inconfundível das saídas dos CSR, MORT 82 e RPG que, vindo do interior da mata adjacente, anunciava uma saraivada de balas e estilhaços a rasgar o céu por cima do improvisado aquartelamento.


Transferência para Madina Fula

Acompanhando a progressão dos trabalhos, a Companhia transfere-se com toda a traquitana em 13 de Janeiro de 1971 para um novo Destacamento mais a norte, na zona de Madina Fula, a uns 8 Km de Farim. Nestes Destacamentos Temporários não existia qualquer construção ou barraca, apenas algumas tendas de lona, insuportáveis durante o dia devido ao calor. À noite não ofereciam a quem estivesse no seu interior qualquer protecção contra a chuva de aço, pelo que toda a gente preferia cochilar nos abrigos. Tratava-se em rigor de locais de pernoita que as poderosas máquinas Caterpillar ao serviço da empresa construtora, edificavam do seguinte modo:

Sobre uma das faixas desmatadas com cerca de 200 metros de largura que se estendiam de cada lado da estrada em construção (para evitar o ataque próximo às nossas colunas), erguiam quatro barreiras de terra com dois metros de altura de maneira a formar um quadrado com mais ou menos 50 metros de lado. No topo destas barreiras, escavavam-se então os espaldões para as armas pesadas, trincheiras e simples covas que abrigavam um ou dois homens. Era a partir deste arremedo de fortim que se montava a vigilância e defesa, tanto do pessoal como das máquinas, que no final do dia de trabalho recolhiam ao seu interior. Como vizinhança, muita força de mosquitos e pulga matacanha!

Logo nos primeiros passeios pelas redondezas, tivemos a visão clara do inferno que teria sido a vida dos camaradas que nos precederam nos primeiros anos da guerra. Numa região enxameada por bases do PAIGC localizadas nas regiões de, e volto a citar dos registos: Cã Quebo, Santambato, Cambajú, Iracunda, Mansodé, Cubonje, Canjaja, Biribão, Ionfarim, Uália, Mansomine, Binta, Queré, Banjara e Manhau, qualquer movimento nosso era acompanhado por acção semelhante por parte do IN, tornando-se o contacto inevitável.

Em alguns pontos, nomeadamente ao longo do que em melhores dias tinham sido as bermas e valetas desta excelente rodovia que ligava Bissau ao Senegal, agora reduzida à condição de simples trilho, as cápsulas de munições de armas ligeiras apanhavam-se aos milhares, nalguns sítios literalmente à pazada. No entanto, o sortido dos vestígios abrangia um pouco de tudo, desde velhas minas anti-pessoal com a tampa de madeira carcomida pela formiga mas ainda capazes de nos pregar uns sustos, até granadas anti-tanque, algumas intactas, bojudas, matulonas que me disseram tratar-se de Panzerovkas (?). Havia armadilhas na estrada e nas zonas de mato contíguas.

Por ali confiscámos também em operações subsequentes, variadas peças do arsenal do IN que incluía itens tão antigos e obsoletos como canhangulos, até novíssimas granadas de RPG 2 e 7 e respectivos lançadores, Mort 82, munições de Browning 20mm com tripé (utilizadas então como anti-aéreas), muitas pistolas de várias proveniências, PPSH, Degtariev e kalashnikov, Esping. M 44 americanas (!). E ainda, Met Pesadas Breda e Dreyses , por certo gamadas ao glorioso Exército Português. Também fizeram parte deste catálogo um par de lindíssimas espingardas Mauser, com ferragens cromadas e, gravado sobre as câmaras, o selo da República Portuguesa. A quem teriam pertencido? Quem terá ficado com elas?


Um dia mais perto ...

O normal dia de trabalho começa bem cedo para o pessoal engajado nas operações de segurança próxima, e não só! Hoje, dia 2 de Fevereiro de 1971, ainda não eram quatro da matina e já uma das sentinelas tinha obrigado o russo (cozinheiro) e o básico, seu ajudante, a porem-se de pé a fim de preparar o pequeno almoço e a merenda para o 3.º Grupo de Combate que, por imperativo de escala, vão emboscar em Farim 2 C6 97. Os restantes, guarnição e pessoal da segurança imediata comem mais tarde, por volta das seis e meia ou sete horas. Junto à banca que serve de refeitório, “a parelha dos tachos” aguarda impaciente. Querem voltar para o choco!

Os homens vão assomando em pequenos grupos para o dejejum. Apresentam-se praticamente em estado de prontidão isto é, devidamente equipados. Emoldurando-lhes os cachaços, cachos de granadas de mort 60 e grinaldas de munições de bazuca 6cm, 10.7, Instalazzas, dilagramas e outro material de efeito pirotécnico variado. GMD penduradas em tudo o que era grampo ou presilha e, naturalmente, quilómetros de fitas para as HK. Todo o material se encontra limpo e bem cuidado. Com as canhotas então, têm autênticos desvelos amorosos tratando-as tão bem ou melhor do que se fossem namoradas! Suspensos do cinturão, um ou dois cantis de água e todos os carregadores de G3, próprios e alheios, a que puderam deitar mão. Sem contar com aquele sistema inventado pelo Zé soldado em momentos de aperto, que consiste em embutir um carregador na arma, ficando outro amarrado a este, preso em cruz com fita adesiva.

E não se disse ataviados, como impõe o aprumo e a gíria militar. Porque fardas são coisa que já não existe faz tempo. Mergulhos forçados no lodo das bolanhas, lavagens frequentes com pouco sabão e muita paulada aliadas às carícias de gravetos e espinhos do mato, decretaram o seu desgaste precoce. Foram à vida! Por esta altura, vão-se combinando os restos dos camuflados com peças n.º 1, 2 e 3. Botas de cabedal bambas com várias comissões no couro, umas já sem rasto, outras com buracos ventiladores nas biqueiras, alternam com as de lona, a dar as últimas. Há pessoal a sair para o mato levando nos pés uma espécie de chanatos adquiridos pelos próprios. É a crise a instalar-se!

Um quarto de casqueiro nas unhas, besuntado com margarina rançosa ou em dia de sorte com um cubo de marmelada em cima, um púcaro de água chilra tingida de café engolido de um trago e está a andar! Num bolso, arranja-se espaço para mais um quarto de pão com duas belicas* de cachorro nas entranhas. Um simples pacote de leite achocolatado ou um daqueles tubos de leite condensado Martins e Rebelo das rações de combate, fazem as delícias da maralha. Verdadeiros mimos para esta tropa arre-macho, generosa e humilde que sem reclamações ou reivindicações se prepara para enfrentar mais um dia, com porrada garantida.

Pequeno almoço no bucho e ala que se faz tarde. O dispositivo da segurança próxima tem que estar montado, com a força na respectiva posição, ainda antes dos trabalhadores da reconstrução da estrada voltarem o serviço.

Para aquele tipo de acção já todos conhecem e ocupam os respectivos lugares na bicha de pirilau. Uma piada em código, um riso abafado e as últimas recomendações dos furriéis em voz baixa, misturam-se com o tinir metálico do equipamento, criando aquela atmosfera pretensamente descontraída que precede todas as saídas. São rituais que só os que foram agraciados com uma comissão no ultramar podem entender!

A fila está formada quando aparece o alferes, qual ouriço caixeiro carregado de bugalhos: Uzi à tiracolo, rádio ao pescoço, bolsos atafulhados com bússola, mapas e cartas diversas, códigos e frequências de comunicações e, pelo sim pelo não, dois ou três carregadores suplementares para a sua metralheta. No canto de um bolso, coabitando pacificamente com ao lanche, um par de GMD, não vá o diabo tecê-las! Dedicou os últimos minutos a olhar para os papéis sob uma lâmpada que parecia sofrer de sezões palúdicas, tantas eram as tremuras, tentando adivinhar de que lado é que viria a bordoada:
- Olhos e ouvidos bem abertos, armas em posição e distâncias mantidas. E muito cuidado com o sítio onde põem as patas. A partir de agora, tudo caladinho! - São as suas últimas recomendações enquanto se dirige para a cabeça da coluna. E manda "seguir a marinha".

Deixámos Madina Fula ainda o nosso gerador ronronava placidamente naquele timbre surdo e tranquilizador que nos acompanharia durante as primeiras centenas de metros. É noite cerrada. O pessoal caminha em silêncio, paralelamente ao trilho. Comunicações, só por gestos ou em surdina e até o ruído de fundo dos ERET e AVP em AS é reduzido ao mínimo.

Este é um santo pelotão ! Dele fazem parte nada menos que dois meninos Jesus, por alcunha: O básico Aguiar, açoriano da Praia da Vitória, que é meio tótó. E o furriel Tavares, de Freixo de Espada-à-Cinta. Reina na segunda secção. É afinado da cabeça mas a sua pacholice granjeou-lhe igual cognome! Há ainda um Sto. António, virtuoso da HK.

Cunha, o pica, abre caminho percutindo o solo com a vareta de aço. Apesar de analfabeto, tem um dom extraordinário para a orientação no mato. Basta-lhe memorizar um certo trecho da carta cuja simbologia se habituou a reconhecer por comparação com aquilo que os seus olhos observam no terreno e, aí vai ele em piloto automático, com a macacada toda atrás. Direitinho ao objectivo, parece teleguiado! Auxiliado pelas diferentes tonalidades do som emitido pelo seu sofisticado aparelho, detecta com segurança todo o tipo de perigo superficial ou subterrâneo. Sabe por intuição quais são os caminhos com menos obstáculos e mais seguros. Caminho sondado pelo Cunha é caminho seguro, à confiança!

A seguir, vem o Santos, Stº António para os amigos com a sua HK, depois o alfero, o Assis da bazuca e outra HK, a do Cabecinha. Segue-se o Dutra grande do Morteirete, que dispara em andamento apoiando-o no bíceps. Moniz, Vicente, Melo e Reis são especialistas em Dilagramas. Na secção central, além do Raposo portador de mais uma HK, alinham os homens da G3: Azevedo, Amorim, Bettencourt, Martins, Aguiar e Dutra pequeno. Cartucho propulsor na câmara e, mesmo até estes, ao primeiro disparo expedem um ananás. O resto da cambada vem lá para trás sob orientação do outro Furriel, também ele Tavares de nome, mas açoriano de nascença. Manobram um Mort 60, duas HK, um LGF 10.7 e umas tantas G3.

Avançamos mastigando o cacimbo pesado e grosso da manhã que se agarra à pele, tornando-a viscosa e fria como a barriga de um sapo. Envolve-nos o cheiro a capim queimado e a fuligem negra, impregnando as roupas e as narinas. É natural, pois estamos em plena época das queimadas e as NT vão ateando fogos por onde passam, procurando limpar áreas tão vastas quanto possível por forma a evitar que o IN utilize a vegetação como máscara para possíveis emboscadas.

Lutando com arbustos e lianas que teimam em enrolar-se aos corpos e equipamento como se quisessem impedir-nos de progredir, anima-nos a alma saber que em breve estaremos de volta à civilização. O K3 está praticamente à vista! Falta apenas acrescentar uma meia dúzia de quilómetros àquela serpente de asfalto que protegemos e vemos crescer todos os dias. Trata-se de uma tabanca situada a cerca de três quilómetros da margem esquerda do Cacheu, muito próximo do ponto de origem de um troço de estrada que conduz ao Olossato, capital do Oio. O nome verdadeiro, aquele que consta dos mapas é Saliquinhédim. No entanto, a população local assumiu o novo topónimo aparentando desconhecer ou ter esquecido completamente o original.

Atingir o K3, representa o final de uma campanha até agora bem sucedida do ponto de vista militar, apesar de particularmente desgastante, não só pelas flagelações e contactos quase diários, mas sobretudo pela dureza das condições de vida a que todos temos estado sujeitos. Significa também que em breve, a 27.ª de Comandos vai ser despejada pela CCaç 2753, ficando esta na situação de força de quadrícula com direito a um verdadeiro quartel. Com dormitórios, instalações sanitárias, secretaria, messes, cozinha ... tudo!

E sobretudo, vamos avistar gajas! Sim, tem de haver por lá mulheres, esses seres intangíveis, de que perdemos o rasto há meses e de cuja existência já começamos a duvidar! Sejam elas brancas, pretas ou verdianinhas. De preferência bajudas, mas na sua falta que avancem as mulheres grandes. Mobilizemo-las se for necessário, porque a rapaziada não aguenta mais esta lei seca tão prolongada ...

Mortos de cansaço, com o ornamento do escalpe a desaparecer a olhos vistos devido ao stress e deficiente alimentação, exauridos pela punheta, este devaneio com putas ocupa-nos o pensamento por fugazes instantes, nesta madrugada particularmente enervante. Aqui e além, a silhueta fantasmagórica de um baga-baga chama-nos à realidade. Escondido pelo capim da altura de um homem, levanta algumas suspeitas... e muitos receios! Os restos de luar reflectido nos olhos de uma família de babuínos produzem um efeito chamado cagaço. Não se tratando um bando de almas penadas, (os açorianos são muito supersticiosos!), só poderá ser o IN a espiar-nos com flash-lights para mais certeiramente nos alvejar, comentam entre si!

Na floresta, o amanhecer é pleno de actividade. O pio de uma ave ou o restolhar de um bicharoco qualquer podem tornar-se inquietantes sinais de alarme. Por vezes, é o encontro fortuito com um carreiro de formigas de grande cabeça negra e tenazes monstruosas que obriga a passar a palavra e... a passar ao lado! Incomodadas, têm o péssimo hábito de trepar silenciosamente pelas pernas acima. Fazem-se anunciar quando já estão ferradas na pele dos tomates, de onde só saem arrancadas a bico de navalha depois de decapitadas. Há umas semanas, um pelotão da Companhia passou por essa excruciante experiência durante uma operação nocturna, que terminou antes de ter começado. Menos de meia hora após a largada, ei-los que regressam num tropel, aos pinotes e completamente nus quais isabelinhas (**), berrando que nem cabritos desmamados, agarrados às respectivas partes. Que espectáculo soberbo, hilariante e inesquecível!

Amanheceu. Ao longe, no silêncio desta floresta tão bela só comparável à mata do Cantanhês, já se ouve o roncar da maquinaria e o estrondo provocado pela queda das árvores abatidas. A tensão vai aumentando, os nervos estão numa lástima. Parafraseando autor desconhecido, cada passada cada cagada! Os olhos já doem de tanto perscrutarem o inimigo através da folhagem. Todo o cuidado é pouco. O silêncio torna-se esmagador, nada bole. É a bonança antes da tempestade e, todos sabem por experiência e por instinto que vem aí bernarda da grossa. Até já cheira a turra!

Da frente vem a ordem preparar para instalar. Mil olhos lançam-se então numa busca apressada e ansiosa de qualquer acidente do terreno que possa oferecer alguma protecção, por mínima que seja. A cratera deixada pela raiz de uma palmeira caída, o tronco de uma árvore corpulenta ou o castelo de uma colónia de térmitas, tudo serve para abrigar um pouco o canastro. Mas cuidado antes de mandar com ele para o chão! É preciso inspeccionar muito bem o local, não vá estar por ali alguma artimanha escondida. É um pequeno alívio, pois uma vez instalados o conforto é outro. Se o IN tiver o desplante de se aproximar da nossa posição, somos nós quem terá a iniciativa. No entanto, o mais provável é que sejamos alvejados com umas morteiradas de 82mm a partir de uma bolanha situada a cerca de trezentos metros à nossa esquerda. E a seguir emboscados, quando fizermos a perseguição.

Esta é a táctica habitual, mas ultimamente têm vindo ao trilho com frequência. E desfaçatez. Mandam-nos com umas roquetadas para cima e desaparecem como sombras, disparando furiosamente as Kalash apoiadas sobre o ombro, mas viradas para a rectaguarda sempre em passo de corrida.

Desta vez não houve tempo! Os bandidos ou seguiram os nossos movimentos, ou conseguiram adivinhar as nossas intenções quanto ao local onde iríamos abancar. O facto é que chegaram primeiro do que nós. Ainda não tínhamos amochado e já o apocalipse se abatia em cima das nossas cabeças. Nos primeiros instantes nem deu para perceber de onde é que chovia tanta metralha. Um número indeterminado de roquetes estoura à nossa volta e nas copas das árvores, semeando farpas de aço que cortam o ar assobiando em todas as direcções. No ar há uma poeirada enorme e uma confusão de galhos partidos. Pequenas bolas de fumo negro pairam sobre a nossa vertical. Cheira a enxofre e a pólvora queimada, o cheiro da guerra. As kalashnikov, costureirinhas, Degtaryev e outro instrumental a que chamam ligeiro entra em acção como uma orquestra, produzindo um matraquear muito rápido mas sem a alma das nossas G3. Estalidos secos junto aos ouvidos indicam-nos que uma chuva de balas nos procura atingir sem piedade. A malta reage automaticamente. Numa fracção de segundo as metralhadoras iniciam uma sequência de tan, tan tans. É uma canção em tom mais grave e ritmo lento comparado com os réc-téc-téc que vêm do outro lado. Mas reconfortante. A equipa da esterilização (dilagramas) não pode fazer nada, o In está demasiado perto. Poderíamos atingir-nos a nós próprios. Os morteiros e LGF idem. Só há uma saída: pessoal em linha, curvado para a frente, armas automáticas à anca com patilha de segurança em posição de rajada, avançamos em lanços sucessivos de cinco a dez metros galgando o mato. Passam dois, três minutos no máximo. Subitamente, o silêncio.

A guerra de hoje está semi decidida, mas a coisa não pode ficar assim! Os gajos têm que levar para tabaco. Continuamos a avançar até alcançar uma zona com tecto livre que batemos generosamente num ângulo de 180 graus, antes de iniciar a perseguição. Atingimos a orla da bolanha. Pelo caminho constatámos a existência de alguns espojeiros. Confirma-se a suspeita de que afinal já estavam à nossa espera. Terão passado lá a noite? Recolhemos também algum material que abandonaram na precipitação da retirada.

Do lado oposto, longe mas ainda à distância de tiro efectivo avistamos vários elementos do IN em fila. Terão sido estes os tipos que nos atacaram? Serão carregadores? Não vale a pena persegui-los. Não conseguiríamos alcançá-los e não é essa a nossa missão. Além disso, corremos o risco de ser atingidos pela nossa própria artilharia de 14cm ou pelo fogo aéreo, ad hoc ou a pedido dos nossos camaradas que estão a fazer a segurança afastada. Estes já levam o que contar, deixá-los ir! Mas não sem antes levarem mais umas morteiradas nos cornos para acelerar o passo.

No Destacamento é o alvoroço. Ouviram o estardalhaço e querem saber o que é que se passa, se temos feridos, se fizemos baixas... Sim temos um ferido que apanhou com um estilhaço na peida, coisa sem importância de que o maqueiro Melo se encarregará. Não é necessária a evacuação, há-de regressar pelo seu pé.

Ainda não são dez horas e já temos o dia ganho! Hoje, em princípio, não nos vão chatear mais. Agora há apenas que cumprir horário. Voltamos à posição que nos foi destinada e instalamos. Daqui a nada vamos almoçar porque o raio da sarrafusca abriu-nos o apetite. Já se fala em voz alta comentando toda a acção com uma espécie de nervoso miudinho residual. Alguns aproveitam o momento de descontracção e vão aliviar-se atrás de qualquer coisa. É que a vinda, nem houve tempo para fazer o habitual alto para cagar.

Quando forem umas quatro da tarde havemos de pôr-nos a caminho. Convém que o regresso se faça ainda com luz do dia. À chegada, teremos um relaxante banho debaixo de um bidão instalado sobre um palanque constituído por quatro cibos ao alto, com água aquecida pelo sol. A seguir, o jantar. Prato à escolha: batata cozida com cavala de conserva. Amanhã também poderemos escolher dobrada seca, demolhada, com arroz e feijão. No dia seguinte voltaremos à cavalinha! Se tudo correr bem, talvez a hora do jantar decorra sem sobressalto. O pessoal, sempre em pequenos grupos, recebe a comida nas marmitas e vai comer para os abrigos onde fica alerta até tarde. Depois, serão umas horas de sono entremeado de saudades e pesadelos, que apesar do cansaço nunca será profundo nem repousante. Amanhã tudo recomeçará de novo. Mas estaremos um dia mais perto!

Volto aos registos da Companhia:

Fascículo IV – Período de 01 FEV71 a 28 FEV71.

“Em 02FEV na região de Farim 2 C6 97, um grupo IN com efectivo de 15 a 20 elementos, emboscou à distância de 5 a 6 metros com armas ligeiras e LGF um grupo da CCaç que progredia para emboscar. As NT sofreram um ferido ligeiro. Feita a batida foi encontrada uma fita de munições de metralhadora ligeira”.
____________

(*) Equivalente em açorianês para piça, pixota, pila, etç.

(**) Idem, para mariazinha, mariconço...

Notas de L.G.

(1) Vd. postes da série de

18 de Setembro de 2006 Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)

Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

(2) Vd. post de 25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLI: A madeirense CART 2732 (Mansabá, 1970/72) (Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P1109: O Manuel Castro, ex-furriel miliciano da CART 6254 (Olossato, 1973/74) (Sousa de Castro)

1. Mensagem do nosso camarada, e tertuliano n.º 2, Sousa de Castro, (foto à direita), ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74: 

O Eng Manuel Castro foi furriel e pertenceu à CART 6254 - Os Presentes do Olossato, desde Março 1973 a Agosto 1974.
Já faz parte da nossa tertúlia, quase desde o início (Maio de 2005). Lembro-me que em tempos fez apontamento neste blogue, evocando o facto de ter sido ferido na Guiné. Foi também através deste blogue que veio a encontrar um camarada de armas (*).
Quanto ao episódio em que foi ferido, quero convidá-lo a partilhar a sua estória, essa e outras, com toda a nossa tertúlia.

Em tempos, logo no início do nosso blogue, eu próprio já tinha escrito o seguinte:

Fui eu que o meti [, ao Manuel Castro,] nestas andanças, trabalhamos ambos na mesma empresa, a ENVC (Estaleiros Navais de Viana do Castelo), e o facto é que ele já conseguiu encontrar alguns colegas da CART 6254 a que pertenceu.

Eu ando há muito tempo nisto, tenho feito alguns apelos e ainda não apareceu na Net ninguém da minha CART 3494, "Os Fantasmas do Xime" (Dezembro de 1971/Abril de 1974) (...)



Saudações tertulianas,
Sousa de Castro

PS - Confirmo, que a campa que apareceu em Bambadinca, [no programa Em Reportagem, da RTP1, de 19 de Setembro, ] pertence a um soldado da minha CART 3494 e creio, se não me falha a memória, que esse soldado era natural de Famalicão.
____________

Nota do editor:

(*) Vd. post de 25 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXV: Aerogramas de amigos e camaradas (1)

25 de Maio de 2005:
Amigos, algum de vocês conhece alguém que tenha feito parte da CART 6254 "Os presentes de Olossato", Março de 73/Agosto 74? Se, por acaso, conhecerem alguém, agradecia contacto.
Manuel Castro
(Viana do Castelo)

25 de Maio de 2005:
Manuel Castro, indico-lhe dois contactos:(i) António Pedras (seripbar@sapo.pt); e (ii) o ex-furriel miliciano João Ferreira (ilferreira@net.sapo.pt).
Certamente que os conhecerá. Eram seus ex-camaradas da CART 6254.
Afonso M. F. Sousa

Guiné 63/74 - P1108: Cemitérios militares: chocado com o programa da RTP1 (Paulo Santiago)

Texto do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > O Paulo Santiago na ponte do Saltinho em Fevereiro de 2005 na viagem de regresso de todas as emoções.

Foto.s: © Paulo Santiago (2006)

França > Normandia > Cemitério dos militares norte-americanas, em Colleville, mortos na sequência do desembarque dos Aliados, na Normândia,, em 1944.

Foto: © Deutsche Welle (2006)


Luís:

Fiquei chocado com a mini-reportagem apresentada ontem [dia 19 de Setembro] pela RTP1.

Foi uma reportagem envergonhada para não ferir a consciência dos nossos políticos. Se não querem, ou não podem, trazer as ossadas para as famílias, que as aguardam, como ontem se viu, contribuam para dignificar os locais onde elas repousam. É o minimo que se exije.

Recordei as imagens do cemitério na Normandia, início do filme O Resgate do Soldado Ryan [EUA, 1998].

Recordei-me também, como Aspirante Miliciano no RI3 em Beja, quando fui a Almodôvar, em Agosto de 1970, entregar à familia as ossadas de um soldado morto há mais de um ano em Moçambique. Lembro o luto da família mas também o contentamento do pai por ao fim de tantos meses poder dar uma sepultura aos restos mortais do seu filho, na terra que o viu nascer.

Até breve
Paulo Santiago

Guiné 63/74 - P1107: O álbum do PAIGC (1): 'roncos' da CART 1525 (Rogério Freire)




Guiné > Região do Oio > Bissorã > CART 1525 (1966/67) > Diverso armamento apreendido ao PAIGC.
Fotos: © Rogério Freire (2006)


Texto e notas de L.G.

A CART 1525 - Os Falcões (Bissorã, 1966/67) (1) têm uma excelente página dedicada à sua história, mantida pelo nosso amigo e camarada Rogério Freire (ex-alf mil). Em tempos ele mandou-me três fotos com armamento apreendido pelos Falcões ao PAIGC. É altura de as divulgar, pedindo ao mesmo tempo a colaboração dos especialistas da nossa tertúlia para a legendagem das fotos.

É também um exercício de memória e um passatempo... Aqui fica o rol dos roncos, feitos pelos Falcões, e que abrem este álbum de fotografias dedicadas ao PAIGC (vd. com mais detalhe o resumo do material capturado pela CART 1525).
Já em tempos escrevi que fiquei impressionado com o curriclum vitae dos Falcões: nada menos do que 10 (dez) cruzes de guerra!... E manga de ronco, pessoal, lá para os lados do Morés (mítico, no nosso tempo, 1969/71), Iracunda, Cambajo, Jugudul, Iarom, Bará, Quéré, Biambe, Conjogude, Uenquen, Tiligi, Rua...

Os Falcões eram mesmo uns verdadeiros... predadores, a avaliar pelo material capturado por eles naquele tempo (o que para uma companhia de artilharia era obra, embora o PAIGC ainda estivesse longe do seu auge, em termos de sofisticação do seu armamento e experiência dos seus combatentes ):

52 armas (incluindo metralhadores, ligeiras e pesadas);

39 granadas de morteiro;

33 granadas de canhão s/r;

14 granadas de LGF

10 minas (a/c e a/p)

15 granada de mão,

7000 munições, mais documentos, medicamentos, etc.
__________

(1) Sobre os Falcões, vd. ainda os seguintes posts:

16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1080: Uma nota de tristeza, nostalgia, desencanto e revolta (Rogério Freire, CART 1525)

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P978: Futebol em Bissorã no tempo do Rogério Freire (CART 1525) e do Gilberto Madail

14 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXXIX: CART 1525, Os Falcões (Bissorã, 1966/67)

Guiné 63/74 - P1106: A ubiquidade dos nossos mortos (Zélia)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1998 > Este foto já correu mundo... ou, pelo menos, já deu a volta à nossa caserna...Chegou-nos por mão do Albano Costa, com a seguinte legenda: “Esta foto vale pela imagem, e os brancos em África converteram-se? Não é que ficaram a ver a Zélia a puxar o burro, mulher de armas!"...

Foto: © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


Texto da nossa amiga Zélia Neno, ex-companheira do Xico Allen (1).

Olá, Luís

Com certeza admirado por este meu reaparecimento, após alguns meses de silêncio, julgo que desde aquela noite de cavaqueira em casa dos teus cunhados, [na Madalena, Vila Nova de Gaia,]com o Albano. Os motivos julgam que serão já do teu conhecimento. Contudo e apesar de, continuo a acompanhar a evolução do blogue e as estórias que lá vão sendo contadas quase diariamente e só posso dar-te uns enormes parabéns, pois sabendo como é atribulada a tua vida profissional ainda consegues ter tempo e disposição para manter em dia esta enorme obra.

Se hoje decidi escrever foi devido ao assunto que despertou alguns tertulianos, ou seja, a reportagem transmitida pela RTP1, 3ª feira, dia 19, e que ficou aquém das minhas expectativas mas que compreendo pois é um assunto delicado e de certo ainda magoa os corações de muitos familiares de todos aqueles jovens que lá longe e a troco de Nada foram roubados à Vida.

Como se isso não bastasse, os inicialmente mortos, por lá tiveram que ficar depositados num pedaço de chão ao qual nenhuma afinidade tinha pois aquela não era a sua terra embora fosse então seu país. Quanto às famílias tiveram que os velar e chorar à distância e na ausência da sua presença, mesmo que numa tumba, mantêm a incerteza de como e onde estarão seus restos mortais.

Mas se a grande parte desses mortos foi isso que aconteceu, casos houve que julgo serem mais gravosos e até cruéis, de militares mortos e enterrados em dois lados, ou seja, lá e cá. Como é isso possível se pela lei da física o mesmo corpo ou objecto não pode ocupar dois espaços simultaneamente?

Em 1998, eu, o Xico e quem nos acompanhou numa visita ao cemitério militar português em Bissau, encontrámos (e fotografámos) duas sepulturas onde, segundo informação convicta do coveiro local, estão inscritos os nomes e mesmo sepultados os corpos de dois jovens aqui do norte (zona do Marão) e em cujos cemitérios da sua terra natal têm dupla residência, sabendo-se que na ocasião tiveram um funeral tradicional e ainda hoje os familiares devotam atenção e carinho àqueles quatro palmos de terra. Mas afinal o que estará debaixo deles?

À data, este facto não foi transmitido a nenhum familiar pois iria causar um impacto inquietante – hoje não sei se entretanto lhes chegou ao conhecimento. Na época e na sequência de um filme produzido e passado pela SIC, seu nome Monsanto [ , realizado em 2000 por Ruy Guerra], cujo enredo era baseado no stress do pós guerra vivido pelo protagonista, enviei para lá uma apreciação sobre o dito filme e no contexto do assunto falava da triste constatação que havíamos verificado e posteriormente agravada quando, numa ida a Lisboa, o Xico verificou que no Memorial aos Combatentes do Ultramar em Belém não estavam mencionados os nomes daqueles militares, mortos em defesa duma pátria que concedeu a cada um deles duas sepulturas mas nenhum destaque no monumento que foi construído em seu louvor – terá sido ironia do destino?....

Perante estes dois casos de dupla sepultura que casualmente vi que existem, julgo que devem existir mais nestas circunstâncias entre as centenas que por lá ficaram, sem direito a um trato condigno mesmo que seja na morte, porque, como se viu na reportagem, a maioria dos cemitérios estão degradados pelo abandono. Mas para além do respeito devido aos mortos também se deve pensar nos vivos, no sofrimento que pode ser provocado aos familiares se algo de anormal se verificar quando do levantamento dos restos mortais para a transladação, pois além de só por teste de ADN, nenhuma garantia têm de que o ainda restante em qualquer uma daquelas covas corresponde ao nome inscrito nas mísera lápide assente sobre ela pois não nos esqueçamos que ali foram enterrados sob um cenário de guerra e a turbulência que tal implicava.

Não é pessimismo. É que na década de sessenta, início da guerra, era eu ainda menina e ouvia ler cartas que chegavam de Angola, escritas por quem vivia em pleno seio da rebelião e em frente a um cemitério onde os enterros eram constantes, realizados de qualquer forma e feitio, e nunca esqueci o relato de um que se efectuava quando houve um ataque, provocando a debandada geral, inclusive de quem transportava o caixão, deixando-o cair ao chão permitindo ver que o seu conteúdo não era um corpo mas sim... pedras. Isto porque corpos apanhados por minas davam muito trabalho a resgatar e o tempo era de guerra!

A todos que morreram, enterrados cá ou lá, com ou sem as devidas exéquias fúnebres, honremos a sua Memória.

Paz às suas almas.

Luís até um qualquer dia.
Um xicoração.
ZÉLIA
___________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 1 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVI: A viagem do Xico e da Zélia em 1998

Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

Texto do Raul Albino, ex-alf mil da CCAÇ 2402, pertencente ao BCAÇ 2851 (, Mansabá, Olossato, 1968/70), que embarcou no Uíge, em finais de Julho, juntamente com o BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1)


Volto ao vosso convívio para vos informar de que não me deixei dormir.

Recebi já algumas dicas de ajuda que eu vos pedi e que agradeço. Já consegui visualizar nos mapas as localidades de Có, Mansabá e Olossato, por onde andou a minha companhia. Já consegui verificar que o problema com os caracteres especiais na leitura do vosso blogue só se verifica quando for lido através do anexo dos emails que o Beja Santos me manda. Não sei porquê mas não é grave.

Estou a preparar as minhas fotografias, antiga e recente, para enviar [para a fotogaleria da tertúlia].

Estou a estudar a forma e o estilo dos textos que passarei a enviar-vos regularmente. Serão extraídos do livro que recentemente editei, denominado Memórias de Campanha da CCAÇ 2402. Para o livro escolhi o estilo reportagem para ser acessível ao público-alvo (todos os elementos da companhia) e poder incluir relatos desses mesmos elementos sem os inibir na sua participação.

Creio que agora vou escolher o estilo folhetim, continua no próximo capítulo, de texto curto, reescrito e incidindo nos temas que possam ter mais interesse para o colectivo.

Se alguém estiver interessado em produzir algum livro de memórias, estou disponível para partilhar a minha experiência com esses tertulianos. O meu livro levou três anos a ver a luz do dia, sendo que o primeiro ano foi gasto na estruturação do livro, aquisição do hardware necessário (PC, Impressoras e Scanners), estudo do software de composição e fotografia.

O livro ficou com uma particularidade curiosa: como foi totalmente redigido, composto e impresso por mim, fiquei com a possibilidade de criar versões personalizadas, adicionando páginas particulares com textos e fotos de interesse exclusivo dum indíviduo.

Por hoje é tudo, um até breve,

Raul Albino

Comentário de L.G.:

Os meus, os nossos, parabéns ao Raul pela aventura (intelectual) em que se meteu. Parabéns ao novo escritor. Espero que o seu exemplo possa ser seguido por outros camaradas. Afinal, e como diria o Eça de Queiroz, fazer um filho, plantar uma árvore e escrever um livro são três coisas (essenciais) da realização humana... Outra será saber sobreviver a uma guerra como aquela que fomos obrigados a fazer no TO da Guiné... Fico a aguardar, com muito interesse, os posts deste nosso novo membro da tertúlia.

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1104: Homenagem ao Alf Mil Op Especiais Armandino, da CCAÇ 3490, morto na emboscada de Quirafo (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > CART 3492 (1972/74) > 1972 > O Alf Mil Armandino, ao fundo da mesa, num almoço com outros camaradas, incluindo o Mexia Alves, na casa do comerciante libanês Jamil Nasser. Em primeiro plano, o Cap Godinho, comandante da CART 3492.

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contabane > Quirafo > Feverereiro de 2005 > Mais de trinta anos depois, os restos calcinaos da fatídica GMC que serviu de caixão ao Armandino e aos seus camaradas (CCAÇ 3490, Saltinho, 1972/74), no trágico dia 17 de Abril de 1972, na picada de Quirafo (entre o Saltinho, Contabane e Dulombi).

Foto: © João Santiago (2006)


Texto do Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, que pertenceu originalmente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), antes de ingressar no Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Undunduma, Mato Cão) e depois na CCAÇ 15 (Mansoa ).

Caro Luis Graça:

Em Julho escreveu-se muito no blogue sobre a emboscada que houve à Companhia do Saltinho [CART 3492] em 1972 e na qual morreram penso que 11 camaradas nossos, entre eles o Alf Mil de Operações Especiais Armandino, meu camarada de curso em Lamego (1).

Disse, naquela altura, que poucos dias antes ele tinha estado a almoçar comigo e com outros na casa do Jamil Nasser (2), no Xitole, almoço que festejou também o meu aniversário.

Mando-te fotografia desse almoço, onde se pode ver ao fundo o Alf Armandino.

Quem aparece em primeiro plano é o Cap Mil Godinho, que era o Comandante da minha Companhia no Xitole e pertencia, salvo o erro, ao mesmo curso do Cap Mil Mendonça, do Saltinho, sendo pessoas bastante diferentes.

Deixo à tua consideração a publicação da foto, sendo que a sua publicação seria uma homenagem ao Armandino e àqueles que com ele tombaram.

Abraço do
Joaquim Mexia Alves
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Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P976: A morte do Alf Armandino e a estupidez do capitão-proveta (Joaquim Mexia Alves)

(...) "Eu estava no Xitole e dias antes o Alf Armandino, que morreu nessa emboscada, tinha estado a almoçar comigo em casa do Jamil Nasser, se não me engano, um almoço que o Jamil ofereceu também para festejar os meus anos em Abril.Tenho uma fotografia desse almoço onde está o Alf Armandino, que foi aliás meu camarada de Curso nos Rangers" (...).

20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P975: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (7): ainda as trágicas recordações do dia 17 de Abril de 1972

12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P955: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (5): O pesadelo da terrível emboscada de 17 de Abril de 1972


(2) Vd. post de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)

(...) "Quase todos os dias, ao fim da tarde, ía a casa do Jamil e no seu alpendre de entrada, bebiamos uns uísques, acompanhados de pedaços de tomate com sal, enquanto ele ouvia as notícias do Libano no seu rádio, em árabe, claro está, e comentava o que por lá se passava " (...).

Guiné 63/74 - P1103: Breve historial do BCAÇ 1911 e do BCAÇ 1912 (A. Santos)

Oportuno texto (didático) do A. Santos, fazendo a distinção entre os BCAÇ 1911 e 1912 (1):

Luís e Camaradas:

Vamos lá arrumar a casa em relação ao BCAÇ 1911.

Este Batalhão foi mobilizado pelo RI 15, Tomar, e chegou a Bissau em e de Maio de 1967. O CMDT foi o Ten-Cor Álvaro Romão Duarte, as suas companhias operacionais foram as CCAÇ 1681, 1682 e 1683, cujos CMDTS foram por ordem os Capitães de Inf Manuel Francisco da Silva e Renato Vieira de Sousa e o Cap Mil Cav José Manuel Pontífice Maricoto Monteiro.
Divisa: Coragem e Humanidade.

De início este Batalhão ficou em Bissau até 17 de Agosto de 1967, às ordens do Com-Chefe, para reforço temporário de outros Batalhões. Nesta data seguiu para o Sector O1-A, com sede em Teixeira Pinto, e subsectores em Cacheu, Có, Jolmete.

Em 24 de Junho de 1968 regressou ao sector de Bissau, e subsectores de Brá, Nhacra e Quinhámel onde rendeu o BCAÇ 2834, ficando de novo às ordens do Com-Chefe. A 13 de Maio de 1969 foi rendido pelo BCAÇ 2884, tendo embarcado de regresso à Metrópole em 16 de Maio de 1969.

Quanto ao BCAÇ 1912:

Este Batalhão foi mobilizado pelo RI 16, Évora, e chegou a Bissau em 14 de Abril de 1967, sendo seu CMDT o Ten-Cor Artur Pereira Rodrigues. As suas companhias operacionais foram as CCAÇ 1684, 1685 e 1686, comandadas respectivamente pelos Capitães de Inf Antonio Feliciano Mota da Camâra Soares Tavares, Alcino de Jesus Raiano e José de Matos Correia Barradas (este último miliciano).

Divisa: Valentes e Destemidos.

Em 19 de Abril de 1967, seguiu para o Sector O3-A, com sede em Mansoa e subsectores de Jugudul e Cutia. Em 01 de Julho de 1967 ainda o de Enxalé, então retirado à área do BCAÇ 1888.

A CCAÇ 1684 esteve em Bissau às ordens do Com-Chefe, deslocando-se sucessivamente para Ingoré, S. Domingos, Susana. Em 2 de Abril de 1969 substituiu a CCAÇ 2315 em Mansoa. Foi rendida pela CCAÇ 2589 e regressou a Bissau para embarque.

A CCAÇ 1685 seguiu para Fá-Mandinga, ficando como unidade de intervenção e reserva do Com-Chefe, como reforço de diversos Batalhões na Zona Leste. Em 19 de Setembro de 1967 rendeu a CCAÇ 1501, assumindo o subsector de Fajonquito. Regressou a Mansoa para o seu Batalhão em 1 de Agosto de 1968. Foi rendida pela CCAÇ 2587 e regressou a Bissau para embarque.

A CCAÇ 1686 seguiu para Mansoa, teve pessoal destacado em Cutia, Ponte do Rio Braia, Jugudul, Uaque e Bindoro. Em 14 de Maio de 1969 foi rendida pela CCAÇ 2587 e regressou a Bissau para embarque.

Este Batalhão embarcou de regresso no dia 16 de maio de 1969.


UM ALFA BRAVO

António Santos

Ex-Sold Trms Pel Mort 4574 /72
(Nova Lamego, 1972/74)
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Setembro e 2006 > Guiné 63/74 - P1074: O Paulo Raposo, o Padre Mário e o Batalhão de Caçadores 1912, Mansoa (Aires Ferreira, CCAÇ 1686)

Guiné 63/74 - P1102: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (12): Os meus irmãos de Finete

O Mário Beja Santos, hoje.

Foto: © Beja Santos (2006)

Texto enviado pelo Beja Santos, com data de 15 de Setembro último. Continuação da publicação das suas memórias, como alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).



Meu caro Luís, imagina tu tinha há meses para ler a obra do embaixador Pinto da França Em Tempos de Inocência, editado este ano pela Prefácio. Eu conhecia os trabalhos do Pinto da França através do Ruy Cinatti e que têm a ver com a cultura indonésia e luso-indonésia. Foi uma grande surpresa começar a ler o seu diário enquanto embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, a partir de 1977.

Há os olhos inocentes do diplomata interpretando a nova classe política do PAIGC. Por exemplo: "É uma nação simultaneamente africana e mestiça, vagamente muçulmana e cristã sobre um fundo de aminismo, funcionando na base de uma elite cabo-verdiana, ligada por uma intrincada rede de parentescos. Apesar de instrisecamente burguês, esse grupo vive no culto de ideiais marxistas, credo que lhes é contranatura".

Comporta relatos saborosos dos nossos cooperantes, do pessoal da embaixada, das azelhices do protocolo, do irrealismo de certos diplomatas ocidentais e orientais. Se me autorizares, farei a recensão para a semana e convido toda a gente a conhecer este olhar personalizado do Pinto da França.

Como sabes, voltei à Guiné como cooperante em 1991, assisti à decomposição política que levou ao afastamento do Nino Vieira, mas pelo correio que recebemos do Didinho, as esperanças não são melhores na actualidade.

O Pinto da França que vai viver em Bissau até 1979 põe a questão básica da orfandade do grande líder Amílcar Cabral: a luta pela independência dos guineenses era prestigiada em África e noutras partes e os sucessores de Cabral sentaram-se à sombra da inércia deste prestígio. Outra realidade que Pinto da França observa pude confirmá-la e chega aos tempos de hoje: ausência quase absoluta de quadros intermédios. Dói, nós não podemos intervir a não ser através do modelo de cooperação que contribua para formar in loco uma administração exigente, altamente qualificada e que saiba actuar acima das etnias e dos partidos.

Para a semana, por razões profissionais, serei mais parcimonioso. Aqui vai mais um episódio, pedindo a tua atenção para uma fotografia em que vou atravessar a bolanha de Finete com o Saiegh em destaque (2). Recebe um abraço do Mário.



Bacari Soncó e Fodé Dahaba, os meus irmãos de Finete

Beja Santos


Para a minha primeira semana em Finete (1) ainda pensei levar o gira-discos a pilhas, mas decidi concentrar-me num saco de leituras. A escolha recaiu em obras sobre o Império Romano, o Corão (naquela época não havia nenhuma tradução portuguesa, comprei num alfarrabista uma boa edição da Garnier) e literatura surrealista, um pouco de Boris Vian, Carlos Oliveira e outros desalinhados do neo-realismo.

Falei do Alexandre O'Neill de que me empolgavam os seus textos no Diário de Lisboa à semelhança da Guidinha, do Sttau Monteiro. O'Neill, insisto, irá influenciar-me na formação do gosto, na renovação audaz da língua, na combinação do castiço com a claridade cosmopolita. Lembro-me de ter metido no saco A Ampola Miraculosa que pertencia à colecção dos cadernos surrealistas editados pelo António Pedro. A Ampola é uma colagem de ilustrações antigas, uma brincadeira imaginativa sem direcção, mas que me ajudava a compreender a mistura da poesia, da pintura e do panfleto político.

O'Neill foi pintor e criou poemas ditos ortográficos, uma originalidade que infelizmente ficou sem continuadores. Para não ser repetitivo, A Ampola ficará reduzida a cinzas dentro em breve. Podem, pois, os meus gentis leitores tertulianos imaginar a satisfação que tive quando há dias, antes de passar a limpo este fio de memória, ter descoberto que a Assíro & Alvim deu à estampa a edição fac-similada da Ampola, mostrando o O'Neill como vate coroado. Confio na vossa bondade em interessarem-se pelo O'Neill( se não o fizeram antes), e para os mais timoratos a minha sugestão é que se atirem à Ampola que começa assim: "Pais que fazeis? Os vossos filhos não são tostões, gastais-os depressa" (Ó Luís, sê amigo dos surrealistas e mostra coisas da Ampola).

Pronto, cheguei a Finete. A Finete de que eu sou militarmente responsável coincide com o registo do mapa. Ou seja, eu faço a cambança do Porto de Bambadinca e de Unimog ou a pé percorre-se a nesga de um caminho entre arrozais, qualquer coisa como 3 Km.

É uma povoação que vive dos tombos da guerra, já que alberga gente que veio de Malandim, Canturé, Gambana, Chicri e até Sansão, fundamentalmente fulas e mandingas (os manjacos e balantas vivem entre Madina e Belel)(2). Para quem vem do outro lado, ou seja, a partir de Canturé, há uma enorme rampa em rocha que vai ajudar a dissuadir as flagelações: disparar obuses é possível, mas só um milagre é que pode permitir a precisão da pontaria.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista aérea da tabanca de Bambadinca, tirada no sentido sul-norte. Em primeiro plano, a saída (lado leste) do aquartelamento, ligando à estrada (alcatroada) Bambadinca-Bafatá. Ao fundo, o Rio Geba Estreito. São visíveis as instalações do Pelotão de Intendência. Finete e a sua extensa bolanaha ficavam do outro aldo do rio.

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) © Humberto Reis (2006)


Finete vive da agricultura desta vastíssima bolanha, que, não houvesse a guerra, podia ser cultivada até à Aldeia do Cuor. Chegou a ter um Pelotão de uma Companhia de Caçadores em 64, conforme referi a propósito da granada incendiária que vitimou Abudu Cassamá. Tem hoje para sua defesa o Pelotão de Milícias nº 102. Nos poucos contactos havidos, verifiquei haver pouca preparação e para a defesa das populações só existiam armas automáticas. O quartel está murado por duas fieiras de arame farpado não mantido, os abrigos estão podres e não há valas.

Levo comigo um plano de levantamento das necessidades e a firme intenção de preparar com Bassilo Soncó, o Comandante, e os 2º Sargentos Bacari Soncó e Fodé Dahaba, um calendário de preparação militar a negociar com Bambadinca (relembro que está para breve a chegada do BCAÇ 2852)(3). A primeira surpresa tive-a em Missirá. À porta da minha morança, vários soldados insistiam em ficar comigo em Finete: recordo Tcherno Suane, Ieró Baldé, Bubacar Baldé e Serifo Candé:
- Isto não é uma excursão nem uma expedição. Fiquem aqui nas obras dos abrigos e nos patrulhamentos a Mato de Cão.

Mas subitamente iluminou-se o espírito: e se levasse voluntários para passar a pente fino todo o terreno sólido entre Finete, Malandim e o Rio de Gambana? Dando o dito por não dito, acertei com Saiegh a formação de um grupo de dez voluntários. Com esta ajuda, a 23 de Agosto, descubro um trilho bem marcado que passava entre Finete e Canturé, atravessava o rio de Gambana e internava-se , acima de Chicri, em direcção de Sinchã Corubal. As suspeitas estavam confirmadas: ainda sem se saber a relação entre o PAIGC e os Nhabijões, na outra margem do Geba, havia visitas (periódicas ou irregulares) para Mero e Fa Balanta, ou coisa parecida.

A experiência virá confirmar que o PAIGC cambava armamento pesado entre Enxalé e Mato de Cão (ligação entre o Norte e o Sul da Guiné) e abastecia-se e promovia recrutamentos através de itinerários entre Missirá e Finete. Será um contra-terror que irá crescer a partir do episódio já conhecido como O Presépio de Chicri (4). Seguir-se-ão esperas junto ao Geba com a apreensão de alimentos, captura de civis e também mortes pela calada da noite quando não for possível distinguir o potencial do inimigo.

Sabia que a relação com Bassilo Soncó não seria das melhores. Este irmão do régulo Malã (que irá falecer nas prisões do PAIGC, salvo erro em 1976) era desdenhoso, pouco colaborante e incapaz de motivar as suas tropas. Para evitar confrontações, aliei-me aos 2º Sargentos, dois mandingas lúcidos e críticos da situação que se vivia nesta entrada do regulado do Cuor. Bambadinca cedeu-me materiais para os abrigos (cimento, chapas, bidões, serras), consegui uma metralhadora Breda e começou a preparação de seis apontadores de dilagrama. Fodé acompanhou-me a Bambadinca para estudar com a CCS um programa de carreira de tiro em Samba Silate, perto de Amedalai. E ficou acordado com o oficial de operações que este deixaria com o relatório para o seu sucessor a referência que este Pelotão de Milícias iria ser regularmente experimentado nos teatros das operações.

Percorrer a bolanha em direcção a Finete era um encanto ao fim da tarde quando a bola de fogo do rápido crepúsculo mergulha nos palmeirais. Logo que descobri este espectáculo, tudo fiz para ser seu espectador efectivo. Bacari ajudou-me a fazer um plano para criar segurança nos depósitos de granadas, cartuchos das G3 e das Mauser que eram usadas por todos os civis. Serifo Candé ofereceu-se ao terceiro dia em Finete para fazer pratos simples: atum com batata cozida e ovo ou o interminável bacalhaucozido.

E foi à volta da mesa, bebendo Fanta, que cimentei os laços com Bacari e Fodé (1). Bacari passará a acompanhar-me em quase todas as operações, ficará responsável por acompanhar os doentes ao posto médico de Bambadinca. No futuro, passará sempre alguns dias em Missirá ajudando-me nas obras, a desmatar na zona dos cajueiros , a fazer pontões entre Caranquecuenda e Cansonco, a patrulhar junto do rio Gambiel, que ele conhece desde a infância. Para meu profundo pesar, Fodé ficará brutalmente ferido na Op Anda Cá. É hoje 2º Sargento das Forças Armadas Portuguesas, reformado,tem um negócio de candongas (para quem já esqueceu, são os autocarros que viajam com seres humanos, porcos, galinhas e cereais) que não corre bem e visita-me regularmente. Está completamente cego, afectado por uma daquelas doenças que regressaram com a perda de médicos tropicais, a falta de higiene e prevenção, sobretudo nos rios Geba e Corubal.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (salvo erro), vê-se o Furriel Miliciano Tony Levezinho, ao meio, ladeado pelo 1º Cabo Branco (à sua direita) e pelo 1º Cabo Alves (à sua esquerda) (LG).

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.



A Finete que eu voltarei a visitar em 1990/1991 está irreconhecível com a nova ponte que vai para Bambadinca, com os novos aglomerados trazidos pela paz. A partir de Setembro de 1968, e por decisão minha, farei a guerra mais a partir de Missirá. Não escondo o meu remorso por não ter conseguido encontrar o reequilibrio desejável numa defesa consistente e que ajudasse a promover as populações de Finete. São coisas da inexperiência. Subsistirão as boas relações pessoais e uma recordação muito forte do fanado de raparigas que ali assisti e que deu para perceber que a força do Irã era tão ou mais poderosa que a doutrina de Maomé.


Comentário de L.G.:

Meu caro Mário, prometo tratar bem o nosso O'Neill, já que é um dos nossos poetas favoritos, meu e teu... Não conhecia a Ampola. Acabo de receber o exemplar que tiveste a gentileza de me mandar pelo correio. Vou ver se posso digitalizar e publicar algum dos seus poemas-colagens. Há as questões (delicadas) dos direitos de autor. Tenho que contactar a editora (Assírio & Alvim). Um abraço. Luís

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1081: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (11): Matar ou morrer, Saiegh ?

(2) Madina/Belel era uma zona sob controlo do PAIGC: vd. Vd. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

(3) O BCAÇ 2852 ficou sedeado em Bambadinca (Sector L1) desde meados de 1968 a meados de 1970.

(4) Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P1101: Foi você que pediu a carta de Bula? (Luís Graça)


Guiné > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu. Actualmete a travessia faz-se poor uma ponte. Esta parte do Rio Mansoa é coberta pela carta de Bula (1/50.000), doravante disponível on line.

Foto: © Virgínio Briote (2005)


1. Recebemos no sábado passado, dia 16, um curioso e-mail, subscrito por Pedro Correia da Silva:

Olá. Tenho um cunhado que esteve na Guiné, na região de Bula nos anos 60 como alferes miliciano.E como muitos outros ficou profundamente marcado. As memórias da Guiné são muito importantes para ele.

Estive a procurar na Net mapas da Guiné para fazer uma gravura e oferecer-lhe no dia 19 (faz anos). O mapa que ele mais gostaria seria o mapa militar que você tem no seu site, mas infelizmente não encontro o da região de Bula.

Se o tiver, é possível mandar-mo para este email ?

Agradeço-lhe uma resposta rápida pois hoje já é dia 16.

Cumprimentos, Pedro Silva

2. Eis a surpresa que quisemos fazer a este nosso antigo camarada, cujo nome desconhecemos, através do seu cunhado Pedro, através do seguinte e-mail, com data de 19:

Caro Pedro:

(i) Acabei de satisfazer o seu pedido. A carta de Bula (1/50.000) passou a estar, hoje, disponível, on line, no nosso blogue. É uma carta magnífica. O seu cunhado, que hoje faz anos, vai gostar. Com este pequeno presente, dê-lhe também um abraço de parabéns, do Luís Graça & Camaradas da Guiné, incluindo o Humberto Reis que gentilmente nos cede as imagens digitalizadas de todos estes mapas que honram a cartografia militar portuguesa. O seu cunhado, nosso antigo camarada que andou por aquelas terras, que apareça por aqui um belo dia destes… Gostaríamos de o conhecer…

(ii) Amigos & Camaradas da Guiné: Mais um inestimável serviço do nosso blogue… Obrigado ao Humberto. Este mapa andava perdido num dos meus três computadores… O Carlos Fortunato também andava à procura dele, já que está a planear a sua próxima viagem à Guiné.

A imagem é de boa qualidade, graças também à fotolitografia da Papelaria Fernandes (em geral, são os melhores trabalhos, os desta casa)… e à posterior digitalização feita na Rank Xerox. A imagem original tem 10 MB. Como habitualmente, a imagem que está disponível on line foi reduzida a um 1/3 da dimensão original…


3. O Pedro não perdeu tempo a agradecer o nosso e-mail e o nosso presente de aniversário: "Caro Luís Graça - Chegou mesmo a tempo. Obrigado, Pedro Correia da Silva"...

Por nossa parte ficamos felizes por saber que alguém, que esteve em Bula, durante a guerra colonial, ficou feliz por receber como presente de aniversário a carta de Bula, em formato digital.

Guiné 63/74 - P1100: Recordando os primeiros cabos Rocha e Monteiro, do Pel Caç Nat 63 (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 ou 1970 > "Aqui está o Rocha afagando um cão, de quem aliás já falei na minha estória O Amoroso Bando das Quatro (1). Os outros são: de pé – Soldado Mamadú, eu, 1º Cabo Injai; em baixo – Soldado Demba, 1º Cabo Marçalo, Soldado-maqueiro Adão".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 ou 1970 > "O 1º Cabo Monteiro. Às costas um pequenino Alfero Cabral ".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 ou 1970 > "Eu com o Chefe Tabanca de Fá Mandinga, meu professor de História da Guiné".

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fá Mandinga > 1969 > "Eu em Fá, talvez em Novembro de 1969"... Jorge Cabral foi Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63 (Fá e Missirá, 1969/71); hoje, é advogado e professor universitário.

Textos e fotos : © Jorge Cabral (2006)

Companheiro Luís,

Continuo a acompanhar com todo o interesse o blogue.

Como te disse pelo telefone, ando agora a tentar reunir todos os Amigos do meu Pelotão.

Encontrei o 1º Cabo Rocha o que me causou uma enorme alegria. Possui melhor memória do que eu, e na Guiné escreveu um diário, do qual te mandarei em breve alguns trechos.

Todos estes diários, muitas vezes mal escritos e com erros ortográficos, são importantes. O que lhes escasseia em mérito literário, sobra-lhes em autenticidade. Ficamos a conhecer como pensava e quem era o soldado português, nesses anos sessenta e setenta.

Agora irei à Corunha procurar o 1º Cabo Monteiro, um dos homens mais habilidosos que conheci. No destacamento fez de tudo. Até construiu o forno e cozinhava o pão.

Achei interessante que o Tigre de Missirá, o nosso estimado camarada Beja Santos, tenha lido agora e recomende René Pélissier e a sua História da Guiné (2). Trata-se sem dúvida de uma obra notável que arrasa a colonização portuguesa na Guiné, transformando-a numa mera ficção.

Como já escrevi, e tu publicaste no blogue em 15 de Fevereiro (3), após o meu regresso procurei estudar a História da Guiné, “convicto de que é impossível compreender a guerra colonial e o que se seguiu, sem reflectir na história do país e nas múltiplas acções de resistência armada contra os portugueses”. Com esse objectivo, creio que li tudo, o que existe na Biblioteca da Junqueira, tendo posteriormente consultado alguma bibliografia francesa.

Assim, antes da tradução da História da Guiné, ser publicada em Portugal, em 1989, já havia lido e relido o original Naissance de la Guiné, Portugais et Africains en Sénégambie (1841-1936). Porém, penso que não necessitei de nenhuma leitura para, ainda lá, ter percebido que “uma Guiné idílica e pacífica, de negros portuguesíssimos, nunca existira…” (3).

Aliás, mais do que nos livros, foram os relatos dos Homens Grandes, principalmente do Chefe de Tabanca de Fá Mandinga, que me fizeram compreender o que havia sido e o que era a Guiné. Relembro a descrição da batalha de Kansala, tão viva, que quase me fez ouvir os relinchos dos cavalos…

Mentimos? Penso que não! Aprendemos a viver um faz de conta, o que foi útil porque continuamos a viver, parecendo. Faz de conta…

Com um Grande Abraço,
Jorge
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Notas de L.G.


(1) Vd. post de 17 de Fevererio de 2006 > Guiné 63/74 -DXLVI: Estórias cabralianas (5): o Amoroso Bando das Quatro em Missirá

(2) Vd. post de 19 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1089: História da Guiné Portuguesa, mitos e realidades (Beja Santos)

(3) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)