segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2203: Artistas guineenses (2): José Carlos Schwartz (Didinho/V.Briote)


Na procura de informação sobre quem foi José Carlos Schwartz, escrevi ao Fernando Casimiro:
(...) Sou um dos co-editores de um blogue sobre a guerra da Guiné, o http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/ . Estou a colocar no blogue os principais (pelo menos os que a história e a lenda registou) protagonistas da luta. Visitante do seu Contributo, vi um trabalho muito interessante sobre o José Carlos Schwartz. Autoriza-me a citar o seu trabalho?
E onde posso recolher mais informação sobre o Pansau Na Ina, o Domingos Ramos, o Pedro Ramos e outros? Será que o PAIGC tem algum site onde tenha as biografias dos combatentes? (…)

Prontamente recebi a resposta:

Caro V. Briote,
(…) Sobre o trabalho em relação ao José Carlos Schwarz, é claro que pode reproduzi-lo da forma que achar melhor. Agradecemos isso, até porque vai no sentido da divulgação e valorização das nossas referências! Quero dizer-lhe que tem toda a liberdade para reproduzir o que entender em relação aos trabalhos que estão, ou estiverem no site http://www.didinho.org/ bastando uma pequena referência sobre o site.
Em relação aos nossos heróis nacionais, Pansau Na Isna e Domingos Ramos bem como ao Comandante Pedro Ramos, não há nenhum site que fale deles, nem doutros heróis ou antigos guerrilheiros. As referências que poderá encontrar sobre estas personalidades, estão relatadas, superficialmente, no livro “Crónica da Libertação” do antigo presidente Luís Cabral, um livro há muito esgotado, publicado em Julho de 1984 pela Editora “O Jornal”. Espero que consiga encontrar um exemplar desse livro, mas se não tiver essa sorte, eu poderei emprestar-lhe o exemplar que tenho e que me foi oferecido há cerca de 1 ano pelo autor.
Cumprimentos,
Didinho
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Série Artistas guineenses (*)
Quem foi José Carlos Schwartz: o testemunho de quem o acompanhou
TESTEMUNHOS DE UMA CONVIVÊNCIA
Norberto Tavares de Carvalho, o "Cote"
Genebra, 6 de Dezembro de 2006

Existem pelo menos duas possibilidades de definição do período aproximado da chegada à Guiné do avô paterno do José Carlos Schwarz. A primeira, estaria ligada à cronologia presencial de famílias de origem alemã que se instalaram no nosso país actual. O Arquivo Histórico do Ultramar, por exemplo, situa a chegada da família Schacht (Otto Schacht), no século XIX ou seja nos anos 1800.
A instalação, na Guiné Portuguesa, do avô do José Carlos poderia também situar-se mais ou menos nesse periodo.
A segunda hipótese estaria relacionada com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que levou a ruína, a fome e as doenças à Alemanha. Muitos cidadãos resolveram abandonar esse país. Poderia ser neste segundo contingente que um tal Schwarz desembarcou na Guiné. Mas é possível ainda que hajam outros cenários.
Naquela época, sendo Bolama a capital, era aí que se concentrava a maior parte da camada estrangeira. Instalado na Guiné, o exilado alemão teve pelo menos um filho a quem deu o nome de Carlos Schwarz. Este, por sua vez, viria a constituir família.
O José Carlos nasceu em Bissau num dia como hoje: 6 de Dezembro de 1949, da união de Carlos Schwarz e da Dona Fidjinha (Nha Fidjinha), de origem caboverdeana.
Eis o resumo do que consegui na preparação deste pequeno memorial dedicado ao aniversário natalício do saudoso José Carlos.
Logo que o seu filho atingiu a idade escolar, o Senhor Carlos Schwarz tratou de o pôr na escola. Assim, o José Carlos fez os estudos primários na sua terra e secundários em Dakar, Mindelo e Lisboa.
Segundo um dos seus próximos, o José Carlos interessou-se cedo pela leitura. A revista Readers Digest era distribuída em Bissau e pensa-se que foi através dela que o jovem centro-urbanista deu os seus primeiros passos na literatura. (...)´.
Em meados dos anos 60, o irmão mais velho do José Carlos, o Tony Schwarz instalou-se em Dakar, no Senegal. José Carlos viveu um certo período (1965-1967 ?), sob os seus cuidados.
Tony estava empregado na Perissac, Oficina Peugeot. Inscreveu o seu irmãozinho no curso de francês da Aliança Francesa, (ou numa escola similar). O Tony Schwarz tinha em Dakar uma posição social relativamente estável e cedo o José Carlos viria a provar as alegrias das noites quentes da capital senegalesa.
Nas discotecas, a salsa cubana estava em voga e Laba Sosseh era o seu mais fiel porta-voz.
Dakar, a sua sociedade, a sua cultura e as suas múltiplas perspectivas, ali bem pertinho de Bissau, era uma outra realidade, um outro universo, uma metrópole africana que não escapara à atenção do jovem prodígio. De regresso a Bissau, José Carlos não resistiria a frequentar as festas organizadas no Cupelom de Baixo, por um certo Benjamin de Almeida, comerciante (Djila) que fazia o seu negócio entre Bissau e Dakar e que era um conhecido do Tony Schwarz.
Esse Benjamin seria originário de Geba misturado com o wolof. Indivíduo selecto, distinguia-se pelo seu fato aberto sem gravata e seu chapéu de palha. No meio da festa, o Benjamin mandava abrir o campo para deixar o jovem salseiro exibir os seus dotes de dançarino.
José Carlos então, com aprumo, sapatos de couro de bicos compridos, tomava lugar no meio da sala e ao ritmo das músicas afro-cubanas, com entre-pernas e outras reviravoltas, dava um verdadeiro espectáculo no meio de intermináveis aplausos. Nos dias seguintes, nas ruas de Santa Luzia onde morava com os seus pais, era de novo um verdadeiro cavaleiro que se via no dorso do "Gaúcho", o seu cavalo, com uma corja de crianças atrás dele. Aí nasceria o primeiro mito do "José Cabalo".
Um encontro fortuito, ou o retomar de uma velha amizade, liga o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, dava noites musicais de gala no "Chez Toi ", um dos primeiros night club de Bissau. Zeca era já considerado um bom guitarrista. Duco aprende com o irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão.
Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo "Roda Livre" e ao conjunto musical "Sweet Fanda".
Mas a vida não era só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho do lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe apresentaram. Em 1968, foi destacado para a Guiné um novo Governador, o Brigadeiro António de Spínola, que substituiu no cargo Arnaldo Schultz. Spínola lançou então a politica da « Guiné melhor » à volta da Acção Nacional Popular.
Na altura, alguns emigrantes guineenses, residentes no Senegal, reunidos à volta da Frente de Libertação Nacional da Guiné (FLING), estabeleciam contactos pontuais com o então Governo Colonial Português. As cabeças pensantes mais conhecidas naquele tempo em Dakar eram os Senhores Benjamin Pinto Bull, Jonas Fernandes, François Cancola, etc.
O Tony Schwarz, que nunca escondera a sua hostilidade para com o PAIGC, pelo seu líder Amílcar Cabral e pelo seu programa da unidade entre a Guiné e as Ilhas do Cabo-Verde, (não se trata aqui de um julgamento, o Tony tinha de certeza argumentos para tal) embora mantivesse uma certa discrição à volta dos debates políticos daquela era, teria exercido uma certa influência nesse sentido sobre o seu irmão cadete. Não se trata aqui duma afirmação absoluta …
Entretanto, também regressa a Bissau o Everimundo José da Silva, filho do Nhu Musante, do bairro do Chão do Papel. Jovem instruído, Everimundo tinha fugido de Bissau indo reunir-se aos combatentes do PAIGC em Conacri. Daí teria beneficiado de uma bolsa de estudos para um dos países do Leste (Bulgária, RDA ?). Algum tempo depois, teria abandonado os estudos passando à RFA (República Federal da Alemanha). Sem a autorização de estadia na RFA, vivendo numa perfeita clandestinidade, Everimundo teria sido controlado numa discoteca, pela polícia alemã e recambiado para Portugal onde teria sido entregue à PIDE/DGS.
A organização secreta do então Governo Colonial Português tê-lo-ia metido na prisão, interrogado, torturado, e, de novo, recambiado para a Guiné.

Em Bissau, Everimundo teria sido imediatamente integrado na Acção Nacional Popular. Não se sabe exactamente quando é que conheceu o José Carlos Schwarz. Mais adiante poderão perceber a razão porque o caso do Everimundo José da Silva é citado nestas linhas.

Por volta de 1969, cerca de um ano depois da chegada à Guiné do Governador António de Spínola, um grupo de deputados da Acção Nacional Popular (ANP) parte para uma visita a Portugal no quadro do programa "Por uma Guiné Melhor", promovido pelo Brigadeiro. O Governo Colonial Português, na sua propaganda anti-nacionalista, deu uma grande cobertura à visita. No filme realizado, via-se o José Carlos Schwarz no meio da delegação da ANP na Fábrica de Explosivos e Munições Braço de Prata, na região de Lisboa.
Paradoxalmente, graças a essa mesma visita, o jovem de vinte anos na altura, iria ser confrontado com as suas próprias responsabilidades no contexto político-colonial. Este exercício identitário, inteiramente pessoal e profundamente interior deve-se ao seu encontro, em Lisboa, com um certo Filinto de Barros, "De Gaulle". Isto toda a gente sabe pelo que não constitui segredo nenhum. José Carlos teria recebido do "De Gaulle"os primeiros ensinamentos do nacionalismo africano, com exemplos da particularidade guineense.
O seu interlocutor, que na altura era estudante em Lisboa, conseguira convencer o José Carlos de que o seu papel não era ao lado do poder colonial. O encontro de Lisboa, com o Filinto de Barros constituiria o despertar de consciência do jovem pequeno burguês.
Quando o filme da visita a Portugal foi difundido na Guiné, no programa "Por uma Guiné Melhor", um dos actores do filme já não era o mesmo. O feitiço virara-se contra o feiticeiro.

O Everimundo José da Silva não teve a mesma chance de se cruzar com um Filinto de Barros. Foi precipitadamente executado logo depois do 25 de Abril de 1974. Oficialmente, o PAIGC ainda se encontrava em Conacri e nas regiões libertadas mas a sua ponta-de-lança já operava em Bissau.
De Readers Digest e outras, o nosso herói passou a interessar-se por outros tipos de literatura. Em Bissau, a Pide/DGS controlava de uma certa maneira a circulação de revistas subversivas. A "Vida Mundial", que dava valiosas informações de política internacional, não fazia parte da restrição. José Carlos fez dela a sua nova leitura de cabeceira.
Depois do Duco Castro Fernandes e do Filinto de Barros, um terceiro encontro, também decisivo, iria marcar uma nova reviravolta na evolução política e cultural do jovem rebelde, afinando ainda mais a sua definitiva opção. Seu nome: Aliu Barry.
À priori músico tradicional, Aliu evoluíra do seu lado, entre os dois Cupeluns. Exprimia-se perfeitamente com a viola ao contacto dos seus exímios dedos de ritmista. Uma grande amizade os reuniria e estaria na base da fundação de um dos primeiros conjuntos modernos de música crioula guineense, o "Cobiana Jazz" (1).
"Cobiana" instalar-se-ia na cena musical guineense fazendo leal concorrência à "Juventude 71" que já se implantara sobretudo no meio estudantil (...). Naquela época o Ernesto Dabó evoluia nos "Náuticos", e o Sidónio Pais Quaresma, o "Sidó", preparava-se para encapotar as suas "Capas Negras". Eis os conjuntos que constituiam as mais ambiciosas perspectivas musicais daquele glorioso periodo juvenil.
"Cobiana Jazz" propagava na sociedade guineense uma mensagem que ia directamente ao encontro das massas populares, conquistando assim uma boa parte da juventude urbana que passou a ter a possibilidade de pensar e de agir a partir da definição de uma nova base contextual.

O fenómeno "Cobiana Jazz" releva também o que Amilcar Cabral postulava a propósito das revoluções, a saber que só a pequena burguesia tinha a capacidade de as conduzir. Quanto à tese de Cabral relativo ao « suicídio » desta classe após a revolução, isso já pertence a um outro capítulo.
Sociologicamente falando, o José Carlos Schwarz era o único elemento da pseudo-burguesia, presente no grupo. Esta constatação não afasta em nada os outros valores do grupo, é simplesmente uma questâo de referência ideológica, cuja evolução, como referi anteriormente, pode ser dicutível.
Com o "Cobiana Jazz", o José Carlos Schwarz, o Aliu Barry e as suas retaguardas musicais, entram de rompante no conflito colonial, mudando forçosa e radicalmente uma parte dos peões avançados pelo Spínola, que constituiam, em grande parte, os alicerces da nova política colonial de alienação e submissão da juventude e da massa popular.
Confiantes nas suas acções mobilizadoras, os dois líderes resolvem participar, de maneira frontal, nas actividades da "Zona Zero", a principal antena do PAIGC em Bissau, dirigida por Rafael Barbosa.
No auge das suas actividades contra o Governo Colonial, José Carlos e Aliu Barry decidiram colocar uma bomba na própria delegação da PIDE/DGS em Bissau. Partiram de motorizada que deixaram banalizada nos arredores, atravessaram o portão principal e foram depositar o engenho na porta de grelhas, envidraçada do lado de dentro. Tratava-se de um potente explosivo de comando por relógio. Uma bomba-relógio!
Seguiu-se depois uma violenta explosão que fez voar em pedaços as grelhas e os vidros da porta da PIDE. José Carlos e Aliu tinham ousado desafiar o inimigo numa das suas mais protegidas fortalezas.
A fama do "Cobiana Jazz" percorrera praticamente toda a Guiné. José Carlos que entretanto fora chamado à tropa, bem como o Aliu Barry, viu-se afectado como condutor de camião em Fá Mandinga onde os Comandos Africanos recebiam preparação. Poucos meses depois seria o José Carlos convocado a Bissau onde receberia a ordem de prisão da PIDE. Aliu Barry teria a mesma sorte.
Deportados para a Colónia Penal da Ilha das Galinhas, Aliu cumpriu aí a sua sentença de dois anos. José Carlos só passou três meses na Ilha, tendo sido retornado ao Pavilhão de isolamento da Segunda Esquadra em Bissau para aí concluir o resto da sua pena fixada em três anos.
Esta dupla sanção dever-se-ia aos seus presumíveis contactos com a população da Ilha das Galinhas ou ao facto de que, entretanto, a PIDE teria descoberto outros casos em que estaria implicado e o teria reconvocado a Bissau. José Carlos defendia a segunda hipótese. Mas o afecto que dedicava aos Bijagós que constituíam a população da Ilha das Galinhas, era eloquente. Aliás, chegou a reivindicar essa paixão no seu famoso "djiu di Galinha" (2).
Foi quando a PIDE o transferiu da Ilha das Galinhas para Bissau, que o conheci de perto. Pois em Novembro de 1972, na sequência de uma greve de estudantes, precedida de manifestação no Palácio do Governo, tinha sido detido pela PIDE, por ordem do General Spínola.
Ocupei momentaneamente a cela n° 12 do Pavilhão de isolamento. O José Carlos encontrava-se na cela n° 16, a última do corredor. Quando lhe expliquei que fazia parte de um grupo de estudantes que fora reivindincar um tratamento mais condigno no plano dos estudos, entusiasmou-se tanto que pronunciou a frase : "É o segundo Pindjiguiti !"
Fui libertado algumas horas mais tarde em troca duma advertência pronunciada pelo Inspector-Adjunto da PIDE, Raimundo Alas, que não tinha matéria suficiente para me prender: Não é porque o vizinho quer aumentar o seu terreno que vai estendê-lo sobre as margens do outro vizinho.» Confesso que até hoje, não percebi o sentido desta frase.
A sentença caiu sobre mim em Maio de 1973. Quando me empurraram na cela n° 6 e fecharam a porta, senti umas batidas na parede, lembrei-me logo da técnica e respondi batendo na mesma. Uma voz vinda do fundo do corredor inquiriu: "Quem é?" O José Carlos Schwarz encontrava-se ainda na mesma cela de há seis meses atrás !
Estivemos juntos, eu na minha cela e ele na sua, durante cerca de quatro meses. Falamos de tudo e de nada. Fiquei desiludido ao saber que, afinal, havia traição na "Zona Zero".
Nas nossas conversas, contei-lhe uma cena relacionada com a peregrinação da minha mãe a Fátima, em Portugal, cerca de um mês antes de eu ter sido preso. A história divertia-o imenso.
Em Lisboa, a minha mãe tinha sido abordada por uns estudantes com os quais me encontrava ligado. À cabeça do grupo estava o seu neto, o João Nelson Sá Nogueira, “Nuno Quipa”, na altura estudante de Geologia. Disfarçaram na bagagem da minha mãe uma série de livros e revistas subversivas.
Quando a minha mãe regressou a Bissau, chamou-me e ordenou-me que abrisse a sua mala. Pequei nos livros, e enquanto ela vociferava que não me queria ver naquelas relações, eu já tinha ido para o meu quarto maravilhar-me com "A Mãe" de Máximo Gorki, "O Diário do ‘Che’ na Bolívia", "Portugal e o Futuro" do Spínola, etc., etc.
(...) Iniciou-me às regras do Pavilhão. Fiquei surpreendido ao saber que a PIDE colocara em toda a extensão do corredor, um sistema de escuta que lhe permitia controlar as conversas dos prisioneiros através duma central.
Para evitar eventuais salamalécos, cada prisioneiro tinha um nome de código ou era identificado por um assobio. O José Carlos era nato no exercício. A sua identificação inicial era "Djiu", depois passou a ser "Sidi". A mim baptizou-me "N’barrim" (irmãozinho no dialecto mandinga). Havia o "Belankufa", o "Canhuto", o "Zarra" e variadíssimas outras versões que se competiam no Pavilhão.

"Djiu" defendia a tese de que antes de ir para a luta armada ou de efectuar acções de guerrilha urbana, os jovens deveriam antes passar pela prisão da PIDE, provar o castigo, a vida dura, etc. Ele mesmo, preferia que o retornasem à Ilha das Galinhas em lugar de ser libertado. Para ele o castigo era algo de pedagógico que contribuia para a maturidade.
Perdido nos seus argumentos, postulava para mim a deportação para a Ilhas das Galinhas o que naturalmente me dava cabo dos nervos recusando prosseguir a conversa com ele. Fértil em ideias, instaurou no Pavilhão uma escala hiérárquica que consistia em dispensar o merecido respeito aos condenados de três anos, depois aos de dois anos, de um ano, meses, etc. Assim, o recém-chegado era básico na pirámide. Ele era "Comandante", pois tinha a pena máxima (3 anos) assim como o Biéne Na Bion, um guerrilheiro que conhecera na Ilha das Galinhas, que tinha sido libertado meses antes e que fora de novo capturado pelo exército português, condenado desta vez a três anos de prisão.
José Carlos não parava de criticar o guerrilheiro, acusando-o de negligência, de falta de rigor, disto e daquilo. Dizia-lhe assim, "Desta vez vão matar-te". Mas um dia, quando o seu colega "Comandante", apareceu no corredor depois de um intenso interrogatório, com as nádegas completamente inchadas de tanta palmatória levada, lá estava o "Djiu", em primeira linha, a consolar e a animar o combatente.
Meses mais tarde, quando lhe comuniquei que ia ser deportado para os trabalhos forçados na Colónia Penal, por três anos disse-me: "Agora sim, temos a mesma patente!"
Eu que nunca levara aquilo a sério, comecei a interrogar-me se o tempo que passara no isolamento não teria afectado o juízo, pois fiquei com o sentimento de que tinha posto muita convicção na sua frase de despedida.
José Carlos era o "condómino"do Pavilhão. Conseguira a autorização de ser o último a ir tomar banho e fazer as suas toilettes e, o que apreciava muito, passar o pano no corredor e limpar a casa de banho. Deixavam-no sozinho passear no corredor cerca de 15 minutos, o tempo suficiente para ir falar com outros prisioneiros e oferecer-nos frutas e outras guloseimas que recebia de casa.
Durante esse periodo tive o grande privilégio de ser um dos primeiros padrinhos das belas e salientes canções que o José Carlos compôs durante o seu cativeiro. "Minino de criaçon", "Muscuta", "Quê qui minino na tchôra", "Djénabu", "N’djanga" e toda a série que se lhes seguiu. Realizávamos até sessões de discos pedidos: eu animava e ele cantava.
Um dia, os guardas vieram buscar-me e fui transferido para a cela n° 7, do outro lado do Pavilhão. Devíamos estar nos meses de Setembro ou de Outubro de 1973. (A margem de erro é possível.) Conduziram-me ao pátio do Pavilhão onde me fizeram esperar alguns minutos. Cerca de pelo menos três metros do lugar onde me encontrava, jazia um corpo quase inerte em cujas narinas se notavam ainda vestígios de sangue coagulado. Fiquei estupefacto. Mas tive tempo de notar que o indivíduo aí estendido era dotado de uma certa corpulência. De tez negra, relativamente esbranqueada, tronco nu, o homem aparentava um cansaço extremo evidente.
Da minha nova cela, transmiti imediatamente a imagem que gravara na mente. Ninguém conseguiu identificar de imediato o prisioneiro. Alguns dias depois, o "Belankufa" (Duarte Cabral) anunciava ao Pavilhão a morte do Domingos Badinca, um dos responsáveis da rede clandestina do PAIGC de Bolama.
José Carlos, antes de ser preso, fascinara-se com a leitura de "Os condenados da terra", de Franz Fanon que circulava no meio da camada intelectual daquele tempo em Bissau, como o Jorge Ampa Cumelerbo, o Fernando Delfim da Silva, "Djumbo", o Adalberto (o seu apelido escapa-me) o Idrissa Djalló, etc. teria sido o Mumini Embaló quem fornecera um exemplar da obra de Franz Fanon ao José Carlos.
A figura principal da investida do escritor antilhês contra o racismo e a miséria, inspirou o nome do Naman, seu primeiro filho da união com a Teresa Loff Fernandes que teria conhecido em Lisboa. De origem cabo-verdiana e nascida no Senegal, a Teresa era também de ascendência alemã.
Alegre e simpática, a mulher do José Carlos tomava parte activa nas actividades clandestinas da "Zona Zero".
Fã incontestável de Kanté Manfila, o José Carlos admirava a proeza técnica do congolês Franco, as fecundas melodias do Balla e dos seus Balladins e a excelência do Kélétigui Traoré, que tinha a magnificência de combinar nos seus arranjos musicais, o moderno e o tradicional.
José Carlos Schwarz foi libertado em Bissau logo depois do 25 de Abril e foi convidado a pronunciar um discurso que foi difundido na rádio. Antes de ser preso, fizera este sermão: "Juro-vos, que por mais que o pau possa permanecer no mar, nunca se transformará em crocodilo", o que traduzido em linguagem comum significa que tarde ou cedo assistir-se-ia ao fim da opressão colonial. E aí estava ele de novo, numa comunhão perfeita com o seu público, a confirmar a sua ousada profecia.
Da Ilha das Galinhas, ouvi o discurso que iniciou dizendo: "Irmãos!", numa voz terna e carregada de emoção. O Feiticeiro transformara-se em Profeta.

(1) Cobiana era o nome de uma base das FARP-Norte

José Carlos foi solto no início de Maio de 1974. Começou com os concertos diários, mobilizando o maior número possível de pessoas para combater a ideia do referendo.

Logo após a chegada dos camaradas do mato, os choques e conflitos proliferaram entre os combatentes do mato e os camaradas de 2ª classe, que era o que chamavam aos militantes clandestinos que viviam na cidades. Zé Carlos, como tantos outros, estava entre estes. Começou a compor música de crítica social e política. Como o lugar de Director-Geral não calou o seu "espírito cabralista e rebelde" foi quase obrigado a aceitar o cargo de encarregado de Negócios em Cuba (nota de Miguel Pedras, em Contributo).

Na manhã solarenta do dia 27 de Maio de 1977, o avião da Aeroflot que o transportava para as novas funções, procedente de Lisboa com 66 passageiros fazia-se à pista do aeroporto José Marti, em Cuba. Segundo a versão oficial terá tocado num fio de alta tensão. Só houve uma sobrevivente. Fonte Maria Teresa Loff Fernandes (viúva de J. Carlos).
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Nota do co-editor: vb
Os nossos agradecimentos ao Fernando Casimiro

Guiné 63/74 - P2202: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (8): Voltei a Cufar e a chafurdar nas bolanhas e rios de maré (Mário Fitas)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 7763 (1965/66) > Estrada Cufar-Catió> Segurança montada enquanto se levantam as minas A/C.



Foto: © Mário Fitas (2007). Direitos reservados.



1. Mensagem do Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp, CCAÇ 763, Cufar 1965/66, e autor dos dois romances sobre a guerra da Guiné (1):

Animado com a presença e conhecimento pessoal dos camaradas tertulianos da Tabanca Grande, foi, com grande curiosidade e algum nervosismo, que esperei pelo início do filme "As duas faces da Guerra", de Diana Andringa e Flora Gomes (2).

Fiquei estupefacto quando, ao entrar no hall da Culturgest, nos vimos relegados para uma fase lateral - a esposa do Briote, ele próprio, eu, e amigos da ADFA - pois a parte central estava completamente cheia e, para alegria minha e concerteza de todos, com muita gente jovem (em fisionomia, pois nós em mente, ainda estamos aqui prás curvas, desde que não sejam muito apertadas). O que é certo é que com seiscentos e tal lugares, o grande auditório ficou praticamente lotado.

E começou o filme. Voltei à Guerra e revisitei Cufar de outros tempos e chafurdei nos pântanos, bolanhas e rios de maré. Praticamente sem me aperceber, o filme tinha terminado.

Gostei!...Óptimo testemunho histórico!

O filme estará um pouco próximo do espírito da nossa Tertúlia, a sã convivência e lúcida reflexão do que se passou há quatro dezenas de anos.

A linha do filme está proximamente direccionada da nossa palavra de ordem "Não deixes que sejam os outros a contar a tua história", só que pobre da Diana e do Flora, se tivessem de falar com todos os milhões de homens e mulheres que viveram esta Guerra, [nunca mais fariam mais nada na vida!].

O que foi feito, a meu ver, está bem feito! Repito!... um bom documento histórico! "E longa a caminhada, e muito teremos de falar e tentar compreender". Tanto do lado do PAIGC como do Português, há ainda muitas coisas por desvendar.

Um pouco "ainda a quente", volto a frisar que é uma obra de mérito, honesta e sincera. Portanto as minhas felicitações à Diana Andringa e ao Flora Gomes! Continuem a vossa obra.

É claro que terei de rever o filme e dissecá-lo. Não tanto pela realização em si, mas mais pelo conteúdo dos testemunhos efectuados.

Que me desculpe o pessoal da Tabanca, mas nós, entre nós, temos de debater determinados tabus, ou seja varrer todas as teias de aranha. Há muitas coisas de efeitos e causas diferentes.

Reafirmando, "ainda a quente" dos testemunhos efectuados, algumas coisas me ficaram bailando na mente.

Como homem de Operações Especiais e vivendo a Guerra como vivi, terei forçosamente de saber alguma coisa sobre Guerrilha e Contraguerrilha. Assim com responsabilidade posso referir:

(i) Abandono de Guileje: estou cem por cento de acordo! Só quem pisava lama da Guiné e se encontrava no terreno, tinha de ter "tomates", falando portuguêsmente, independentemente do resultado disciplinar, e saber ensinar aos senhores da bota alta engraxada que, se numa guerra convencional há avanços e recuos, na contraguerrilha tudo isso mais acontece.

(ii) Ainda sobre Guiledge, palavras do comandante Pedro Pires (3): Guerra é Guerra... Julgo que foi uma expressão pouco feliz de um homem com as suas responsabilidades.

Desculpem-me todos os camaradas, principalmente o chefe da Tabanca Grande, mas para ficar aliviado, eu teria retorquido ao comandante Pedro Pires:
- Precisamente por Guerra ser Guerra, a CCAÇ 763 em seis meses varreu o seu sector na margem direita do Cumbijã, e saltou para a margem esquerda, Flaque Injã, Cadique, Caboxanque, etc....etc.... agora digo: MERDA DE GUERRA!!!.

(iii) Infelizmente há outras coisas! Um "D" que não foi tocado, a situação dos militares brancos e negros que serviram o Exército Português e cujos problemas se mantêm pior que há quarenta anos.

Desculpem camaradas, mas por vezes teremos de espirrar.

Terminando, pois a Diana não tem culpa destas coisas, por esse motivo lhe peço desculpa.À Diana agradecia que transmitisse ao Flora os parabéns pela obra que realizastes.

Um Abraço

Mário Fitas
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Notas dos editores:

(1) Vd. posts de:

12 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2043: Bibliografia de uma guerra (23): Putos, Gandulos e Guerra, de Mário Vicente, aliás Mário Fitas (CCAÇ 763, Cufar)

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1926: Bibliografia de uma guerra (21): Pami Na Dondo ajuda-nos à reconciliação com a guerrilha (Virgínio Briote / Carlos Vinhal)

2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1911: Bibliografia de uma guerra (19): Pami Na Dondo, guerrilheira do PAIGC, o último livro de Mário Vicente (A. Marques Lopes)

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1893: Notícias de Cadique (Mário Fitas, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)

26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1884: Tabanca Grande (16): Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)

(2) Vd. post de 22 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2200: A nossa Tabanca e As Duas Faces da Guerra (7): Comentário de Inácio Silva, da CART 2732, Mansabá, 1970/72

(3) Comandante Pedro Pires (n. 1934): De seu nome completo, Pedro Verona Rodrigues Pires, nasceu em São Filipe, Fogo, Cabo Verde, em 29 de abril de 1934.

Estudou na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Foi aqui que encontrou os futuros líderes dos movimentos de libertação que lutaram pela independência das colónias portuguesas. Foi também alferes miliciano da Força Aérea Portuguesa.

Com o início da luta armada em Angola em 1961, saiu de Portugal no meio de uma leva de estudantes africanos que foi a salto para França (entre eles, estavam os angolanos Iko Carreira, Gentil Viana e Daniel Chipenda e os moçambicanos Joaquim Chissano e Pascoal Mocumbi).

De França seguiu para Marrocos, onde colaborou com o dirigente da Frelimo, o moçambicano Marcelino dos Santos, na Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas. Em 1963, Pedro Pires já estava em Dacar, Senegal, de onde transitaria depois para Conacri, antes de seguir para Cuba e para a URSS, onde frequentou cursos de guerrilha.

O sucesso da luta do PAIGC, na Guiné, liderada por Amílcar Cabral e Osvaldo Vieira (frente Leste), Luís Cabral e Francisco Mendes (Norte) e ristides Pereira e Nino Vieira (Sul), levou o partido a admitir a hipótese de criar um foco de guerrilha em Cabo Verde, que seria comandado por Pedro Pires, tendo Honório Chantre como adjunto. As ilhas de Santiago e de Santo Antão eram os palcos escolhidos para a actuação da guerrilha, com o apoio de Cuba. A morte de Che Guevara, na Bolívia, em 1968, terá levado Havana (e o PAIGC) a recuar...

Em Janeiro de 1973, é surpreendido, pelo assassínio de Amílcar. Na sequência deste trágico acontecimento, foi um dos protagonistas do II Congresso do PAIGC, que criou uma Comissão Nacional para Cabo Verde. Devido à popularidade que já desfrutava entre os combatentes, foi-lhe atribuída a presidência dessa comissão.

Foi depois escolhido para comissário adjunto (secretário de Estado) das Forças Armadas, quando o PAIGC proclamou a independência da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973. Nessa altura, Pires aparecia como n.º 2 de Nino Vieira, que acumulava as funções de comissário (ministro) com as de presidente da Assembleia Nacional Popular.

Depois da Declaração de Independência de Cabo Verde em 5 de julho de 1975, foi designado ministro-presidente, cargo que ocupou até 1991, quando — como resultado de sua iniciativa junto com outros — o sistema multipartidário foi introduzido no país e o MpD - Movimento pela Democracia, de Carlos Veiga, conseguiu a maioria.

Com o advento da democracia e do multipartidarismo, em 1991, o Comandante Pedro Pires substituiu Aristides na liderança do partido (já designado por PAICV após a cisão de Nino), antes de empreender uma longa travessia do deserto durante a governação do MpD.

Em 2001, apresentou-se finalmente como candidato presidencial contra Carlos Veiga e venceu as eleições com apenas 17 votos de diferença. Em 22 de Março de 2001 foi empossado como sucessor de António Mascarenhas Monteiro.

Fontes consultadas:

Wikipédia
Diário de Notícias

Guiné 63/74 - P2201: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (2): Eu estava lá em 1961 e lá fiquei até 1975 (António Rosinha)

Angola > 1961 > Desfile de tropas > O António Rosinha, furriel miliciano, aparece aqui em primeiro plano, assinalado com um X (1)... O alferes, que vem à frente, e os três furriéis, imediatamente a seguir, empunham pistolas-metralhadoras FBP (Fábrica Braço de Prata) (1)... AS praças, brancas e negras, usam a velha Mauser...

Foto: © António Rosinha (2006). Direitos reservados

1. Texto do António Rosinha (2):

Assunto - RTP: Chover no molhado ou... caça à audìência ? A Guerra (3)

por Antonio Rosinha


Depois de ver pela enésima vez, durante mais de 30 anos, as imagens do primeiro episódio da "NOSSA GUERRA", (mais um nome para a confusão), prometi para mim, que não emitiria opinião sobre o assunto, nem com familiares, muito menos para os tertulianos.

Embora tivesse assistido a uma das cenas em Luanda, pelo menos à manifestação em frente à embaixada da América, perto da minha residência. Estava achegar a casa, vindo do quartel, pois já havia sido re-convocado, a seguir ao célebre 15 de Março de 1961.

Para completar o relato dessa imagem, onde a população deitou o carro da embaixada à baía de Luanda, essa mesma população marchou para uma Igreja da missão adventista, perto do mercado dos Lusíadas, pois já se sabia que fora nessas missões financiadas pelos EUA, (para dilatar a fé e o império, provavelmente), que o caldinho das matanças fora organizado. Essa igreja, mais tarde foi destruída. Claro que o Joaquim Furtado, mesmo em nove epísódios, [não pdoe contar todos estes pormenores,] nem em 90...!

Mas como disse, prometi não falar, mas cá estou a faltar à promessa, tudo porque... eu vi, apalpei, cheirei, respirei, vi o princípio, o meio, e só não vi o fim, porque para mim ainda não terminou a nossa guerra, porra!!! E já saí de Bissau em 1994. No entanto escrevo, porque, outros se anteciparam a mim. O caso do nosso maior, o Homem garandi, o Luís.

E penso que os tertulianos que me lerem, como não me acompanharam no pelotão daquela vida, 1957-1975, me vão desculpar se eu contar algo que nenhum tertuliano testemunhou.

Peço ainda ao Luís ou co-editores que exibam a mesma foto em que o Luís fala da minha FBP.

Primeiro é para dizer que essas FBP estavam inoperacionais em geral, porque as poucas que existiam em Angola eram da instrução, e com tanto "monta e desmonta" as molas de recuperação já não actuavam. Mas a mim não me fez diferença, pois que, tirando a carreira de tiro, nunca fiz fogo a não ser à caça. Nem fiz nem ouvi. Vivi 200 dias por ano em toda a Angola, durante os 13 anos de guerra, menos a tropa, em barracas de campanha.


O 25 de Abril apanhou-me nas terras que Lobo Antunes chamou "Os cus de Judas", numa barraca de campanha, acompanhado por 10 serventes, aparelhos de topografia e um Land Rover em estudo de estradas. Apenas soube do 25 de Abril no Domingo a seguir.

Segundo, é para dizer que a minha vivência em Angola está bem demonstrada nessa foto, pois desde os 3 furriéis até aos soldados recrutas que me acompanham não estão por ordem de altura nem côr, e que profissionalmente e socialmente foi essa a minha vivência e de milhares. Dentro do fabuloso "espírito desorganizativo" peculiar.

O que é que me fez continuar em Angola (conscientemente) depois de ver o efeito daqueles massacres? E depois de o primeiro capitão do quadro vindo da metrópole, que eu conheci de camuflado (Sousa e Silva, ou Silva e Sousa), me ter massacrado durante uma viagem, que estava ali a sofrer, porque nós os que estavamos em Angola, eramos uns ladrões, roubávamos os pretos e maltratávamo-los etc.? (Essa viagem foi numa picada de uma manhã inteira entre Golungo Alto e Cerca em 1961, num Jeep Wyllis). Escrevo isto porque tenho antigos colegas, e hoje já muita gente lê o nosso Blogue.

A principal explicação, ouvimo-la todos na RTP, da boca de Holden Roberto a Joaquim Furtado:
-Vou reivindicar o massacre antes que o MPLA o reclame.

Em Angola todos assimilaram isso e a maioria sabia que o MPLA era URSS e a UPA era EUA. A guerra fria. E um pouco de demagogia enganava aquele povo. Até hoje Angola sofre os efeitos daquele dia. Pois inicialmente, era um movimento só no Congo, e os angolanos não esqueceram durante os últimos trinta e tal anos de guerra, e jamais esquecerão.



Foto do aldo: Embema daUPA (União dos Povos de Angola, vriada em 1954, pot Holden Roberto). Fonte: Wikipédia (Imagem do domínio público)Holden Roberto [1923-2007], cunhado de Mobutu [1930-1997] (e ajudado por ele e pelos EUA), desapareceu durante uns anos, e só apareceu no 25 de Abril, e todos Angolanos ficaram admirados, ao ponto de se dizer que deveria ser outra pessoa, por ele, (propaganda do MPLA?)... Mal falava português, apareceu em Angola com soldados que só falavam francês, e espero que Joaquim Furtado recupere uma das primeiras entrevistas dele após esse reaparecimento, em que perguntado porque o povo não aderiu, ele respondeu, como um bom adventista:
-São coisas diabólicas, sem explicação.

Outras explicações para a minha permanência em Angola, conscientemente, foi que desde a escravatura das Áfricas, até à construção daquelas cidades e fronteiras, aquela vivência sem ordem de alturas nem cores, aquela desorganização, aquele desenvolvimento/atraso, (também conheci o Congo Belga e a Namíbia e a Zâmbia nas fronteiras), nada tinha a ver com políticas Leste/Ocidente, Salazar, etc.... Tinha sim e muito a ver com Portugal e todos os africanos que conheci. E eram independentistas. Treze anos na Guiné vieram-me confirmar a lógica do meu raciocínio e de milhares em permanecer em Angola.

Prometo aos tertulianos que não volto a referir nada que não se refira só à Guiné.

Um abraço
António Rosinha
__________

Notas dos editores:

(1) Sobre a pistola-metralhadora FBP, a Wikipédia diz o seguinte:

(...) A FBP é uma pistola-metralhadora desenhada [, em 1948,] pelo Major Gonçalves Cardoso do Exército Português, que combina as funcionalidades da MP40 alemã e da M3 americana. O resultado foi uma arma de confiança e com baixos custos de produção.

A arma acabou por ser produzida pela Fábrica de Braço de Prata (FBP) em Lisboa, sendo utilizada pelas Forças Armadas Portuguesas durante a Guerra Colonial.

A versão original FBP m/948 apenas permitia o tiro totalmente automático, inconveniente que podia levar ao grande desperdício de munições. Em 1961 começou a ser produzida uma versão aperfeiçoada (FBP m/961) que permitia, além do tiro automático, o tiro semi-automático.(...)


(2) Vd.post de 29 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1327: Blogoterapia (7): Furriel Miliciano em Angola, em 1961; topógrafo da TECNIL, em Bissau, em 1979 (António Rosinha)

(3) Vd. post de 18 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2193: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (1): 18 episódios, às terças feiras (João Tunes / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P2200: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (7): Comentário de Inácio Silva, da CART 2732, Mansabá, 1970/72

1. Comentário do Inácio Silva (1) ao filme-documentário passado na Culturgest, em 19 de Outubro de 2007, da autoria de Diana Andringa e de Flora Gomes, “As duas faces da guerra” (2):

Diana Andringa e Flora Gomes, a par de outros jornalistas consagrados, através de provas dadas, trouxeram, esta noite, a público, a voz, o ver e o sentir dos ex-combatentes portugueses, intervenientes na Guerra decorrida na Guiné, iniciada pelo PAIGC, no ano de 1963.
Com humildade, Diana Andringa, admitiu que muito ficou por contar do que se passou nos onze anos de guerra, impossível de retratar numa película com cerca de 100 minutos.

Valeu a pena ter estado neste evento, fundamentalmente por duas razões:

(i) nos momentos que antecederam a passagem do filme, verifiquei que os sacrifícios porque passaram os ex-combatentes, quase todos com histórias comuns, sedimentaram a camaradagem, o respeito e a amizade entre todos, independentemente do seu posto ou do quartel para onde foram mobilizados;

(ii) ficar a saber aspectos e pormenores da guerra, quer do lado português mas, principalmente, do lado do PAIGC, desconhecidos da maioria dos ex-combatentes.

O documentário começa de uma forma arrepiante ao mostrar um singelo monumento, com o formato de uma pirâmide semidestruída, no qual constam, sulcados e com muito pó, os nomes de combatentes mortos em Geba [, em 1967], em simultâneo com o capim, símbolo de beleza natural, de respeito e de medo porque servia de esconderijo aos beligerantes, de onde, geralmente, surgiam as emboscadas.

Depois, são apresentados relatos de episódios, na primeira pessoa, da vivência da guerra, tanto do lado português, como do lado do PAIGC, geralmente descritos com emoção, alguns com comoção.

Facto relevante e revelador das agruras da guerra foi um excelente excerto das filmagens efectuadas por uma equipa da televisão francesa, autorizada pelo general António de Spínola, a acompanhar, numa operação, uma companhia de militares portugueses que viria a ser atacada, em emboscada [, na região de Có/Pelundo], na qual o soldado Capela perdeu a vida e outros camaradas ficaram feridos. Foi manifesto o sentimento de raiva, de tristeza e de impotência dos camaradas ao verem caído, no solo, sem vida, um seu elemento que poucos minutos atrás estava pujante de vida. Esta operação pretendia demonstrar aos jornalistas franceses que Portugal tinha o controlo da situação...

Talvez o aspecto mais revelador do documentário é a descrição, com algum pormenor, de certas tácticas de guerrilha empregues pelo PAIGC, sendo salientado o recurso frequente aos elementos infiltrados nas tropas portuguesas para obterem informações militares, para futuros ataques. Ao longo dos anos, foi notória a evolução das técnicas de guerrilha, por parte do PAIGC, que, aliadas a um cada vez melhor apetrechamento de material bélico, iam criando crescentes dificuldades às tropas portuguesas, tornando-as, dia a dia, ano a ano, mais vulneráveis.

De salientar, também, um aspecto digno de registo: os guerrilheiros do PAIGC, assumiam uma atitude disciplinar exemplar e de profundo respeito para com o seu comandante Amílcar Cabral. Esta atitude adveio dum facto importante: os guerrilheiros eram recrutados para as fileiras do PAIGC, através de convite, sem nenhuma obrigatoriedade, sendo que, se não a integrassem, teriam que manter segredo relativamente a tal convite e àquilo que lhes foi dado observar.

O documentário refere, ainda, passagens de portugueses que integraram voluntariamente as fileiras do PAIGC, bem como militares que desertaram ou foram capturados, alguns deles acabando por colaborar com a guerrilha. Embora o filme não o refira, verificou-se, igualmente, o apoio dos nativos Guineenses às tropas portuguesas, muitos deles recebendo treino militar e integrando companhias de combate.

Como corolário das enormes dificuldades criadas pelo PAIGC, os militares portugueses ocupantes do Destacamento de Guileje foram obrigados a abandoná-lo, juntamente com a população (ao todo, cerca de 600 pessoas), dirigindo-se para Gadamael, episódio que é relatado pelo último comandante do destacamento de Guileje [ou melhor do COP 5, o major Coutinho e Lima]. De nada serviram os avisos enviados ao General António de Spínola acerca das extremas dificuldades porque estava a passar toda a Companhia. O Presídio Militar foi o destino do Comandante...

Mas a principal e mais importante constatação, que nos rejubila, é a inexistência de ódio ou de ressentimento entre as partes beligerantes.

É com documentários deste tipo que ficam gravados para sempre, que são trazidos à memória dos portugueses – velhos e novos - aqueles tempos, aquele período negro da história de Portugal, vivido com ingentes sacrifícios pelos ex-combatentes. Período que os políticos no poder, depois do 25 de Abril, teimam em fazer de conta que não existiu.

Aconselho, pois, todos os ex-combatentes a publicitarem este documentário e a vê-lo, logo que possível, levando consigo familiares e amigos.

Da minha parte vai toda a minha admiração e agradecimento à equipa que deu luz a este projecto. Bem hajam.

Charneca da Caparica, 20 de Outubro de 2007.

Inácio Silva
_________

Notas dos editores do blogue:

(1) Sobre o Inácio Silva, autor do blogue Relembrar para Não Esquecer, ,madeirense, reformado do Metro, residente na Charneca da Caparica, ex-operacional da CART 2732 (Mansabá, 1970/72),vd. os nossos posts:

17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2184: A Guerra do Ultramar no programa Prós e Contras (RTP1, 15 de Outubro de 2007): o debate dos generais (Inácio Silva)

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1889: Tabanca Grande (20): Inácio Silva, 1.º Cabo Apontador de Metralhadora, CART 2732 (Mansabá, 1970/72)

(2) Vd. posts de:

8 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2165: As Duas Faces da Guerra, filme-documentário de Diana Andringa e Flora Gomes, no DocLisboa2007 (18-28 Outubro 2007)

17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2186: Uma guerra, duas vitórias: entrevista de Diana Andringa à RTP África (Luís Graça)

19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2194: Pensamento do dia (13): É na guerra que se revela o pior e o melhor das pessoas (Diana Andringa, Visão, nº 763, de ontem)

20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

domingo, 21 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2199: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (6): A crítica de Leopoldo Amado

1. Da crónica semanal do Lepoldo Amado, na sua página hi5 Leopoldo:Diário (com a devida vénia...)

Leopoldo Amadao > Crónica de Sábado > As duas Faces da Guerra

20 de Outubro de 2007, 12:12

Assisti ontem à estreia em Portugal do filme “As duas Faces da Guerra”, de Diana Andringa e Flora Gomes. Para além de um documento histórico em si, este filme é, ele próprio, um importantíssimo documentário histórico, independentemente das observações criticas que um filme de natureza histórica possa suscitar – e suscita sempre – tanto mais que este possui intrinsecamente, do nosso ponto de vista, a dupla valia referida, para além também, obviamente, de um respeitável equilíbrio e sentido da história, pese embora o facto de, em certo sentido, ser nele notório um certo escamoteamento das contradições, divergências e confrontos de que esta guerra se rodeou, tanto entre os contendores como no seio de cada uma das partes tomadas separadamente, de resto, uma feliz opção histórico-cinematográfica que acabou neste filme por condicionar uma visão do conhecimento do passado – não tanto como a relação deste com o nosso tempo, na sua complexa teia de rupturas e continuidades – mas privilegiando antes uma abordagem das heranças diversas que produziu, positivas umas, negativas outras.

Outrossim, este filme da Diana Andringa e Flora Gomes – para lá dos tabus que as guerras engendram e sem desprimor para a importância histórica de que igualmente se revestiram as guerras de Angola e Moçambique no âmbito da guerra colonial/guerras de libertação – possui também o condão de reintroduzir a ideia segundo a qual a Guiné teria sido, indubitavelmente, o palco de guerra onde se registaram os maiores e mais violentos confrontos, maiores e mais situações dramáticas, maiores e mais apaixonantes episódios insólitos, mas igualmente a que suscita hoje uma maior profusão de livros, blogues colectivos, memórias diversas, teses académicas, para além de maiores e mais sensatas atitudes de reconciliação e aproximação que se registam hoje entre os antigos contendores, sejam eles europeus e africanos ou africanos entre si, considerando que, na fase terminal da guerra da Guiné, só os efectivos guineenses do Exército português eram cerca de três vezes superior aos do PAIGC.

Mas o que de melhor representa este filme, não é demais repeti-lo, é o seu refinado sentido do equilíbrio e da História, nele sobressaindo, claramente, o cunho individual, também refinado, do alto sentido artístico-histórico tanto de Diana Andringa como o de Flora Gomes. Dir-se-ia, aliás, que um filme com esta qualidade e com a dupla valia referida – para lá da sua indubitável beleza estética – só podia ter sido concebido e conseguido pela feliz parceria de cineastas de reconhecido valor e com provas sobejamente dadas e que, como tal, mostraram-se completamente despretensiosos e abertos à necessidade, quantas vezes adiada e esquadrinhada, de construção de um possível e novo mundo, com base nos ensinamentos e heranças históricas comuns, tanto positivas como negativas.

Parabéns, Diana! Parabéns, Flora!

Leopoldo Amado

Guiné 63/74 - P2198: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (5): Agradecimento de Diana Andringa

1. Mensagem de Diana Andringa, enviada esta madrugada:

Em primeiro lugar, quero agradecer a vossa comparência na estreia do documentário e todas as palavras simpáticas que nos (aos autores do filme) dirigiram.

Em segundo, pedir desculpa se não conversei com todos nem me despedi da maioria - mas, antes da projecção, além do nervoso, estava a tentar receber todos os convidados. E, depois, parei a conversar com alguns e demorei a chegar à saída.

Em terceiro lugar, lamento que o debate não se tenha efectuado ontem, logo a seguir ao filme. Mas os trabalhadores da Culturgest têm direito ao descanso... Para os que quiserem, hoje domingo, às 20, lá estarei, na Culturgest, para o debate.
Finalmente, aguardo as vossas críticas. Que, naturalmente, me interessam muito.

Obrigada outra vez,

Diana

2. Apelo do editor do blogue, L.G.:

Amigos e camaradas:

Agora agora gostava de conhecer a reacção, sincera, espontânea, dos nosssos tertulianos ao filme...

O filme ficou aquém (ou foi além) das vossas expectivas ? E quais eram essas expectativas ? Mexeu convosco, mexeu com as vossas emoções ? Foi (des)confortável ? Gostaram ? Mostrou, de facto, os dois lados da guerra ? Era politicamente (in)correcto ? Foi objectivo e equidistante ? Era mais pro-PAIGC, não foi isento ? Deu mais tempo de antena a uns do que a outros ? Os realizadores escolheram as pessoas certas, de um lado e de outro ? Ignoraram ou escamatearam coisas importantes e polémicas, de um lado e de outro ? Por exemplo, o Congresso do PAIGC em Cassaca,em 1964, ou a invasão de Conacri, pelas NT, em 22 de Novembro de 1970...

Enfim, foi importante ter sido realizado e mostrado este filme aos portugueses, aos guineenses e aos caboverdianos ? Ou foi dinheiro deitado ao lixo ?

Não se esqueçam que nós tínhamos vinte anos e já se passaram 40... E que em matéria de audiovisual há muito pouco para mostrar aos vindouros... Ou será que o exército ainda guarda a sete chaves documentos audiovisuais classificados ? Reparem que os realizadores do filme tiveram que ir buscar, aos franceses, um bocado de uma reportagem de guerra, para mostrar uma cena de uma emboscada do PAIGC com mortos e feridos para o nosso lado...

Fazendo minhas a pergunta e a resposta do meu camarada Humberto Reis:

Onde é que estavam os nossos fotocines, os nossos operadores de cinema militares ? Em centenas e centenas de quilómetros batidos, a pé (!), por nós e pelos nossos nharros da CCAÇ 12, nunca vimos um fotocine... Andavam na propaganda, sempre atrás do Spínola e da sua corte... A guerra, que se travava nas bolanhas e lalas, nas florestas-galeria, na savana arbustiva, nas picadas, no tarrafo, nos rios e braços de mar, nas tabancas, nos destacamentos, nos aquartelamentos do mato.... nada disso foi filmado. Restam as nossas fotos, os nossos testemunhos, o nosso sangue, suor e lágrimas...


Em suma, digam muito sinceramente o que sentiram e viram... Vamos publicar as vossas opiniões (dos que viram o filme)... Eu reservo a minha opinião para mais tarde, não quero inibir bem influenciar ninguém... Só quero que fundamentem as vossas opiniões: gostei ou não gostei do filme, por isto e por aquilo... Não é preciso ser crítico de cinema, para dar opinião sobre um filme... Nós estivemos lá, mesmo que cada nós só tenho visto um face da guerra... Por isso mesmo, juntar a nossa à parte...

Espero ir ao debate, hoje, às 20h, na Culturgest.

Luís Graça

PS - Atenção: É preciso não ignorar o seguinte: este filme foi feito com escassos recursos (humanos, técnicos, financeiros)... Não estamos na América, estamos em Portugal...

sábado, 20 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

Culturgest > DocLisboa2007 > 19 de Outubro de 2007 > Estreia do filme As
Duas Faces da Guerra, de Diana Andringa e Flora Gomes (Portugal, 2007) > Malta do nosso blogue > Da esquerda para a direita, o António Marques Lopes (um dos antigos combatentes portugueses, que aparece no filme, falando de Geba, Banjara e Barro); um camarada que não consigo identificar; o nosso historiador, o Leopoldo Amado; e o Xico Allen (que veio propositadamente do Porto, com o A. Marques Lopes e o Álvaro Basto).

Culturgest > DocLisboa2007> Num hall, repleto de gente, fazendo horas para a entrada do Grande Auditório, os nossos tertulinos Jorge Cabral, Luís R. Moreira e Humberto Reis.



Cuturgest > DocLisboa2007 > 19 de Outubro de 2007 > Ao centro o Luís Camões, ladeado à sua direita pelo Fernando Franco e, à esquerda, pelo Luís Nabais.


Culturgest > DocLisboa2007> 19 de Outubro de 2007> Da esquerda para a direita: ao centro, o nosso co-editor Virgínio Briote conversa com o coronel Carlos Matos Gomes, de costas; está ladeado, à sua direita pela sua esposa e pelo Mário Fitas, o autor do romance de "Pami Na Dondo, a guerrilheira" e à sua esquerda, o Inácio Silva e esposa.


Culturgest > DocLisboa2007> 19 de Lisboa > O Álvaro Basto e a esposa, que vieram do Porto com o A. Marques Lopes e o Xico Allen.

Culturgest > DocLisboa2007> O Coronel Nuno Rubim conversa com o seu antigo Alferes, o Virgínio Briote, tendo à esquerda um amigo (que me foi apresentado, coronel, mas cujo nome não fixei, I' m sorry), e à sua direita, a esposa do Virgínio Briote.


Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.




À hora marcada, lá estávamos nós na Culturgest. Eu tinha vindo de boleia, com o Humberto Reis. Noite de verão, a fazer lembrar a Guiné. Cá fora, reconheci um primeiro grupo de tertulianos... Os primeiros abraços...

Pelo número de convites distribuídos, devíamos ser mais de 30. Nós, a malta da tertúlia, novos e antigos, mais os seus familiares e amigos. Pela multidão que se concentrava no hall da Culturgest, a estreia do filme da Dina e do Flora prometia ser um sucesso. E, na realidade, o Grande Auditório estava praticamente cheio quando se deu início à projecção do filme, A Diana estava visivelmente feliz, recebendo os seus muitos amigos e convidados. O Flora não podia estar. Por compromissos de agenda, estava àquela hora nos Estados Unidos.

A apresentação e crítica do filme ficam para um próximo post. A minha crítica e a crítica dos demais amigos e camaradas que queiram publicitar, aqui, os seus comentários e reacções.

Para já deixem-me dizer quem estava, quem encontrei, de quem me lembro. Como devem imaginar, quantos encontros, apresentações e algumas surpresas, é muito natural que eu cometa a indelicadeza de omitir alguém:

(i) A. Marques Lopes, o Xico Allen e o Álvaro Basto (mais a esposa) que tinham acabado de chegar do Porto; O Pimentel era também para vir, mas não veio, por não ter conseguido desenvacilhar-se de compromissos prévios.

(ii) o João Carvalho e o Zé Martins – os dois Gatos Pretos de Canjadude; foi uma oportunidade para conhecer pessoalmente o João, o nosso wikipedista;

(iii) O Tino Neves, que me promteu passara para vídeo, algumas cenas do passado no Natal em Nova Lamego;

(iv) o Inácio Silva, acompanhado da esposa: ficou com pena de não poder rever o seu camarada Carlos Vinhal, nosso prezado co-editor;

(v) o António Santos (que veio acompanhado da mulher e do filho);

(vi) o António Duarte, ex-CART 3493 e ex-CCAÇ 12 , também com o seu filho;

(vii) o nosso querido co-editor Virgínio Briote e a esposa (que estavam para ir ver o filme no Cinema Londres, na 2ª feira)

(viii) O Benjamim Durães, da CCS/BART T 2917 (Bambadinca, 19770/72) (trouxe-me uma lembrança do último convívio da sua unidade, em Setúbal, a que eu não pude ir);

(ix) O Carlos Américo Cardoso (o nosso único representante do famigerado Hospital Militar de Bissau), e que veio com a sua simpática filha;

(x) O intendente Fernando Franco;

(xi) O Hélder de Sousa, que me trata carinhosamente como comandante (fico embaraçado, Helder!), e que mora em Setúbal, tal como o Durães;

(xii) O Jorge Cabral (que eu apanhei, malandro, a fumar o seu cachimbo!);

(xiii) O nosso historiador Leopoldo Amado que, com ar feliz, se disse estar bem encaminhado a publicação, em livro, de uma versão da sua tese de doutoramento (editora Campo das Letras, Porto);

(xiv) O Luís Camões, que me perguntou pelo GG (o seu camarada cripto da CCAÇ 12 e o nosso Bob Dylan de Bambadinca, na época de 1969/71); O GG, de facto, não apareceu, preferindo ver o filme na próxima 2ª feira.

(xv) O Luís F. Moreira, o ex-Alf Sapador da CCS / BART 2917, que tal como eu não esquece o dia 13 de Janeiro de 1970;

(xvi) O Luís Nabais e esposa (finalmente, conhecemo-nos!);

(xvii) O Mário Fitas, que não conhecia pessoalmente e que a teve a gentileza de me oferecer um exemplar dos seus dois livros; no mais recente (Pami Na Doindo, a guerrilheira) escreveu a seguinte dedicatória:
Silêncios parados, ressoar de passos do passado! Para o Dr. Luís Graça, agradecendo toda a disponibilidade para com todos os que fizeram o 'Vietname Português'. Um abraço sincero do Mário Vicente.
Obrigado, Mário, o Doutor é que está mais, camarada! Fica o pedido de autorização para publicares no nosso blogue a belíssima narrativa da tua guerrilheira...
(xvii) Também tive a oportunidadade de novos camaradas, dos quais não fixei lamentavelmente o nome, no meio daquela multidão toda (espero que me contactem, e se apresentem ao resto da tertúlia). Um deles foi o Delfim Rodrigues, que veio propositadamente de Coimbra, e estava acompanhado de um amigo de Lisboa. Tinha-nos escrito na véspera o seguinte:
Boa noite: Chamo-me Delfim Rodrigues e fui 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem na CCAV 3366 do BCAV 3846 que esteve em Suzana e Varela em 1971/73.
Amanhã vou estar na estreia do filme "As duas faces da guerra" na Culturgest pois consegui que me comprassem um bilhete. Apesar de não ter ainda pedido a minha entrada na Tertulia, gostaria de vos conhecer pois estarei sozinho deslocando-me de Coimbra onde moro. Gostaria de entrar para a Tertúlia mas ainda não tenho as fotos digitalizadas, se me aceitarem, enviá-las-ei mais tarde. Como não sou grande coisa a escrever não tenho preparado qualquer texto para vos enviar. Delfim Rodrigues, Nº Mec 075142/70, 1º Cabo Auxiliar de Enfermagem.

Dei um abraço ao Delfim e as boas vindas à nossa tertúlia. Vou pedir ao Carlos Vinhal para formalizar a sua entrada. Recorde-se que, até agora, só tínhamos um um representante dessa unidade: vd. post de 11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1942: Susana, chão Felupe (Luís Fonseca, CCAV 3366, 71/73) .

(xxviii) Houve outros camaradas que disseram que vinham, como o Manuel Rebocho, e que eu gostaraia muito de conhecer pessoalmente mas que não apareceram. Muito provavelmente desencontrámo-nos.

Um outro caso é o Victor Alves, que foi furriel miliciano vagomestre na CCAÇ 12 (Bambadinca, 1971/73), o periquito do Jaime Santos, o primeiro vagomestre da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadina, 1969/71). O Victor vive em Santarém e aderiu em Junho deste ano nosso blogue: vd. 11 de Junho de 2007 >

Guiné 63/74 - P1832: Convívios (15): CCAÇ 12 (Bambadinca, 1971-73), 2 de Junho de 2007, Azeitão: o 34º encontro anual (Victor Alves).

O Victor disse-me que vinha, de Santarém, com mais malta, ver o filme. Também nos desencontrámos, seguramente. Só falei com ele pelo telefone.

(xx) Falta-me ainda mencionar o nome do Jorge Canhão, que teve a gentileza de me oferecer um exemplar, fotocopiado, da História do BCAÇ 4612/72.

O Jorge é também dos novos membros da nossa tertúlia >
18 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1855: Tabanca Grande (13): Apresenta-se o ex-Fur Mil At Inf Jorge Canhão, da 3ª Companhia do BCAÇ 4612/72.
A todos (incluindo aqueles cujos nomes não fixei ou que omiti, por lapso) o meu agradecimento pelo interesse manifestado em ver o filme e aproveiar o ensejo para um curto convívio da nossa tertúlia. Devido ao adiantado da hora (a sessão acabou para lá da 1ª hora da manhã, do dia 20), não houve debate e a malta dispersou-se... O que foi pena. Haverá mais oportunidades de ver ou rever o filme em conjunto.
Obrigado à Diana Andringa e ao Flora Gomes pelo filme de que eu, desde já, quero dizer que gostei muito. Farei, noutro post, a minha apreciação crítica. Penso que os camaradas, em geral, gostaram do filme. Falei, muito rapidamente, com meia dúzia, no final.
Entenda-se: não é o filme da guerra da Guiné, nas sim um filme-documentário sobre o verso e o reverso, as duas faces, de uma guerra que envolveu portugueses, caboverdianos e guineenses (e já, agora, também cubanos, que os houve como médicos e conselheiros militares)...

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2196: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (3): Para a petite histoire do filme (Diana Andringa)

Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 (1967/69) > Croqui do monumento erigido, em Geba, aos "mortos que tombaram pela pátria"... Em 1995, a jornalista Diana Andringa visitou Geba, na região de Bafatá, e escreveu, a propósito deste monumento, semi-destruído, uma peça, belíssima mas pungente, no Público,de 10 de Junho de 1995, e reproduzida depois no nosso blogue (1)... Foi a partir daqui que começou a amadurecer a ideia do filme, As Duas Faces da Guerra, que acabou por realizar, em 2007, com o guineense Flora Gomes (2).

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.


1. Mensagem da Diana Andringa, com data de 2 de Abril de 2007. Na altura, considerei que era uma mensagem pessoal, não devendo ser divulgada no blogue. Hoje, penso que já faz parte da petite histoire deste filme que se estreia hoje, em Lisboa, com a presença de um pequeno núcleo de representantes da nossa Tabanca Grande, a convite da equipa de produção e realização (2).

Luís Graça,

o meu nome é Diana Andringa, sou jornalista e estou a fazer um documentário, com o realizador guineense Flora Gomes, sobre a guerra colonial/luta de libertação na Guiné Bissau: "As Duas faces da Guerra".

A razão deste documentário é simples: a primeira vez que fui à Guiné impressionou-me o facto de todos aqueles com quem falava me repetirem que nunca tinham combatido os portugueses, mas apenas o colonialismo de Salazar. E a ideia - muito estranha para um(a) civil - de que da guerra tinha nascido um maior conhecimento e uma maior amizade entre os dois povos, havendo até como que uma "fraternidade de armas" entre combatentes de ambos os lados. (Reforçou a vontade de fazer o filme encontrar em Geba uma pedra com nomes de militares, certamente jovens, mortos no dia em que, em Lisboa - opondo-me a essa guerra e defendendo o direito dos povos das colónias à independência - eu fazia 20 anos.)

Regresso agora da Guiné e de Cabo Verde, onde estivemos a entrevistar antigos combatentes do lado do PAIGC - e também algumas pessoas que estavam em contacto com os militares portugueses. Interessou-me sempre perceber se, alguma vez, um desses combatentes se tinha defrontado com alguém que conhecesse, ou de quem fosse amigo. Não consegui encontrar essa história.


Li agora, no seu blogue, a história do encontro de Mário Dias
com o Domingos Ramos (3). Não creio que saber que o Domingos Ramos, como o Mário Dias, preferiu não disparar sobre um amigo, o ponha em causa junto do PAIGC. Um dos organizadores do ataque a Guileje disse-me, sobre o abandono do quartel:
- Ainda bem que saíram, se não teríamos de os aniquilar.

E mesmo pessoas torturadas pela PIDE me explicaram que tinham visto, durante a prisão, cenas de humanidade por parte de portugueses.

Queria, por isso, ver se conseguia que o Mário Dias nos contasse esse encontro com o Domingos Ramos no documentário. Vou filmar nas próximas 2 semanas e, se ele aceitasse este pedido, haveríamos de encontrar uma data que lhe conviesse.

Já lhe enviei um mail, sem êxito. Será que o Luís Graça pode interceder por mim? Ficar-lhe-ia muito grata.

Pode contactar-me por este mail ou pelo meu telemóvel (...).

Melhores cumprimentos,

Diana Andringa
Jornalista
(carteira profissional nº 80)

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXIII: Antologia (4): 'Homenagem aos mortos que tombaram pela pátria': Geba, 1995 (Diana Andringa)

(2) Vd. posts de:

8 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2165: As Duas Faces da Guerra, filme-documentário de Diana Andringa e Flora Gomes, no DocLisboa2007 (18-28 Outubro 2007)

17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2186: Uma guerra, duas vitórias: entrevista de Diana Andringa à RTP África (Luís Graça)

19 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2194: Pensamento do dia (13): É na guerra que se revela o pior e o melhor das pessoas (Diana Andringa, Visão, nº 763, de ontem)

(3) Vd. posts de:

1 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando

3 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2148: Blogoterapia (34): Da minha proverbial preguiça ao carro de granadeiros e ao Domingos Ramos que eu conheci (Mário Dias)

Guiné 63/74 - P2195: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (6): Hoje perdi o meu braço direito, o Casanova

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Comando e CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) > Edifício do comando > "Até sinto as botas a calcar este saibro incendiado pela laterite...Por aquela porta terei entrado centenas e centenas de vezes, à procura de um duche, dormida, mesa, repouso. Entrei por ali em todos os segundos que faz um dia. Contornando à squerda ,vendo a linha de janelas, tínhamos o gabinete do Major de Operações, cheio de mapas e sigilo, depois o gabinete do 1º Comandante e depois do 2º. Ao fundo, o universo do cripto, ali o Calado [, o Alf Mil Trms,] não deixava entrar ninguém. Em frente a este corpo do edifício, estendia-se a estrada que, trezentos metros à frente, bifurcava para o Xime e Mansambo. Passei por ali a última vez em 1991, vindo de Aldeia Formosa. Depois do que vi à ida, preferi virar a cara, no regresso" (Beja Santos, 13 de Julho de 2007).


Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Texto enviado, em 3 de Setembro último, pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).



Luís, vim hoje de férias e reenvio-te o episódio nº6, na sua versão revista. Como estamos a acabar o período de Missirá, peço-te que vejas as fotografias que ainda não foram editadas a elas referentes.

Peço-te igualmente que me digas se queres entrar em contacto com o Coronel Coutinho Lima, o oficial superior que foi punido por ter abandonado o Guileje. Espero tenhas tido uma boas férias. Amanhã telefono-te. Um abraço, Mário.

Operação Macaréu à Vista - II Parte (6) > Hoje perdi o meu braço direito (1)

por Beja santos

Nova conversa esotérica com Lânsana Soncó

Caminhamos para o fim de Setembro, começo a desinteressar-me em responder às cartas incendiadas que chegam dos entes queridos. Limito-me a agradecer as notícias, comunico que há portadores que levam artesanato, bebidas alcoólicas e tabaco, a minha Mãe está cada vez mais doente, registo novas recusas dos papéis de Bafatá que enviei para o casamento por procuração, volto a escrever à Cristina:

“Desce à Feira da Ladra, se quiseres aproveita a visita ao meu tio Luís Sardo, no Laboratório Medicamenta, em frente a Stª. Engrácia, vais por uma rua íngreme, a descair para Stª. Apolónia, é aí a conservatória onde te entregam a minha certidão. Em Bafatá voltaram-me a pedir a data de nascimento do teu pai. Continuo a receber cartas cheia de arrufos, pedradas e acusações. Há momentos em que nem apetece pegar neste correio. Estou cada vez mais preocupado com o Casanova: agreste, emagreceu muito, não fala praticamente connosco. Aguardo que David Payne venha de férias, sinto que o meu mais directo colaborador caminha para um abismo. Passámos hoje uma dia em domesticidade, com limpeza de arrecadações, pinturas, lavagens de morteiros, arranjos na estacaria e no arame farpado. Amanhã vou a Bambadinca, encontraram algumas alternativas para nos ajudar com esta crónica falta de pessoal. Estamos a ir a Mato de Cão com quinze homens, visto que continuamos a ser obrigados às emboscadas nocturnas e não quero desleixar os trabalhos em Finete. Reflectindo melhor, sugiro que alteremos os nossos projectos para casar em Fevereiro”.

Exausto e melancólico, volto a lanchar com Lânsana, sempre com o caderninho preto à mão e com o apoio do Benjamim e do Cherno como tradutores. A pequenada da escola onde Lânsana ensina a religião islâmica assiste curiosa e ganha a batalha a Jobo Baldé, levando uma pratada de pão quente e Umaru Baldé fica autorizado a fornecer-lhes umas boas fatias de marmelada.

Hoje a conversa centra-se na época seca, nas suas fainas. O padre Lânsana fala na colheita do amendoim, na pesca no rio Gambiel, no cultivo da batata doce nas bolanhas. Aí o Cherno intervém, trocam comentários, fala-se a seguir no pequeno comércio onde se comercializa mandioca por batata doce, em que o amendoim é vendido nas lojas da Casa Gouveia em Bambadinca, bem como o coconote das palmeiras. Depois, Lânsana, Benjamim e Cherno voltam a conversar entre si, põem-se de acordo que a época seca se inicia em Novembro, quando começam os frios que nos obrigam a dormir com camisa e com lençol, é um tempo que vai até aos fins de Abril, há menos mosquitos.

Hoje, Lânsana bebe um chá feito de ervas naturais, que ele próprio trouxe. Está farto de erva cidreira e do chá Li-Cungo, os únicos que consigo encontrar em Bafatá, a próxima vez que for a Bissau tenho que descobrir chá de Ceilão ou da Índia. Falamos depois dos doces e sobremesas dos mandingas. Lânsana, às vezes interrompido por Cherno, fala dos bolinhos de massa de amendoim feitos com farinha de arroz, e onde se põe açúcar ou mel, que aliás também se põe na farinha de mandioca. Aqui a conversa inflecte para o mel, ardo de curiosidade, para mim as abelhas eram assassinas, o mel impensável. Lânsana explica-me que não é bem assim. Acontece que se anda à procura das colmeias, à noite as abelhas são afugentadas pelas tochas acesas, são trazidas as placas onde se aproveita o mel, muito usado pelos pobres que não têm dinheiro para o açúcar.

Escrevo no caderninho: “Confirmo que as frutas que aqui se comem são a papaia, as mangas, as laranjas e o abacaxi”. É nisto que chega o furriel Pires e que me lembra que temos de falar com urgência da folha de vencimentos. Aqui se suspendeu o inquérito, continuará em breve pois temos que falar das madeiras do Cuor, preciso de saber mais sobre esse Mato de Cão que era uma ponta povoada por mandingas no planalto e balantas junto ao rio. O último proprietário de Mato de Cão parece ter sido Mamadu Tubabó (tubabó significa branco em mandinga, disse-me o Cherno). A ver se o Lânsana me ajuda a esclarecer tudo. Tenho igualmente que ir a Santa Helena falar com os irmãos Brandão (António e Manuel) por causa das indústrias de madeira que existiam antes da guerra.

Nova conversa com o Comando em Bambadinca

Volto ao comando de Bambadinca para analisar o nosso plano operacional, escrevi uma carta alertando para a situação insustentável em que vivemos. Estão inicialmente presentes Jovelino Corte Real e Herberto Sampaio. Entreguei o memorando (mais um) onde se expõe a actual situação de meios. Se é verdade que Bafatá pretende retirar a última secção da milícia de Missirá, observei que perderemos a total capacidade de movimento até Mato de Cão, não se pode deixar Missirá entregue à população civil e aos militares doentes.

Fiz questão de informar que revi alguns dos meus pontos de vista e era para mim agora claro que a gente de Madina estava bem informada da minha perda de capacidade ofensiva. Insistia na necessidade de envolver as forças de intervenção disponíveis em Bambadinca (explicitei: a CCaç 12 e o Pel Caç Nat 54) para me apoiarem nas idas diárias a Mato de Cão, no sentido de continuar a ser possível garantir as emboscadas nocturnas, poder continuar a patrulhar nos 5 Km mais próximos e viabilizar a segurança necessária nas viagens do Sintex.

A primeira boa notícia foi a de que a partir do início de Outubro a CCAÇ 12 passará a ir regularmente a Mato de Cão (assim foi, logo nos primeiros dias de Outubro os sucessivos pelotões começaram a participar nas vigilâncias, isto quando a gente de Madina atacou um barco em S. Belchior). A segunda boa notícia foi a de que o Pel Caç Nat 54 iria brevemente render o Pel Caç Nat 52 e que o comando de Bafatá tomara a decisão de manter dois pelotões de milícias completos em Missirá e Finete, pois estaria em preparação uma nova quadrícula entre o Cuor e Enxalé (parecia que finalmente estavam a ver os perigos de um inimigo com crescente capacidade ofensiva junto do Geba). A terceira notícia pareceu-me extemporânea: o novo comando desejava preparar uma operação que redimisse o desaire da Anda Cá e pretendia a minha opinião. Terei respondido que não havia presentemente condições, eu estava com a tropa desfalcada, preparava-se o reordenamento dos Nhabijões, propunha que se esperasse por Novembro, quando se aproximasse a época seca.

Chegou depois o major Cunha Ribeiro que informou estar previsto para fins de Outubro a substituição de viaturas, era inaceitável não dispormos de nenhuma mobilidade. Com efeito, independentemente da época das chuvas, o Augusto e as sucessivas equipas de desempanagem da CCS de Bambadinca já tinham perdido as ilusões sobre os nossos Unimog: não havia milagres para as duas viaturas precocemente envelhecidas. No momento presente, estávamos a viver os atoleiros com pneus estoirados, imprevistas substituições de câmaras de ar, uma secção a montar segurança na bolanha de Finete a um burrinho doente.

À saída da reunião, o major Sampaio pede-me que o acompanhe ao seu gabinete. É aí que me informa que vamos muito em breve fazer um RVIS sobre o Geba, possuem-se informações seguras de que há várias canoas que atravessam regularmente o Geba até aos Nhabijões, há que as localizar e destruí-las.

É com estas promessas que cambo o Geba, é uma viagem serena até Caranquecunda onde vamos assistir, seriam cinco da tarde, a um bombardeamento aéreo sobre Madina: ouve-se o zunir dos T-6, as sacudidelas do solo, são estremeções que ressoam por toda a mata. Durante meia hora, deverá ter sido o inferno entre Madina e Belel. Em silêncio, ficámos todos a pensar no próximo ajuste de contas de Madina connosco.


O colapso do Casanova

A 27 de Setembro [de 1969], fui completamente surpreendido pela violência da crise de nervos em que se abateu o Casanova. Sabíamos que ele estava muito doente, cometi a imprudência de o incumbir diariamente de responsabilidades que excediam a sua capacidade física e psicológica. Tive a oportunidade de conversar com ele e com o Pires sobre o que se passou nessa tarde tão sombria para nós, e ainda recentemente voltei a recapitular os acontecimentos, as versões não coincidem quanto às causas e ao decorrer dos acontecimentos.

Tínhamos almoçado pela uma da tarde, nada previa o desfecho trágico que ocorreu duas horas depois. Estava no meu abrigo a conferir os documentos enviados pelo BENG 447 (tratava-se de mais chapa, sacos de cimento e portas pré-fabricadas), e subitamente o Alcino entrou de repelão aos gritos:
- Ó meu alferes, o nosso furriel Casanova está em fúria, grita com todos, está armado, ameaça matar gente se não lhe obedecerem!

Do limiar da porta, presenciei o impensável: o Casanova gesticulava, vociferava, os soldados batiam as palmas, como se estivessem a divertir-se. O meu braço direito parecia tresloucado, mandava-os calar, sob ameaça. Começava a meia hora mais dolorosa da minha vida, ia avançando, procurava persuadi-lo a não usar a violência, dava pequenos passos, ia confirmando que ele me ouvia e respondia até ao momento em que cheguei junto dele e lhe retirei bruscamente a G3 pelo tapa chamas. É exactamente nesse momento que ele cai pelos joelhos e se enrodilha no solo.

Só a 2 de Outubro é que consigo escrever à Cristina:

“Desculpa este tempo de silêncio, vivemos um acontecimento que nos magoou muito. A 27, o Casanova sucumbiu a uma crise violenta de nervos que o deixou na semidemência. Viveu uma hora em delírio e espasmos, pedi um helicóptero que o levou para o hospital de Bissau. Admito que ele será evacuado para Lisboa, o neuropsiquiatra local não pode dar vazão a um número tão elevado de doentes. Não podes imaginar o abalo que tudo isto nos provocou, as tentativas falhadas para o serenar, vê-lo partir uma maca a delirar, irreconhecível. Já escrevi à irmã a relatar os acontecimentos, escrevi igualmente ao Pedro Abranches para me informar sobre a evolução deste caso. Sei muito bem que nada ficará como dantes, acabo de perder o meu braço direito. Tenho o problema de consciência de não ter agido a tempo e horas”.

Infelizmente, foi tudo ainda mais doloroso para o Casanova, a sua recuperação será muito lenta. No meu abrigo, vezes sem conta, vou gritar comigo, protestarei com as paredes, incriminando-me por não sermos capazes de ver um amigo querido definhar, procedendo correctamente.

Estou a sofrer muito. Na próxima quinzena, ainda irei sofrer mais, quando explodir uma mina anti-carro, em Canturé. Ainda hoje vivo em silêncio o dia 16 de Outubro, sabendo que irei prestar contas diante de Deus.

As leituras da semana

O que li esta semana foi interessante: Os armários vazios, por Maria Judite de Carvalho e O mistério dos bombons envenenados, por Anthony Berkeley, um policial soberbo. Maria Judite de Carvalho de que eu já lera Tanta Gente, Mariana, dá-nos aqui uma narrativa que retrata o desencanto e uma nova feminilidade urbana dos anos 60. Dora Rosário é a pequena burguesa a quem o marido não deixa trabalhar, vivendo uma pobreza envergonhada. Enviuva, dedica-se ao comércio dos móveis antigos, investe na educação da filha, Lisa. É uma existência morna, com os afectos contidos, relações estudadas com uma sogra déspota e ciente da sua classe. Esta existência acabrunhada parece ganhar um novo fôlego quando surge Ernesto, um advogado de sucesso. Ora o que acontece é que Ernesto se vai apaixonar por Lisa e esta retribui. Tudo acaba em casamento de estadão na Basílica de Estrela, o novo sogro ajuda Dora que regressou à vida resignada, aos seus armário vazios, à sua trágica continuidade melancólica.


Capa do livro de Maria Judite de Carvalho, Os armários vazios. Lisboa: Portugália Editora.1966 (Colecção Contemporânea,; 83). Capa de João da Câmara Leme.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


O que destingue Maria Judite de Carvalho é este poder descritivo do intimismo psicológico onde os seres humanos vão sendo desenhados de uma forma branda, haja o conflito que houver, reservando-se o desfecho surpreendente para o final onde, como é com a maior das naturalidades, os personagens descem às tragédias do quotidiano: “Abri-lhe a porta, fui à janela vê-la, não sei bem porquê. Estava a chover e ela uma mulher cinzenta, um pouco curvada, perdida na cidade deserta depois da peste e do saque. Reparei que o seu caminha era incerto e hesitante, às guinadas, como se estivesse levemente embriagada ou ainda não tivesse acordado totalmente de um longo sono. A chuva continuava, uma chuva mansa e igual, quase lenta, sem interesse em tombar, escorrendo como que passivamente de um céu doente e velho, lacrimejante, fatigado se existir. Era uma dia igual a tantos, agora que eu vivia só”.



Capa do romance policial, de Anthony Berkeley, O mistério dos bombons envenenados. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vamprio, 185). Capa de Lima de Freitas.


Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


O livro de Berkeley é um assombro. Um grupo de intelectuais e especialistas reúne-se num Círculo Criminal onde procuram, com objectividade e rigor, decifrar homicídios aparentemente sem solução à vista. Uma caixa com bombons envenenados entra num clube, o destinatário oferece a caixa a outra pessoa, esta leva-a para casa, a mulher morre envenenada. Todos os participantes do Círculo vão apresentando as suas versões, umas atrás das outras são derrubadas, tal a sua fragilidade. Como nas Mil e Uma Noites, as versões sucedem-se, uma com mais apoio e verosimilhança, outras rejeitadas por excesso de fragilidade. Até ao momento em que uma versão aproveita depoimentos anteriores e surpreende o auditório: o criminoso, com elegância, sai da cena, dando sinal que a vida do Círculo não poderá ser afectada pela surpreendente revelação. È o momento mais alto da obra de Barkeley, nascera aqui um clássico.

E da literatura passo para a música. Na minha última ida a Bafatá comprei um presente para David Payne: a Sinfonia nº2 Ressurreição, de Mahler. O Payne, sempre que podia ouvia esta versão da Orquestra Philharmonia dirigida por Otto Klemperer. É o grande Mahler, uma sinfonia heterodoxa, com coros vozes, onze momentos distintos em que no final soprano, contralto e coro anunciam ao ouvinte: “Ó sofrimento, tu que em tudo penetras, arrebatas-me! Ó morte, sempre vitoriosa, agora és vencida! Com as asas que eu conquistei, cheio de amor, eu esvoaço para a luz onde nunca ninguém penetrou!”.

O David Payne merece este presente, é o mais querido dos amigos, dentro de dias, o sofrimento e a morte vão ser nossos vizinhos, quando ele me vier ajudar depois da explosão da mina anticarro e da emboscada em Canturé.

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Nota de L.G.

(1) Vd. post anterior > 12 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2174: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (5): Aquela Terceira Semana Prodigiosa de Setembro