quinta-feira, 4 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4462: História do BCAÇ 4612/72 (5): Aspecto político, Aspecto Administrativo e Organização Militar (Enviado pelo Jorge Canhão)


Amigos e Camaradas, 

Este é o 5º Poste da série História do B CAÇ 4612/72, da Autoria do então Alferes Ferreira, da CCS, escrita sob alguma "supervisão" do então Capitão Vicente (Operações). 

Ao falar do saudoso Capitão Vicente (que na sua carreira militar chegou ao posto de Coronel), não posso deixar de mencionar que, enquanto foi vivo, sempre participou entusiástica e alegremente nos almoços das várias companhias do Batalhão. 

Alguns textos da História do BCAÇ foram extraídos da História da Guiné. 

Um abraço para todos, 

(Jorge Canhão) 


(4) Aspecto político 


Os grupos étnicos de maior representação numérica no Sector: 
 
- Balantas, Mansoancas e Oincas - são dos que mais se ligaram à subversão, muitas vezes coercivamente, no inicio do terrorismo; houve então milhares de indivíduos que fugiram para o “mato”ou para o SENEGAL - por vezes até tabancas inteiras - e se subtraíram ao controle das nossas autoridades. Dos que estão no "mato" e passaram à clandestinidade, nem todos pegaram em armas contra a nossa soberania. 

É evidente que as populações sob controle das nossas autoridades o que constituem a grande maioria não se alheiam da situação e da sorte dos que estão no “mato” aos quais estão ligados por laços familiares, de amizade ou simplesmente étnicos e a quem ajudam, em maior ou em menor grau, em caso de necessidade. 

Consequentemente o IN obtém algum apoio das populações sob o nosso controlo, nomeadamente na contribuição com alimentos, na recolha de informações e na colecta de fundos; há conhecimento que elementos IN, OU de populações fugidas, contactam com relativa frequência com elementos da população sob O controlo das nossas autoridades por vezes até nas próprias Tabancas. 

Neste campo, destacam-se as populações das povoações de BRAIA e INFANDRE de quem o IN das áreas do QUERE e do CUBONGE obtém fácil apoio e da povoação do BINDORO, com ligação com o IN da área de CHANGALANA. 

É curioso verificar que a esmagadora maioria das populações sob nosso controlo, (bem como a quase totalidade das populações que vivem na clandestinidade e até mesmo muitos elementos do IN armados, desconhecem o que seja o PAIGC, quem são os seus dirigentes e qual o seu ideal político ou os objectivos que se propõe alcançar. 

A luta que se trava tinha, para eles, uma feição essencialmente racial, conceito este que vai sendo desfeito com o crescente número de soldados e milícias nativos que servem nas nossas fileiras. 

Aparentemente as populações sob controlo das nossas autoridades mostram-se submissas e colaborantes quando lhes é pedido um esforço físico remunerado (trabalho de desmatação, capinagem, etc.); contudo repete-se - há entre elas vários elementos - e até mesmo em MANSOA – que são colaborantes em maior ou menor escala com o IN. Embora haja alguns elementos suspeitos, torna-se difícil a detecção e neutralização de possíveis redes subversivas, devido fundamentalmente à índole reservada e pouco expansiva das populações do Sector. 


São frequentes, principalmente em épocas de crise alimentar, apresentações às nossas autoridades de elementos Balantas da população fugida do mato, provenientes das áreas do CUBONGE; na sua maior parte são velhos, mulheres e crianças, alegando como razão da sua apresentação, terem no mato uma vida de privações e de insegurança. Contudo, desde que a área de MANSABÁ passou para o Sector 04, ainda não se apresentou qualquer elemento Oinca que estivesse sob controlo do IN, o que se enquadra na sua maneira de ser e rebeldia tradicionais. 

(5) Aspecto administrativo 

O Sector 04 abrange: 

- No concelho de MANSOA: a quase totalidade do Posto Sede, no qual se localizam os Regulados de MANSOA,CUBONJE, JUGUDUL e SANSANTO. Grande parte da área do Posto Administrativo de PORTO GOLE, onde se localiza o regulado de ENXALÉ. 

- No Concelho de FARIM: Parte da área do Posto Administrativo de MANSABÁ, onde apenas existe o regulado de OIO. As relações com as autoridades Administrativas têm sido normais. 

Conclusões 

- Predominam no Sector os grupos étnicos Balantas, Mansoancas e Oincas que no início do terrorismo foram dos que mais aderiram à subversão; consequentemente, as populações sob nosso controlo não merecem confiança absoluta, pois embora se mostrem colaborantes com as nossas autoridades, têm também elementos que colaboram com o IN, ao qual estão ligados por laços de parentesco e étnicos Salientam-se neste aspecto, as povoações de BRAIA, INFANDRE e BINDORO. 
 
- A população nativa aprecia e aceita de bom grado as realizações materiais que lhes ocasionam benefícios no campo socioeconómico (construções do tipo reordenamento, escolas, poços, etc.) e à Assistência Sanitária prestada pelas NT. Os Fulas e Mandingas de MANSOA, pedem, com frequência, às autoridades, apoio e auxílio de toda a espécie; em contrapartida os Balantas, mais sóbrios e independentes, raramente pedem seja o que for. 

- A economia nativa da região assenta na agricultura, com grande destaque para a cultura do arroz; consequentemente a sua riqueza e poder de compra subordinam-se às colheitas que, por sua vez, dependem em larga escala das condições climatológicas. Se chove bem na época própria, há um ano de abastança; se chove pouco o ano é de escassez. 

- A influência no campo de desenvolvimento económico, da escassa população europeia do Sector pouco se faz sentir; são comerciantes e funcionários que se dedicam ao modo de vida que escolheram sem se manifestarem muito quanto à luta que se desenrola. 

3. ACTIVIDADES DO INIMIGO 
 
a. Resumo das actividades 
 

- Até ao momento da tomada de responsabilidade do Sector pelo BCAÇ 4612/72, a actividade do IN tem sido a seguinte: 
 
- Flagelações às povoações e aquartelamentos das NT, especialmente aos de MANSOA e MANSABÁ. 

- Intimidação e acções de rapto e roubo, contra as populações sob o controlo das NT. 

- Emboscadas e implantação de engenhos explosivos nos itinerários utilizados pelas NT, nomeadamente nas estradas MANSOA–MANSABÁ e MANSOA-BISSORÃ. 

- Reacção à penetração nas suas áreas de refúgio, especialmente nas regiões de MORÉS, CUBONGE e CHANGALANA. 

b) Organização civil e militar 

(1) Generalidades 

No quadro da organização IN, o Sector 04 integrado, na INTER-REGIÃO NORTE, compreendendo a parte dos "SECTORES" de MORÉS, SARA e CANJABARI, da organização político-administrativa do IN, e parte dos “SECTORES” de MORÉS e NHACRA, da FRENTE DA LUTA–MORÉS–NHACRA, parte do sector do BIAMBE da FRENTE DE LUTA CANCHUNGO–BIAMBE e ainda parte do SECTOR de SAMBUIÁ, da FRENTE DE LUTA S.DOMINGOS–SAMBUIÁ, da actual organização militar do IN. 

(2) Organização Civil 

Dentro da ZA do Batalhão, incluem-se os seguintes Sectores da organização político-administrativa do IN: 

- MORÉS, com as secções de CUBONJE, NANJA, MORÉS, MANSODÉ, MADINA e parte das secções de GANSAMBO, IRACUNDA e DANDO. 

- CANJABARI, com as secções de CAMBAJU, UÁLIA, e BRICAMA e parte das secções de CANJABARI (TAMBICÓ) e IONFARIM. 

- SARA, com as secções de LAMOI, DAR-ES-SALAM, BESSUNHA ou CORBA, BANTANJÃ E MANHAU e parte das secções de CUBDJAL e BANIR. 

(3) Organização Militar 
 
Na área de interesse do Batalhão, o IN tem o seguinte dispositivo e potencial: 

(a) FRENTE MORÉS/NHACRA 

1. SECTOR DO MORÉS 
CANJAJA 
- 01 bi-grupo, comandado por JOSÉ INDEQUE. 

MORÉS 
- 01 bi-grupo, comandado por BRAIMA SEIDI. 
- 01 bi-grupo, comandado por IMBEMBA SEIDI. 
- 01 bi-grupo não identificado. 
- 01 Bateria comandada por TURÉ MANTCHA. 
- 01 GR de Sapadores, comandado por ALBINO NANCASSA. 
- 01 GR de Foguetões 122, comandado por ALFA DJALÓ, destacado do CE 199/A/70. 
- 02 Grupos FAL, referenciados em MORÉS e MANSODÉ. 

SANTAMBATO 
- 01 Grupo, comandado por MAMADU SEIDI. 
- 01 Grupo FAL, na região de SANTAMBATO. 
 
CAMBAJO 
- 01 Grupo, comandado por MADA.  

CUBONGE 
- 01 Bi-grupo, comandado por NHAGA NHAME. 
- 01 Grupo, não identificado. 
- 04 Grupos FAL, referenciados em CUBONGE, TALICÓ, MADANE e SINRE. 
BIRIBÃO 
- 01 Bi-grupo, comandado por SEIDICÓ TURÉ. 

2. SECTOR DE NHACRA 
 
- CE 199/C/70, comandado por ANDRÉ PEDRO GOMES, responsável da FRENTE DE LUTA MORÉS/NHACRA, com as seguintes unidades: 

SARA/MANTEM 
- Sede do CE 199/C/70 e do Comando da FRENTE. 
- 01 Bi-grupo, comandado por FERNANDO NANCASSA. 
- 01 Bateria, comandado por BRAIMA PADRE. 
- 01 GR de Foguetões 122, comandado por SAMBÁ LAMINE MANÉ (ROBALDE). 
- 03 GR FAL, referenciados nas zonas de SUARECUNDA, SARAOUL e BUMAL. 

CHANGALANA (POLIBAQUE) 
- 01 Bi-grupo comandado por INFANDA NABENA. 

MADINA/ENXALÉ 
- 01 Bi-grupo (-) comandado por ALFOCENE SEIDI. 
- 01 GR de Sapadores, não identificado. 

MALFO 
- 01 Grupo do bi-grupo de ALFOCENE SEIDI. 

PORTO GOLE/BESSUNHA 
- 01 Bi-grupo comandado por CAMBRA. 

b) Capacidade de Combate 
 
- O IN dispõe de armamento eficiente e em quantidade. 
 
- Os elementos combatentes, a par do seu conhecimento profundo do terreno em que actuam, estão já dotados de uma mais apurada técnica de guerra de guerrilha, resultante, além do mais, de vários anos de ex¬periência. 

c) População sob o seu controlo 
 
O estudo da situação do IN e a análise dos binários IN/população e IN/terreno, mostram-nos a existência de duas áreas distintas na ZA. 

(1) Uma vasta área a OESTE do itinerário MANSOA-MANSABÁ-SALIQUINHEDIM, onde o IN controla totalmente as populações, perfeitamente integradas na sua organização político-administrativa, e mantém um dispositivo militar solidamente implantado e ainda FAL para defesa e controle da população. Constitui área de esforço em ordem a manter os itinerários do reabastecimento e a consolidar as estruturas sociopolíticas. 

(2) Na área a LESTE do itinerário MANSOA-MANSABÁ-SALIQUINHEDIM, podem considerar-se ainda duas zonas distintas, a primeira, a região de CANJABARI-BANJARA, a NORTE da estrada MANSABÁ-BANJARA, dispondo de FAL e situando-se em estado de evolução semelhante ao MORÉS, e a segunda, a SUL da mesma estrada, dispondo de forças do Exército Popular e das FAL, que dela irradiam para acções de guerrilha contra as NT e para acções de roubo e rapto das populações sob seu controlo, e exercendo sobre elas esforço de mobilização psicológica, aliciamento e intimidação.  

d) Movimentos, Linhas de infiltração e comunicação.  

São as seguintes as linhas de infiltração e comunicação do IN com incidência sobre a ZA do Batalhão: 

(1) Continuação do "corredor" de SAMBUIÁ que a partir da zona do MORÉS se bifurca segundo os eixos: 

                                 MABONCÓ-SUARECUNDA 
MORÉS<                                                                                          >SARA 
                                SAMTAMBATO-MANDINGARÁ  

(2) Continuação do corredor de LAMEL, que de BRICAMA, se bifurca segundo os eixos: 

                       BIRIBÃO-IONFARIM-BIRONQUE-CÃ QUEBO-MORÉS 
BRICANA < 
                       FARANDITO-TENTO-UÁLIA-GUSSARÁ- MANTIDA-SARA  

2.1) Formas de actuação. Táctica. 

De um modo geral o IN só tem actuado no Sector: 

- Em flagelações às povoações e aquartelamentos das NT. 

- Intimidação e acções de rapto e roubo, contra as populações sob o controlo das NT.  

- Por emboscadas e implantações de engenhos explosivos nos itinerários mais utilizados pelas NT.  

- Reagindo à penetração das NT nas suas áreas de refúgio. Para a execução da sua actividade, o IN tem modos de actuação característicos. Assim, relativamente ao Sector 04 e de um modo muito genérico: 

- O IN quando executa uma flagelação: 

- Monta normalmente as suas bases de fogos durante o dia, quando pretende flagelar uma povoação e respectivo aquartelamento a partir do cair da tarde, o que tem feito por sistema. 

- Monta normalmente mais do que uma base de fogos. 

- Tem procurado abordar o arame farpado durante a flagelação, sobretudo quando tem actuado contra os destacamentos de INFANDRE, BRAIA e JUGUDUL e sobre a tabanca em auto-defesa do CUSSANÁ 

- Deixa-se ficar, durante algum tempo, perto das suas bases de fogos, enquanto a Artilharia normalmente procura bater os possíveis itinerários de retirada. 

- Tem deixado ultimamente as suas bases de fogos, depois da retirada, armadilhas. 

- Procura flagelar mais de que um destacamento a fim de evitar o apoio de fogos e o socorro em tempo oportuno. 

2.2) Redes de informações e de colectas de fundos 

E do conhecimento do Batalhão que existem no Sector, redes de informações que até à data não foram detectadas, muito embora se encontrem vários elementos em observação, por haver desconfiança de possíveis ligações com o IN. 

No que respeita a colectas de fundos, o Batalhão tem notícias de que continuam a ser feitas, através dos comités de tabancas no que respeita às populações controladas pelo IN e através de elementos que recruta para o efeito, nas tabancas das populações reordenadas e controladas pelas NT. 

Neste aspecto predomina o apoio fornecido pelas populações de BINDORO, BRAIA e INFANDRE. Nos restantes reordenamentos populacionais há conhecimento de que se colectam, mas em menor escala. 

e) Situação em abastecimentos. Locais de apoio.

O IN leve a efeito regularmente colunas de abastecimentos, através dos "corredores" tradicionais utilizados para o lado da fronteira do SENEGAL, socorrendo-se ainda por vezes de ligações e cambanças para o SUL, quando pretende abastecer-se através dos "corredores" tradicionais de penetração da REPUBLICA DA GUINE. 

Para estas colunas de reabastecimentos o IN serve-se normalmente das populações sob seu controlo e só raramente se serve das que se encontram controladas pelas NT. 

Neste último caso procura as referidas populações quando se encontram a trabalhar nas suas bolanhas ou embosca trilhos por elas utilizadas nos seus deslocamentos e em ambos os casos rapta-as para Utilização posterior nas referidas colunas. 

Dentro do Sector podem-se considerar como locais de apoio o MORÉS e o SARA. É a partir destas duas regiões que o IN faz irradiar os reabastecimentos. No que respeita a alimentação, o IN recorre: 

- A colecta de alimentos junto das populações sob controlo das NT.  

- Aos produtos cultivados pelas populações sob seu controlo.  

- A produtos por ele próprio cultivados, embora em menor escala.

f) Aspectos característicos e pontos fracos. 

- O IN continua a ter necessidade de se apoiar nas suas populações que controla a fim de se alimentar. 

- Utiliza as populações normalmente na periferia das suas bases e acampamentos, servindo-lhe de escudo e alarme à aproximação das NT. 

- Nos últimos contactos havidos na região do CUBONGE e no SARA, tem sido com FAL que as NT têm tido inicialmente contactos, evitando deste modo que as NF cheguem, por terra às suas bases. 

- Tanto o IN como as suas populações controladas, continuam a ter necessidade de fazerem as suas trocas comerciais nas povoações por nós controladas, visto que dificilmente terão outro processo de terem dinheiro, alimentos que lhes faltem e vestuário. 

- Continua a ter necessidade de realizar colunas de reabastecimento de trajectos longos e difíceis servindo de carregadores, normalmente, os elementos que recruta de entre as populações que controla. Estes elementos já de há tempo que vêm manifestando o seu descontentamento, porquanto: 

-Já há anos que o vem fazendo, e é fácil de imaginar o seu cansaço. 

- Não recebem qualquer pagamento e muitas das vezes nem alimentação lhes é fornecido, 

- Prometem-lhes ofertas, sobretudo de vestuários, que não chegam a cumprir. 

(Jorge Canhão – Ex-Fur. Milº da 3ª Cia)  
Fotos: © Augusto Borges & Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados
________ 

Nota de MR: 

Vd. último poste desta série em: 

Guiné 63/74 - P4461: O segredo de... (5): Luís Cabral, os comandos africanos, o blogue Tantas Vidas... (Virgínio Briote)

Guiné > Brá > 1965 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanca e o Joaquim. Esta era a 1ª equipa do seu grupo de comandos, os Diabólicos. Em vésperas da Op Atraca.

O Jamanca será mais tarde ofical da 1ª Companhia de Comandos Africanos, participará na Op Mar Verde (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970) e comandará, em 1973, a CCAÇ 21, da qual farão parte antigos graduados africanos da minha CCAÇ 12.

Enquanto a CCAÇ 12, provavelmente refrescada, foi colocada no Xime, de meados de 1973 até ao final da guerra, a CCAÇ 21, comandada pelo Cap Cmd Graduado Jamanca [lê-se Djamanca], ficará em Bambadinca como unidade de intervenção. O Comandante da CCAÇ 21, Jamanca, será fuzilado, juntamente alguns dos seus homens (o antigo soldado da CCAÇ 12, Abibo Jau, por exemplo) em Madina Colhido, perto do Xime, depois da saída dos portugueses. (LG)
Foto: © Virgínio Briote (2007). Direitos reservados.

1. Das nossas lides bloguísticas eu sabia, talvez há mais de dois anos, que o meu amigo e camarada Virgínio Briote acalentava a secreta esperança de um dia poder entrevistar (ou ter uma conversa franca com) o Luís Cabral... Fez várias tentativas. Em vão. Até que a morte do histórico dirigente do PAIGC, ocorrida há dias em Lisboa, veio fechar-lhe a última porta...

Por outro lado, ele acaba de me confidenciar que vai encerrar a sua actividade bloguística, o seu Tantas Vidas (cujo acesso ele já 'blindou', com password):

Caro Luís,

Estou a proceder a correcções e acertos no meu blogue. Depois de terminar o trabalho vou imprimi-lo em edição de autor e oferecê-lo aos Camaradas que me têm acompanhado nesta aventura internauta. Depois apago o Tantas Vidas. Entretanto, para o caso de te interessar a pw é (...).

Um abraço,vb


2. Um primeiro comentário, de resposta:

VB: Fazer uma edição de autor, tudo bem... É um grande generosidade da tua parte ...mas apagar o registo da Net ? Não te precipites...Além disso, temos que fazer uma FESTA!... Tu mereces, nós merecemos!!!... Obrigado pela pw (...)


3. Mensagem do vb, de anteontem:

Para ti, Caro Luís,

Espero que não leves a mal a ousadia: alterei o teu poste (*), incluí um comentário que, penso, ajuda a clarificar o que realmente me levou a apresentar os meus respeitos ao Luís Cabral.

É certo que o contactei. Depois de várias tentativas consegui falar com ele ao telefone. Talvez me tenha faltado a capacidade de um jornalista. À pergunta de LC, quem é o senhor, respondi que era um antigo comando europeu e que... Ao que ele, pronta e educadamente respondeu que sobre os comandos africanos não tinha nada de importante a acrescentar. Que me deveria dirigir-me a outras entidades, que certamente teriam informações mais precisas. Ponto final, não consegui recuperar a iniciativa da conversa. E fiquei com pena, com a ideia que teria sido capaz de o ter frente a frente, não fora o deslize de me ter identificado logo no início.

Um abraço,
vb


Guiné > Brá > Outubro de 1965 > 1ª equipa de comandos Vampiros > Ao centro, o alf mil Vilaça e â sua rsquerda, o Jamanca e o Justo, futuros comandos africanos.
Foto: © Virgínio Briote (2007). Direitos reservados.








4. Nova mensagem do vb, de ontem:


Caro Luís,

Enquanto espero o Amadu, depois de uma estadia de quase duas semanas em Londres, onde aproveitou para visitar os filhos e a neta e consultar um cardiologista, vou responder-te:

(i) Luís Cabral:

Na breve conversa telefónica com ele, como te disse, fiquei com a impressão que cometi um erro grave. É obrigatório preparar a entrada. Mas eu já não estava à espera de falar com ele, já tinha feito quase mais dúzia de tentativas.

Subitamente reconheci-lhe a voz (vim a saber por ele que estava sozinho em casa) e, talvez, por não contar, esqueci a apresentação que tinha preparado. E foi aqui que falhei, quando me apresentei como um ex-combatente, comando.


A partir desse momento a conversa perdeu interesse para ele. Pela voz apercebi-me que o assunto lhe trazia incómodo e cansaço. Que o assunto era complicado, que não queria eximir-se nem incriminar ninguém, que já tinha dito tudo o que podia dizer, que lamentava o que tinha acontecido, que talvez houvesse pessoas mais indicadas para falar do assunto, que a saúde dele não estava famosa.

Não consegui dar a volta, não insisti.


(ii) Tantas Vidas:

É mesmo para apagar. Depois de arrumar os assuntos e eliminar os que não dizem respeito à minha comissão, vou aproveitar a oferta e o engenho do meu filho, que se prontificou para editar os textos. Vou mandar fazer uma ou duas centenas de exemplares e distribuí-los por alguns Camaradas.


(iii) Blogue:

O blogue da Guiné é o do Luís Graça & Camaradas da Guiné. É único. Pela vastidão e interesse de testemunhos presenciais, de soldados a coronéis e generais, por alguns trabalhos de investigação, pelo período todo da guerra. Está lá a alma da gente lusitana, ou melhor, da gente portuguesa. O sofrimento até ao limite, o desenrascanço, a capacidade de se adaptar, o viver tu cá tu lá com fulas, manjacos, mandingas, felupes, balantas, com outras culturas. É um documento inestimável, como se comprova diariamente pelas citações em livros e blogues. Não pode morrer.
Se vires interesse em alguns textos do Tantas Vidas podes publicá-los. Para mim, como compreendes, é uma honra (**).

Um abraço, vb

5. Comentário (final) de L.G.:

Sáo muitas emoções para um dia só... É uma prova extraordinária de amizade e camaradagem por parte do meu/nosso co-editor Virgínio Briote que eu sinto, cada vez mais, com vontade e necessidade de encerrar, na sua vida, ou na sua base de dados neuronal, o "capítulo da Guiné". Ou da guerra, como quiserem. Se calhar isso vai acontecer com todos nós, mais cedo ou mais tarde.

Vou respeitar a sua decisão final, qualquer que ela seja... mas reservo-me o direito de manter afixado, e bem alto, o seu "brazão de armas" à porta da nossa caserna... No entanto, ainda é muito cedo para despedidas... Venha de lá esse livro (aliás, dois, com o do Amadu Djaló) e o ronco que a gente vai fazer!... LG

__________

Notas de L.G.:


(*) Vd. postes de :

1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4449: In Memoriam (23): Luís Cabral ou o respeito por um homem que lutou por um ideal (Virgínio Briote)

(**) O último poste, de 1 de Junho de 2009, reza assim:

Guiné, Ir e voltar, 1965 a 1967.

Histórias de factos que aconteceram, vistas por um certo olhar. Outras vistas por esse olhar e que mais ninguém viu.

Os factos aqui descritos, uns foram vistos pelos olhos do editor, outros por quem os viveu, outros ainda foram recolhidos em fontes diversas: relatos de combatentes de ambas as partes, Arquivos Históricos e na literatura disponível sobre a Guerra travada pelas tropas portuguesas na Guiné. Apesar de continuamente actualizados, confrontados e corrigidos, não pode o editor garantir que os factos aqui relatados tenham ocorrido exactamente da forma como estão escritos.

Escrito por Gil [alter ego do VB]

Guiné 63/74 - P4460: PAIGC - Quem foi quem (8): O Luís Cabral que eu conheci (Pepito)

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima, margem direita do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Em primeiro plano, o Pepito observa a partida de um grupo de participantes estrangeiros do Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008), em canoa, rumo a Cacine, na margem esquerda. (Catorze meses depois, sei que o Pepito está hoje muito mais elegante, graças ao programa de regime a que se submeteu).

À sua direita o nosso camarada Zé Teixeira, da Tabanca de Matosinhos, e, à esquerda, o Domingos Fonseca, téncico da AD, do Programa Integrado de Cubucaré (onde se ocupa preferencialmente das acções ambientais em Cantanhez, nos domínios de ecoturismo, formação de professores de verificação ambiental, colecta de plantas medicinais e identificação de percursos naturais).

O
Domingos foi um dos elementos-chave da organização (excepcional, impecável) que permitiu levar uma enorme caravana de jipes, de Bissau até ao Bissau, cerca de 600 quilómetros ida e volta, e largas dezenas de pessoas... Fomos a um sábado, dia 1 de Março, com várias paragens (Saltinho, Ponte Balana, Gandembel, Guileje), pernoita em Iemberém (sábado); no dia 2, domingo, visita a Iemberém, Madina do Cantanhez - Acampamento Osvaldo Vieira, almoço em Canima e visita, à tarde, a Cacine, e de novo pernoita em Iemberém... Segunda feira livre, com regresso a Bissau, antes das 17 horas, início marcado do Simpósio, no Hotel Palace de Bissau...

Foi um grande acontecimento, importantíssimo para a preservação da memória da guerra colonial / luta de libertação, na Guiné-Bissau, e cuja lembrança ficou no coração de muitos de nós, portugueses, guineenses e outros, que tiveram o privilégio de lá ter estado... Foi também um grande desafio para a AD - Acção para o Desenvolvimento e o seu principal mentor, o Pepito, uma grande figura guineense, hoje respeitada nacional e internacionalmente.

O Simpósio foi um tremendo desafio, ganho pelos nossos amigos da Guiné-Bissau. Um acontecimento de que ainda hoje se fala em Bissau e no sul do país... E de que se continuará a falar com a inauguração, em breve, do
Museu Memória de Guiledje...


Foto (e legenda): ©
Luís Graça (2008). Direitos reservados.


1. Perguntei ao meu/nosso amigo Pepito, membro da nossa Tabanca Grande:

Como foi vista aí a morte do Luís Cabral ? Mais um histórico que desaparece (e que histórico!) e a memória que se vai (*)... Andámos (o Virgírnio Briote) atrás dele, em vão... Sempre se recusou a receber-nos e a falar connosco (com o VB, ex-comando...). Vou publicar esta (in)confidência do VB... Um abraço. Até Julho. Luís


2. Resposta do Pepito (aliás, Eng Agr Carlos Silva Schwarz), director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau:

Luís,

Tenho uma excelente opinião do Luís Cabral.

Foi o meu primeiro Presidente e sempre o tratei como tal em todas as vezes que ia visitá-lo a Miraflores.

Habituei-me a vê-lo diariamente em todas as actividades e departamentos do Estado. Visitava para se entusiasmar ele próprio com os progressos que o país ia fazendo, logo após a independência. Visitava sempre que possivel o Centro de Pesquisa Agrícola de Contuboel, criado pelo DEPA em 1977 e onde pela primeira vez se fez orizicultura na época seca, a partir da irrigação do rio Geba.

Eu, novato, com 27 anos, tremia por todo o lado. Não com medo da pessoa (aliás ele era duma afabilidade impressionante), mas com medo de estar a cometer algum erro. O interesse genuíno e nunca de circunstância, era contagiante e aprendi com ele a sonhar um belo país para a Guiné-Bissau.

Já no exílio, em Lisboa, nas conversas que tinhamos, pouco lhe interessavam as notícias sobre a descida aos infernos que estávamos a viver. Entusiasmava-se sim com boas notícias e com sucessos que aqui e ali o país ia registando.

Tinha todas as razões para lançar diatribes contra o Nino Vieira, que o traiu miseravelmente, mas nunca o fez. Para ele o que contava era o futuro da Guiné-Bissau, única justificação da sua dedicação e engajamento na Luta.

Passeava nas ruas e tabancas do país sem guarda-costas, às vezes em calções e a andar de bicicleta, como uma vez em Bubaque em que me viu a mim e à Isabel e disse "passem lá em casa para conversarmos". Nós os dois, ainda miúdos, criámos a ideia de que um Presidente era uma pessoa simples, acessível a todos e que acreditava na malta nova. O que se passou a seguir mostrou-nos Presidentes ao contrário.

Em Portugal continuou a conviver com pessoas de relevo intelectual e lideres internacionais. Contava-me estórias das conversas dele com o Mandela, cheias de humor e significado, pela simplicidade que ele apreciava num líder tão marcante da nossa época.

Ofereceu-me um desenho, que é praticamente desconhecido, de Amilcar Cabral, feito por um angolano, e que tenho no meu gabinete de trabalho em Bissau, cobiçado por muitos amigos meus.

Sempre me magoaram muito as afirmações que vi, recorrente e injustamente, fazer-se sobre a responsabilidade de Luís Cabral na morte dos comandos africanos.

Nos primeiros anos de independência fiz parte da direcção da Juventude do Partido (a JAAC) e emiti muitas críticas em relação a certas opções e à permissividade de certos comportamentos a que chamei na altura como "o descanso do guerreiro".

Da mesma forma que me exaltei de satisfação com o programa mais inovador e eficaz que algum dia tivemos no país (o programa de saúde comunitária, liderado por João da Costa e Boal).

Imediatamente a seguir ao golpe de estado do 14 de Novembro de 1980, demiti-me da direcção da JAAC por não me rever neste tipo de "debates" das divergências internas.

Tenho orgulho de ter pertencido ao Governo de Unidade Nacional que, em 2000, organizou a única e última visita de regresso de Luís Cabral a Bissau.


abraço
pepito

[Bold, a cor, da responsabilidade de L.G.]
__________

Nota de L.G.

(*) Vd. poste de 1 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68







Guiné > Mansambo > CART 2339 (1968 / 69) > Fotos Falantes III (de cima para baixo, 6, 27, 24, 31, 30) > Por não ter aqui à mão a lista com as legendas das fotos, não posso dar mais pormenores. De qualquer modo, as fotos falam por si: o Torcato junto ao obus 10.5 em Mansambo; aspectos da vida de uma ou mais tabancas fulas em autodefesa, do regulado do Corubal ou de Bengacia (Duas Fontes), vida essa que se tornou, de meados de 1968 para meados de 1969, cada vez mais complicada, com o cerco do PAIGC ao chão fula.


Alguma destas tabancas podia ser Candamã ou Afiá ou Camará (vd, carta de Bengacia), sítios por onde andei em Agosto de 1969... Também podia ser a da pacata Mussá Ieró, pacata até ao dia em que foi destruída e abandonada, em 24 de Novembro de 1968... A Mussá Ieró não chegava os velhos obuses de Mansambo, sede do subsector e da CART 2339... (LG)


Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Todos os direitos reservados.




1. Mensagem do Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Fá e Mansambo, 1968/69)... Meio alentejano, meio algarvio, português dos quatro costados, beirão, camarada, amigo, mebro do nosso blogue desde Maio de 2006 e, agora, avô babado de um neto, creio que o primeiro, de nome Martim, um nome arcaico mas bem lusitano...


(No dia 29 de Maio, tinha-me escrito o seguinte: Um abraço do Fundão até ao Porto para ti ,meu caro Luis, e para todos do [BCAÇ] 2852 e da [CCAÇ] 12. Lembro-me de alguns. Igualmente para a malta do Norte, um abração. O Carlos Marques dos Santos da [CART] 2339 virou polaco e deve Varsoviar e não só os dias.... Não fui a 23 ao convívio,e devia ter ido, da 2339... Nasceu nessa madrugada o meu Martim, Vidas!)...


Estimados Editores deste Sítio:


Já há tempos que nada envio. Hoje, através do nosso camarada Tertuliano Ten-Coronel José Borrego, consegui falar com o meu terceiro Comandante de Companhia, Cor Moura Soares e ter noticias do quarto Comandante. Fiquei contente. Passados quarenta anos voltamos a falar e a reviver o passado.


Tem razão o Jorge Cabral, este sitio faz com que aconteçam coisas destas...e gostamos até do que não gostamos. É um síítio de afectos...não é? Giro. Devido á idade das peças não convém agitar muito.Pois!


No meu tempo (BART 1904 e BCAÇ 2852) haveria Abades em Bambadinca? Creio que só em Bafatá. Rezaram missa na inauguração de Mansambo, em Janeiro de 1969 e aniversário da Companhia. Não vi, pois estava em Portugal. Pela altura da Páscoa de 1969, como os militares eram crentes (gente do Norte) pediram e eu falei, creio que em Bafatá, a uns Sacerdotes, da possibilidade de irem dizer uma missa. Concordaram. Quando disse que era em Mansambo...oh...eu ainda disse que seriam protegidos lá do alto...


Ainda não havia o Padre Puim e não houve missa. Como depois de o Payne ter saído, também nunca mais apareceu médico por lá. Até se vivia bem em Mansambo. Feitios. Bons ares e Turismo Rural...


Mas anexo Mussa Iéro em versão light. Logo envio outros escritos.


Abraços do Torcato


2. Estórias de Mansambo II > MUSSA IÉRO


por Torcato Mendonça




Era uma vez… Sim, era uma vez uma Tabanca, não muito grande, que, num passado não muito distante, tinha sido bem maior.


Teria agora uma população reduzida a uma dúzia de famílias. Nem tantas.


Muitos já tinham partido para Candamã, a noroeste, ou para nordeste onde estava Dulo Gengelê e Galomaro. Alguns migraram mesmo até Bafatá.


Ficaram poucos, não por teimosia, talvez por amor ao chão, apego à memória dos antepassados, talvez por algo mais ou, por tudo isso, resistiam e adiavam a partida. O perigo aumentava, os avisos dos militares eram mais insistentes. Adiavam. Talvez assim se sentissem mais felizes.


Naquela noite, ainda menina, ainda de olhos não fechados à claridade, sentiram a bestialidade da guerra, a violência gratuita, o ódio fratricida a abater-se sobre eles. Homens, ou simplesmente seres a destilarem ódio, bestas de uma guerra num país que diziam querer libertar, comandados por outros de outras terras ou, se comandados por guineenses, treinados em países longínquos. Só assim se compreende o modo como espalharam o terror, o ódio, a morte e a destruição sobre gente indefesa.


O ataque durou pouco, as granadas foram poupadas e o saque, a bestialidade, os gritos, os gemidos, os risos de feras certamente encheram a noite.


Depois o silêncio que só na morte ou no deserto se pode encontrar. De repente foi quebrado, talvez pelo choro de uma criança a que outros lamentos, outros choros se seguiram.


Não muito longe, em Candamã, uns quantos militares, cerca de vinte, picadores e população, ouviram o ataque e sentiram a impotência do auxílio. Só no dia seguinte e por isso, além de redobrarem os cuidados defensivos, rápido prepararam a saída para a madrugada ainda a demorar. O relógio luminoso foi consultado com mais frequência, as armas ficaram mais perto, o sono foi de sobressalto e, ainda a noite não acabara, estavam preparados. Os guias, alguns elementos da população, picadores e cerca de metade dos militares saíram. Não pela picada mas por um trilho que os guias conheciam. O pouco ruído era abafado pela chuva fraca que teimava em cair.


Pouco depois uma paragem, uma breve conversa a informarem que Mussa Iéro estava perto. Depois o sinal a indicar o ouvido mas, para os militares, demoraria um pouco mais a captação de sons.


De repente a Tabanca estava ali à frente. Ouvem-se vozes; param e esperam um pouco. Avançam com cuidado e logo à entrada uma visão macabra: um corpo, talvez devido a uma roquetada, espalhado em destroços. Um dos picadores aproxima-se e informa ser um milícia da Moricanhe. De facto haviam bocados do corpo coberto pelo camuflado e outras, não cobertas, a chuva tornara-as brancas.


As armas foram mais apertadas, os olhares endureceram, o ódio ia surgindo e os músculos estavam mais tensos. A transformação já se dera naqueles rapazes soldados. Acontecimentos como aquele só os endureciam mais e geravam maior ódio pela violência. Quem eram eles agora?

No centro da Tabanca estavam os feridos e os mortos. O enfermeiro tentou tratá-los o melhor possível. A população esperava ajuda de Dulo Gengelê. Combinou-se então o que fazer. Reunião difícil, longa, demasiado longo para alguns feridos graves.


Finalmente o consenso: os mortos, salvo erro dois ou três, seriam enterrados em Mussa Iéro e o choro ficava para depois, os feridos e a maior parte da população iam para Dulo onde já os esperavam. Outros, a maioria mulheres e crianças, vinham connosco para Candamã.


O regresso foi pela picada e mais rápido. Picadores à frente, militares a seguir e população atrás.


Mussa Iéro tinha ficado para trás. Acabara no dia 24 de Novembro de 1968. Em breve seria invadida pela mata e os homens dela se afastariam.


Meses depois, em Julho e Agosto do ano seguinte, na zona, não longe da antiga Tabanca, o inimigo construiu uma base. Dali saíram fortes ataques às Tabancas em autodefesa de Afiá, Candamã e Camará.


Estávamos em Galomaro (COP 7), mais propriamente em Nova Cansamba, e mandaram-nos regressar. A missão era descobrir a base inimiga. Com o caçador e guia Lhavo localizamos o santuário. Foi bonito vê-los e nada fazer.


Dois dias depois, a 18 de Agosto [de 1969], tropas pára-quedistas assaltaram, destruíram, causaram baixas e fizeram pelo menos um prisioneiro [ Malan Mané]. Acabara a base inimiga e os sobreviventes puseram-se em fuga. Passaram certamente perto de nós sem serem detectados. Caíriam e sofreriam mais baixas, mortos e feridos, numa emboscada montada pelo 3º Grupo de Combate da CART 2339, talvez quinze quilómetros depois na estrada Bambadinca/Xitole, próximo de Mansambo.


Um dos feridos graves foi Mamadu Injai, o Comandante da Zona. À noite a rádio IN pedia auxilio. Os Irãs, apesar de Mussa Iéro ser Tabanca Fula, tinham-se vingado.


O desgaste daqueles dias passou, assim, mais rápido e, pelo menos em mim, apareceu um sorriso e talvez tenha saudado os Irãs.


____________


Nota de L.G.:


(*) Vd. último poste da série > 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4458: Bem-vindo, Comandante Marcelino! Obrigado por ter tomado conta de mim na Guiné (José Eduardo Alves)

1. Mensagem de José Eduardo Alves, (Leça) (*), ex-Condutor da Cart 6250/72, Mampatá, 1972/74, com data de 29 de Maio de 2009:

Camaradas editores
Venho pela presente, dar as boas-vindas, ao blogue do meu ex-Comandante de Companhia, CART 6250, Os Unidos de Mampatá. (**)

Não é demais, saudá-lo, pois é uma pessoa que eu sempre admirei, e já lhe agradeci pessoalmente por ter tomado conta de mim na Guiné, pois eu era tão revoltado com a tropa que às vezes me portava mal, mas graças a ele, tenho a Caderneta Militar limpa. É um homem com um grande coração, pois conduziu muito bem os homens que lhe foram confiados, não é por acaso que vem dar a cara em todos os convívios que se realizam anualmente, e é de realçar o carinho que toda gente tem por ele.

Não posso deixar de dizer que há três anos lhe falei desta família, embora só agora tenha aparecido. Seja bem-vindo a esta casa. Devo dizer que por este amarelo sempre tive apreço, só gostava que ele me explicasse porque é que na minha caderneta militar está que eu fui transferido para a 1.ª Rep do QG, em Bissau, e eu nunca saí de Mampatá. Eu era para ser transferido, para ser condutor do Carlos Fabião, que era o Comandante das Milícias da Guiné, ou coisa parecida, porque o condutor dele tinha acabado a comissão. Numa passagem por Bissau orientei-me, mas o meu Comandante deixou que todos os papéis fossem feitos, acabando eu por ficar em Mampatá. Muito obrigado.

Como estou à vontade, aqui vai uma pequena estória.

Estava eu de serviço à agua, porque inicialmente nós íamos buscar a agua a Aldeia Formosa, eram oito da noite, já estava a dormir, chega o sargento de ronda e chama:
- Oh Leça, você está de reforço.
- Mas eu não estive de serviço de dia, logo não posso estar à noite. Façam entrar a reserva.
- Já entrou, portanto você tem que ir para o posto 8.

Lá me convenceu. Cheguei ao posto, e pensei:
- Está bem.

Afinei o ouvido e da messe dos sargentos e oficiais vinha o toque da viola.
- Então é aquele que para os senhores não podia estar onde estou.

Que faço? Pego na G3 e dou duas rajadas. De imediato veio o sargento de ronda:
- Eh pá, que foi?
- Fique aqui, que eu venho já.

Fui à tabanca levar a arma e dizer ao Comandante Marcelino para mandar o da viola para o posto 8. Não vale a pena explicar a confusão que aquilo deu, mas eu é que não fui para o posto.

O Comandante Marcelino demorou dois dias a chamar-me e a convencer-me a aceitar um castigo, que foi sete dias a supervisionar a abertura de uma vala para nos abrigar em caso de ataque. Deu-me dois africanos para o trabalho, só que eu era tão querido na população que apareceram aí uns para me ajudar. Tive que explicar que o meu castigo eram os sete dias e não abrir a vala até ao fim, mas o sétimo dia foi perdoado.

Falta aqui dizer que convidei o Comandante Marcelino a ir comigo e com a minha esposa à Guiné, mas como o convite foi feito muito em cima da hora, não deu para aceitar. Acho que cumpri o meu dever, porque eu gostava que ele fosse. Talvez para o ano.

Eu sei que o trabalho no blogue tem sido intenso, por isso deixo ao vosso critério. Já mandei as fotografias para a adesão e perguntei se a minha esposa também pode fazer parte do blogue, porque ela diz que também foi militar, já que éramos casados quando fui para tropa.

Confirmo a nossa presença no Encontro em Ortigosa, s/dormida, José Eduardo Alves e Maria da Conceição M. Alves, afinal havia amarelos bons.

Sem mais por hoje, um grande abraço deste camarada de armas
J. Eduardo Alves
__________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste da série de 30 de Maio de 2009 &gt; Guiné 63/74 - P4442: Blogoterapia (105): Falando de camaradagem, de brancos e pretos (José Eduardo Alves)

(**) Vd. poste de 29 de Maio de 2009 &gt; Guiné 63/74 - P4437: O Nosso Livro de Visitas (65): L.J.F. Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250, Mampatá, 1972/74

Guiné 63/74 - P4457: Memória dos lugares (27): Álbum fotográfico do Xime, CCAÇ 526, 1963/65 (Libério Lopes)





1. Em mensagem de 2 de Junho de 2009, Libério Lopes, ex-2.º Sarg Mil Inf da CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65 (*), enviava-nos 9 fotos para o álbum fotográfico do Xime.





Em mensagem de 2 de Junho de 2009, Libério Lopes (*), ex-2.º Sarg Mil Inf da CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65, enviava-nos 9 fotos para o álbum fotográfico do Xime.

Caro Luis Graça,

Junto envio algumas fotos tiradas no Xime em 1963 ou 1964. Servirão para enriquecer o álbum sobre o Xime.

A maioria da população do Xime era simpática connosco, e de vez em quando juntávamo-nos para umas danças africanas, nas quais eu gostava de participar.

Além disso os putos conheciam-me porque ainda os juntei para lhe dar umas aulas. Foi uma tentativa que não resultou, devido a não me ter sido concedido o tempo necessário para isso.

No Xime estava só um pelotão e éramos poucos para a missão militar que tínhamos em mãos. Foi pena porque a minha profissão era professor e, certamente, teria feito um trabalho mais útil. ´

Desses momentos de lazer anexo, abaixo, nove fotos. Um abraço do Libério Lopes,
(ex-2ºSarg Mil)

2. Comentário do nosso amigo, guineense da diáspora, Eng José Carlos Mussá Biai, natural do Xime, nascido no início da década de 1960:

Caro Luís

Fico sempre com muita emoção quando vejo fotos, sejam elas de paisagens ou gentes da minha terra-natal. Por isso deste vez não foi excepção.

Quanto as pessoas que estão nas fotografias, apenas a foto 9 é que tem duas caras que me são familiares. Trata-se de um primo e um tio.

Mas de qualquer maneira por alguns bons minutos voltei a Xime.

Um abraço e muita saúde,

José C. Mussá Biai


Foto 1 - Grupo de mulheres do Xime, comigo ao lado.

Foto 2 – Batuque, comigo no meio.




Foto 3 – Batuque, sempre comigo no meio.


Foto 4 - Eu e a minha lavadeira, e salvo erro o seu filho.

Foto 5 – Elementos da população.



Foto 6 - Eu com um bebé que simpatizava muito comigo.




Foto 7 - Nesta estou com um chapéu colonial.

Foto 8 – Nesta estou com um chapéu colonial.



Foto 9 - O homem do chapéu colonial era nosso guia e morava junto ao quartel. O mais alto, acho que era o chefe da tabanca. Ia connosco para o mato e, devido á sua altura salvou-me de morrer afogado numa bolanha perto do Xime, num dia para esquecer.


Fotos: © Libério Lopes (2009). Direitos reservados
______________
Nota de M.R.:

Vd. último poste da série:



Guiné 63/74 - P4456: Blogpoesia (48): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (V Parte): III Dinastia (Filipina)



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafal Balanta > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > Mais imagens do "apartamento de Cafal Balanta, na zona turística do Cantanhez"...

Recorde-se que o ainda periquito, nestas andanças bloguísticas, Manuel Maia foi Furriel Miliciano da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74). Depois de sete a meses em
Bissum Naga (região de Bula, a norte de Bissau), participou na reconquista do Cantanhez, na Região de Tombali, no sul, o que implicou a ida de dois Grupos de Combate, (entre os quais o seu) para Cafal - Balanta, ficando adstritos à Companhia residente (que ali se encontrava apenas há dias).

Em Cafal Balanta, Manuel Maia e os seus camaradas vivem em condições duríssimas, em buracos escavados no solo, cobertos apenas por panos de tenda e folhas de palmeira. Esta co-habitação durou uns três a quatro meses até à chegada do resto da Companhia que foi destacada para Cafine (a cerca de 2 km de Cafal Balanta).

O resto da comissão foi dedicada à construção de reordenamentos para alojar a população local, até então sob controlo do PAIGC... "Foram nove ou dez meses ali passados, naquela zona minguada de tudo menos de mosquitos e balas" (MM)...

Fotos: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados.


V parte da História de Portugal em Sextilhas, escritas pelo Manuel Maia, licenciado em História (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74) (*).




TERCEIRA DINASTIA (FILIPINA) (**)


152-Querendo obter a estima portuguesa,
Filipe, em Tomar, dá por certeza
respeito pela língua e cultura.
Garante ainda p´ro luso tesouro,
pertença da riqueza em prata e ouro,
dos, cheios, reais cofres dessa altura...


153-Sujeitos a forçada união
são alvo, os portugueses, da acção
das hordas de piratas holandeses,
que vendo a nossa armada destruída
vão ocupar colónias de seguida
e em Vera Cruz se juntam a franceses...


154-Já farto de opressão e humilhado
milagre busca o povo, angustiado,
quando ao Prior do Crato adere em massa.
Esforço patriota derradeiro,
magado pela acção do rei primeiro,
dos três, que a Espanha impôs à lusa raça.


155-Face à derrota fica inconformado,
pedindo apoio à França é ajudado,
com barcos, homens, mesmo cabedais...
Em S. Miguel, o esmaga, o opressor
que faz de si, de novo, perdedor,
mau grado auxílio inglês, ora em Cascais...



Defeat of the Spanish Armada, 8 August 1588 /
A derrota da Armada Invencível,
em 8 de Agosto de 1588.

Óleo (1796) de Philippe-Jacques de Loutherbourg (1740-1812)
National Maritime Museum, Greenwich Hospital






Fonte: Wikipedia Commons. Domínio público.







156-Prepara Espanha a Armada Invencível
julgando que a vitória era possível
sobre Inglaterra a quem vai invadir.
À força lusa é imposto envolvimento
de apoio ao espanhol atrevimento,
e o mito filipino vai ruir...


157-Rondando como abutres, rês ferida,
sabendo a nossa armada destruída,
saqueiam Portugal, os vis ingleses.
Interesses lusos, alvos atacados,
sem forças para verem rechaçados,
piratas e corsários holandeses...


158-Depois do rei Prudente, o filho assume
um tempo de rudeza e azedume
que faz germinar ódios na Nação.
Ao publicar tão vis Ordenações,
O Pio exponencia mil razões
p´ra já bem explosiva situação...


159-Um Pio muito pouco apiedado,
com mouros/descendentes agastado,
a quem vai expulsar de Portugal...
Chamando para seu governador
o tão famigerado vil traidor,
gerou um forte clima emocional...


160-A saga filipina avançará:
terceiro aqui é já o quarto lá,
mais opressor ainda que anteriores.
Impostos são garrote asfixiante
vexame cada vez mais ultrajante,
havia que expulsar os invasores...


161-Se na primeira fase houve acalmia,
pois nobres têm sempre a tença em dia...
segunda etapa é fogo de vulcão.
Agravo tributário é uma constante,
o povo abomina o ocupante,
no sul, Manuelinho entra em acção...


162-Prisões são arbitrárias, quais insultos,
gerando mil protestos e tumultos,
no ar pairava a sede de vingança...
Mil seis quarenta estava no final,
Dezembro em pleno dia inaugural,
foi marco, para a Casa de Bragança...


163-A vida alentejana de acalmia
que o duque para sempre pretendia,
forçada a corte abrupto, teve um fim.
P´ra trás ficou de vez Vila Viçosa,
que a Pátria está de si esperançosa,
fidalgos receberam o seu sim...


164-Sucesso da revolta determina
que seja um sucessor de Catarina,
duquesa de Bragança, a governar.
João Pinto Ribeiro e sublevados,
quarenta atacam paço esperançados
da honra, então poderem reganhar...

165- ‘stratégia tem João Pinto Ribeiro
a dirigir o acto aventureiro
que D. João iria sancionar.
O povo só mais tarde é informado
e logo adere assaz entusiasmado,
saindo à rua p´ro rei aclamar...


166-Tal como a foice corta a erva ruim,
também a Vasconcelos se deu fim
na lâmina afiada de uma espada,
que vai trazer, de volta, a dignidade
a um povo que vivia a adversidade,
sentindo ocupada a Pátria amada...


167-Sessenta anos tempo deste jugo,
que teve o castelhano por verdugo
e apoio vil, de, poucos, nobres lusos.
Renasce a fé e a esp´rança de vivência
agora retomada a independência,
punidas as traições e os abusos...

© Manuel Maia (2009)

[Fixação / revisão de texto: L.G.]

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd.postes de:

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3886: Tabanca Grande (118): Manuel Maia, ex-Fur Mil, o poeta épico da 2ª Companhia do BCAÇ 4610/72 , o Camões do Cantanhez

14 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3890: Tabanca Grande (119): Apresentação de Manuel Maia ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3915: Cancioneiro do Cantanhez (1): De Cafal Balanta a Cafine, Cobumba, Chugué, Dugal, Fatim... (Manuel Maia)

27 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4087: Blogpoesia (33) : O bardo de Cafal Balanta (Manuel Maia)

(**) Vd. postes anteriores desta série:

2 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4274: Blogpoesia (43): A história de Portugal em sextilhas (Manuel Maia)

3 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4278: Blogpoesia (44): A história de Portugal em sextilhas (II Parte) (Manuel Maia)

6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4290: Blogpoesia (45): História de Portugal em Sextilhas (Manuel Maia) (III Parte): II Dinastia, até ao reinado de D. João II

15 de Maio de 2009 >Guiné 63/74 - P4351: Blogpoesia (47): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (IV Parte): II Dinastia (De D.Manuel, O Venturoso, até ao fim)

Guiné 63/74 – P4455: Estórias cabralianas (50): Alfero, de Lisboa p'ra mim um Fato de Abade (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Nova Lamego > Canjadude > CCAÇ 5 (1968/70) > O Alferes Capelão Libório, açoriano, celebrando missa, em 12 de Maio de 1969, num altar improvisado, e acolitado pelo ex-Fur Mil Trms Inf José Martins (*)

Foto: © José Martins (2006). Direitos reservados


O Jorge Cabral (no lado direito), fotografado com o Puim (ao centro) e o Durães (à esquerda), no 3º Convívio do pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e subunidades adidas, em 16 de Maio de 2009, em Viana do Castelo (**).

Foto: © Benjamim Durães (2009). Direitos reservados

1. Mensagem, de ontem, do Jorge Cabral:

Caros Amigos!

Desde Dezembro de 2005 que diariamente consulto este nosso Blogue. São já duas comissões e estou pronto e meter o chico para muitas mais…

Gosto de tudo, mesmo do que não gosto… e só lamento não serem mais os Camaradas a intervir. O não saber mexer no bicho-computador não serve de desculpa, pois podem recorrer aos filhos ou aos netos…

Infelizmente a minha vida profissional não me dá tempo para comentar tudo o que queria e era muito… Talvez a partir de 2010…

Na Guiné vivi sempre em Destacamentos [Fá e Missirá], pelo que mesmo em Bambadinca fui apenas visita… embora assídua e às vezes copofónica. Quanto a Bafatá só lá ia, desenfiado e à pressa, frequentando damas, o Teófilo e as Libanesas. (Nunca comi, por exemplo, o famoso bife da Transmontana).

Ainda assim, conheci a Ritinha, cujo pai, a certa altura, pretendeu pôr de namoro com o Furriel Branquinho… e claro também o Xame, o Homem dos dentes de ouro, ao qual cheguei a solicitar orçamento.

Não fui Comando, nem Ranger, mas pertenci a uma tropa muito especial. Dos meus Soldados, Sambaros, Dembas, Mamadus, Alfas, Djangos, Abdulais, Chernos… guardo as melhores recordações e conservo na cintura o ronco-mezinha, que eles me ofereceram no Xime, quando de partida para a minha primeira operação.

No dia 16 de Maio último, lá estive em Meadela com a malta do [BART] 2917, tendo então oportunidade de abraçar o Padre Puím e relembrar-lhe a missa que ele rezou em Missirá.

A propósito, envio estória

Abraços Grandes
Jorge Cabral

P.S.: Conheci bem o Luís Cabral [1931-2009]. Estive com ele, aqui em Lisboa, algumas vezes. Falámos da Guiné, dos Irãs, do Macaréu e principalmente dos Cabrais. Tal como eu, chamava-se Almeida Cabral. Descobrimos um antepassado comum – um tal Padre Cabral, que teve vinte e um filhos em Cabo Verde. Era um Homem simpático e afável. Quanto ao mais, a História o julgará… JC


Fotografia do Cónego, guineense, nascido em Bissau, Marcelino Marques de Barros (1844-1928). Documento extraído do artigo "Antiguidades do Ultramar: II. Organizações das Missões da Guiné (Projecto de 1880)", por António Lourenço Farinha, antigo missionário em Moçambique. In: O Missionário Católico, de 1931, p. 155. (***)

Imagem: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.


2. Estórias cabralianas (50) > FATO DE ABADE
por Jorge Cabral (****)

- Meu Alferes! Meu Alferes! Já chegou o Senhor Abade!

O cozinheiro Teixeirinha, todo eufórico, gritava, à porta do meu abrigo.

- Abade - pensei comigo - , o Puím?

Magro, simples, humilde, o único Capelão que conheci na Guiné, viera de sintex e, antecipando-se, não esperara por ninguém, entrando no Quartel. Logo após o descanso, a missa foi celebrada, mesmo ao lado da Cantina, no local da Escola. Fiéis, sete, dois comungantes e o Padre, de paramentos verdes.

Uma missa em Missirá devia ser novidade, mas os Africanos, respeitosos, apenas de longe observaram. Foi em Dezembro de 1970 e logo no mês seguinte eram as minhas férias.

Antes da partida, como de costume, soldados e milícias, fizeram uma longa fila, a fim de pedirem, o que queriam da Metrópole. Pulseiras de prata, fios de ouro, uma gabardine, botões de punho, máquinas fotográficas… porque para eles, ao Alfero em Lisboa tudo seria possível.

A encerrar a fila, surgiu o Sitafá, um puto que vivia connosco desde Fá, ajudando na cozinha… e cuja ambição era ser Comando Africano.

Estranhei vê-lo e indaguei no gozo:
– E tu, Sitafá? Se calhar queres que te traga uma bajuda?!...

Timidamente, o rapaz balbuciou:
– Alfero, eu queria um Fato de Abade.

© Jorge Cabral (2009)
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Notas de M.R.:

(*) Vd. poste de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)

(...) Todas as unidades a nível de batalhão ou escalão superior incluíam no seu quadro de pessoal um sacerdote católico romano que, depois de uma breve instrução militar na Academia Militar e graduado no posto de Alferes, acompanhava as unidades combatentes para África, para as apoiar moral e religiosamente durante a sua comissão de serviço

Na zona onde se encontrava a minha companhia, Nova Lamego, o capelão do batalhão ali estacionado e que dirigia a actividade daquele sector, era o padre Libório, natural dos Açores, que, na sua missão de visitas de rotina a todos os destacamentos da área do Batalhão, se encontrava a passar uns tempos em Canjadude.

Na manhã de 12 de Maio de 1969, logo ao pequeno almoço, confidenciou que gostaria de fazer uma cerimónia especial nesse dia, já que se celebrava o 51º aniversário da primeira aparição, em Fátima, de Nossa Senhora aos pastorinhos. (...)

(**) Vd. poste de 18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4372: Convívios (131): CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), com o Arsénio Puim e os filhos do Carlos Rebelo (Benjamim Durães)

(***) Vd. poste de 17 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3642: Historiografia da presença portuguesa (14): A exótica Bissau do Séc. XVII e o papel de D. Frei Vitoriano Portuense (Beja Santos

(****) Vd. poste anterior, desta série em:

12 de Maio de 2009> Guiné 63/74 - P4326: Estórias cabralianas (49): Cariño mio... Muy cerca de ti, el ultimo subteniente romántico (Jorge Cabral)

(...) Dois dias depois de chegado a Bambadinca em meados de Junho de 69, fui mandado montar segurança no Mato Cão. Periquitíssimo, cumpri todas as regras, vigiando a mata de costas para o rio, sem sequer reparar na beleza da paisagem.

Mal sabia então, que ali havia de voltar dezenas de vezes, durante o ano que passei em Missirá. Pelo menos uma ida por semana para ver passar o Barco, no que se transformou numa quase agradável rotina.(...)

terça-feira, 2 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4454: Convívios (143): Castro Daire, agora chão de Bambadinca, 1968/71 (3): Gente feliz, com lágrimas...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) > Organização: Adélio Monteiro, ex- Sold Cond Auto da CCAÇ 12, natural de Monteiras, Castro Daire, e hoje um próspero comerciante e um poderoso chefe de clã familiar, com múltiplos talentos musicais. ( Para ele e para a família, vai daqui um grande, grande Alfa Bravo... O Adélio vai ter direito a um poste especial, um dia destes, na Série Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres).

A nossa Tabanca Grande esteve orgulhosamente representada ao peito do Jaime Machado, de Matosinhos (foi Alf Mil Cav do Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70)...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

O crachá da CCAÇ 12 (originalmente, CCAÇ 2590) (Contuboel e Bambadinca, 1969/71)... Nem toda a gente pôde vir, como foi o caso do ex-Cap Inf QP, Carlos Brito, hoje Cor Ref, que vive em Braga e está bem de saúde, segundo nos garantiram... Daqui vai, para ele, um abraço e votos de longa vida...

Castro Daire > Freguesia de Monteiras > Zona Industrial da Ouvida > Restaurante P/P > 30 de Maio de 2009 > 15º Convívio do pessoal de Bambadinca, 1968/71, CCS do BCAÇ 2852, CCAÇ 12 e outras subunidades adidas (*) >

Três camaradas da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Junho 69/ Março 71): o ex-Fur Mil Joaquim Fernandes, ex-1º Cabo Aux Enf Fernando Sousa e o ex-Fur Mil António Marques... O Fernandes e o Marques foram vitimas de explosão de minas A/C, à saída do reordenamento de Nhabijões, a 13 de Janeiro de 1971, com vinte meses de comissão... O Marques, que teve às portas da morte (se não fora a evacuação Y para o Hospital de Bissau), "ganhou" mais "dois anos de comissão" (desta vez, no "estaleiro")...

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O Fernandes, o nosso Engº Fernandes, mostra à actual companheira uma foto do burrinho em que seguia, ao fim da manhã do dia 13 de Janheiro de 1971, com outros camaradas... O sold cond auto Soares, da CCAÇ 12, teve morte imediata.

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O ex 1º Cabo Cozinheiro, de apelido Carneiro, que serviu em Bambadinca na messe de oficiais e de sargentos, e pertencia à CCS do BCAÇ 2852, explica ao Fernandes e à sua companheira como é que se confeccionavam, na época, as famosas iguarias gastronómicas de Bambadinca... e ao mesmo tempo dava conta da sua alegria por estar ali, com os seus antigos camaradas... Exerce hoje funções numa empresa de segurança (creio que em Lisboa). Conseguiu uma troca de turno para poder estar ali....

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O ex-1º Cabo Valente, do 1º Grupo de Combate, da CCAÇ 12, comandado pelo Alf Mil Op Esp Francisco Magalhães Moreira (residente em Santo Tirso) que, mais uma vez, não compareceu ao convívio, com muita pena dos seus camaradas... O Manuel Monteiro O. Valente, residente hoje em Vila Nova de Gaia, era atirador de infantaria e também o "nosso baeta", nas horas vagas... Quantas bardas e cabelos não cortaste tu, camarada ?

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O ex-Sold Radiotelegrafista João Gonçalves Ramos, residente na Quinta do Conde / Barreiro. Foi um pai para o puto Umaru Baldé, que veio morrer a Portugal, de Sida e de Tuberculose... (Uma história, triste e bonita ao mesmo tempo, para contar aqui um dia destes).
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O José Almeida, ex-Fur Mil Trms, da CCAÇ 12, captado pelo zoom indiscreto do fotógrafo...

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Numa das mesas, ao centro, junto à parede, o nosso ex-Fur Mil Trms José Almeida, reformado da RDP, que mora em Óbidos, e será o organizador do 16º Convívio, em 2010. Ao seu lado direito, a esposa... Em frente, o Murta, ex-1º Cabo Cripto...


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O ex-1º Cabo Cripto José António Damas Murta... Teve mais sorte do que o outro 1º Cabo Cripto Gabriel da Silva Gonçalves, que teve que esperar quase três meses pelo seu periquito...

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O António Marques e o Fernando Sousa (cujo soro salvou muitas vidas no mato; há tempos deram-lhe lá, no seu café da Trofa, um copo que, em vez de água, tinha um detergente corrosivo... Esteve às portas da morte, internado nos cuidados intensivos, em Coimbra, mas a estrelinha da sorte, que o protegera na Guiné, voltou a brilhar para ele)... Tive pena de não poder dar um abraço ao nosso querido ex-Fur Mil Enf João Carreiro Martins, hoje Enf Chefe Ref, do Hospital Curry Cabral... (Curiosidade: foi meu aluno no princípio dos anos 90, na antiga Escola Superior de Enfermagem Maria Resende, hoje integrada na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa)...

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O ex-Fur Mil Patuleia, antigo dirigente da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas, que ficou cego com o rebentamento de uma mina, em Angola, é já uma habitué dos nossos convívios... Veio pela mão do António Marques, seu companheiro de infortúnio no Hospital Militar Principal... É meu vizinho e amigo, natural do Bombarral...

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Um homem das secretas, o ex-Fur Mil, das Informações e Operações, da CCS do BCAÇ 2852... Vive em Resende, é empresário, pintor, gestor de um turismo de habitação... Em primeiro plano, aparece o nosso querido cartógrafo, o ex-Fur Mil Op Esp Humberto Reis (CCAÇ 12, 1969/71)... É meu vizinho, de Alfragide. Desta vez veio sem a sua Teresa, que ficou em casa, adoentada...

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Mais dois camaradas da CCAÇ 12: o ex-1º Cabo Trms Inf António Domingos Rodrigues, de Torres Novas (organizador do 14º Cónvívio, em 2008); e o ex-1º Cabo Ap Armas Pesadas José Manuel P. Quadrado, que vive hoje na Moita (como não havia armas pesadas na CCAÇ 12, a ele e a mim deram-nos uma G3 de presente...).

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Uma das mesas, com os convívios... Junto à parede, do lado esquerdo, o ex-Alf Mil Cav Jaime Machado, que comandou o Pel Rec Daimler 2046, Bambadinca, 1968/70 (Saiu em Março de 1970, tendo sido substituído do J.L. Vacas de Carvalho, se não me engano). É membro da nossa Tabanca Grande.

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O ex-Fur Mil Sapador, da CCS / BCAÇ 2852, José Manuel Amaral Soares, que reside em Caneças. Também já foi organizador de um dos anteriores encontros.

Fotos e legendas: © Luis Graça (2009). Direitos reservados
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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

31 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4444: Convívios (138): Em Castro Daire, agora chão de Bambadinca, 1968/71 (1): O reencontro na capela de N. Sra. da Ouvida

31 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4446: Convívios (139): Castro Daire, agora chão de Bambadinca, 1968/71 (2): A música, a festa, a dança no planalto beirão

Guiné 63/74 - P4453: Vindimas e Vindimados (José Brás) (1): O Correio da Malta... e o enfermeiro, herói do dia



1. Primeira história da série "Vindimas e Vindimados", baseada no título do livro de José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, "Vindimas no Capim", que foi Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.



O Correio da Malta

O Correio da Malta

Era dia de DO.
Sabíamos que era dia de DO porque recebêramos de Bissau em mensagem cifrada e passada a claro no bidão, por mim próprio, Furriel de Transmissões da Companhia, fuçando sozinho no emaranhado dos códigos, privado do trabalho do Cabo Telegrafista em visita ao hospital da cidade.

Chamávamos de bidão ao meu quarto privativo, talvez o lugar mais recatado de Medjo por ser nele que funcionava a xerete do sítio, não mais que mesa tosca no cantinho ao fundo do pardieiro, junto aos pés da cama, pastas com nomes adequados, codoper, codoperex, Horus, Zeus, uns de linguagem quase aberta, outros complicados de abrir.

E bidão lhe chamávamos, porquê?

Por isso mesmo. Porque era um bidão, latão de duzentos litros, aberto à bordoada cortante, tornado lata mais ou menos direita e posta na vertical de molde a utilizar o lado mais comprido como pé direito da sala. Várias latas daquelas interligadas por lâminas de adobe, um telhado de zinco com duas águas, dois e meio por dois e meio de anchura, e aí tínhamos um verdadeiro e secreto escritório dos Serviços de Transmissões da Delegação do Exército Português, neste caso a minha Companhia que calhava estar por aquelas bandas naquele tempo, a meia dúzia de quilómetros do corredor de Xinxi-Dari e de Salancaur, com estrada fechada para Bedanda e aberta para Guiledje, se não estou em erro, sete quilómetros de boa travessia em tempo seco e como vocês sabem, de trabalho cansado e longo em tempo de chuva.

A saída a Guiledje tinha dois objectivos. Um, levar o Capitão que apanhava a DO de regresso a Bissau; outro, o de agarrar os sacos do correio para a malta que dele carecia tanto como de pão.

E falo de pão, talvez sugestionado pela falta que frequentemente nos fazia, sempre que o PAIGC nos visitava na cortesia de morteiro e canhão sem recuo e nos abatia o forno mais uma vez.
Nunca entendi bem que diabo de construção era aquela que desabava tão amiúde.

Por via das coisas (as coisas aqui eram a proximidade de vizinhos tão incómodos e a existência de população civil dentro do quartel), deu-se a esta saída, com era hábito rotineiro, um carácter muito sigiloso, apenas duas Secções que fingiam ir por água à fonte, antes mesmo da passagem do aviãozinho que sabíamos viria abanar asas à vertical, momento azado para a teatral e exuberante faz de conta da surpresa, como se fosse aquele o instante exacto da tomada de conhecimento da coisa, "éh pá, correio! Tá bem mas hoje já não pode ser, fica para amanhã, sargentos do quarto, organizem-se! Porra, é sempre ao quarto que calha o prémio", coisas do estilo, ingenuidades de quem ensinava o padre nosso ao vigário.

A estrada estava seca, minuciosamente picada na ida, capitão entregue, sacos na mão, dois unimogues de motor aceso, ala que se faz tarde, de regresso a Medjo, condutores batidos, rectas prolongadas, cem à hora na pressa de fazer o caminho, pressa maior ainda do que a vontade de chegar.

E um Cabo Enfermeiro!

E um Cabo Enfermeiro que veio de Bissau para nos ajudar em Medjo e não podemos esquecê-lo retido em Guiledge, no risco, depois, de nada do que se dirá adiante poder ser dito porque não acontecido.

Expliquemos!

Cada Companhia em quadrícula tinha, como é que hei-de dizer, a sua Delegação de Saúde, própria para tratar de equimoses, de sinais de enxaquecas, de blenorragias… às vezes, mesmo, de pequenas cirurgias apressadas.

Um Furriel e um Cabo ou dois.

Acontece que na minha Companhia, episodicamente ficámos sem ninguém, o Furriel de férias em Lisboa e o Cabo de baixa em Bissau, de filarse, de caganeira, ou de simples maluquice.

Bissau resolveu enviar-nos um que ocupasse o lugar durante a falta dos nossos, e foi ali que caiu, de pára-quedas, quase, na mesma DO do correio.

Era um tipo de bom talhe físico, exuberante em trejeitos e maneiras de falar, assim como… costumamos chamar de femininas, esquecendo que dentro de cada homem, mais nuns que noutros, existe sempre, também uma parte da mãe que nos pariu.

Os soldados logo ali se reuniam em cochichos e olhares de lado, risinhos abafados, e tal.

Aí a meia viagem, sei lá, a uns cinquenta metros, se tanto, de uma ligeira curva à esquerda, as rajadas estoiraram no coração de cada um.

O unimog da frente, directamente atingido por fogo feito a poucos metros, chupa com um rajada em cheio, começa a travar, sai da estrada e imobiliza-se logo ali, ligeiramente atravessado, ligeiramente inclinado em pranchamento à direita mas ainda com parte da carroçaria na berma.

Dos ocupantes, um Alferes apanhou com três balas numa perna, um Soldado negro de Aldeia Formosa que havia apanhado boleia na DO só para vir matar saudades que tinha da malta, leva também a sua conta, dois Soldados mortos na carroçaria, um que nem chegou a levantar-se, tendo caído de imediato sobre umas baterias que viajavam connosco para substituições, outro que se levanta, é atingido e malha no pó ainda antes da paragem da viatura.

O Cabo Calçada é apanhado já em pleno salto. Uma rajada nas costas que lhe há-de levar a maior parte de um pulmão, deixa-o também fora de combate.

Isto tudo passa-se em menos de um ai, por assim dizer, que nestas cenas, soldados sentados no duplo banco corrido da carroçaria de um unimog, têm molas nas pernas e não iriam esperar que a viatura parasse para comodamente dela descerem.

Já nem me recordo se houve mais feridos, lembro sim que ficámos com sete ilesos e a disparar o troco, cabeças na orla da mata, com as rajadas inimigas a varrerem o meio da estrada, sem poderem utilizar a bazuca contra a barreira de mata no nariz do pessoal, nem o morteiro sessenta, pelas mesmas razões e porque o combate se travava com uma distância de quinze ou vinte metros entre os dois lados. O Soldado Lixa, nem se lembra porquê, arrisca o salto para um bagabaga e do outro lado descobre guerrilheiro inimigo. Recua e grita:

- Olha um turra - ouvindo o outro que também recua e grita:
- Olha um branco.

A coisa estava preta e a tropa que saiu de Medjo na convicção que a escaramuça se desenrolava a um quilómetro, se tanto, que teria de correr três ou quatro para dar a mão aos amigos. Contudo, como o Pelotão de Auto-metralhadoras Fox com a sua Brownning 12,7 saiu de Guiledje a abrir e a malta do PAIGC, que também não deveriam ser muitos, achou por bem dar às de Vila Diogo, a corrida nem chegou a meio.

Outra coisa que ninguém mais esqueceu foi a imagem do Enfermeiro chegado de Bissau, indiferente ao tiroteio, cirandando sem parar debaixo daquele fogo danado, rastejando de ferido a morto, de morto a ferido, dando-lhes o melhor apoio que lhes podia dar na circunstância.

Nem um arranhão sofreu e o pessoal não acreditava como podia ser isso, se o fogo era intenso e certo e ele circulava por entre as balas como anjo imune.

No quartel, intervalando o choro pelos amigos mortos e feridos, o pessoal comentava: - O enfermeiro, hein?!

Foi mais uma verdade que antes tinham como certa e que ali se desfez nas cabeças e no coração, voltando o mundo de pernas para o ar e deixando-os de palavra presa na garganta.

Ter entre eles, como seu igual, o mais bravo, praticamente o único herói daquela bernarda em que se haviam visto, um homossexual assumido e evidente, ainda por cimo acabado de chegar do ar condicionado, era demais para as certezas com que haviam embarcado no Niassa.

Com muitas coisas se espantavam na Guiné estes soldados portugueses, cidadãos precários de Medjo.

E foi assim, naquelas partes da Guiné e naquele dia de estação seca, no ano da graça de 1967.

José Brás
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4279: Blogoterapia (101): Obrigado, Manuel Maia, emocionaste-me até às lágrimas (José Brás)