quarta-feira, 1 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4620: Estórias de Jorge Picado (8): A minha passagem pelo CAOP 1 - Teixeira Pinto (IV): Reunião com o Secretário Geral - Informação

1. Mensagem de Jorge Picado, ex-Cap Mil da CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, CART 2732, Mansabá e CAOP 1, Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 26 de Junho de 2009:

Caros amigos e camaradas, Luís, Briote, Vinhal e MRibeiro
Segue mais uma transcrição duma informação que elaborei em 17NOV71, lá no CAOP 1.

Abraços para vós e todos os camaradas da Guiné
Jorge Picado


INFORMAÇÃO

Sobre o exposto em 01.a. da nota nº. 3561/POP/71 de 14NOV71 do COMCHEFE POP informo o seguinte:

1-1 - A MSG 2585/POP de 10AGO71 endereçada ao BCAÇ 2905 e mais 02 Unidades e não enviada a este CAOP 1, diz o seguinte:

“Deve levantar máxima urgência até 20AGO árvores disposição essa Serviços Agricultura. Plantio deverá ser efectuado obrigatoriamente durante mês corrente.”

2-2 - Nesta altura as árvores à disposição do BCAÇ 2905 eram apenas as que constavam da distribuição feita através da nota nº. 1873/POP/71, de 21MAI71, do COMCHEFE POP, que a seguir se indicam:

Bananeiras... 4000
Limoeiros... 400
Mangueiros...350 no início das chuvas, 200 no fim das chuvas

Aquele BCAÇ não tinha conhecimento dos cajueiros.

3-3 - Acerca dos cajueiros, foi perguntado a este Comando se estava interessado neles e em bissilons e caso afirmativo quais as quantidades (MSG 2465/POP, de 23JUL71, do COMCHEFE POP).

4-4 - Transcreveu-se a referida MSG para o Delegado dos SAF em T.PINTO (N/MSG 5940 de 24JUL71), que informou verbalmente haver interesse só nos cajueiros e em número de 10000.

5-5 - Pela N/MSG 6008 de 29JUL71 informou-se o COMCHEFE POP que desejávamos 10000 pés de cajueiros, tendo sido comunicado à Rep. Prov. dos SAF que deviam ser fornecidos 1500 ao CAOP 1, que contactaria com aqueles Serviços (Nota nº. 2517/POP/71, de 30JUL71, do COMCHEFE POP).

6-6 - Em 01AGO71 transcreveu-se aquela nota ao Delegado dos SAF em T.PINTO, solicitando-se os bons ofícios no sentido de contactar com a Rep. Prov. dos SAF a fim de que nos fossem enviados os referidos cajueiros (N/Nota nº. 6042, de 01AGO71). Aquele Delegado informou verbalmente que a plantação deveria ser feita no fim das chuvas, portanto só a partir de Setembro. Em conversas posteriores, foi-nos sempre focado que a plantação deveria ser efectuada com as últimas chuvas.

7-7 - Quando aquele Delegado informou que estava na altura de se começar a preparar a plantação dos cajueiros, até porque a população só no fim de Setembro acabaria as suas lavouras e ficava disponível para os trabalhos de preparação (limpeza e abertura de covas) dos pomares, foi solicitado ao BCAÇ 2905, com conhecimento à Autoridade Administrativa, a distribuição de pés a efectuar pelos diversos Reordenamentos e as providencias necessárias para que fossem executados os trabalhos inerentes à plantação daquelas árvores (N/Nota nº. 6484, de 24SET71).

8-8 - Dado que o Delegado dos SAF informou nos princípios de Outubro, não possuir viatura para o transporte dos 1500 pés de cajueiro de BISSAU para T.PINTO, como tinha sido transmitido pela N/Nota nº. 6042, de 01AGO71 (veja-se alínea 6), comunicou-se ao BCAÇ 2905 para efectuar o levantamento e o transporte das plantas em causa (N/Nota nº. 6637, de 09OUT71).

9-9 - Quanto ao indicado na alínea 1.b da nota em questão, não se tem conhecimento de quaisquer insistências para que fossem levantadas as plantas à disposição do CAOP 1.

Quartel em Teixeira Pinto, 17 de Novembro de 1971

As) JMSPicado
Cap.Mil.


Esta informação elaborada para resposta a nota do ComChefe, sobre assuntos respeitantes ao apoio agrícola das Populações, era sem dúvida para “colocar os pontos nos is” a alguma “piçada” que os “Senhores do ar condicionado se preparavam para dar ou quereriam dar” a alguém.

Do CAOP 1? Do BCaç 2905? Dos SAF da Província ou do seu Delegado em T.Pinto?
Não tenho qualquer ideia, mas deve ter havido qualquer coisa que não correu bem com a plantação daquelas Fruteiras.
É claro que não posso afirmar que se fosse outro a responder o fizesse com tanta minúcia.

Mas comigo isto era assim. Não costumava “encanar a perna à rã”, como por vezes se diz de quem se fica por meias respostas.
Posso sem qualquer dúvida afirmar que sobre este assunto, procurei todos os documentos existentes e falei com os prováveis intervenientes, para “escarrapachar” tudo que houvesse na resposta.

No que dependesse de mim, “burocraticamente” não me apanhavam.
Tinha uma tarimba já muito grande, neste capítulo da minha actividade profissional (burocracia estatal), graças a um excelente mestre que apanhei quando fui colocado nos Serviços Regionais. Estava farto de responder a funcionários do Terreiro do Paço (da Agricultura) que tecnicamente “nada pescavam” do assunto, mas de questões burocráticas eram catedráticos doutorados!!!

Claro que o assunto ficou arrumado e não houve mais notas.

Jorge Picado




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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4465: Estórias de Jorge Picado (7): A minha passagem pelo CAOP 1 - Teixeira Pinto (III Parte)

Guiné 63/74 - P4619: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (16): Dias em Binar - 1

1. Mensagem de Luís Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 28 de Junho de 2009:

Amigo Vinhal
Mais um pouco de Viagem...

Um abraço
Luís Faria


Dias em Binar - 1

Como já havia descrito, Binar era uma pequena povoação situada a uma dúzia de quilómetros de Bula, na estrada para Bissorã. Por lá estive com o meu 2.º GComb cerca de um mês e meio, praticamente sem actividade operacional efectiva, para além de uns patrulhamentos, uns apoios a operações, de umas colunas a Bula para reabastecimentos e dos serviços ao aquartelamento.

Por norma os dias custavam a passar. Para além das moranças, e duma venda/padaria que me recorde, nada mais havia de comércio. Minto, havia uma espécie de bordel temporário dentro das paredes de uma morança em ruínas e a céu aberto, onde as madmoiselles eram uma avó de idade avançada e peitos secos e uma neta bajuda, sendo os preços diferenciados consoante a idade da prestadora de serviços e o utente fosse graduado ou soldado.

Aparentemente mais entretido andava o pessoal do 1.º GComb, lá pelo reordenamento de Pache. Volta e meia apareciam nos seus Mercedes - quais patos bravos - para tratar de assuntos inerentes, altura em que à mistura com umas bazucas era posta em dia toda a conversa da treta. O Alf Mil Freitas Pereira (pira) e o Fur Mil Castro tinham jeito para aquele trabalho e pelos vistos aplicavam bem o programa psico (a psícola, como se dizia !!). Exemplo disso foi o Fur Mil Castro ter apadrinhado um miúdo que nasceu e ficou com o nome FURRIÉL CASTRO. Por brincadeira às vezes digo-lhe – ao Castro - que deixou por aquelas paragens o seu nome !!! Não gostará lá muito, dadas a possibilidade de interpretações enviesadas, mas as verdades são para ser ditas!!


O Parto

Por falar em nascer, um belo dia chamam-me a uma morança por eventualmente estar a haver problemas. Chegado lá deparo-me com um ajuntamento em falatório ininteligível, com gemidos e choro à mistura. Informam-me que está a haver problema num parto. Entro e deparo-me com uma cena difícil de acreditar… só vista!!

Uma bajuda grávida deitada, gemia e chorava. Uma mulher idosa batia-lhe com certa força na barriga, com a lateral de uma catana. Uma outra, mais nova, em pé sobre o abdómen da bajuda, fazia pressão com jeito, sobre a parte superior do abdómen, conjugando esforços na tentativa de provocarem a expulsão, sem no entanto o conseguirem.
De imediato foi pedida uma evacuação urgente para Bissau.


O petisco

A adaptação a Binar foi-se fazendo aos poucos e sendo a população simpática e hospitaleira, de certa maneira ajudou.

Um dia andava pela tabanca e convidaram-me para petiscar. Inicialmente indeciso (não era muito apreciador daquela cuisine), quando me disseram e mostraram o conduto, resolvi aceitar para não ofender e pela nova experiência. Talvez mais pela última razão!

Sento-me com eles no chão a ver preparar o pitéu: cobra (não sei de que marca ?!), com a grossura de um pulso e um bom metro de comprido. A morta é enrolada em folhas grandes e vai à fogueira para assar/cozer. Já não recordo se foi esfolada antes ou depois, mas tenho ideia de no pedaço que provei, ir descascando a dita conforme ia comendo. Não desgostei do petisco mas também não fiquei cliente. Pareceu-me enguia grossa, só que com a carne branca, mais seca e mais agarrada à espinha.


O cão tenor

O dia a dia começava com a formatura do Pessoal para o içar da Bandeira, ao toque do cornetim. À formatura não faltava por sistema, um cachorro viralata que se sentava ao lado do Corneteiro. Quando o som começava a sair do instrumento, o cão uivava em contra-canto, calando-se conforme a corneta parava.

Como era afinado e até se comportava com respeito e tinha porte, era-lhe permitida essa manifestação artística e castrense, assim como o cirandar pelas instalações, sempre pronto a abocanhar qualquer naco que se lhe atirasse, sem que nunca ninguém lhe ouvisse a mais pequena reclamação. Já o mesmo não acontecia com o Pessoal !!


Sandes de pão com bianda e alternativa

Salvo excepções e sem justificação plausível, o abastecimento de viveres era mau, mas a variedade de comida era grande (!!): bianda com estilhaços de fiambre versus bianda com idênticos de atum versus com salsicha, alternando às refeições. A vinhaça era mais propriamente uma aguadilha tingida. Claro que de vez em volta se petiscavam uns nheques (?) ou uns ovos arranjados particularmente na tabanca.

Pela minha parte não tive problema de maior. Sempre e ainda hoje gosto bastante de arroz, desde que não seja muito cozido ou empapado e o cozinheiro fazia-o a meu gosto. Daí que quando o estômago rosnava e nada diferente havia para comer, deliciava-me com uma bela sande de arroz eventualmente sobrado, o que horrorizava os olheiros (!!) mas que me cortava o enjoo do sempre o mesmo!

Por vezes e em alternativa, quando a fome era negra, fazia sandes de pão com pão isto é, pão militar aberto com um papo-seco civil metido no meio. A conjugação dos dois sabores era espectacular!?! À falta de melhor, claro está !!!

Binar foi na realidade a pior estância, em termos de restauração, em que estivemos, mas a realidade é que na Guiné nunca fui obrigado a comer bichezas esquisitas ou a beber água das poças ou da bolanha, para matar a fome ou sede, como aconteceu ao que parece com muitos Camaradas. Nesse aspecto, como noutros, fui um felizardo! Larvas isso comi, em Capó mas… é outra Estória.

Um abraço a todos
Luís Faria
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Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4522: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (15): Binar - Sanatório do sono

Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969

Guiné > Zona leste > Galomaro > 2º Gr Comb da CART 2339 (Julho/Agosto de 1969) > Fotos Falantes I (10, 11, 12) > Aspectos da vida do 2º Gr Comb, destacado em Julho/Agosto de 1969, para o reforço do subsector de Galomaro, incluindo a tabanca em autodefesa de Cansamba.


Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados.




Estórias de Mansambo II > CANSAMBA I - O 1º de AGOSTO
por Torcato Mendonça (*)


Fotos Falantes I (10, 11, 12)


No dia 1 de Agosto de 69, fomos destacados para a Tabanca em autodefesa, de Cansamba [ subsector de Galomaro]. Mas como e porquê?

Façamos uma breve introdução.

A meio de Julho, dia 13, saímos de Candamã e Afia (**), tabancas em autodefesa, depois de uma estadia de um mês, e regressámos a Mansambo. Pouco descansámos, pois, dia 16 partimos em diligência para Galomaro em reforço da CCaç 2405 e do COP7.

Ficámos então dependentes da 2405, cerca de vinte e cinco militares do 2º Grupo e três ou quatro picadores. Trinta militares ou trinta e dois no total [vd. fotos].

Logo, no dia seguinte ou no outro, assistimos a uma operação, helitransportada, dos pára-quedistas. Efectivamente, era outra tropa. O treino, os meios, a autoconfiança. Isso e muito mais faziam a diferença.

Cerca de meia hora depois, da primeira saída dos helis com tropas já, no regresso, traziam material apreendido. Até uma gazela que o IN estava a esfolar veio... Assim valia a pena. Tinham, em comum connosco o sermos feitos da mesma massa. Óptimos militares a merecerem o meu respeito. Pena nós não termos mais meios. Mesmo com o pouco íamos cumprindo. Curiosamente cumprimos e detesto o termo – tropa macaca – porque não nos sentíamos diferentes dos que eram apelidados de bons… E gostávamos de certas operações. Vidas!

O IN estava muito activo na zona, quer a Sul/Sudeste de Galomaro quer, mais longe, para oeste, à volta de Mansambo. Atacou várias vezes Mansambo, Candamã e Afiá e, naquela zona, atacou Cansamba, onde estava um Grupo, creio que de uma Companhia de periquitos e Madina Xaquili.

Tínhamos acompanhado a Companhia que para lá foi, em 22 de Julho [de 1969], para trazer as viaturas para Galomaro. Não gostámos daquela Tabanca… já tínhamos mais de dois terços de comissão e o cheiro da mata era sentido de forma mais forte. Creio que antes do regresso, o dissemos a um alferes ou furriel, T-shirt de Operações Especiais, a memória pode falhar. Certo é que o IN foi lá experimentar… hoje, tanto tempo depois, parece-me ter sido a CCaç 12.

O IN, com os corredores abertos, mostrava-se com certo à vontade. Na margem esquerda do Corubal (zona leste) onde não haviam aquartelamentos nossos. Na margem direita, vendo a Carta da Guiné, sabendo as nossas posições, é fácil compreender a progressão das forças do PAIGC, aproveitando a época das chuvas. E não só, não só…

No primeiro dia de Agosto, fomos mandados para Cansamba a substituir o Grupo que lá estava. Saíram de lá felizes, os piras.

Antes trocámos breves palavras, recebemos algum material e eles foram-se. A partir daí era connosco. Vimos que era forçoso haver mudanças rápidas. Era uma Tabanca enorme. A cerca de quinhentos metros estava uma outra pequena. A razão era que esta era habitada por futa-fulas. A grande tinha uma mesquita, simples ou humilde, e uma escola (madrassa). Era uma povoação com alguma importância, resultado da junção de várias tabancas.

Assim, demos início ao trabalho.

Os Furriéis (só dois, o Rei e o Sérgio) deram uma volta, falaram com a população, viram as defesas e o que observaram não os agradou. Eu via o material que tínhamos, esperava pelo regresso dos africanos que iam connosco, a passear pela tabanca na obtenção de informações e ia tomando apontamentos.

Depois todos juntos, estudámos rapidamente os elementos que dispúnhamos e estabelecemos uma estratégia. Para o imediato tínhamos que falar com o Chefe de Tabanca, ver o armamento que estava distribuído à população, organizar minimamente a defesa. Na segunda fase, para os dias seguintes, teriam que ser abertas mais valas, colocado mais arame farpado, organizada a defesa e tentar modificar aquilo. Assim, como estava, era um perigo. Num ataque forte entravam por ali adentro com facilidade.

Mandámos chamar o Chefe. Estranhámos a sua ausência e mais estranhámos a sua demora. Estávamos na zona das suas moranças e ele devia já ter aparecido. Demorou. Demorou tempo demais. Quando chegou vimos estar em presença de um homem que nos ia dar problemas. Talvez por isso a alegria da saída do Grupo de periquitos.

Para grandes males grandes remédios. Tivemos que lhe dizer que, a partir daquele momento quem mandava éramos nós. Compreendeu à segunda. Como? Bem… certamente porque não era parvo. Viria a ser, no futuro, um óptimo colaborador. Após ter compreendido porque estávamos ali, respondeu ao nosso primeiro pedido e rapidamente reuniu todos os homens com armas distribuídas. Era uma loucura ver tanta gente com Mausers, G3, dilagramas e muitas munições. Um bando. Nós, à volta de trinta…

Falamos àquele exército, o chefe traduzia e os picadores (milícias) confirmavam com sinais, olhares... nós percebíamos. A linguagem gestual ou por olhares é óptima…

A noite aproximava-se. Mandámos toda a gente em paz e já não fomos à tabanca dos futa-fulas.

Achámos melhor dividirmo-nos em três grupos, separados a uma distância prudente, com possibilidades de entreajuda. Tínhamos bolsa de enfermeiro mas não tínhamos enfermeiro. Tínhamos operador de rádio mas sem aparelho. Claro que estávamos desfalcados, os meios eram os possíveis. Assim se fazia a nossa guerra. A falta de meios, a normalidade.

O Chefe ficava a dormir na sua morança (escolha dele, claro…) mas eu dormia lá também. Cá fora, no telheiro, dois homens, a revezarem-se. As sentinelas eram feitas pelos três grupos, aos pares. De preferência um picador e um soldado. Claro que os turnos cabiam a todos.

Comemos, arrumámos o material, montámos uma precária defesa e preparámos o descanso. De repente uma saída e começou o ataque. Vinham dar as boas vindas. As ordens eram responder o mais forte possível. Alguém já tinha montado a nossa pesada. Ou seja, um bidão aberto totalmente num lado e só metade no outro. Lá dentro uma simples G3 em rajadas curtas, mas a fazer um barulho dos diabos. Estava lá um 82, do IN, que funcionava com as nossas munições e as deles. Nessa noite foi a triplicar.

Mas o pior não foi o inimigo. O pior foi a população. Vinham á porta das moranças e disparavam as Mauser ou as G3. Gritávamos para virem para as valas, mas nada. Pedíamos ao Chefe, que estava ao nosso lado, entre dois militares, para mandar parar o fogo da população. Nada. Nós, no meio, à frente os inimigos, logo atrás os amigos, posição óptima.

Dois ou três militares levantaram o Chefe acima da vala e então, como estivesse a ser capado, berrou e bem. Calaram-se os amigos e pouco depois os inimigos, talvez a esperar melhor ocasião, fizeram o mesmo. Estavam dadas as boas vindas ou feito o teste aos recém-chegados. Por isso, logo no dia da chegada fomos recebidos assim. O nosso 1º de Agosto.

Um morto da população e um ferido. Disparar dilagramas com bala real era terrível. No outro dia começou a instrução, para a não repetição de situações daquelas e melhorar o uso e conservação do armamento. Além disso começámos a estudar onde e como abrir valas e abrigos. Antes visitámos a Tabanca dos Futa-Fulas. Tinham falta de munições e de outras coisas. Parece que tinham estado em Madina do Boé e vindo para a zona após a evacuação do aquartelamento. Gente habituada aos tiros. Se necessário podia contar com eles na protecção de um flanco. Assunto a ser tratado posteriormente.

Recebemos a meio da manhã a visita do Comandante do COP 7, creio que um Major Pára-quedista, porque em Galomaro ouviram o ataque. Não tinhamos rádio. Pusemo-lo ao corrente da situação e fizemos os pedidos de material.

Estivemos até ao dia quinze em Cansamba. Foram quinze dias óptimos. O apoio da 2405 foi excelente. Em Cansamba tivemos ocasião de contactar com a população, falar com Homem grande que ensinava árabe e o Corão aos miúdos. Era homem de grande sabedoria, talvez um marabú. Tive oportunidade e tempo, de falar com ele e assim aprender a compreender melhor aquele Povo e a sua religião. Eu tinha (tenho) o meu nome tatuado, em árabe, no braço esquerdo e sabia fazer as saudações ou cumprimentos. Isso fez com que a aproximação fosse mais fácil. Interrompida, infelizmente, porque estive dois ou três dias fora, em Galomaro, a curar o meu quinto ou sexto ataque de paludismo. Regressei e notei as benfeitorias.

Reforçou-se a auto defesa, a população teve melhor instrução militar, impedimos que a Administração, através de um Cipaio que por lá apareceu (em Galomaro estava um Chefe de Posto), interferisse com a população… perceberam… e foram-se. Certamente causava-lhes prejuízo a população não pagar o imposto!

Quase nos considerávamos em férias. Recebemos nova ordem: apresentar em Bambadinca no Batalhão. Assim foi. Reunião e saída para Candamã.

Missão: procurar onde era o acampamento do Bi-Grupo, reforçado com artilharia que tinha feito tantos ataques na zona em tão pouco tempo. O Comandante, Mamadu Indjai. Descobrimos a acampamento, os Paras destruíram-no e militares da 2339 (3º Grupo) emboscaram-nos fazendo dois ou três mortos e vários feridos, entre eles o Mamadu Indjai.

O Coronel Hélio Felgas não teve razão com a ameaça – só saiem de lá depois de os encontrar… Enganou-se. Pena foi ter-se acabado Galomaro e o sossego de Cansamba. Um mês bem passado, metade em Galomaro, a outra em Camsamba.

Até ao fim da comissão foi sempre a andar…

[Continua]

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores desta série:

29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá

4 de Junho de 2009 Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68

(**) Vd. poste de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa

Guiné 63/74 - P4617: Blogoterapia (111): Divulgando o nosso blogue junto de Camaradas que combateram em Angola (Valentim Oliveira)


1. Do nosso Camarada Valentim Oliveira, que foi Soldado Condutor Auto 784/63 da CCAV 489, do BCAV 490, recebemos a seguinte mensagem, em 28 de Junho:

Camaradas,

Hoje, dia 28 de Junho, e como é domingo "tirei” um pouco do meu tempo para escrever algo sob o nosso IV encontro na Ortigosa, que para mim foi o primeiro mas de um “tamanho” tal no meu coração, que só por uma impossibilidade de força muito maior é que não estarei presente em todos os vierem a seguir.

Foi um Convívio que merece ser badalado e comentado pela boa organização. Parabéns ao Mexia Alves, ao Vinhal, ao Pessoa, ao nosso Comandante Luís e a todos os que estiveram presentes.

Foi contagioso e entusiasmante ver ali a nossa “companhia” (cerca de 130 “soldados”), através das ordem de “ataque” dos 4 organizadores, fazerem tremendo assalto em toda a linha, a todas as apetitosas iguarias “acampadas” a sul das tropas, provocando pesadas baixas no “inimigo”. Foram muitas as “granadas” de 1 litro que eu vi serem despejadas sobre o IN.

Ontem, dia 27, tive o prazer de estar em mais um convívio de ex-Combatentes de outra frente de Guerra, designadamente a Companhia de Caçadores 1460, do BCAÇ 1866, que fez a sua comissão em Angola - 1965/68 -, que se realizou na Quinta do Carvalho, na linda Cidade de Viana do Castelo.

Sendo eu um atabalhoado “bloguista” dei por comprida a minha missão naquele convívio, dando aos “Manfios angolanos”, como presente o endereço do nosso blogue e da “Tabanca Pequena de Matosinhos”.

Todos eles se mostraram curiosos em fazer uma visitinha aos dois e lerem estórias neles publicadas.

Vou enviar-te fotos deste excelente Convívio, em que fiz as honras de cicerone publicitário do nosso dinâmico e histórico memorial informativo, junto de outros ex-Combatentes.

Na foto vemos o Valentim Oliveira com as suas queridas esposa e neta Cyndia

Foto: © Valentim Oliveira (2009). Direitos reservados

Um Alfa Bravo para todos,

Valentim Oliveira
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P4616: Ainda sobre a ataque a Campata (Luís Dias)

1. Mensagem de Luís Dias, Alf Mil da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872, Dulombi e Galomaro, 1971/74, com data de 13 de Junho de 2009:

Caros Editores Luís, Carlos, Briote e Magalhães

Ainda sobre o ataque a Campata, se tiverem paciência, espaço, botem lá estas anotações sobre o GE do Marcelino da Mata em Galomaro.

Um abraço para todos vós e para os camaradas da nossa já imensa Tabanca Grande.
Luís Dias


Ainda sobre o ataque a Campata e o post 4509 do Juvenal Amado

Caro Juvenal

A guerra não devia ter estas situações, mas elas existiram, a guerra nem sempre é limpa, como a água. Há os que não deixam que estas coisas aconteçam e há os que a aceitam e até acreditam que deve ser assim e há os que assobiam para o lado, vêem, mas não querem ver e por último há os que efectivamente nada viram, não por estarem desatentos, mas porque, simplesmente, não estavam lá.

No dia em que o GE do Marcelino esteve em Galomaro, eu estava com o meu GComb no mato, ainda à procura dos guerrilheiros do PAIGC que tinham feito o ataque e a proteger outras tabancas. Referes no teu “post” que os elementos do GE terão agredido o jovem guerrilheiro capturado em combate. Acredito, porque o dizes, dado que ninguém, na altura, falou nisso. Recordo-te que ele também vinha maltratado aquando da sua captura, porque a milícia até o queria matar por fazer parte do grupo que atacava as populações, mas pareceu-me querer colaborar, voluntariamente, com as nossas tropas, até porque dizia ter sido raptado pelas forças do PAIGC e obrigado a envolver-se nos ataques da nossa zona. Identificou, inclusive, os guerrilheiros mortos e o que representavam na hierarquia do IN.

Como sabes, infelizmente, na nossa zona, era mais fácil para o IN atacar as tabancas, mesmo as indefesas, do que os nossos aquartelamentos. Havia um grande ódio entre os guerrilheiros (normalmente balantas, animistas) e a população da nossa zona, predominantemente fulas, islamizados. Isto reflectia-se na violência dos seus ataques, sem contemplações, menosprezando as vidas, fossem de mulheres ou de crianças. Deves estar lembrado daquele cheiro, quando entrávamos numa tabanca atacada, uma mistura de terra queimada, pólvora, sangue, muitas vezes a mortos e o choro das mulheres, das crianças, por terem perdido algum familiar ou os seus parcos haveres. Era de ficar estarrecido, triste, sentindo a impotência da situação. A raiva e o choro também tomavam conta de nós. O IN não mostrava contemplações pela sua população e também não mostrou respeito pelo camarada da CCAÇ 3489, aprisionado no ataque a Anambé e morto a tiro na retirada, pelos três elementos da população capturados momentos antes do ataque a Dulô Gengele e fuzilados após. A quantidade de ataques a Bangacia, com diversos mortos, normalmente da população e, num desses ataques, colocaram a mina AC na retirada que vitimou um condutor auto da CCS. O próprio ataque a Galomaro, em quem sofreu mais foi a população.

Aquando do ataque à tabanca de Samba Cumbera, o 2.º GC da CCAÇ 3491 (que era o meu) e o 3.º GC, fomos em perseguição dos atacantes. Poderia ter sido mais uma das muitas que fizemos, mas esta foi muito diferente. Diferente porque tínhamos sabido que no ataque o IN havia morto uma mulher e o filho que estavam enfiados numa vala, desarmados, escondidos daquela gente libertadora e que, sem qualquer justificação, os assassinou a sangue frio, e os nossos homens levaram aquilo a peito, como se da sua família fossem aqueles mortos e largaram atrás do grupo com um empenho, com uma gana, em passo de quase corrida. O IN deve-se ter apercebido do perigo, de que vínhamos perto, porque foram largando material, para mais fácil ganharem terreno. Conseguiram chegar primeiro ao Corubalo e atravessá-lo, mas foi por pouco. Às vezes pergunto-me, se os temos agarrado, conseguiria aguentar, conter a violência dos meus soldados. Sei a raiva que levávamos, sei das ínguas de esforço criadas, sei que os homens estoiraram atrás do IN, porque queríamos vingar aquelas mortes. E o regresso foi penoso, num silêncio feito do amargo de não termos sido suficientemente rápidos para os apanhar. Sei que em combate poderíamos ter sido animalescos para com o IN, mas também sei que não faríamos mal a um prisioneiro. Não o fizemos àquele guerrilheiro, como a outros capturados. Aliás enquanto esteve connosco nada se passou, isso eu sei. Mas também sei que em combate seria diferente.

Como refere Torcato Mendonça, no post sobre o ataque do PAIGC a Mussa Iéro: "...sentiram a bestialidade da guerra, a violência gratuita, o ódio fratricida a abater-se sobre eles. Homens, ou simplesmente seres a destilarem ódio, bestas de uma guerra num país que diziam querer libertar, comandados por outros de outras terras ou, se comandados por guineenses, treinados em países longínquos. Só assim se compreende o modo como espalharam o terror, o ódio, a morte e a destruição sobre gente indefesa...", nós também somos gente e sentíamos essa raiva pelo mal que faziam aquelas pobres populações e o que eles lhes faziam não era guerra, perceba-se!!!

Fui um operacional como tu dizes e sei que as operações que fazíamos podiam limitar as acções do IN – conforme informações prestadas por elementos do PAIGC que se entregaram na nossa zona – e tinha, como tu também dizes, responsabilidades pelo meu GComb, muitas vezes por dois GComb, e às vezes pela própria companhia. Mas, essa operacionalidade tinha limites. Tu, também eras operacional e quando conduzias a tua viatura tinhas responsabilidade pelos camaradas que transportavas, pois dependiam de uma condução segura e eficaz. Fazíamos parte de uma máquina de guerra, mesmo contra a vontade. No meu ponto de vista, só havia duas soluções para os que eram contra a guerra: ou desertavam e punham-se a mexer ou então se iam combater, então tinham de cumprir as suas missões com o devido empenhamento e competência, em especial se tinham pessoas na sua dependência, que confiavam neles para, também com alguma sorte, conseguirem voltar a ver os seus entes queridos.

Ainda bem que ninguém, como tu dizes, do BCAÇ 3872 (entenda-se da CCAÇ 3491 e da CCS, que eram as tropas aquarteladas na altura em Galomaro) teve interferência nessa agressão e os fins não podem e não devem justificar os meios. Agora que o ataque do GE do MM à base do PAIGC produziu diversos meses sem quaisquer ataques às tabancas da nossa zona, isso foi um facto. Entre o 16 de Março e meados de Setembro foi a paz e o sossego para todas elas. As armas calaram-se!

Um abraço
Luís Dias
__________

Nota de CV:

Vd. poste de 11 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4509: Estórias do Juvenal Amado (17): Ataque a Campata

terça-feira, 30 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4615: Blogpoesia (52): Telejornal... ou uma viagem no tempo, Bafatá, 1969 (Regina Gouveia)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1969 > “…foi lá na Ponte Nova, naquela tabanca onde de azul se coloriam panos…”

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1969 > “…o momento em que o dançarino fazia um mortal…”

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1969 > “…o Mamadu mostrando com orgulho o seu menino…”

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1969 > “…iam buscar o cume no fim da refeição"... O Carlos e o Adrião.

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1969 > “…os troncos de poilão, a mesquita…” A mesquita em dia de Ramadão .

Fotos (e legendas): © Regina Gouveia (20o9). Direitos reservados


1. Mensagem que nos chega através do Fernando Gouveia:

Porto: 23JUN09 (noite de S. João)

Caro Luís:

Aí vai em anexo o primeiro escrito da Regina. A meu ver ela tem estórias interessantes sobre factos passados em Bafatá e não só, mas está um pouco relutante...

Um abraço.


2. Mensagem da Regina Gouveia:

Luís Graça:

Começo por agradecer a forma carinhosa como fui recebida no encontro da Ortigosa, destacando em particular a Dina [, esposa do Carlos Vinhal].

Face ao desafio que me colocou, começo por enviar um poema que consta de um livro publicado já em 2002 (
Reflexões e Interferências, editora Palavra em Mutação). O título do poema é “Telejornal” mas poderia ser “Memórias de Bafatá”.

Este texto, como disse, já estava escrito. Futuros textos terão que ser ainda pensados e escritos. A ver vamos…

Um abraço

Regina Gouveia



Telejornal
por Regina Gouveia


Vejo o Telejornal no canal dois.
A apresentadora fala da BSE, de clonagem, do Kosovo
e, logo depois, de um acidente no Cais do Sodré e da instabilidade na Guiné.
E eu empreendo no tempo uma viagem...
O Braima, a Binta, o Adrião, onde andarão neste momento?
Conheci-os em Bafatá, há muito tempo, iam buscar o cume no fim da refeição.
Recordo os seus olhos vivos de crianças, pele negra, dentes alvos, sem igual,
os passos apressados quando o vento anunciava em breve um temporal.
Eu era aluna e eles mestres do crioulo de que mal guardo lembranças.
Das mulheres, recordo as suas vestes, fossem mulheres grandes ou bajudas
no tronco, eram em geral desnudas,
presos na cinta panos coloridos que, de compridos, chegavam quase ao chão.
Algumas eram de tal modo belas que pareciam extraídas de telas.
Recordo, servindo-me o café, o Infali com aquele seu olhar tão doce e triste,
talvez o ar mais triste que eu já vi. Será que o café ainda existe?
Recordo aquele condutor, o Mamadu, mostrando com orgulho o seu menino.
Que terá feito deles o destino?
Recordo os passeios na estrada do Gabu, os mangueiros, os troncos de poilão,
a mesquita, o mercado, a sensação de paz que tudo irradiava,
apesar do obus de Piche que atroava, apesar da maldição da guerra
cujo espectro por cima pairava.
Recordo ainda o cheiro e a cor da terra,
o Colufe e o Geba sinuosos onde canoas esguias deslizavam,
recordo macaquitos numerosos que entre os ramos das árvores saltavam
enquanto que lagartos, preguiçosos, ao sol, pelos caminhos se espraiavam
e uma miríade de insectos buliçosos ao nosso redor sempre volteavam.
Recordo o batuque daquele casamento.
Na foto ficou bem impresso o momento em que o dançarino fazia um mortal
numa fantástica expressão corporal.
Foi lá na Ponte Nova, naquela tabanca onde de azul se coloriam panos
que as mulheres usavam em volta da anca e que desciam quase até ao chão.
Tudo isto se passou há muitos anos.
A apresentadora fala agora em danos causados por uma longa estiagem
e mostra uma desértica paisagem.
Eu regresso da minha viagem e tento organizar o pensamento.
O telejornal está quase no final. Deve seguir-se a previsão do tempo.

Regina Gouveia


Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria > IV Encontro Nacional do nosso blogue > 20 de Junho de 2009 > Os novos membros da nossa Tabanca Grande, Regina e Fernando Gouveia, um adorável casal, transmontano, do Porto, que fez uma comissão na Guiné (Bafatá, 1968/70). O Fernando foi Alf Mil Pel Rec Inf, Comando de Agrupamento 2957, Bafatá (1968/70) na altura em que era comandado pelo Cor Hélio Felgas, já falecido.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Direitos reservados.

3. Comentário de L.G.:

Durante o nosso encontro, na Ortigosa, tive a oportunidade de falar um pouco com o Fernando Gouveia (ex-arquitecto na Câmara Municipal do Porto), e pô-lo em contacto com a malta de Bambadinca do seu tempo (caso do Fernando Calado e do Ismael Augusto, da CCS do BCAÇ 2852, 1968/70)...
Falei também com a simpatiquíssima esposa, Regina, que me disse já conhecer-me, das minhas blogpoesias... Fiquei agradavelmente surpreendido... Desafiei a Regina, que viveu em Bafatá ao lado do seu marido (1968/70), a escrever, para o nosso blogue, histórias desse tempo... Respondeu-me que sim, mas... Não sabia, todavia, que ela era uma escritora com obra feita e publicada (!)...

Recordo o que aqui escreveu o Fernando, no seu poste de apresentação: "Começo por dizer que, tendo em conta tudo quanto vi, ouvi e me foi relatado por outros e, independentemente dos seus defeitos (quem os não tem?), se tivesse que escolher com quem trabalhar não teria dúvidas nas escolhas. Para meu comandante chefe não hesitava, escolheria o Gen Spínola e para meu comandante directo escolheria o Cor Felgas. Acrescento ainda que, como alferes miliciano que fui, gostaria de ter trabalhado ao lado do Beja Santos, pelos motivos que mais tarde explanarei"...

O Fernando chegou a Bafatá em 18 de Julho de 1968 (não tenho a certeza se já casado com - e acompanhado de - a Regina). Bafatá era uma bonita vila colonial (será elevada a cidade mais tarde, em Março de 1970), sendo a periferia indígena constituída por três tabancas: Ponte Nova, Rocha e Nema.
Vindo de Tite, chegaria uns dias mais tarde o novo Comandante do futuro Agrupamento 2957, o Cor Hélio Felgas. "Era um verdadeiro militarista e muito duro, só que com ele sabia-se com o que se contava, o que eu achava uma qualidade". O Cor Felgas esteve à frente do Agrupamento até Outubro de 1969.

O Fernando disse-me que só foi uma vez a Bambadinca, em Junho de 1969, quinze dias do ataque ao aquartelamento, em 28 de Maio de 1969. (A CCAÇ 12 foi colocada em Bambadinca, na 3ª semana de Julho de 1969, depois de mês e meio em Contuboel)... Em contrapartida, conheceu Madina Xaquili uma semana antes de esta ser, para a nossa CCAÇ 12, em farda nº 3 (!), o local do seu baptismo de fogo...

Serve todo este blá-blá para justificar a entrada, por via directa, da Regina Gouveia para a nossa Tabanca Grande. Poucas mulheres acompanharam camaradas nossos na aventura guineense. E, muito menos ainda, nem todas essas mulheres tinham/têm o talento literário e a sensibilidade estética e poética da Regina. Sê bem vinda, amiga, à nossa caserna virtual... Senta-me debaixo do grande poilão que nos dá sombra a todos e cujos irãs nos protegem, e por favor conta-nos as tuas estórias/histórias... Como só tu sabes contar...

PS - Fernando / Regina: Não tenho a certeza de quem são as fotos... De um ou do outro, tanto faz, fica tudo em casa... O que tenho a dizer é que o vosso álbum fotográfico sobre Bafatá (incluindo Madina Xaquili) é simplesmente fabuloso... Obrigado, por quererem partilhá-lo com os Amigos & Camaradas da Guiné...
_____________

Notas de L.G.:

(*) Regina Gouveia:

(i) Nasceu em 1945 (em Santo André, Estado de S. Paulo, Brasil, onde vivei até aos dois anos de idade);

(ii) Passou a sua infância e adolescência no Nordeste Transmontano, em Portugal, de onde tem raízes pelo lado paterno;

(iii) casada com Fernando Gouveia, arquitecto, aposentado da CM Porto; acompanmhou o marido, em Bafatá, durante a sua comissão militar (1968/70);

(iv) É Licenciada em Físico-Químicas (Universidade do Porto) e Mestre em Supervisão (Universidade de Aveiro).

(v) Professora do Ensino Secundário, aposentada, dedicou muito do seu tempo à formação de professores (foi orientadora de estágios durante 22 anos);

(vi) Colaborou com o Ensino Superior, nomeadamente com o Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

(vii) Actualmente lecciona na Universidade Popular do Porto e colabora, a título voluntário, com a Biblioteca Almeida Garrett no Porto, divulgando a ciência e a poesia, junto dos mais pequenos.

(viii) Em 2005, no âmbito do Ano Internacional da Física, foi agraciada com a comenda da Ordem da Instrução Pública e premiada com o prémio Rómulo de Carvalho.

(ix) É autora do livro de didáctica Se eu não fosse professora de Física. Algumas reflexões sobre práticas lectivas e do livro de ficção Estórias com sabor a Nordeste.

(x) No âmbito da poesia, tem poemas dispersos em algumas publicações,além de prémios; é autora de dois livros de poesia Reflexões e Interferências e Magnetismo Terrestre;

(xi) António Gedeão (pseudónimo lietrário de Rómulo de Carvalho) é um dos seus poetas favoritos. Recorde-se que é o autor do célebre poema Pedra Filosofial (Eles não sabem que o sonho /é uma constante da vida...) , transformado em canção de contestação, na voz de Manuel Freire, e nas vozes de alguns de nós,em Bambadinca (1969/71)...

(xii) Em 2006, publicou o seu primeiro livro para crianças: Era uma vez… ciência e poesia no reino da fantasia...

Título: Era Uma Vez... Ciência e Poesia no Reino da Fantasia
Autor: Regina Gouveia
Ilustração: Nuno Gouveia
Ano de edição: 2006
Páginas: 72
Editor: Campo das Letras
ISBN: 9789896250430
Colecção: Palmo e Meio

(**) Vd. postes de:

27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4254: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (1): Três oficiais: um General, um Coronel, um Alferes - suas personalidades

28 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4256: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia (2): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (I Parte)

8 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4305: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (3): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (II Parte)

21 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4395: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (4): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (III Parte)

28 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4429: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (5): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (IV Parte)

6 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4470: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (6): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (V Parte)

26 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4585: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (7): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro (VI Parte)

Guiné 63/74 - P4614: Controvérsias (30): Milicianos… eram os peões das nicas! (Jorge Teixeira/Portojo)






1. Mensagem de Jorge Teixeira, ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões s/recuo 2054 (Catió, 1968/70), esteve adido aos BARTs 1913 e 2845, com data de 29 de Junho de 2009:





Camaradas,

Duas unidades militares me deixaram boas saudades: A Escola Prática de Cavalaria - EPA - em Vendas Novas, e o GACA 3 em Paramos, Espinho.

Na primeira fiz a chamada especialidade. A camaradagem e convivência entre os futuros aspirantes e cabos milicianos era grande (o curso era simultâneo), e o respeito que nos dedicavam (aos instruendos), os oficiais e sargentos do quadro bem como os já formados aspirantes e cabos milicianos era muito grande.


Dos oficiais fiquei com bastante estima ao Capitão Branco - meu Comandante de Companhia (CSM); capitão Rei - meu Comandante de Companhia (COM) -, que vim a encontrar anos mais tarde na Guiné como Cmdt da CCAÇ 6 em Bula, e Capitão Oliveira, que foi comandante dos COMANDOS, na Amadora, anos depois.

Dois dos aspirantes, andaram simultânea e posteriormente comigo pelas bolanhas. Estes oficiais e pelo curso que me haviam ministrado, mais do que militarmente, formaram a minha mente. Talvez por isso aguentei a comissão na Guiné.

No GACA 3, dizia-se que os comandantes da unidade eram os cabos-milicianos. Deles dependia a unidade. Quem tiver coragem que me desminta.

Fui lá colocado juntamente com outros camaradas do último curso da EPA, bem como os aspirantes. Portanto, todos nos conhecíamos e a camaradagem era muito grande.

Tínhamos direitos escritos nas NEPs, ou lá como se chamava aquela coisa. Por exemplo era-nos permitido sair do quartel sem licença, de fim de semana, à noite, e andar à civil, mesmo dentro da unidade, desde o toque de saída até ao toque de entrada. Tínhamos uma Messe e Bar próprios.

E, claro, também tínhamos tarefas e serviços obrigatórios: Sargento de dia à Companhia, Sargento de Guarda, Sargento de Ronda e todas as outras “sargentadas” que a tropa nos exigia.

Mas já aí não havia serviços - que me lembre -, que envolvesse os sargentos do quadro, com excepção de sargento da companhia, o sargento vague-meste, o sargento da unidade (que era na altura era um sargento-ajudante - se estou errado na patente corrijam-me por favor) belíssima pessoa, que foi quem me deu a notícia em primeira mão da minha mobilização, na véspera de fazer os meus 22 aninhos.

Poderia haver um ou outro serviço que tocasse aos sargentos do quadro, mas tanto quanto me lembro, na generalidade, eram garantidos pelos furriéis milicianos.

Quero eu dizer na minha, que embora o ordenado fantástico de 90 escudos por mês (45 cêntimos na nova moeda), não desse para o tabaco, os 5 meses que passei no GACA 3 como Cabo-Miliciano foram muito bons. Acima de tudo e porque ainda hoje nos juntamos todos como bons amigos para recordarmos esses tempos malucos.

Já agora a talhe de foice, esse grupo chama-se “Bando dos Furriéis” (termo que já existia antes do “outro” chamar Bandos a quase tudo quanto estava na Guiné), que vem desde as Caldas, passou para Vendas Novas, entrou por Paramos/Espinho e, mais tarde, uma parte “desfez-se” com a mobilização.

Mas todos em comum, deram com os costados nas bolanhas da Guiné.

Um abraço para a Tabanca do,
Jorge Teixeira
__________
Notas de M.R.:

Vd. último poste sobre esta matéria em:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4613: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (8): Pôr os pontos nos "is"

1. Mensagem de António Paiva, (*), ex-Soldado Condutor no HM 241 de Bissau, 1968/70, com data de 22 de Janeiro de 2009:

Caros Luís, Carlos e Virgínio

Vamos lá pôr os pontos nos iiis. Convém.

Depois de ter mandado duas histórias passadas aos Domingos e outra que tenho para mandar também ter sido passada a um domingo, ainda toda esta família vai pensar que fui condutor de fim-de-semana. Mas não!

Estávamos operacionais, se assim se pode dizer, 24 horas por dia, tudo por amor à esmola que o patrão nos pagava.

Como disse no poste 3511, cheguei com um mês e tal de antecedência, como tal, não fui colocado como condutor, mas sim nos serviços de... telefonista, porteiro ou piquete de urgência.

Quando já estava feito aos meios do hospital, dois meses depois, me colocam com serviço definitivo. Pensei que ia ser por uns tempos, mas não, foi até ao fim de comissão.

Entregaram-me um jeep, não armas, nunca as usei, nem de dia nem de noite, nem fora do hospital mesmo com saídas durante a noite para ir buscar médicos ou enfermeiros, e mandaram-me para a Chefia do Serviço de Saúde, que ficava do lado direito do hospital, depois do pavilhão das consultas externas, ficando a fazer parte do Depósito de Material Hospitalar.

A minha colocação não posso dizer que fosse má, tinha um horário das 9 às l8 de segunda a sexta, pois fora desse horário todo o tempo era meu.

Não gostava, posso mesmo dizer que detestava, preferia estar ligado ao Hospital tempo inteiro, por isso só nos fins-de-semana e noites me sentia útil, quando o trabalho apertava ou complicava... eu estava lá. Era o meu mundo!

Onde param os jovens do meu tempo, que juntos partilhámos das mesmas alegrias e tristezas?

Um abraço
António Paiva
__________

Nota de CV:

(*) Vd. último poste da série de 28 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4432: Histórias de um condutor do HM 241 (António Paiva) (7): 4 dias de inferno em Junho de 1969

Guiné 63/74 - P4612: Contraponto (Alberto Branquinho) (2): Não vale a pena chorar

1. Mensagem de Alberto Branquinho, (*), ex-Alf Mil da CArt 1689, Guiné 1967/69, com data de 24 de Maio de 2009:

Meu Editor Carlos Vinhal

Espero que o nosso Editor e os demais co-Editores não fiquem zangados comigo, pois dirijo este mail ao pai dos CONTRAPONTOS, pois sem o estímulo do camarada-Editor Carlos Vinhal, eles não teriam visto a luz do dia (ou da noite, que é quando escrevo).

Aí vai o CONTRAPONTO (2) - "Não vale a pena chorar".

Um abraço para todos
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (2)

NÃO VALE A PENA CHORAR


Teria eu doze ou treze anos e estava em Lamego. Deveria ser Primavera, porque o tempo estava soalheiro, embora instável.

Depois do almoço, o meu Tio disse-me: - Rapaz, se logo à noite estiver bom tempo, vamos ali à Avenida ver a tropa chegar das manobras.

Não chovia. Sob a luz difusa dos candeeiros formavam-se pequenos grupos de pessoas, que, repetidamente, olhavam para o lado de quem vem da Senhora dos Remédios. A ideia que tenho é que não foi uma espera muito longa.

Começou a ouvir-se um sussurro ao longe, lá para o fundo escuro da Avenida. Um barulho surdo e contínuo aproximava-se.

Surgiram os primeiros homens, em formatura, batendo pesada e ritmadamente com as botas no chão, com capacetes na cabeça, armas em bandoleira, vestidos com uns capotes castanhos cor-de-terra quase até aos pés, carregando alforges da mesma cor. E passavam, passavam, passavam, pareciam nunca mais acabar. A imagem que guardo de cada um deles é a mesma da estátua do “Soldado Desconhecido”.

Marchavam com aspecto cansado, como condenados à morte. Mas o espanto maior não foi esse aspecto da formação militar que passava, batendo com as botas no chão. Não! O espanto maior foi porque eles CANTAVAM ao ritmo das passadas. Ainda recordo duas quadras, que o meu Tio me repetiu mais tarde:

Oh Laurinda, oh Laurinda
Não vale a pena chorar
Tu já sabias, Laurinda
Que eu ia p’ra militar.

Que eu ia p’ra militar
Que eu ia p‘ró Regimento
Oh Laurinda, oh Laurinda
Não me sais do pensamento.


E passavam, passavam sempre. E cantavam, cantavam sempre.

Passaram os últimos. Acabou-se o espanto.

A guerra acabou. Voltou o silêncio à Avenida.


Recordei isto dias depois de me obrigarem a ficar no CIOE, em Lamego – para fazer o chamado “Curso de Operações Especiais” (não “Ranger”, porque é marca registada nos Estados Unidos da América).

Não imaginara em criança que um dia seria tropa em Lamego, mas que, no final das manobras, não cantaria à Laurinda para não chorar.


Ora, a finalidade do “Curso de Operações Especiais”, segundo nos transmitiram logo no primeiro dia, era atingir a “DUREZA 11” – portanto um grau acima do diamante! No final do curso era entregue aos instruendos (alferes e furriéis milicianos na mobilização) uma fita escura, levemente arqueada, com as palavras “Operações Especiais”. (Parêntesis: Como haveria só um alferes e um furriel por cada Companhia mobilizada, ver-se-iam, mais tarde, impossibilitados de – somente a dois – fazerem qualquer operação especial).

O uso dessa fita, cosida ao alto da manga (direita ou esquerda?) do uniforme garantia “urbi et orbi” a “Dureza 11” do utente.


Era o mês de Novembro ou Dezembro de 1966

Acabado o curso, houve formatura para entrega das referidas fitas. Foram chamados quatro ou cinco, com ordem para darem um passo em frente. E frente a toda a formatura foi comunicado que, a esses quatro ou cinco, não lhes era atribuída a referida fita. Eu estava entre eles, com fundamento em qualquer coisa como resistência passiva.

Apesar do comportamento que lhe era exigido em formatura, um dos excluídos desatou a chorar lágrima a lágrima e, depois, em choro abundante e notório.

Mais tarde soubemos que a decisão fora reconsiderada e, consequentemente, lhe tinha sido atribuída a almejada fita. Chorando, terá conseguido a “Dureza 11”?

Ao contrário da Laurinda, valeu a pena chorar.
(Se é que valeu a pena fazer uma fita por uma fita).

Alberto Branquinho
__________

Notas de CV:

(*) Alberto Branquinho é o autor do livro "Cambança - Guiné, morte e vida em maré baixa" e da série do nosso Blogue "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo", que por sua vez deu lugar à série "Contraponto"

Vd. primeiro poste da série de 18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4371: Contraponto (Alberto Branquinho) (1): Mudam-se os tempos

Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

1. Continuação da publicação das memórias de infância do nosso amigo Cherno Baldé (aqui, na foto, à esquerda, jovem estudante em Kiev, Ucrânia, em finais dos anos 80; e, na outra foto, à direita, o Engº Cherno Baldé, hoje, no seu gabinete de trabalho, no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento).



Ataque ao aquartelamento de Cambaju

por Cherno Baldé (*)

Ainda hoje, a nossa mãe está convencida que este ataque foi obra dos primos do meu pai que viviam do outro lado da fronteira, não muito longe de Cambajú. (**)

Aconteceu que, no dia anterior ao ataque, o meu pai tinha recebido uma grande quantidade de mercadorias e, por coincidência, no mesmo dia tinha-se despedido uma pessoa que estava hospedada em casa para tratamento e que voltara junto dos tais primos da outra banda.

Assim, nesse dia do ano de 1966, na calada da noite, pouco depois das quatro horas de madrugada, ouvimos tiros. Primeiro os disparos se fizeram ouvir a oeste para os lados do quartel, fazendo pensar que o objectivo era militar, depois se espalharam rapidamente contornando a aldeia.

A primeira reacção do meu pai foi juntar toda a família dentro da casa onde funcionava a loja que, ao menos, por ter uma cobertura de zinco, era mais difícil de fazer pegar fogo, porque uma das tácticas dos homens do mato era precisamente a de fazer arder as concessões para aterrorizar as pessoas e aumentar a confusão.

Pouco a pouco parecia que os atiradores se aproximavam cada vez mais perto da loja onde estávamos escondidos e aí se concentravam as suas forças. O meu pai estava postado na varanda, junto a porta que dava acesso à loja, defendendo-se conforme podia. Ouvíamos o barulho dos tiros que faziam vibrar as chapas de zinco produzindo um eco ensurdecedor e, no meio desse barulho infernal, ouvíamos as vozes de pessoas que falavam, quase gritando, lá fora.

Mais tarde, o meu pai nos contaria que do aquartelamento tinham vindo dois milicianos [milícias] nativos de Farim e que o tinham intimado a deixar o local devido a forte concentração dos atacantes, ao que ele tinha recusado sob pretexto de que não podia abandonar a sua família que estava dentro da loja. Na verdade, também não queria abandonar a loja que lhe tinham confiado.

Consternados e indecisos, sem saber como convencer o meu pai a deixar a loja que, de facto, estava cercado dos três lados, já estavam a deixar o local quando um deles, instintivamente, perguntou a meu pai:
- O Senhor não tem outra arma melhor que esta mauser ? - disse, apontando para a arma que estava nas mãos do meu pai cujo cano estava fumegante e quase vermelho rubro devido ao ritmo acelerado dos tiros da arma de repetição.
- Infelizmente, não, meu irmão, mas tenho granadas que os brancos me deram e as quais não sei usar.
- Muito bem - disse o jovem miliciano [milícia] -, dê-me a tua arma e vai trazer-me essas granadas para limpar o sebo a esses bandidos.

O meu pai voltou com um saco de granadas na mão e entregou ao militar que tentava afastar os assaltantes já muito perto da varanda da casa, parecia mesmo que o principal alvo do ataque era a loja, situada na entrada leste da aldeia.

De seguida, este intimou o meu pai a entrar para dentro, enquanto ele se perdia na escuridão da noite. O meu pai obedeceu à ordem e no instante seguinte a casa tremia com o choque do estrondo da primeira granada e passados alguns segundos rebentou outra.

Lá dentro, apesar do esforço, as crianças e as mulheres penduradas umas nas outras, não conseguiram conter os gritos de medo e de pânico. No entanto, lá fora, não foram precisas mais, os disparos de armas ligeiras cessaram e em seu lugar ouvimos claramente, na noite, gritos e choros em várias línguas de pessoas que fugiam, e mais perto ainda, os gemidos dos que ficaram destroçados pelos estilhaços das terríveis granadas expansíveis (?) [defensivas] que o miliciano [milícia] estratégica e tacticamente tinha sabido lançar mesmo a tempo e no lugar certo e que fizeram estragos irreparáveis no meio dos assaltantes, provocando a debandada geral e fazendo abortar o ataque, certamente preparado com o objectivo de saquear a loja e provavelmente, quem sabe, liquidar os seus ocupantes, entre os quais estava eu, ainda criança com pouco mais de seis anos de idade.

Mas, com o decurso da guerra, eles voltariam mais vezes, e numa dessas incursões, chegaram mesmo a incendiar a aldeia inteira e seria nessa altura que Cambajú beneficiaria de uma reabilitação completa com casas de zinco para todas as famílias vítimas do incêndio, no quadro da política da Guiné Melhor do General Spínola a fim de encorajar os cidadãos a resistir à guerra mesmo em condições difíceis.

Na altura, já nós estávamos na localidade de Fajonquito onde passei toda a minha adolescência e inícios da vida adulta, claro, já em constante vaivém entre esta localidade e as cidades de Bafatá e Bissau.

_________

Notas de L.G.:

(*)Vd. postes anteriores:

18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

24 de Junho de 2009 > Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

(**) Dúvida: o pai do Cherno era mandinga ? Parecem ser mandingas os atacantes, do PAIGC, aqui referidos na história... Recorde-se que o pai do Cherno era empregado de uma casa comercial, em Cambajú... Mais tarde a família muda-se para Fajonquito.

Guiné 63/74 - P4610: Blogpoesia (51): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (VII Parte): De Pombal (1755) até ao regente D. Miguel (1828)

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Cafal Balanta > Destacamento da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (1972/74) > O Manuel Maia, na kitchnet do seu apartamento Tê-Zero, no resort turístico do Cantanhez... Preparando uma refeição ecológica...

Foto: © Manuel Maia (2009). Direitos reservados.


VII parte da História de Portugal em Sextilhas, escritas pelo Manuel Maia, licenciado em História (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74). Texto enviado em 14 de Maio último (*).

Como o Manuel Maia faz hoje 59 anos, é também uma forma de os editores do blogue lhe prestarem uma singela homenagem e manifestarem o seu apreço pelo seu talento e pela sua colaboração, reforçando as palavras que já lhe dirigiu hoje o Carlos Vinhal. A História de Portugal em Sextilhas já tem muitos fãs, entre os leitores do nosso blogue, e esperemos que venha a encontrar, em breve, um editor à altura do autor e da sua obra... O Maia é membro da nossa Tabanca Grande desde 13 de Fevereiro último (***).


IV Dinastia (Brigantina): De Pombal ao liberalismo

201-Pombal chama arquitectos, decidido,
e um rectilíneo traço é exigido
que Eugénio Santos com Mardel cumpriu.
Manuel da Maia é outro responsável
da planta geométrica agradável,
que aos lisboetas olhos se erigiu...


202-Após duzentos anos em funções
de ensino e de igreja,nas missões,
Pombal aos Jesuítas dá expulsão.
Pretensa ligação ao atentado
(que contra D.José foi perpretado)
permite-lhe as reformas de então.


203-Primário ensino,cria,oficial
como Aula do Comércio em Portugal,
poder da Inquisição reduz enfim.
Reorganiza exército e marinha,
fomenta as pescas,incrementa a vinha
por cá à escravatura vai pôr fim.

Portrait of José I, king of Portugal. Data: c. 1773.
Fonte: Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia.
Autor: Miguel António do Amaral.

Imagem do domínio público.
Cortesia de Wikipédia.





204-Morrendo D. José, Reformador,
desgraça desabou no seu mentor
a quem Maria Pia elimina.
Rainha solta presos das prisões,
comuta suas penas em perdões,
Pombal tem no desterro a sua sina.



205-Fundando mais escolas de raíz,
promove assim cultura do país
e cria, p´ra Marinha, Academia.
Maria Pia manda construir
teatro de S.Carlos e erigir
Basílica da Estrela e Casa Pia.


206-Bocage, um vate nado junto ao Sado,
com estro de um engenho sublimado,
fez juz ao galarim dos imortais.
De pensamento livre e pena audaz,
por vezes truculento e bem mordaz,
sentiu da Inquisição tratos brutais...


Manuel Maria Barbosa du Bocage, writer from Portugal [1765-1805].
Data: Séc. XIX.
Fonte: História da Literatura, CRUZ, José Marques. ed. Melhoramentos.
Autor: Joaquim Pedro de Souza.

Imagem do domínio público.
Cortesia: Wikipédia.



207-De escritos libertinos acusado,
sediciosos versos inculpado,
vadio, dado à esbórnia,anti-asceta.
Mesquinho, o meio avaro onde vivia
foi incapaz de achar, por atrofia,
grandeza imorredoira do poeta...



208-Em França vai estalar revolução
que leva Portugal ao Rossilhão
na ´sp´rança que a revolta assim se vença.
Espanha, ao mudar suas ideias,
acordo fura às c´roas europeias,
invade Portugal,ROUBA OLIVENÇA.


209-O corso Bonaparte, esmagador,
impondo pela Europa o seu terror,
jurou dobrar p´la fome a Inglaterra.
Bloqueio à ilha foi a forma achada
de ter força inimiga sitiada,
e, a quem não o cumprir,fará a guerra.


210-Pujante a velha inglesa aliança,
pesou bem mais que a acção tida p´la França,
levando Portugal a honrar tratado.
Napoleão acorda com Espanha,
um livre corredor e esta ganha,
quinhão do luso solo ocupado...


211-Prepara-se uma força resistente,
gaulesa invasão está eminente,
surgindo apoio inglês feito a preceito...
Real família p´ro Brasil avança,
Junot invade e perde, sem tardança,
à tropa anglo-lusa coube o feito...


212-Segunda invasão, nova chefia,
desastre p´ra francesa teimosia
e Soult é obrigado a retirar.
Massena, no Buçaco, foi esmagado,
terceira vez o corso é humilhado,
chegava ao fim a Guerra P´ninsular...


213-Regência Beresfordiana em Portugal,
lesiva p´ro interesse nacional,
depressa incendeia os militares.
Rastilho tem por base as promoções,
à tropa lusa negam-se os galões
que dão acesso aos mais altos lugares...


214-El-rei novo estatuto dá ao Brasil
que passa a reino, ganha outro perfil,
etapa para o grito de Ipiranga.
Recife em dezassete deu o mote,
Bahia e Rio apertam o garrote,
D.Pedro,solta amarras,larga a canga...


215-Juntando ao mau estado nossa tropa,
fervilha liberalismo p´la Europa,
levando em dezassete ao conspirar.
Ingleses detectando o movimento,
sustêm logo o golpe no momento
e Gomes Freire Andrade vão matar...


216-Sinédrio portuense,insatisfeito,
visando o fim do caos,leva a efeito,
medidas p´ra adesão da artilharia.
A tropa apoiará os liberais
e, face à evidência dos sinais,
vintistas mostrarão sua alegria...


217-O Porto fez erguer a sua voz
contra a brutalidade do algoz,
revolta mudará tudo, depois.
De Cádiz chega forte inspiração,
p´ra dar poder sob´rano à Nação,
nasceu Constituição de vinte e dois...


Last portrait of the emperor D. Pedro I, whilst in Brazil, with imperial garment. Data; ca. 1830. Fonte: Museu Imperial de Petrópolis. Autor: Simplício Rodrigues de Sá (?-1839).



Imagem do domínio público

(Cortesia de Wikipédia).




218-Decide el-rei, de vez, pôr fim à ausência,
ficou Brasil com Pedro,na regência,
que irá virar depois imperador.
Miguel,o outro filho, absolutista,
gerou Vilafrancada,acção golpista,
regime antigo procura repor...








219-Com Abrilada vem legalidade,
infante paga cara a habilidade,
penoso o seu exílio p´ra Viena.
Morrendo D.João, Miguel regressa,
chamado pelo irmão lhe fez promessa,
e aceita condições que este lhe acena...


220-P´ra minorar tensões entre rivais,
Absolutistas versus Liberais,
proposta,Pedro fez de uma aliança.
Casava filha Glória com Miguel,
irmão passava a genro no papel,
p´ra ser regente enquanto ela criança...

[Continua]

[Fixação / revisão de texto: L.G.]
_______


(*) Vd. postes anteriores desta série:

2 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4274: Blogpoesia (43): A história de Portugal em sextilhas (Manuel Maia)

3 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4278: Blogpoesia (44): A história de Portugal em sextilhas (II Parte) (Manuel Maia)

6 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4290: Blogpoesia (45): História de Portugal em Sextilhas (Manuel Maia) (III Parte): II Dinastia, até ao reinado de D. João II

15 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4351: Blogpoesia (47): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (IV Parte): II Dinastia (De D.Manuel, O Venturoso, até ao fim)

3 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4456: Blogpoesia (48): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (V Parte): III Dinastia (Filipina)

22 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4561: Blogpoesia (49): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (VI Parte): IV Dinastia (Brigantina) (até 1755)

(**) Vd. poste de 30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4607: Parabéns a você (11): Dia 30 de Junho de 2009 - Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610

(***) Vd. postes de:

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3886: Tabanca Grande (118): Manuel Maia, ex-Fur Mil, o poeta épico da 2ª Companhia do BCAÇ 4610/72 , o Camões do Cantanhez

14 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3890: Tabanca Grande (119): Apresentação de Manuel Maia ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610 (Guiné, 1972/74)

15 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3896: Do purgatório de Bissum / Nagal ao infermo de Cafal Balanta / Cafine (Manuel Maia, 2ª CCAÇ / BCAÇ 4610, 1972/74)

20 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3915: Cancioneiro do Cantanhez (1): De Cafal Balanta a Cafine, Cobumba, Chugué, Dugal, Fatim... (Manuel Maia)