segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4885: Relembrando o nosso querido capelão, Arsénio Puim, no Xitole (David Guimarães)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > O Alf Mil Capelão Arsénio Puim, capelão militar, de origem açoriana (à esquerda), com o furriel Guimarães da CART 2716 (à direita). Devido presumivelmente às suas homilías, o capelão do BART 2917 (Bambadinca , 1970/72) teve problemas com as autoridades do CTIG, acabando por ser detido em Bambadinca, em Maio de 1971, levado para Bissau e, ao fim de um semana, repatriado e demitido de capelão miliar. Terá havido outros casos: o caso talvez mais famoso foi o do Padre Mário da Lixa, também membro da nossa Tabanca Grande.

Até há três meses atrás, era a única foto que possuímos do nosso camarada, hoje enfermeiro reformado, a viver em Vila Franca do Campo, Ilha de São Miguel, Região Autónoma dos Açores, donde é natural (Ilha de Santa Maria).(*)
Por seu turno, , David Guimarães é o membro nº 3 da nossa Tabanca Grande, ex-Fur Mil At Atilharia e Minas, Xitole, sede da CART 2716 / BART 2917 (1970/72). Está reformado da Segurança Social e vive em Espinho.
Foto: © David Guimarães (2005). Direitos reservados.

1. Mensagem de L.G. dirigida ao David Guimarães, com data de 16 de Janeiro de 2008:

Convivi pouco com o capelão Puim. Já não ia missa nessa idade, e muito menos na Guiné, em Bambadinca. Além disso, a malta da CCAÇ 12 tinha uma intensa actividade operacional, ao serviço do comando do do batalhão, sobrando pouco tempo para conviver com a malta da CCS. Levei-o, a ele, Puim, uma vez, numa das nossas colunas logísticas ao Xitole, a ele e à mulher do Carlão... (Ainda me recordo de a ver, de camuflado, e de sapatos de salto alto, vermelhos, à guarda do angélico Puim... Não sei se te recordas: o Carlão era um dos alferes da CCÇ 12, estando na altura destacado no reordenamento de Nhabijões... Alguém se recusou, por razões de segurança, a levar a mulher do Carlão. Deve ter sido o comandante da coluna, um dos nossos alferes ou talvez o Beja Santos, do Pel Cal Nat 52, já não me recordo ao certo... Julgo que a coluna ia mesmo até ao Saltinho. Já não tenho a certeza se ela acabou por ir ou por ficar. O Puim foi dessa vez, e terá sido essa uma das quatro vezes que ele te visitou, no Xitole)...


E posteriormente, a 29 de Janeiro de 2008:

David: Foi nesta altura que conviveste mais com o Padre Puim... Ele ficou no Xitole, duas semanas...Vê se te lembras de mais pormenores, incluindo esta cena da mina e dos picadores de Mansambo... Vou perguntar também ao Humberto, que ia nesta coluna... Julgo que o Vacas de Carvalho também foi... Terá sido no 2º semestre de 1970... O BART 2917 chegou a Bambadinca em meados de 1970 (Junho), tinha a CCAÇ 12 já um ano...


2. Resposta do David Guimarães, com data de 29/1/2008, e até agora inédita:

E pronto, aqui está um problemazinho que nos diz respeito: foi há muito tempo... no tempo da guerra... mas foi, aconteceu. Aquela estrada Bambadinca-Xitole era fértil em tudo e até em minas... Contei há dias algo sobre a Coluna que nos reabasteceu nas alturas do primeiro Natal nosso... 10 de Dezembro de 1970, fixei-me em memória porque efectivamente estive presente na protecção desta e mais tarde no armadilhamento da Mercedes 322 que ficou com a parte da frente destruída quando caiu numa mina reforçada na ponte do Jacarajá e quando regressava a Bambadinca...

Efectivamente houve um com muita gravidade, o 1º Cabo Armindo, da CCS do BART 2917... Este história contei-a já, ainda estamos muitas testemunhas do facto e a apoiar esta informação incluindo os militares da CCaç 12 a que pertenciam o Carlão, o Humberto [Reis], o Henriques (Luís Graça) e tantos outros, claro... Mais testemunhas foram o Major de Operações do BART [2917, o major B.B.] e uma secção onde eu estava - que foi a responsável pela protecção por armadilhamento do que sobrou da Mercedes com três granadas defensivas com arames de tropeçar...

Tudo isto se passou como disse na ponte do Jagarajá - zona de raio de acção das CART 2716, aquartelada no Xitole, e da 2714, aquartelada em Mansambo. Apoiei-me agora em datas, não em factos porque os tenho bem de memória e estão confirmados pelo livro do BART 2917 e inserida esta acção nas pág. 41 de 75 HU-CAP II.

Também creio que não foi esta a coluna onde aconteceu esse guias terem lerpado enfim, na coluna que o nosso capelão seguia... e se deu para além da zona a que eu estava inserido, quer dizer que foi para lá do Jagarajá, quem do Xitole se desloca para Bambadinca...

Claro que, consultando o livrinho, ele poderá avivar, ela foi outra que não essa... mas a data será menos importante que o acontecimento...

A relação com o Capelão do Batalhão - o Padre Puim (**)...

Os quinze dias de convívio com o nosso capelão no Xitole foi importante naturalmente - o Padre Puim era uma pessoa que transmitia paz e segurança, era ouvido atento, conselheiro e amigo e camarada também...

Sei que na Cart 2716, durante aqueles 15 dias, ele foi pessoa bastante importante, o mensageiro da paz dentro da guerra e, curioso, aquela linda Capela que existia testemunhando decerto as nossa crença, foi nessa data usada para celebração de Eucaristia... Há boa maneira portuguesa e em honra a todas as aldeias que representávamos tivemos missa, no Xitole rezada pelo nosso Pároco afinal - o nosso querido Capelão...

Existe para aí uma foto em que eu estou com o Puim junto a uma bananeira - sim, será possivelmente a única foto que temos no blogue - mas é isso, ele procurou estar em todo o lado e esteve - tivemos dias diferentes...

Estava uma pessoa do Batalhão e que nos era querida a todos... Já tanto não seriam outras pessoas ligadas ao Comando, como é óbvio… que tomáramos nós vê-los sempre longe e muito longe - mas isso passou e o tempo ensinou-nos a isso e resta-nos dizer que a guerra era assim e por certo modo entender que efectivamente seria necessária aquela disciplina, mas isso é outra coisa...

O Puim foi uma pessoa que muito cedo se relacionou connosco... Colocados os quadros para formar Batalhão na Pesada 2 logo nos veio ter um Capelão...portanto logo começamos os quadros a relacionarmo-nos com o Padre Puim - curioso que não usávamos o termo Capelão... Creio também que nunca dissemos Meu Alferes, era o Sr. Padre e pronto...

Mas como dizia foi uma como que longa - a tropa era sempre muito - a nossa a estadia com o Padre Puim e portanto existia confiança e lealdade entre nós num relacionamento fraterno, menos militar e muito mais humano... Vi que a tropa aí era um acidente... Não a consegui reprovar contudo razões se impunham, talvez genéticas, sendo que contudo saberia que meu pai tudo faria para me livrar a atropa e ele era profissional - só por isso... Isso está escrito...

Assim o Padre Puim esteve na Pesada 2 (Vila Nova de Gaia), Viana do Castelo, um tempo largo e depois na Guiné... Ele e nós quadros do BART tivemos oportunidade de nos conhecermos muito bem e, como o IAO foi enorme, também os todos os militares que compunham o Batalhão o conheciam bem, a partir de Viana onde estivemos todos. Daí que houve uma grande e sã convivência entre todos - sendo que os Serviços religiosos, inúteis para a maioria, se tornavam essenciais quando apareciam Puims...

Teve o cuidado de visitar todas as Companhias, de ouvir toda a todos os cuidados e paciência de ouvir a todos e mais teve o cuidado de se fazer ouvir também... Assim esteve sempre perto de todos... Creio que se essa era a missão de um Capelão, pois se era ele cumpriu até ao fim, tempo em que deixou saudades a todo o Batalhão, como sabemos (**)...

E por ter sido apóstolo a tempo inteiro, os fariseus não lhe perdoaram...


Um abraço David Guimarães

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1925: O meu reencontro com o Arsénio Puim, ex-capelão do BART 2917 (David Guimarães)

16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2444: Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão, CCS/BART 2917, hoje enfermeiro reformado e um grande mariense (Luís Candeias)

18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4372: Convívios (131): CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), com o Arsénio Puim e os filhos do Carlos Rebelo (Benjamim Durães)

19 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4378: Arsénio Puim, o regresso do 'Nosso Capelão' (Benjamim Durães, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72)


(**) Vd. postes de:

14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4521: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (1): No RAP 2, V.N. Gaia, onde fez mais de 60 funerais

10 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4666: Memorias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (2): De Viana do Castelo a Bissau

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4665: Memória dos lugares (33): A minha visita a Missirá, na passagem de ano de 1970, com o médico Mário Ferreira (Arsénio Puim)

domingo, 30 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4884: Estórias do Juvenal Amado (22): O que será na verdade a coragem

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 27 de Agosto de 2009:

Caros Carlos, Luis, Virginio. Magalhães e restante Tabanca Grande

Era para ser um comentário ao poste 4865 do camarada Carlos Adrião Geraldes que li e reli pois achei muito saborosa.
O Cabo Mqueiro Abel era na verdade aquilo que se pode chamar um desenrascado.

Lembrei-me dos ajuntamentos à volta da minha Berliet, onde os Maqueiros ou Enfermeiros tratavam alguma ferida mais ligeira de algum popular. Era comum aparecerem nas aldeias mais recondidas, mulheres e crianças com sarna que eram tratadas logo no local. Entretanto, nós trocavamos os comprimidos de sal por fruta. Eles ficavam contentes e nós ainda mais.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


O que será na verdade a coragem

O André era de compleição robusta, transmontano de gema cedo puxou pelo físico nos campo e possivelmente na construção civil. Se bem me recordo, os baldes, em madeira e chapa de zinco, cheios de massa eram acartados ao ombro dos garotos serventes, que ainda em idade escolar tinham que ajudar os magros rendimentos das famílias. Muitos chegaram às fileiras do Exército só com as 2.ª e 3.ª classes do ensino obrigatório.

O peso dos baldes era hoje muito para a maioria dos adultos e estamos a falar de crianças.

Isto repetia-se por todo o País e não só na terra do André.

Quando chegaram à idade militar, uns foram utilizar essa força, construir as cidades de países já livres de disputas coloniais, que utilizaram os seus meios económicos para se modernizarem e darem bem estar ao seu povo.

De forma indirecta ajudaram a perpetuar com as suas remessas monetárias o regime e a guerra, que os obrigou a procurar sobrevivência por toda essa Europa livre.

Outros tiveram que utilizar a mesma força, incorporando os contingentes que foram sendo despejados em África nos principais teatros de operações.

Mas voltando ao André, quis a sorte que ele fosse escolhido para Maqueiro.

Penso que ele se sentia mais à vontade a usar a espingarda do que a seringa. Gostava da acção, e a provar foi a forma em como no ataque a Galomaro utilizou o morteiro 60 mm pondo a zona de onde o IN atacava a ferro e fogo.

Mas, os maqueiros tinham uma especialidade em que a primeira coisa a fazer era prestar socorro aos feridos, e mesmo debaixo de fogo, tentar ajudar quem deles precisava, esquecendo que também eles eram alvo das balas inimigas.

Era pois uma coragem em que se escolhia os outros primeiro.

Assim, 15 dias antes do ataque a Galomaro, o André esqueceu as possíveis minas e de um salto já estava ao pé do Teixeira que lançava gritos lancinantes de dor e de espanto.

Ninguém lá chegou primeiro que ele, tal era o seu espírito solidário.

Medicou, fez torniquetes e deu esperança ao nosso camarada gravemente ferido. Finalmente as lágrimas correram-lhe pelo rosto em sinal de revolta, quanto fechou aqueles olhos que já não viam.

O André quando regressou também emigrou e foi construir as cidades dos outros, cumpriu assim o destino luso.

Conseguiu o bem-estar, que até aí lhe tinha sido negado. Construiu na sua terra uma maison com garage e terá assim feito planos para que os filhos não passassem o mesmo que ele passou, quando finalmente regressasse.

Que outra maneira poderia ser?

Homem que não aprende com o passado não tem futuro.
Juvenal Amado

Pessoal de Saúde de prevenção no decorrer de uma Operação. Da esq. Fur Graça, Médico, André e Catroga

Tratamento em ambulatório - Cabo Enfermeiro Catroga

Vacinação

O Alf Vasconcelos e o Médico Vieira Coelho

O Alf Vasconcelos e o Médico Vieira Coelho

Furriel Graça com população

Fotos: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4854: Estórias do Juvenal Amado (21): O dia de Alcobaça e a Feira de S. Bernardo, dia 20 de Agosto

Guiné 63/74 - P4883: Notas de Leitura (19): Sobre o legado teórico de Amílcar Cabral (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 27 de Agosto de 2009:

Camaradas,

Aqui vai uma recensão sobre uma obra que apareceu em 1974. Em correio separado, vou novamente enviar-vos, também com o pedido de publicação de um texto e imagem sobre uma edição igualmente histórica da obra política de Amílcar Cabral publicada em França, em 1970.
A seguir remeto-me ao silêncio, tereis notícias das minhas leituras em Setembro. Recebei a minha estima e elevada consideração.


Sobre o legado teórico de Amílcar Cabral

Imediatamente após o 25 de Abril de 1974, as Edições Afrontamento deram à estampa várias publicações alusivas à história dos movimentos de libertação operantes nas colónias portuguesas. No conjunto dessas iniciativas é de ressaltar uma antologia organizada pelo Luís Moita e Maria do Rosário Moita relativa ao pensamento de Amílcar Cabral: “Textos Políticos”, assim se intitula esta antologia abreviada que permitiu ao leitor português conhecer o pensamento do antigo secretário-geral do PAIGC.

É sobre essa raridade histórica que iremos à frente falar. A antologia aparece organizada em torno de três temas fundamentais: a história do movimento de libertação; a teoria que fundamentava a acção no movimento de libertação; e a natureza da política anti-colonial, na perspectiva das relações internacionais. No final, são transcritas longas passagens daquele que foi considerado o testamento político de Amílcar Cabral – o seu último discurso, a sua mensagem de ano novo em 1 de Janeiro de 1973.

Cabral foi reconhecidamente um dos maiores teóricos na luta anti-colonial, deixou um pensamento que pode ser ainda hoje explorado para múltiplas leituras nas dimensões política, social e cultural. Agrónomo especializado na erosão dos solos, aparece na Guiné nos anos 50, onde irá proceder a um recenseamento que lhe irá permitir um contacto profundo com todos os grupos étnicos guineenses, avaliar as potencialidades económicas da região e conhecer minuciosamente todas as suas infra-estruturas e equipamentos. Dirá mais tarde que não foi em vão que optou por vir trabalhar para a Guiné, ele que fora convidado para assistente no Instituto Superior de Agronomia.

De formação marxista, crente nas teses que então vigoravam sobre a integração económica na emancipação do continente africano, estava atento às questões tribais, à natureza específica de um proletariado rural que se devia aliar a uma minúscula burguesia, confinada aos pequenos centros urbanos.

Tentou na Guiné criar uma associação cívica, as autoridades de Bissau não autorizaram a constituição dessa associação, alegando que a maioria dos proponentes não pertencia à classe dos “civilizados”. Mais tarde, em 1956, será um dos fundadores na clandestinidade do PAIGC. Nos anos subsequentes, a Guiné Conacri e o Senegal tornam-se independentes, ateia-se o rastilho que vai possibilitar o apoio ao PAIGC, sobretudo a partir de Conacri.

Cabral, um político de visão, toma nota que a luta armada em que se vai envolver é num território que precisa de ter uma língua de coesão e uma atitude eminentemente libertadora e identitária, já que os líderes de Conacri não escondem o desejo da anexar o território da Guiné portuguesa para criar “a grande Guiné” e Senghor também não dissimula que pretende ter um papel director no novo país de língua portuguesa.

O PAIGC torna-se uma realidade no espectro político africano em 1961, ano em que se inicia a Guerra Colonial e se dá uma vaga de prisões de quadros do PAIGC. Cabral tudo estrutura, tudo organiza, tudo escreve, torna-se na figura emblemática do PAIGC, é o mais prestigiado líder dos movimentos de libertação. No final de 1962, apresenta-se numa comissão das Nações Unidas e apela para que acabe urgentemente a presença colonial portuguesa na Guiné e em Cabo Verde.

Em 1963, depois de ter rejeitado quaisquer alianças com outros movimentos libertadores da Guiné, inicia-se a luta armada, criou-se a cisão da influência territorial entre a potência colonialista e o movimento de libertação, em pouco mais de dois anos alterou-se radicalmente a forma de ocupação do território guineense, falando-se, em termos de propaganda do PAIGC, em zonas libertadas, zonas temporariamente ocupadas pelas tropas portuguesas e zonas em discussão. A aprendizagem da luta armada faz-se em tempo acelerado, entrou-se a sério numa guerra de guerrilhas, militar e socialmente muito violenta.

O líder do PAIGC não tem ilusões sobre o carácter da mobilização de massas para a luta da independência. Diz sempre que o colonialista português não se apropriou das terras da Guiné, não criou concentrações de colonos, não deslocou grandes massas de africanos para pôr no seu lugar colonos europeus, como aconteceu em Angola.

Na Guiné manteve-se a propriedade colectiva da aldeia, o que dificultou a sensibilização dos camponeses, demonstrando-lhes como eles eram explorados na própria terra. Influenciado por outros teóricos africanos, Cabral considerava que a África do tempo não era tribal, seria a luta para ter pão e viver com dignidade que iria rapidamente influenciar a coesão de todos os guineenses (como se sabe, não só esta base teórica era falsa como veio a propiciar equívocos tremendos de que a Guiné ainda não se libertou).

Onde o seu pensamento se revelou inegavelmente heterodoxo foi na sua leitura de classes, na natureza das alianças em tempo revolucionário, na ênfase dada ao papel da cultura e na argumentação utilizada para demarcar a luta anti-colonial da estima fraterna sentida pela população portuguesa.

Esta antologia, convém insistir, está marcada pela data em que apareceu no mercado português e pelo tempo da euforia da independência, logo em 1974. É um livro que fala mais do pensamento do lutador do que do visionário da construção da nação guineense.
Na época, ainda ninguém tinha coragem em desmascarar a inviabilidade de forçar a Guiné e Cabo Verde a coabitarem no mesmo Estado, sabendo-se, como já se sabia, que eram duas realidades completamente distintas, tanto na história do colonialismo, como na economia, educação, valores, religião, etc.

A antologia também por isso não acolhe a visão de Cabral sobre o modo de transformar a Guiné como país subdesenvolvido numa nação na senda do progresso. Vários estudiosos do pensamento de Cabral observam que a sua experiência sob o desenvolvimento estava condicionada pela organização das zonas libertadas, não deixou reflexão teórica sobre um estádio superior de desenvolvimento pós-colonial.

Esta é a antologia de 1974, nela palpita o pensamento e a visão de um lutador optimista, prestigiado e dotado de uma enorme capacidade de comunicação e humanismo. Lêem-se estes textos políticos à luz de um grande sopro libertador, pois para Cabral o mais importante era libertar o povo e confiar no homem.

Como ele escreveu “O homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer história, porque não pode libertar-se do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas”.

Com um grande abraço de camaradagem,
Beja Santos
Alf Mil Cmdt do Pel Caç Nat 52
Imagem: © Beja Santos (2009). Direitos reservados.
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Nota de MR:

Guiné 63/74 - P4882: Notas de leitura (18): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte IV e última) (Luís Graça)

Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CART 1661 (1967/68) > Monumento ("Para ti, soldado, o testemunho do teu esforço")

Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados



Infogravura: © Luís Grça (2009). Direitos reservados


Notas de leitura > IV (e última Parte (*) > O fim de um pesadelo

Um amanhecer em Porto Gole...

Vemos de novo o Abel Rei a ocupar o cargo de cabo vagomeste, em substituição do responsável pelo depósito de géneros da companhia que está de férias na metrópole. Um pouco mais descontraído, o Abel dá azo à sua veia literária descrevendo um amanhecer na Guiné, num dos dias em que esteve de sentinela ao quartel… (25/4/1968, Porto Gole, pp. 143-143).

Nessa altura já havia gerador em Porto Gole, o qual era desligado ao amanhecer.

“Com sons de todas as distâncias, ouvem-se os mais variados cantares das aves. São cinco horas e vinte da madrugada (…). Há dez minutos que o dia começou a nascer: primeiro lento, sem pressa, como se preferisse não sair da escuridão, depois como a volúpia dum prazer, rápida, com a aclamação de toda a natureza à sua volta”.
O tão característico cacimbo das madrugadas da Guiné cobre, com o seu manto branco, o rio e a mata: “Avista-se entre as árvores espesso nevoeiro, o mesmo que torna húmidas e frias estas manhãs tropicais – confundindo a mata com o rio, que neste momento apresenta uma crista de areia no meio, a quatro ou cinco quilómetros de mim” (p. 143).

Os primeiros sinais de vida, em Porto Gole, em pleno ‘chão balanta’, são já perceptíveis pelo nosso cabo Abel Rei, no seu posto de sentinela:

“Poucos minutos mais volvidos, e já está o dia nascido. O homem encarregado do motor-gerador já o fez parar. Os abutres vieram até aos limites do rancho ‘fazer limpeza’, enquanto os porcos lá continuam a sua tarefa de demolir tudo com o focinho. Os galináceos limparam do chão os grãos de ‘bianda’ mais próximos; e os cães correm de um lado para outro” (…).

Na tabanca, são as mulheres, sempre as mulheres, quem se levanta primeiro: “Primeiro poucas, e agora em mais quantidade, as mulheres nativas correm para a ‘fonte’ – um poço que se encontra rodeado duma pequena horta, tendo algumas árvores em volta; mangueiros, laranjeiras e cajueiros – donde levam água clara, com que se saciarão durante o dia (..). Com as bilhas cheias, elas já regressam. Na tabanca já se ouve, em ritmo cadenciado, o pilão a martelar na ‘bianda’. Começa a soprar uma ligeira aragem” (pp. 143/144).

A Abel ainda usa o termo ‘indígena’, quando se refere à população local, vocábulo com conotações colonialistas que deixa de se ouvir no tempo da Guiné Melhor, com Spínola:

“Os indígenas não utilizam filtros como nós para limpar a água; metem-na em bilhas de barro e ela depois assenta” (p. 144).

Pareceria um quadro quase idilíco e perfeito de harmonia com o homem com a natureza, se não fora a presença da guerra e da morte… No quartel, já se ouve remexer nos tachos e panelas. O padeiro e o cozinheiro já se levantaram e estão em funções… “E eu termino… Arma às costas, e deixo o meu posto de sentinela!... Pelas duas horas da tarde, seguiram finalmente as duas urnas para Bissau numa lancha de fuzileiros” (p. 144).


Bissá ‘embrulha’ mas resiste…

Por essa altura prossegue o reordenamento das populações da região, a par da construção de um fortim (um posto avançado nos limites do aquartelamento de Porto Gole). No final do mês de Maio de 1968, o Abel volta a “alinhar” como operacional, com o regresso, de férias, do cabo vagomestre.

Em Bissá, durante o mês de Maio, o PAIGC continua a fazer “a vida negra” às NT… De acordo com a história da unidade, (i) a 3 há um morto confirmado no ataque a Bissá; (ii) A 8, um grupo estimado em 100 elementos volta a atacar o destacamento, durante 1 hora, com armas ligeiras e pesadas, embora sem consequências para as NT, enquanto que o IN retira com “bastantes baixas” (inclusive teria sido ferido o comandante da base de Changalene); (iii) A 14, novo ataque, sem consequências; (iv) a 29, um pequeno grupo de 12 elementos faz uma flagelação de 5 minutos a Bissá… (p. 146).

É uma das poucas vezes em que o Abel Rei se permite fazer um juízo sobre o curso da “guerra que se vai arrastando, sem soluções à vista – ora atacando, ora defendendo” (p. 146).

A 2 de Junho de 1968, a CART 1661 recebe a visita do novo Com-Chefe e Governador-Geral, Brigadeiro António Spínola, que tinha acabado de chegar ao CTIG (p.151). Nas vésperas, as NT tinha sofrido um desaparecido e 7 feridos. O PAIGC, por sua vez, teve uma baixa mortal importante, a do chefe de bigrupo (?) António Cambará (ou Camará ?), na sequência da Op Gato Pimpão (p. 150).

Na Op Gato Pimpão, a CART 1661 actou conjuntamente com forças da CCAÇ 2315 (Mansoa, 17/1/68 – 4/12/69) e do Pel Caç Nat 54 (Porto Gole). Essa operação constou de batidas às matas a norte de Seé e Bissá. As NT foram divididas em dois agrupamentos. Um deles esteve debaixo de fogo durante 3h30 (!), quase ininterruptamente.


Um homem apanhado à mão

O Abel Rei faz uma dramática descrição desta situação que ele viveu intensamente. Vale a pena citar alguns excertos, para termos uma ideia mais precisa do pesadelo em que se podia transformar um simples patrulhamento ofensivo, às portas de casa, bem como da ferocidade em que por vezes se transformavam os combates (Porto Gole, 1/6/1968, pp. 148-150):

(i) Acordado à uma da madrugada, o Abel partiu às 3…“O nosso destino era uma ligeira patrulha nas matas de Seé, a pouco mais de 10 km de percurso” (p. 148)…

(ii) Tudo parece correr, dentro da ‘normalidade’, até às 6 da manhã, quando as NT são avistadas por uma sentinela avançada do PAIGC que dá o alarme;

(iii) À entrada de uma bolanha “rodeada de uma mata espessa”, são emboscados pelos guerrilheiros (leia-se: “inimigos”); após tiroteio intenso, as NT são obrigadas a retroceder; há cinco feridos, entre eles o Capitão da CCAÇ 2315;

(iv) ”Depois avançamos ao longo da mata, com as forças inimigas bem instaladas e a fazer fogo constante sobre nós. Num momento de maior aflição era deixado o capitão e alguns homens nessa dita zona de morte” (p. 149).

(v) Nesse momento, o Abel estava “no meio da bolanha”, oferecendo um alvo fácil ao IN, ouvindo passar por cima de si “rajadas e roquetadas” e vendo os seus camaradas a ‘fugirem’ em direcção de Bissá…

(vi) “Gritei!... Pedi que recuassem!... E vi os turras correrem para os que estavam em perigo. Depois – disse um soldado de nome Pombinho, de quem eu trazia a arma – ‘os turras avançaram, mandando-lhe levantar as mãos e ordenando que se rendesse’. A resposta dele foi uma rajada com uma arma de um ferido, obrigando-os a fugir para o mato” (p. 149)… (Esta descrição é interessante, por duas razões: é reveladora da intenção dos guerrilheiros do PAIGC em fazer prisioneiros: interessava-lhes muito mais um tuga vivo na mão do que tugas dois mortos; e, por outro, o comportamento do Pombinho tanto pode tipificar uma situação de heroísmo em combate, como pode ser sido ditado pelo desespero de um animal acossado pelo medo).

(vii) Há dois grupos de combate que recuperam e reagrupam os que ainda estavam na zona de fogo… “À frente, tudo corria para Bissá. Atrás ficavam duas armas: uma pesada MG e uma ligeira G3; e o pior de tudo, um homem da outra companhia, [a CCAÇ 2315, de Mansoa, ] era apanhado à mão pelo inimigo! (Mais tarde falou-nos de Conacri, via rádio, a informar-nos que se encontrava bem)” (p. 149).

(viii) No regresso a Bissá chegam dois bombardeiros e um helicóptero que faz a evacuação do capitão e de mais dois feridos graves…

(ix) Com apoio aéreo, partem de Bissá às duas da tarde do dia 1 de Junho de 1968, para enfrentar mais três horas, penosas, de caminhada a pé até Porto Gole…

(x) E o relato, dramático, deste dia termina assim: “Apesar de ter poucas esperanças em aguentar essas três horas de andamento, abalei disposto a cobri-las, pois trazia unicamente no pensamento o nome de Porto Gole! (…). Cansado e sem forças, fui o primeiro a chegar a Porto Gole” (p. 150)

Entre os feridos graves (e evacuados) da secção do Abel está o outro cabo, o 1º Cabo Arnaldo Victória Lopes… “Três dias passados após a fatídica ‘patrulha’, o meu corpo anda todo partido, e dificilmente me sai da cabeça o espectáculo daquele infernal tiroteio” (Porto Gole, 3/6/1968, p. 151).

A 4 de Junho o Abel jura ter avistado um “helicóptero dos turras” (sic), a cerca de 3 km de Porto Gole, em pleno Rio Geba, por volta das onze e meia da noite, quando ele estava em serviço de reforço… (pp. 151/152). Miragem, ilusão de óptica, pesadelo ?... Não seria o primeiro militar português a alegar ter visto aeronaves do PAIGC… À distância de 3 km, e à noite, é difícil reconhecer uma aeronave a não ser eventualmente pelo barulho dos motores…

Enquanto Bissá continua a ser flagelada pelo IN, obrigando a um tremendo esforço de reabastecimento do destacamento por parte de Porto Gole, a escrita do diário do Abel vai rareando, devido à “preguiça da caneta” (p. 155).

Numa coluna até Bissá, a 15 de Junho de 1968, Abel dá-se conta, novamente, da dramática situação em que se encontram as tropas locais: “Pude averiguar que as tropas em Bissá estão sem comida e sem bebida. O seu alimento é à base de arroz miúdo comprado na tabanca, a água é escassa e salobra… Na breve conversa que pude ter com os mais responsáveis, foi-me pedido, a título de desespero (sic), o envio de cerveja assim que me fosse possível” (p. 53). A 12 e a 17 de Junho, Bissá é de novo flagelada…

A 20 o destacamento começa a ser reabastecido, com recurso a pessoal balanta, requisitado pela tropa (?), para transporte, a pé, à cabeça, dos géneros alimentícios e outros… O Grupo de Combate do Abel faz a segurança à coluna… “A bolanha está seca e, com o forte calor que faz, tanto nós como os nativos, quase rebentamos com a caminhada. A nós (…) coube-nos fazer o segundo dia de patrulha: ainda faltam mais dois para lá colocar tudo (?)… O júbilo em Bissá é enorme”, como é fácil de compreender (Porto Gole, 21/6/1968, p. 154). Não houve contacto com o IN, que se limitou a observar e vigiar as NT…


Quando a velhice é um posto

O Abel perfaz 18 meses em 4 de Agosto de 1968. A efeméride foi condignamente celebrada: nesse dia, “o álcool fez sentir os seus efeitos, para celebrar a passagem à ‘velhice’ – num novo posto avançado, denominado Fortim, onde me encontro desde o dia trinta de Julho” (pp. 155/156). Recorde-se que a “velhice” na Guiné era um posto e os 18 meses era uma espécie de barreira temporal, a partir da qual se esperava a desaceleração da vivência da guerra e começava a contagem decrescente para a ‘peluda’… A vontade de combater, que já era pouca, reduzia-se a níveis próximos de zero… Aumentavam os casos de indisciplina e até de insubordinação.

O paludismo e a “bicharada” continuam a causar “dores de cabeça” ao Abel.. Como se isto não bastasse, é vítima de um roubo (documentos e algum dinheiro), “desviada da minha mala, no último abrigo onde estive em Porto Gole”, onde estava com mais 12 militares (“entre brancos e negros”)… Um dos suspeitos terá sido “um soldado nativo, que dormia numa cama ao lado da minha, dentro do abrigo” (p. 157). Nada se conseguiu apurar… Entretanto o Abel é destacado para o Enxalé.

Também o Enxalé, onde ele agora se encontra, “cá tá sabi” (22/8/1968, p. 157)… Mas três semanas depois o estado de espírito do Abel parece ter mudado. Eis aqui uma inesperada mas genuína confidência: “O meu estado moral e físico está melhor. Desde a minha chegada à Guiné, foi esta a ocasião em que tomei melhores conhecimentos com a população nativa, com os quais conquistei algumas amizades… E, em suma, maiores efusões de desejos!” (p. 158). Talvez por pudor ou autocensura, o Abel não acrescenta mais pormenores sobre as ‘amizades’ (femininas, obviamente) que fez no Enxalé…

Está aqui um português, de corpo inteiro, que parece ter-se rendido aos encantos das ariscas bajudas balantas (?) do Enxalé… Mas não há bela sem senão… No espaço de um mês, o Abel volta a ser roubado… A 13 de Setembro de 1969 dá conta do desaparecimento da caixa com o dinheiro da venda diária de géneros à população local… Os interrogatórios não deram em nada (p. 159).

A 1 de Outubro de 1968 o Abel celebra 20 meses de velhice… Entretanto “correm boatos de que os turras estão reforçados com elemento cabo-verdianos e cubanos (?)”…Nesta altura também já estava a ser electrificado o destacamento do Enxalé…


O fim (?) de um pesadelo

Mais de um mês depois, a CART 1611 “está finalmente fora do mato”, aboletada no Depósito Geral de Adidos, em Bissau, aguardando ordem de embarque (Bissau, 10/11/1968). Em três linhas o Abel diz-nos tudo sobre o DGA: “A anarquia é total. E extensiva aos nossos superiores. Impossível confusão tão completa. Sobretudo à noite, quando os nosso corpos necessitam de descanso” (…) (p. 162).

Por fim vem a viagem de regresso no Uíge, que parte a 19/11/1968… Na véspera, às 16h, o Abel é metido num batelão que depois o levou ao Uíge… Desta vez, ele tem (tal como o resto da companhia) o privilégio de vir em camarotes (p. 163).

É altura de se fazer um balanço destes 22 meses de vida de um militar:

(i) “No sentido da camaradagem, o meu ponto de visto é excelente” (p. 164);

(ii) “A nível de chefias, nem tudo foi cor-de-rosa (…). Testemunhei algumas injustiças” (...) (p. 165);

(iii) “Agora que o pior passou, a alegria não tem limites, e o meu maior prazer foi finalmente poder dar com os dois pés (sic) nesta vida, a que estive obrigatoriamente submetido” (p. 165);

(iv) “(…) tudo o que ficou escrito [, no meu livrinho, que trazia sempre comigo no dolmã,] não se tratou senão de simples partes vividas” (p. 165);

(v) O autor confessa que acabou por se impor a si próprio a chamada memória selectiva, isto é, “omitir factos tão ruins, que eu nem os conseguia descrever, e com a sua omissão convencer-me de que nunca aconteceram” (p. 166). Podemos tentar adivinhar quais, mas é sempre especulativo... O silêncio do autor é de ouro, mas é uma pena, se ele, passados 40 anos, não satisfaz a curiosidade dos seus leitores e dos seus camaradas do blogue...

(vi) Modestamente reconhece que a sua missão não foi das mais árduas: “outros houve que sofreram muito mais” (p. 166), daí talvez a razão do título do livro, Entre o inferno e o paraíso (eu diria que o Abel conheceu algumas estações do inferno, como todos nós; e que também conheceu um pedacinho do paraíso; em todo o caso, é preciso entender o uso, que se fazia na época, destas duas metáforas, que hoje não podem ter a mesma leitura).

(vii) A última palavra do autor é, com toda a justiça, para os “heróis desconhecidos desta guerra”, todos aqueles “que mais ninguém recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos” (p. 166).

Em anexo ao livro, é publicada a lista das baixas (mais de 70, entre mortos e feridos graves) da CART 1661, da Polícia Administrativa de Porto Cole, e do Pel Caç Nat 54. Num total de 43 baixas, só a CART 1661 teve mais do que 58% motivadas por accionamento de minas (vd. gráfico acima).

Como nota final, é de destacar a honestidade intelectual do autor que recusou a tentação de, décadas depois, “retocar”, “embelezar” ou “rever” o seu diário, escrito entre 1 de Fevereiro de 1967 e 19 de Novembro de 1968. A única coisa que ele terá acrescentado, posteriormente, foram as notas de rodapé, com apontamentos (factuais) retirados da história da CART 1661… Não tenho dúvidas de que o nosso cabo Abel Rei deu um contributo importante, ao escrever e publicar o seu diário, para a compreensão sócio-antropológica do quotidiano dos militares portugueses durante a guerra colonial na Guiné (1963/74)…

É um documento singelo, escrito por um homem bom, recto e simples, dotado de talento literário mas com pouca literacia como a maior parte dos homens da sua/nossa geração (tinha, na época, apenas a 4ª classe), um homem nascido em 1945, de família operária, e que viveu num meio social, como a Marinha Grande, onde havia uma forte tradição de cultura operária, de autodidactismo, e de resistência ao poder político, típicos da aristocracia operária do Séc. XIX e princípios do Séc. XX.

Deliberadamente ou não, o Abel nunca assume a condição de soldado que está ali, no “Ultramar”, como então se dizia, para defender a Pátria. Veja-se a imensa alegria com que ele, tal como todos nós, saúda a ‘peluda’… Percebe-se, ao longo da leitura do diário, que o moral das NT, nomeadamente no subsector de Porto Gole, já era mau, que o PAIGC exercia um forte pressão a sul do Oio, que a situação militar parecia estar a degradadar-se no final do consulado do Schultz, sem que contudo se pudesse dizer que a guerra estava ganha para o PAIGC… Usando as próprias palavras do autor, “era uma guerra que se ia arrastando sem soluções à vista”, de um e do outro lado…

Verifica-se que na época da CART 1661 o destacamento de Bissá é um osso duro de roer para as NT, que é alvo de frequentes ataques e flagelações, mas a verdade é que o PAIGC nunca conseguiu desalojar as tropas da CART 1661 que o defenderam, reforçadas com um pelotão da polícia administrativa de Porto Gole. E não foi, no tempo do Spínola, abandonado, contrariamente ao que aconteceu a outros destacamentos e aquartelamentos, de que já aqui temos falado sobejamente: por exemplo, a Ponta do Inglês (no subsector do Xime), Beli (na região de Madina do Boé), a própria Madina do Boé, etc., etc. (para não falar já no sul, na região de Tombali, sendo o caso mais flagrante o de Gandembel)… Pelo menos em 1973 Bissá ainda existia e continuava a ser atacada pelo PAIGC (segundo testemunho do António Graça de Abreu, quando esteve no CAOP1, em Mansoa).

O Abel teve o mérito de pôr no mapa da guerra da Guiné o nome de Bissá, sobre o qual poucos de nós sabiam alguma coisa. Um camarada nosso que conheceu bem a região de Porto Gole, Bissá e Enxalé, o Henrique Matos, 1º comandante do Pel Caç Nat 52 (1966/68) já aqui veio reconhecer que a manutenção de Bissá foi um erro, possivelmente pelo elevado custo, em vidas humanas, que terá acarretado.

Luís Graça
__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)

24 de Agosto de 2009 > Guiné 1963/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P4881: Memória dos lugares (37): Exposição de armamento capturado ao PAIGC, Bissau 1968 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)


1. O nosso Camarada José Nunes (José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo, BENG 447 (Brá, 1968/70) esteve na Guiné de 15JAN68 a 15JAN70, enviou-nos mais oito fotografias históricas, de uma exposição em Bissau, no ano de 1968:

Camaradas,

Aqui vos apresento uma reportagem fotográfica da exposição de armamento capturado ao PAIGC, pelas nossas tropas, que esteve patente no Forte da Amura durante a visita à ex-Província Ultramarina Portuguesa - Guiné -, do então Chefe de Estado - Américo de Deus Rodrigues Thomaz (1894 – 1987).

Conforme o “material” me for aparecendo, vou enviando para o nosso arquivo bloguista.


PPSh-41 (As célebres "Costureirinhas")

Segundo a Wikipédia a pistola metralhadora PPSh-41, que era conhecida na gíria entre a tropa portuguesa por “Costureirinha”, dada a sua rapidíssima cadência de tiro:

A Pistolet-pulemet Shpagin 41 (PPSh-41) (em russo: Пистоле́т-пулемёт Шпагин 41) é uma variante da Pistolet-pulemet, concebida por Georgii Shpagin, sendo uma das pistolas-metralhadoras mais produzidas em massa na Segunda Guerra Mundial. Utilizada pela União Soviética durante a guerra.

Esta variante veio substituir a PPD, cujo fabrico era cara e demorosa. A PPSh-41 foi concebida para ser uma alternativa mais barata. O seu baixo custo baseava-se em não ter parafusos e todas as partes metálicas serem estampadas.

A PPSh não era somente melhor de ponto de vista de fabrico, a sua superioridade também se alargava a outras áreas. Tinha uma taxa fenomenal de tiro, por volta de 900 TPM (tiros por minuto), tal como uma reputação pela sua durabilidade e necessidade de pouca manutenção. Também se pensava que era mais certeira do que muitas armas de outros países, mais caras e complexas.

Cerca de 6 milhões de exemplares desta arma foram produzidos até ao fim da guerra. A sua reputação e disponibilidade fizeram com que divisões inteiras fossem equipadas com ela.

Os próprios Alemães estavam bastante impressionados com a arma, e usavam-na sempre que a capturavam. Devido às dimensões semelhantes do cartucho, 7.62 x 25 mm e 9 mm, somente era necessário um bom adaptador de munições para converter a PPSh-41 para disparar munição de MP38/40. A Wehrmacht oficialmente adaptou a PPSh-41 convertida como a MP717(r).

A PPSh, sobreviveu à guerra, e quer a sua facilidade de construção quer a grande quantidade de unidades disponíveis serviram para apoiar muitos movimentos guerrilheiros apoiados pela URSS.

No entanto, a PPS, apresentava alguns problemas. Ela encravava bastante, especialmente na sua versão de tambor, e a sua alta cadência de tiro, e facilidade de disparo faziam com que rapidamente se gastassem as munições disponíveis, o que provocava inevitavelmente problemas logísticos aos movimentos guerrilheiros. Além disso, em florestas densas, a sua relativa fraca potência tornava-a uma arma relativamente ineficiente.

Identificação
Tipo: Pistola-metralhadora
País: União Soviética
Inventor: Georgii Shpagin
Data de projecto: 1941
Período de produção: 1941
Número de unidades fabricadas: 6.000.000
Tempo em serviço: 1941

Características:
Calibre: 7,62 x 25 mm TT
Operação: Blowback, culatra aberta
Cadência do Tiro: 900 t.p.m.
Velocidade de saída do projéctil: 488 m/s
Alcance eficaz: 200 m
Peso: 3,63 kg
Comprimento total: 843 mm
Comprimento do cano: 269 mm
Alimentação: carregador curvo de 35 munições ou tambor de 71

(in Wikipédia, enciclopédia livre)

Lança granadas RPGs e respectivas granadas

Metralhadora pesada Degtarev Shpagin c/ bipé e canhão sem recúo

Metralhadora pesada Degtarev Shpagin c/ bipé

Metralhadora pesada Degtarev Shpagin c/ bipé

Metralhadora pesada Degtarev Shpagin

Morteiro82 e Metralhadoras ligeiras

Canhão s/ recuo

Um Abraço de Amizade,
José Nunes 1º Cabo do BENG 447

Fotos: © José Nunes (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de MR:

Vd. último poste da série em:

sábado, 29 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4880: História da CCAÇ 2679 (24): Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda e mazelas (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 25 de Agosto de 2009:

Carlos,
Anexo mais um pedaço da lenga-lenga que reporta algumas passagens da 2679 por terras do leste da Guiné. Já assentámos em Bajocunda, onde os dias tranquilos só esporadicamente serão interrompidos por acções do IN, na forma de flagelações aos aquartelamentos, na colocação de minas, e fazendo emboscadas. Das eventuais emboscadas só uma foi concretizada, e foi a CCA que teve o privilégio de a apanhar. Das restantes duas conhecidas, ambas dedicadas ao Foxtrot, a seu tempo darei notícia do que aconteceu.

História da CCAÇ 2679 - 24

Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda


A Companhia de Comandos Africanos ainda permanecia em Bajocunda, dando, naturalmente, apoio operacional. Por esta altura a 2679 estava mais vocacionada para as tarefas da quadrícula e todas as noites enviava um Gr Comb para Tabassi, onde a autodefesa era uma miragem. Por outro lado, mantinha outro destacado em Copá. Os patrulhamentos e emboscadas nocturnas competiam, maioritariamente, aos Comandos. No que respeitava às deslocações em colunas, a 2679 garantia a maior parte delas.

No entanto, uma ocasião calhou a um Gr Comb da CCA fazer uma coluna a Nova Lamego. Tratava-se de uma escolta a uma coluna de reabastecimento, que também incorporava viaturas civis carregadas de mercadoria para Bajocunda, prevenindo o eventual corte da estrada por efeito do crescimento das linhas de água.

Não me recordo qual dos Gr Comb teve esse incumbência, mas lembro que o Teixeira, o sagento careca que usava uma mosca proeminente, participou na viagem.

No regresso, na zona encharcada do pequeno pontão, entre Pirada e Tabassi, onde se abrandava porque o nível da água cobria a estrada e o pontão, ocorreu uma emboscada.
Não estava lá, pelo que não sei com rigor o que aconteceu. Mas ficámos a saber que as NT reagiram pronta e eficazmente, repelindo o IN que retirou em direcção ao Senegal.

Na tropa não houve baixas a registar, mas uma viatura civil Bedford, carregada de mercadoria, deve ter sido atingida por um rocket que a afectou no rodado traseiro do lado esquerdo, destruindo-o, e impedindo a continuação da marcha. Na cabine, o condutor, um guinéu, não teve oportunidade de se proteger e morreu vítima de alguns tiros disparados para a porta, perfurando-a. Obras de alguns bons atiradores do IN, que estariam a pouca distância. Nada mais foi molestado. A mercadoria foi transferida para viaturas militares e a chagada a Bajocunda aconteceu com o cair da noite.

Não houve notícia de outras baixas e, nessa noite, foi necessário montar segurança no local para salvar o destroço, encaminhando-o no dia seguinte para o aquartelamento, onde se mantinha na data do meu regresso. No auto de abate e destruição, suponho, aquela viatura estaria carregada com muito mais mercadoria do que efectivamente transportava.


As mazelas

Referi anteriormenteque o Foxtrot andava com um deficit de pessoal, em resultado de situações de incapacidade temporária, ou, mais raramente, por gozo de férias. Na verdade foram poucos os que gozaram férias durante a comissão, porque sendo o pré uma minguada importância que se esgotava numas cervejolas, poucos podiam contar com o auxílio familiar para se deslocarem à Madeira, ao Continente, ou mesmo na Guiné. Abdicando do direito às férias, o seu contributo à Pátria era maior do que seria exigido, aumentando o castigo dos mais desfavorecidos.

Entretanto, a doença alastrava. O paludismo, frequentemente, atacava um ou outro. Em Piche tive essa experiência, com febres altas e o corpo quebrado, incapaz e apático para o que fosse. Mas as injecções de Resochina (pronuncia-se resoquina) que o Vitor ministrava, retornava-nos à vida em 4/5 dias. Reincidirei em Bajocunda com novo paludismo, apesar da grande redução de mosquitos relativamente à região do Corubal, e à maior exposição consequente.

Ainda em Piche, uma ocasião, seriam 15h00, tinha regressado de uma coluna ao Gabú e estava a comer uma sopa liofilizada e restos que sobraram na messe, quando me chamaram ao Major de Operações, que tinha notícia de movimentos do IN próximo do Corubal, a SW, e era imperativo que arrancasse nessa direcção.

Foi um frete e uma correria, parecia que aumentava o peso das armas, caregadores e cantis, toc-toc, cantis que se esgotaram de água num esfregar de olho. Na passagem pela bolanha, corria o suor em bica e ressentiam-se as pernas, cavei com as mãos até encontrar lama, de que enchi o cantil e chupei através do lenço, em função de filtro, para, a seguir, voltar a enchê-lo numa água parada, sem quaisquer condições, e saciar-me da sede a que sucumbia. Estas atitudes aconteciam com a consequente ingestão de micro-organismos que nos devassavam por dentro, com o mesmo ímpeto com que os turras queriam limpar-nos o sarampo do corpinho.

Também por isto, viria a passar uma temporada no Hospital, vitima de uma amibíase, cujas amibas me beberam os glóbulos vermelhos.

Por influência de uma qualquer bactéria, apareceram alguns casos de testículos inchados, imponentes, que não só constituíam grande sucesso fotográfico, como presenteavam as vítimas com a necessária deslocação à consulta externa.

A par destas maleitas, também abundava a micose, doença típica da nossa inadaptação ao território e ao clima. As micoses são provocadas por fungos, e era nas virilhas que mais se revelavam. De facto, os nativos usavam o chamado saco de merda, que consistia nuns calções largos, fechados na cintura e nas pernas, provocando uma caixa de ar envolvente às partes genitais que garantiam alguma frescura e ligeireza. Ao contrário, nós, produtos da civilização, usávamos cuecas apertadas, que roçavam e danificavam as transpiradas virilhas, abrindo caminho aos fungos inimigos e à micose, com o prurido castigador. Disso fui grande vítima sem ganhar juízo. Nem pomadas, nem o iodo, nada me valia, só o clima seco da Europa veio tranquilizar-me.

Inesperada foi a morte do soldado Aguiar, um madeirense atinado, que teve o azar de, no remoto quartel de Bajocunda, sem médico nem meios de diagnóstico, ter sido medicamentado para paludismo, face à elevada febre e à falta de forças que apresentava, de que levou dois tratamentos sem os resultados pretendidos. Evacuado de urgência, entrou no avião combalido. Terá saído em Bissau vítima de meningite.

Esta narrativa não esgota o rol de mazelas que afectavam a tropa. As do foro psicológico também eram frequantes, com manifestações inopinadas, mas, felizmente, no Foxtrot não ocorreram para além das divertidas maluqueiras do quotidiano.

Por fim, não se tem falado muito nisso, mas alguns militares deram tratamentos desajustados às figadeiras, alguns, provavelmente, com reflexos na vida futura.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4793: História da CCAÇ 2679 (23): Questão bicéfala (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P4879: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (5): A CART 676 chega a Pirada

1. Neste episódio de Gavetas da Memória de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, assiste-se à chegada da 676 a Pirada.


Guiné-Bissau, Out64
A CART 676 chega a Pirada


Após os primeiros 5 meses de permanência em Bissau, onde a CART 676 se desdobrou nas mais variadas missões: patrulhamentos de rotina nos arredores da capital, serviço de manutenção do aquartelamento do Batalhão 600, e principalmente ter desempenhado papel importante (extenuante e perigoso) em cinco grandes operações mandadas executar pelos altos comandos militares, a norte e a sul de Bissau, nas primeiras tentativas para combater uma ameaça que já se adivinhava muito séria, finalmente a Companhia foi enviada para uma missão de quadrícula, isto é, foi ocupar uma determinada zona a nordeste do território, junto à fronteira com o Senegal, para reforçar o policiamento de uma área que se temia passar a ser, a breve trecho, campo de acção privilegiada do inimigo.
Felizmente isso não se veio logo a confirmar e, pode-se dizer que a CART 676 passou aí umas boas e merecidas férias.

Até à nossa chegada, Pirada, Bajocunda e Paúnca, estavam entregues a pelotões de soldados nativos, comandados por alferes e furriéis brancos que coitados pareciam mais uns pobres náufragos famintos quando nos vieram receber de braços abertos, felizes por verem de novo gente igual a eles. Entregues a uma inércia embrutecedora, estavam à beira, com certeza, de um qualquer colapso físico ou psíquico a avaliar pelas suas caras onde se espelhava uma desmesurada e incontida alegria por verem acabado aquele calvário.

A Companhia não se deslocou toda de uma vez. Primeiro foi o 1.º e o 2.º Grupos de Combate, e mais a secção de Comando e Serviços da própria Companhia. Seguia connosco também o alferes médico para verificar e estabelecer as condições sanitárias do aquartelamento. Enquanto o 1.º Grupo e a secção de Comando e Serviços se dirigia directamente para Pirada, o 2.º Grupo ficou logo em Paúnca onde já tinha instalações mais ou menos adequadas.

Quando entrámos em Pirada tivemos logo uma recepção entusiasta por parte da população que nunca tinham visto tanta tropa junta. Foi uma festa que os soldados quiseram logo aproveitar, abraçando as mais desprevenidas bajudas que lhes caíam nas mãos, de mistura com os restantes elementos da população, para disfarçar…

Um dos comerciantes locais, apareceu logo com um criado que sobraçava um enorme cesto de pão acabado de cozer no forno privativo do seu estabelecimento e, começou a distribuí-lo pelos soldados que o fitavam boquiabertos com a surpresa.

Pirada, naquela época, resumia-se a uma rua de terra batida que tinha a meio uma espécie se praceta, com um pequenino monumento e tudo.
Para a esquerda era o caminho para o aglomerado populacional, as palhotas.
Para a direita o caminho levava a uma pequena pista de aviação. Em cada canto desta praceta, erguiam-se quatro edifícios caiados e com telhados de telha. Eram as casas comerciais, representantes locais de outras sediadas em Bissau. Seguindo sempre em frente chegávamos à fronteira com o Senegal, ali a escassos metros. A meio caminho erguia-se a casa do Chefe de Posto e o edifício do Posto Sanitário, ao lado, um celeiro de mancarra que provisoriamente servia de quartel para um pelotão indígena. Era ali que a Companhia iria residir… 150 homens, mais ou menos, iriam ficar alojados onde anteriormente estavam pouco mais de 30…

O 1.º sargento Machado, velho militar transmontano, já muito batido naquelas andanças de trocas e baldrocas de aquartelamentos, depressa se pôs em campo para avaliar a situação.

Depressa vieram as más notícias. As instalações eram piores do que imaginávamos. As camas existentes estavam impróprias para continuarem a ser utilizadas. As enxergas, se àquilo lhes poderíamos chamar assim, eram autênticos viveiros de percevejos e bicharada. Claro que dei logo ordens para juntar tudo num monte à porta da caserna e chegar-lhe fogo, para nos livrar de tal peste.
(Para meu espanto, passados meses, recebíamos mensagens da Sargentada da Manutenção de Bissau, a exigir a devolução daquelas enxergas! Foi um caso sério para os convencer que não tinha havido outra alternativa senão queimá-las)

Instalações sanitárias não havia, nem cozinha, digna desse nome. Era tudo improvisado, à preto que, coitados lá se amanhavam com o pouquíssimo que lhes davam. Nem conseguíamos imaginar como tinham conseguido aguentar até ali. O alferes e o furriel que lá fomos encontrar com a farda em farrapos, responsáveis por aquela tropa fandanga, embaraçados, coçavam a cabeça. O que quiseram foi entregar-nos, o mais depressa possível, os pobres pertences que possuíam e, rapidamente desapareceram da nossa vista, estrada fora a caminho do Gabú.

Desanimados, mas ao mesmo tempo alegres por terem chegado até ali, sãos e salvos e, esperançados de que o amanhã seria melhor, os soldados deitaram mãos ao trabalho e, embora tivessem que dormir no chão, naquelas primeiras noites, a caserna ficou com melhores condições de conforto e higiene.
Para alojar os sargentos e os oficiais também se arranjou solução. O nosso amigo comerciante que tinha encabeçado a recepção às tropas recém-chegadas, também já tinha pensado nisso.

Como de propósito tinha mandado arranjar uma casa, situada nas traseiras de um dos estabelecimentos comerciais que, chegava para albergar os dois oficiais e alguns dos furriéis. Os que não couberam, foram alojados pelo Chefe de Posto, o senhor Barbosa, um simpático velhote que vivia sozinho e ansiava por companhia. A casa que ocupava era demasiado grande para ele e de certo modo até ficava mais resguardado a dormir debaixo do mesmo tecto que a tropa.

Ao fim da tarde do dia da chegada, tudo tinha ficado mais ou menos tratado.
Depois de um retemperador banho de bidão e de um opíparo jantar para os oficiais e sargentos, em casa do nosso anfitrião, o nosso futuro anjo da guarda, Mário Rodrigues Soares era assim que ele se chamava, sentíamo-nos num paraíso até aí inimaginável.

Passados mais de quarenta anos recordo ainda como se fosse ontem.
Viana do Castelo, Agosto de 2009
Carlos Geraldes

Pirada > Cozinha improvisada

Pirada > Os primeiros chuveiros dos Soldados

Pirada, 01DEZ64 > Eu, Cap Seco, Alf Correia e o professor António Óscar Baldé

Pirada, AGO65 > Cap Barão da Cunha, Cap Tadeu, Alf Médico Duarte e eu
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4865: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (4): Abel, o nosso Cabo Maqueiro