quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4966: História da CCAÇ 2679 (26): Passeio fronteiriço e, A GMC e o coelho na coluna ao Gabú (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 12 de Setembro de 2009:

Carlos, camarada,

Mais dois nacos de prosa a ver se consigo dizer alguma coisa.
Como habitualmente espero que tenhas a paciência necessária, que antecipadamente agradeço.

Para ti e para a Tabanca vai um abraço fraterno.
José Dinis


Passeio fronteiriço

Entranhámo-nos no mato que adensava. Curiosamente o trilho desaparecera, mas, segundo a minha orientação, seguia numa direcção paralela à linha de fronteira, no sentido de Oeste para Leste. Se por um lado a caminhada era dificultada pela falta de caminho aberto, por outro, a sombra quase constante reconfortava do sol impiedoso. O patrulhamento prosseguia. Tínhamos que andar até outro trilho de ligação ao Senegal, observar eventuais sinais de actividade do IN, e interrogar algum paisano que circulasse entre aldeias de cá e de lá, na medida em que havia ligações familiares de cada lado dos marcos fronteiriços.

Depois de algumas horas de passeio inclemente, abancámos na orla de uma mata para o magnífico repasto proporcionado pela ração de combate proveniente da Manutenção Militar, marca exigente que contratava com os melhores fornecedores, devidamente acompanhado por casqueiro da Companhia e água da bolanha. Ninguém levava cerveja porque com tanto calor tornava-se quase indigesta.
Comia-se por obrigação, sem prazer, fartos do paladar do chouriço, da espécie de paté, da marmelada espremida de um tubo. Mas era o que dispúnhamos, e o que tem que ser, tem muita força. Da ração de combate só o leite achocolatado era geralmente incontestado.

Era um dia seco e quente no fim da época das chuvas. O pessoal descontraía-se na medida do possível, já que o IN também não se deslocava àquela hora. Dormiam alguns, galhofavam outros, e havia quem se isolasse com o pensamento no belo sexo da namorada.

Em certa ocasião, porém, já com o pessoal desperto, aproveitei qualquer alusão a acontecimentos fatais em consequência da guerra, para voltar ao assunto e, através da conversa, apurar a evolução do grupo, no que respeitava às capacidades lúcidas em situação de combate, e ao determinismo de cada um.

Ainda houve quem me respondesse que faria fogo de rajada, com intenção de intimidar o IN e mantê-lo à distância. Voltei a advertir que essa reacção era típica dos cobardes, tonta e perturbadora do grupo. Referi que cada tiro dado devia corresponder a uma intenção objectiva para eliminar o adversário. Que ninguém devia iniciar uma acção de fogo sem o meu consentimento. Que não perdoaria, se fosse nossa a iniciativa. Em caso de reacção, a cada tiro disparado teria que corresponder um inimigo abatido, e disso também não abria mão.

No geral, porém, a lição estava sabida, apenas notei que dois ou três nunca teriam a iniciativa de disparar, limitar-se-iam a fazer o que vissem fazer, nem imagino com que resultados. Repisei a ideia de que em situação extrema de guerra, em combate, o nosso êxito dependeria essencialmente da acção coordenada do grupo, e que a comunicação entre nós era primordial. Acrescentei que em caso de sermos atacados, devíamo-nos dispersar um bocadinho, sempre com a maior cautela, para garantirmos um espaçamento de segurança, e aparentar maior capacidade de resposta; e afastarmo-nos das viaturas e das árvores para evitar estilhaços de eventuais rebentamentos. Somente nos extremos do Pelotão deveriam estar pelo menos dois elementos, para melhor controle da situação. E devíamos ser tão calmos quanto possível para permitir a comunicação oral, gestual e visual.

Volta e meia era um chato, mas as noções parecia terem sido apreendidas e não houve sinais de enfado.

O pessoal agora brincava, que uns seriam nabos à vista do inimigo, e estes ripostavam que não lhes pedissem ajuda pelas aflições. Era bom o espírito e sedimentava a organização do Foxtrot. Intimamente só desejava que não houvesse necessidade de praticar estas teorias. Entre nós não havia vocações para heroísmos. Se esses actos acontecessem, que fosse pela melhor intuição para salvarmos a pele. Mesmo assim ainda deixaram uma critica velada, que alinhávamos demais, que tínhamos mais mato que os outros Pelotões, que parecia que eu gostava daquelas andanças.

Levantámos ferro de regresso a Bajocunda. No local deixámos as embalagens da M.M. como prova de que nos deslocávamos em toda a ZO da Companhia, mas em desacordo com as emergentes teorias ambientais.


A GMC e o coelho na coluna ao Gabú

Como periodicamente acontecia, calhou ao Foxtrot fazer a coluna a Nova Lamego. Todos os dias era garantida a picagem de Tabassi para Bajocunda pelo Pelotão que ali se deslocava para passar a noite. Entre Tabassi e Pirada competia a esta garantir a picagem. No sentido de Pirada para Nova Lamego não sei como se processava, mas não tive conhecimento de qualquer engenho ou acção do IN naquele percurso que, para nós, era da maior confiança, relativamente à ligação directa de Bajocunda para Gabu, menos quilómetros, mas piso mais difícil e segurança menos fiável. Acresce referir, que em Pirada morava o comerciante com melhores relações, quer com as autoridades senegalesas, quer com o IN, segundo alguma especulação. Por isso, só raramente nos deslocávamos pela estrada Bajocunda/Nova Lamego.

Como de costume, ao aproximar-me das viaturas, apesar do secretismo da organização, já se alojava nas carrocerias uma quantidade indeterminada de civis, principalmente mulheres, crianças e velhos, com animais domésticos para negócio ou oferta, mais sacos de milho ou mancarra. Como de costume, também, dirigi-me ao Capitão questionando-o se se responsabilizava pela segurança dos civis, ao que, repetidamente, ele respondia que era comigo levá-los ou não.

Devo referir que a minha atitude derivava de um auto de corpo-delito levantado a um alferes da anterior Companhia de Artilharia em Bajocunda, que ficou em Bissau a aguardar a decisão da Justiça Militar, em resultado da responsabilização pela morte de um civil a quem dava boleia, que se finou por ter dado uma cabeçada numa árvore durante a deslocação da coluna que ele comandava. Nestes considerandos eu não autorizava boleias a civis, era o único a proceder assim, e havia toda uma reacção daquela gente que, primeiro faziam-se desentendidos das minhas indicações, depois saíam das viaturas com a tralha e um argumentário pesaroso.

Ora, em primeiro lugar eu estava ao serviço do Exército Português, não ao serviço da população; em segundo lugar, se o Capitão se demitia de alguma acção social, não seria eu quem iria arvorar-se em bom samaritano, e correr riscos desnecessários. Naturalmente atraía o odioso da questão, mas não era relevante para mim.

A coluna deslocava-se como habitualmente, até que, no cruzamento de Sónaco, fizeram-me sinal para parar. Uma GMC estava no limite da temperatura do motor. Aberto o capot foi com surpresa que vi a cabeça do motor com a cor do fogo, dir-se-ia que prestes a fundir. Causou a admiração de todos, e logo aquela viatura que se destinava a carregar mercadoria. A razão era simples: fizera cerca de quarenta quilómetros sem correia de ventoinha, o que era absolutamente fantástico.

A coluna prosseguiu rebocando a velha GMC que, depois de passar pela oficina, regressou a Bajocunda cumprindo a função.

No Gabu, o pessoal precedeu às diligências do costume, carregavam a importante cerveja e demais mercadoria, alguém ia ao correio levar e trazer a correspondência, enquanto eu me apresentava ao Major que não me ligava peva.

Depois estávamos livres para almoçar.

Tinha por costume passar por um bar em frente ao Comando, lugar centralíssimo, onde o pessoal de diversas proveniências costumava afluir. Por vezes encontrava malta conhecida, trocávamos dois dedos de conversa, tomávamos cerveja ou aperitivo, martini ou gin, até abalarmos para comer.

Não sei como nem porquê, em Nova Lamego gostava de me encher com o coelho guisado, acompanhado por duas ou três cervejas, que amainavam o calor acentuado pelo guisado picante. Era a especialidade do último restaurante à direita, no inicio da estrada para Sónaco, no limite da localidade. O clima da Guiné não parece apropriado à criação de coelhos, e o negócio dos produtos congelados, naquele tempo, não estaria tão desenvolvido que fizesse chegar coelhos ao leste da Guiné. Tudo o indica, e cochichava-se, que comíamos gato por coelho. Mas era bom.

Pelas duas, duas e meia, uma viatura dava a volta pela localidade, recolhia o pessoal e regressávamos a casa, cerca de duas horas de viagem. Era quando o calor mais abafava. Depois do cruzamento para Pirada, e um pouco de andamento, chegávamos a uma fonte, e uma espécie de tanque, onde as lavadeiras exerciam o seu mister. Sobre a viatura eu transpirava abundantemente, em resultado da digestão, combinada com o calor ambiente.

Nesse lugar havia paragem obrigatória. Eu descia, cumprimentava as mulheres, e servia-me daquela sabonária enriquecida com insectos e outros pequenos organismos. Bebia uma cabaça daquela água. Não morria de sede, mas podia lerpar da aleivosia.
Depois disso era acelerar até Bajocunda.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4908: História da CCAÇ 2679 (25): Conversa com o Januário (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P4965: Os Nossos Enfermeiros (6): Os Nossos Anjos da Guarda (Joseph Belo)

1. Texto de José (Joseph) Belo (*), ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia, enviado em mensagem com data de 11 de Setembro de 2009:

Os nossos Anjos da Guarda

Muitos louvores foram dados a operacionais, e ainda mais foram atribuídos a muitos que, em seguras Repartições de Comando movimentavam... papeis!

Estranhamente, os camaradas dos grupos de enfermagem foram sempre os grandes esquecidos de um mais que justo reconhecimento oficial. Colocados nos Pelotões, eram em verdade, atiradores operacionais... com uma sacola de enfermeiro a tiracolo. Muitas das vezes, os riscos assumidos eram ainda maiores que os dos restantes companheiros de Pelotão. Em reacção humana instintiva, corriam debaixo de fogo intenso tentando auxiliar os feridos bem expostos na picada.

Enquanto nós, empunhando a G3 fazíamos fogachadas intensas (algumas úteis), os enfermeiros tinham ambas as mãos ocupadas com ligaduras, pensos, morfinas e soros. A solidariedade para com os camaradas que sofriam, fazia esquecer tantas vezes a arma, colocada no solo ao lado dos feridos. Nas colunas de reabastecimentos, nas picagens das estradas, nas emboscadas, nos assaltos a acampamentos, nos destacamentos mais isolados da mata, não nos acompanhavam nem médicos, nem senhores oficiais superiores (os tais que tanto gostavam de receber louvores), nem mesmo sequer... capelões!
Tínhamos, sim, como único anjo da guarda o nosso enfermeiro, que muitas vezes se preocupava mais connosco, que nós próprios. Quantas pensagens de membros amputados por minas? Procuravam literalmente com mãos nuas, e recorde-se o material que dispunham, aguentar a vida de um camarada, e tantas vezes amigo.

Nos destacamentos isolados, à falta de psicólogos profissionais, eram os confidentes. Desde os dramas pessoais relacionados com problemas familiares graves, até conversas amigas em que os medos e receios se ventilavam junto do pastilhas que a todos atendia, e principalmente... ouvia!

Desde as diarreias aos paludismos, à pouca vontade de amanhã participar na picagem da estrada por causa de uma má fesada, tudo somado à assistência às populações com partos, pequenas cirurgias, etc, etc, etc.

José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada (1968/70), todo artilhado só para a fotografia, pois havia tomado a opção de não usar nunca a G3, já que as suas armas eram os apetrechos de saúde.

Tive a sorte de compartilhar o 2.º Pelotão da CCAÇ 2381 com o nosso camarada de blogue Zé Teixeira, o nosso inesquecível pastilhas.

Para todos os que têm lido as suas inúmeras contribuições para o blogue, bem pouco se poderá acrescentar. De profunda formação humana, em que a solidariedade, a camaradagem e a incrível qualidade Cristã de procurar sempre explicar o inexplicável, foi um exemplo perfeito dos referidos anjos da guarda.

Quarenta anos já passados, nem os camaradas da Companhia, nem a população de Mampatá o esquecem.

Haverá melhor louvor Oficial, meu querido Camarada Maioral?

Estocolmo 11/9/09
José Belo
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4709: Da Suécia com saudade (José Belo, ex-Alf Mil, CCAÇ 2381, 1968/70) (7): O meu tecto mais não é que o soalho do vizinho

Vd. último poste da série de 15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4960: Os Nossos Enfermeiros (5): Os Enfermeiros dos Lassas, na lama e no duro (Mário Fitas)

Guiné 63/74 - P4964: Os Unidos de Mampatá, por Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74 ) (3): Onde mora o perigo

1. Mensagem de Luís Marcelino, ex-Cap Mil, CMDT da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74, com data de 8 de Setembro de 2009:

Luís Garça e equipa editorial
Com um abraço de muita amizade, aqui deixo mais um apontamento sobre a vivência da CART 6250 em Mampatá - Guiné.
Um pequeno episódio que mostra um pouco o cenário em que se viveu.

Luís Marcelino


OS UNIDOS DE MAMPATÁ (3)

Onde mora o perigo


Como já anteriormente referi, a partir de finais de 1972 e boa parte de 1973, a actividade principal de CART 6250, foi fazer segurança à construção da estrada entre Aldeia Formosa e Nhacobá, para o que fornecia, por norma, diariamente, dois grupos de combate.

Um dos trabalhos que invariavelmente se fazia todos os dias, logo de manhã, antes da chegada dos homens e máquinas da Engenharia, era efectuar a picagem do acesso e zona de trabalhos com vista a detectar eventuais minas que pudessem ser colocadas nesses locais.

Foi o que aconteceu no dia 29 de Janeiro de 1973.

Estabelecido o esquema de segurança, como era norma naquelas circunstâncias, logo de madrugada iniciaram-se os trabalhos que consistiram em montar um dispositivo de segurança na frente e laterais da zona de trabalhos da Engenharia.
Enquanto se montava este dispositivo de segurança, o GCOMB incumbido de fazer a picagem de todo o acesso ao local onde iriam decorrer os trabalhos, procedeu à referida picagem.
A determinado momento, um dos militares picou num ponto que indiciou existir uma mina.

Dado o alerta, todo o efectivo parou adoptando a atitude adequada de segurança.
Chamado o Furriel de minas e armadilhas que fazia parte da força, examinou o local, confirmando existir ali uma mina anti-carro, colocada num local onde passaria o rodado de qualquer viatura que por ali passasse.
Como era provável que pudessem por ali existir mais minas, procedeu-se à picagem minuciosa de toda a zona envolvente.

Encontraram-se mais 12 minas anti-pessoais, colocadas junto a árvores ali existentes. Todas foram levantadas com sucesso.

Quanto à mina anti-carro, depois de devidamente descoberta, o Furriel dispunha-se a levantá-la.
Não o autorizei, dando-lhe indicações de que deveria utilizar a corda que existia para o efeito.
Respondeu-me que não a tinha trazido, que tinha ficado no quartel, e que certamente conseguia levantá-la.
Não obstante a boa vontade do militar, exigi que se fosse buscar a corda, aguardando-se o tempo necessário para isso.

Lá foi ao quartel buscar a referida corda.

Regressado, colocou o grampo existente na extremidade da corda lateralmente à mina e, depois de todo o pessoal estar a distâncias e condições de segurança, a corda foi esticada.
Logo que foi puxada, deu-se um enorme estrondo e abriu-se no local um grande cratera.
Como era evidente, a mina estava armadilhada!

Naturalmente o Furriel ficou pálido e nem queria acreditar no que via.
A sua vida podia ali ter sido ceifada bem como a de outros em paga de uma ingénua generosidade.

Curioso também foi o local onde estavam as minas anti-pessoais; colocadas junto às árvores, eram os locais naturais onde o pessoal se abrigaria para se proteger, uma vez ouvido o barulho do rebentamento da mina anti-carro, caso não fosse detectada.

Na verdade, nunca ninguém sabia onde morava o perigo.
Ele espreitava em todo o local e de muitos modos.
O que era preciso era estar atento, não confiar e... sorte.

Uma equipa de minas e armadilhas em plena actuação na estrada Mansabá/K3

Mina AP PMD-6, muito utilizada pelo PAIGC

Mina AC TM-46, levantada no Bironque, estrada Mansabá/K3, com auxílio de uma corda, como mandavam as regras de segurança.

Fotos de David Guimarães e Carlos Vinhal
Editadas por Carlos Vinhal

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4697: Os Unidos de Mampatá, por Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250 (Mampatá, 1972/74 ) (2): Descuido fatal!

Guiné 63/74 - P4963: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (19): Em noite e dia de "cerrar dente"

1. Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69, com data de 9 de Setembro de 2009:

Caro Carlos
Parece que continuas de serviço. Certamente apanhaste alguma porrada e nós não sabemos.

Há muito, muito tempo que não escrevia nada e não escrevi. Acontece que arrumei escritos e eteceteras para facilitar formatações e novo alinhamento na informática.

Estou, pensou eu, novamente de saída. Como bom Mouro vou até terras de moirama. Apalpo a areia, ponho o velho lenço avermelhado, mais grenad, com as luas, em quarto crescente ou minguante, as estrelas e outros simbolos do Islão e, quando o Sol aquece muito derramo água pelo lenço turbante - há dias atrás postaste uma foto minha com um lenço, esse era o azul da Cart, na cabeça - Gostos. Refresca...

Isto tudo para te dizer que devo voltar a sair; que falam nos médicos, e bem, mas há um, infelizmente desaparecido, que eu recordo com saudade: - o David Payne. Ia para as Companhias no mato. A prova está numa foto dele a fazer pequena cirurgia, quase á luz da vela na minha Cart. Foi médico do Bat 2852 em Bambadinca 68/69. Padrinho do Mário Beja Santos, creio eu, quando estava já em Bissau.

E,nas arrumações, encontrei esse escrito de Fev/09. Teria sido enviado? Perguntei-lhe mas ou por indisposição ou mau feitio nada disse. Sacana. Anexo o dito.

Um abraço forte, não tamanho de nada, só forte e fraterno. Estendo outros aos restantes Editores e a todos os Camaradas desta Tertúlia enorme.

Um abraço Carlos Vinhal do Torcato



Pensando em voz alta em noite e dia de “cerrar dente”!

1 – Pergunto, não ao vento, mas às horas que passam, na noite calma, no silêncio, quase em misantropia, respostas para interrogações e dúvidas minhas advindas de transformações, divergências, nas diversas maneiras de relatar o facto ou o acontecimento vivido.

Não podemos ter a pretensão da igualdade do relato, individual, se foi vivido colectivamente. O relato posterior diverge sempre. Parece-me natural e até desejável que assim seja. As contradições, se analisadas calmamente e em busca de consenso, a maioria, são, desde logo superadas. Outras, fruto de orgulhos ou outros sentimentos menores, tornam os relatos irredutíveis no consenso. Dispensáveis e, salvo se houver a pretensão de tornar a discussão absurda, nunca se encontra a verdade. Subsiste ainda o esquecimento fruto do passar dos anos, décadas no caso vertente, e à consequente evolução do nosso próprio pensamento. Ou seja: o relato, dos factos há décadas passados terá que ser forçosamente relatado, não só em apelo à memória mas à maneira ou à forma do pensar de outrora. Difícil? Evidente. Mas assim aproximamo-nos mais da realidade passada, vivida e, se relatada, mais próxima do acontecido.

Em fundo tenho música tirada do Korá mandinga de Braima Galissá.

Estou louco? Não. Se assim pensas é porque não viveste o que eu vivi. Vidas!

Mas no futuro, que se quer breve pois há muito tempo perdido, têm que se discutir com frontalidade e objectividade certos temas.

Porque não já hoje?

Não particularizo qualquer caso. Todos nós pensamos, de imediato, num ou noutro. O blogue, este sítio é certamente o lugar para se contarem estórias, analisarem acontecimentos controversos e, por isso mesmo, serem contributos válidos para a história da guerra da Guiné. Não só da guerra mas de vários assuntos que necessitam ser tratados. Não posso dissociar a guerra da Guiné da guerra colonial noutras frentes. Só que aqui é, quanto a mim, preferível ser tratada, por quem viveu lá os acontecimentos e faz o seu relato.

Outro ponto é este tratamento ser feito por militares não profissionais. Nada tenho contra a Instituição Militar ou os profissionais. Vinquei em mim certa maneira de pensar, certo tipo de comportamento que se deve a esse tempo e, ainda hoje, se mantém. Pode e deve ser discutido também por profissionais. A guerra não era feita por eles? Evidentemente que os profissionais eram minoria e faziam comissão atrás de comissão. Aliás muitos profissionais dão aqui o seu contributo e, muitas vezes a eles se recorre no tirar de certas dúvidas.

Isso é assunto a merecer um tratamento e uma discussão própria. Parece-me, no entanto, que é assunto de consenso.

De quando em vez aparece um assunto ou um tema a suscitar maior divergência, por fugir do habitual;

De quando em vez fica o relato, a divergência a merecer um maior aprofundamento;

De quando em vez este blogue parece um bi ou tri blogue, devido a diversidade de assuntos tratados;

Não de quando em vez mas sempre, é obrigatório encontrar o consenso.

Utópico?

Não, nada disso. Entre Homens que têm um laço comum tão forte, não pode ser de outro modo.


2 – Há muito tempo que, através do Paulo Raposo, surgiram cinco questões. Não consegui reflectir e encontrar respostas do meu agrado.

Assim vou voltar a elas e responder o mais sinteticamente possível. Tentem…

i) - O heroísmo do soldado português;

R: Foi grande. Os heróis principais já não estão entre nós.

ii) - A confiança que os soldados depositavam em nós, quadros;

R: Certamente que tinham. Haveria excepções? Penso que sim mas desconheço.

iii) – A nossa passagem por África, que benefício social, económico trouxe a Portugal;

R: A certos grupos económicos certamente que muito. Foram cinco séculos de Império… ao Zé soldado… pouco ou nada. Deve ter havido excepções para validarem regras. Difícil a questão e, se respondida dava resmas de papel.

iv) – A religiosidade, de então e actual, e o porquê da diferença;

R: A de resposta mais difícil para mim. Convivi com homens de fervorosa religiosidade, homens do Norte. Outros, de outra Fé, Muçulmanos, de igual e forte religiosidade.

Mas os Deuses ou Deus, Pai de todos porque deixava os seus filhos serem tão maltratados? Isto ontem. Hoje haverá diferenças? Creio que não!

v) – As nossas famílias, que amarguras passaram por cá aquando da nossa ausência;

R: Muita creio eu. Muita mesmo. O sofrimento foi enorme.

Não quero escrever mais sobre esta questão. Arrepia-me.

A partida em sofrimento terrível (não quis a minha família presente) mas vi cenas inesquecíveis; a comissão; a alegria, quantas vezes a falsa alegria, da chegada. Depois, e mais importante: os deficientes e os que não vieram.

Muito difícil responder e não se diz nunca tudo. Bem colocadas as questões, pela abrangência e a profundidade.

Responder honesta e frontalmente eram muitas folhas. Parabéns Paulo e obrigado pelo que me fizeste reflectir, pensar e tentar, sem nunca responder. Se o não fizesse, assim tão levemente ficava mal comigo. Respondo assim e alivia muito pouco. Mexe connosco.

E tu Camarada? Respondes facilmente?

Não entro no caso do dia. Eu e os Homens que comandei, branco e negros, Homens portanto (só há uma raça a humana), combatemos com dignidade, estivemos não sei quantas horas debaixo de fogo, muitos foram feridos, alguns morreram de arma na mão, outros juntei os bocados. Quase todos voltaram connosco, pois a esta Terra pertenciam. Outros ficaram lá na sua Terra e alguns foram fuzilados. Porquê? Porque combateram comigo e com outros como eu. Fomos Camaradas, somos Camaradas e a justiça está por fazer.

Quase todos, os que voltaram foram recebidos em alegria. Muitos adaptaram-se mal à nova vida e, mesmo hoje ainda sofrem cerram o dente, muito docemente, muito passivamente choram por dentro em raiva surda. Até um dia Camarada, há sempre um dia de acertar contas, fazer justiça.

E, não erro certamente, se nos juntássemos um dia, lá, haveriam abraços com lágrimas. Porque os Homens também choram e era encontro de Irmãos.

FND, 25 de Fev 09
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Notas de CV:

Vd. último poste de "Pensar em voz alta" de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3648: Blogoterapia (82): Pensar em voz alta: Guileje ainda é cedo, Saiegh 18/12/78: foi há trinta anos...(Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4922: Blogoterapia (125): No dia dos meus anos, brindei à amizade e à camaradagem forjadas em tempo de guerra (José Martins)

Guiné 63/74 - P4962: In Memoriam (31): Cap Cav Luís Rei Vilar, meu irmão e meu herói (Miguel Vilar)

1. Mensagem de ontem, enviada por Miguel Vilar, nome conhecido do automobilismo português desde 1974, piloto de ralis que chegaria até à Fórmula Um, nos anos 80 (com sucesso, até ao dia do grave acidente, na A5, que o deixaria às portas da morte) (*), irmão mais novo do malogrado Cap Cav Luís Filipe Rei Vilar, comandante da CCAV 2538 / BCAV 2876, unidade de quadrícula de Susana (1969/71), que morreu, em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas, numa operação contra o PAIGC, já em território do Senegal, no dia 18 de Fevereiro de 1970 (**).


Caro Luís Graça: A nossa conversa resulta nisto. Se quiseres publicar no teu blogue, estarás à vontade, assim como gostaria de conhecer o dossier Luis Filipe Rei Vilar.


Meu querido irmão:

Passaram 39 anos e a ferida ainda sangra.

O teu presente, depois de um fim de semana equestre atribulado na EPC (Escola Prática de Cavalaria), depois de à tua frente me teres visto cair do teu cavalo, o Atómico, do Sanches Osório, teu colega, e no fim de semana a seguir ter caído dum outro cavalo em Cascais, tinha 10 anos, e ter partido os dois braços e uma perna e ter ficado quase 1 ano na cama depois de 13 operações, lembro de me visitares na Clínica de São Lucas e vinhas comunicar que esperavas o teu 1º filho. O Tiago. Vieste-me dar a honra de ser o padrinho dele.

Filho esse que de ti não tem memórias porque cedo partiste. E depois veio o João Luís que também não guarda memórias de ti.

Eras o meu herói e lembro nesse dia 18/02/1970,. às 13h00, chegava das escola para almoçar, como todos os dias, vinha eu e o Duarte. Entro em casa, subo ao meu quarto no 1º andar e estava o pai no cimo da escada que me olhou de frente, agarrou-se a mim a chorar (o meu pai nunca chorou!!) e abraça-me e em pranto diz:
- Miguel, levaram o Luisinho.....eles levaram o Luisinho!

Vivo esse momento agora e choro. Convivi pouco contigo porque estavas sempre no quartel mas o que guardo de ti são as melhores das memórias. Homem honrado e digno e justo.

Vivi anos a achar que eles se tinham enganado e que não eras tu. Eles tinham-se enganado de certeza!!!

Devo-te uma homenagem. Quero pisar o chão onde te mataram. A guerra era justa ou não. Não me interessa, na altura era o teu trabalho e deste a vida pelo teu patrão: a pátria. E recordo a placa gravada pelos teus colegas de armas que acompanhava o teu caixão naquele dia 18.03.1970 quanto te enterrámos. E dizia: "Homenagem dos colegas em missão de soberania na Guiné: E AQUELES QUE POR OBRAS VALOROSAS SE VÃO DA LEI DA MORTE LIBERTANDO".

Luís, foste, és e serás o meu herói.

Vou pagar a factura que me deixaste, que será molhar a terra onde te mataram com as lágrimas que correm agora pelo rosto.

Miguel

2. Comentário de L.G.:

Querido Miguel: Tinha acabado, umas horas antes, de falar ao telefone com o teu irmão Duarte, meu amigo e colega do ISCTE onde ambos cursámos sociologia na segunda metade da década de 1970, quando me ligaste para casa... Sabia da tragédia que se abateu sobre a tua família, com a morte do teu irmão mais velho, meu camarada, do meu tempo de Guiné... Desconhecia, no entanto, a outra tragédia de que foste o protagonista, há treze anos atrás (bem como o processo kafkiano que se seguiu com a justiça)... Soube do infausto acontecimento, através da imprensa, na época, mas nunca imaginei que a vítima foste tu, irmão do Duarte, do Manuel e do Luís...

Deu para perceber, no entanto, enquanto falávamos ao telefone, que és um homem corajoso, determinado, inconformado, decidido, disposto a saber a verdade, toda a verdade, sobre as circunstâncias da morte do teu mano, que era o teu ídolo e o teu herói... Tinhas então 13 anos (e o Duarte 15), quando chegou a brutal notícia da sua morte, que destroçou a vossa família...

Li, com emoção, a tua pequena mas sentida homenagem ao teu irmão e nosso camarada Luís, e sei da tua vontade (bem como dos teus outros irmãos mais velhos, o Duarte e o Manuel) em ir até à Guiné-Bissau, à região do Cacheu, a Suzana, molhar, com as tuas lágrimas, aquela terra vermelha que ele pisou e conhecer aquele povo, os felupe, de que ele era amigo, tendo ainda tempo, apesar da actividade operacional da sua companhia, de construir uma escola para a população local...

Ofereci-te o nosso blogue para escreveres o que te ia na alma (ainda hoje, ao fim destes quase 40 anos de dor e de saudade) e inclusive para retomares a pesquisa da família sobre as circunstâncias da sua morte... Tu e a tua família não descartam a hipótese de o Luís ter sido morto por uma bala de G3, ou seja, por uma bala dos nossos... Acidente, com bala de ricochete ? Outras hipóteses, mais sinistras ?

Também o Duarte me escreveu, em 14 do corrente, o seguinte, da maneira lúcida e desassombrada que eu sempre lhe conheci:

(...) "Eu sei que há várias versões da morte do meu irmão e, mesmo que elas sejam melindrosas, gostava de as saber. Pouco depois da sua morte, e ao longo destes anos, correu a versão que o meu irmão tinha sido atingido por fogo nosso e não dos guerrilheiros. Também sabia da versão de a emboscada ter ocorrido no Senegal ou numa zona libertada (o Cassum)" (...).

O teu irmão Manuel, que vive em França onde é cientista, já deve ter falado ao telefone ao ex-Fur Mil Enf Jesus, da CCAV 2538, e que vive (ou vivia em Junho de 2007) em Mértola, contacto que lhe foi fornecido pelo nosso camarada Afonso Sousa, de Ovar. O Jesus estava a 2 metros do seu comandante e é, seguramente, uma das testemunhas-chave deste processo... A sua versão é a da emboscada do PAIG, ainda em território do Senegal...

Verifico agora que dossiê de que te falei, está praticamente publicado no nosso blogue. Há pistas que ainda estão por explorar, como por exemplo o relatório da autópsia que ninguém sabe onde pára... O relatório oficial da morte do Cap Luís Rei Vilar é o único documento que foi facultado à tua família (seria assinado pelo então tenente-coronel Ricardo Durão, segundo me dizes..), mas onde se fala em bala de ricochete (tese do acidente ?).

Pessoalmente não acredito na tese (monstruosa) de um eventual tiro, de um miserável justiceiro qualquer, nas costas do capitão... ainda para mais em território do Senegal, longe de casa, ou seja, Suzana, sede da CCAV 2538... Não tenho notícia de nenhum caso eventualmente parecido, debaixo de fogo, em combate, no TO da Guiné... Sei de dois casos de assassínio de oficiais (um alferes e um capitão), não a quente, debaixo de fogo do inimigo, mas sim a frio, no interior do aquartelamento: o caso mais conhecido é do Cap da CART 1613, na noite de Natal de 166, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João (frente a Bolama), foi morto, por tiros de G3, por um dos seus soldados que estava sob o efeito do álcool, e que esteve quase a ser linchado pelos seus camaradas (***).

Caso concretizes, tu e os teus irmãos, a planeada romagem de saudade a Susana, nos próximos tempos, será para nós um privilégio e uma honra fazer a devida cobertura do acontecimento e mobilizar possíveis apoios na Guiné-Bissau.

Recebe as melhores saudações de solidariedade, apreço e respeito pela minha parte, bem como por parte dos restantes editores e demais membros do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. excertos de imprensa sobre o caso do Miguel Vilar que teve na época algum destaque na imprensa, por más e boas razões:

Diário de Notícias

Uma pedra na estrada e a falência do sistema
por P. S.

21 Novembro 2004


Aos 40 anos, uma pedra de cinco quilos atravessou-se na vida de Miguel Vilar através do pára-brisas do carro. A pedra resvalou do rodado de um camião à frente da sua viatura e atingiu Miguel em cheio na cabeça. Ninguém sabe o que fazia um paralelepípedo cinzento no meio da auto-estrada. Sabe-se que Miguel se despistou, já sem sentidos, e que passou um mês em coma, a lutar pela vida na cama de um hospital. Luta, que para o neurologista António Damásio, é o exemplo extremo da força de vontade. A força de querer fazer sempre bem tê-lo-á salvo. Miguel é um sobrevivente.

Apesar da brutalidade da pancada, que lhe provocou afundamento do cérebro com perda de massa encefálica, Miguel não morreu, porque quis viver.

Piloto de automóveis, empresário bem sucedido, casado, com filhos, habituado a arrancar títulos na competição de quatro rodas, Miguel travou então a corrida pela recuperação da qualidade de vida. Perdeu as empresas, meses depois ficou divorciado, passou a ter problemas financeiros e viu-se obrigado, de um momento para o outro, a refazer tudo. «Ninguém me perguntou nestes anos se precisava de uma aspirina», afirma.

A Brisa, empresa concessionária da A5, foi absolvida em tribunal. O Fundo de Garantia Automóvel foi condenado a pagar uma indemnização. Mas recorreu. E voltou a perder. E agora voltou a recorrer...

Miguel Vilar espera, consumindo-se no desespero. Assume a revolta e incompreensão contra o sistema. «Sempre paguei tudo o que tinha para pagar. Até paguei para circular naquela estrada em condições de segurança. Para que servem então os seguros?»



Sobre a história da extraordinária recuperação do Miguel Vilar, com o apoio da sua família e de muitos amigos, incluindo o Prof António Damásio, bem como do seu regresso às corridas, oito anos depois da tragédia, para passar a sua mensagem de vida ("Nunca percam a esperança"), vd. notícias:

Miguel Vilar volta às corridas para agradecer o apoio (DCA News, 17/7/2005)
Miguel voltou às corridas (DCA News, 26/7/2005)


Oito anos depois do grave acidente rodoviário

(...) Miguel Vilar foi um caso raro de recuperação, mesmo um Case Study da Universidade de Iowa e do cientista português radicado nos Estados Unidos da América, Prof. António Damásio. O ex-piloto lutou com todas as suas forças, e teve o apoio dos amigos, mas sente que tem o dever de passar a mensagem da sua filosofia ao longo desta longa caminhada pela vida, aos muitos casos que estão no desespero e que não são apoiados: 'Nunca percam a esperança'.

Para Miguel Vilar 'o importante é que as pessoas não desistam, que acreditem que é possível melhorar. É esta mensagem que gostaria que me ajudassem a passar. '

No próximo fim-de-semana no Autódromo do Estoril, Miguel Vilar vai regressar às corridas de automóveis, ao seu 'habitat natural' com um único objectivo: 'de agradecer às pessoas que mais me ajudaram e que acreditaram que era possível conseguir evoluir e lutar pela vida, sem baixar nunca os braços. Não desistam, vale a pena lutar.' (...)

(**) Vd, postes de

30 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1902: Manuel Rei Vilar, França: Quem conheceu o meu irmão, Cap Cav Luís Filipe Rei Vilar, morto em Susana, em Fevereiro de 1970 ?

30 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1903: Cap Cav Luís Filipe Rei Vilar, comandante da CCAV 2538, morto numa emboscada (Afonso M.F. Sousa)

1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1906: Notícias sobre o Cap Cav Rei Vilar, comandante da CCAV 2538, morto em 1970 (Benjamim Durães / Ayala Botto)

1 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1908: Cap Cav Luís Rei Vilar, comandante da CCAV 2538, morto no campo da honra, em incursão no Senegal (Afonso M.F. Sousa)

10 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1939: Susana, região de Cacheu: fantasmas do passado (Pepito)

(***) Vd. I Série, poste de 23 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXVI: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)

Guiné 63/74 - P4961: Histórias de Juvenal Candeias (4): Há periquitos no Quitáfine


1. O nosso Camarada de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520 - Cameconde, 1971/74 – enviou-nos mais uma história das suas memórias da guerra:

Camaradas,

Para rentrée, aqui vai mais um retalho das minhas recordações de Cacine!

Seria interessante se conseguísseis juntar uma carta da região que é mencionada - Cacine, Cameconde e Cassacá.

Os especialistas sois vós, eu não sei fazer isso.

Fico-vos a dever uma cervejinha ou mesmo uma bazuca!

Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:

Fotos do desembarque da LDG "Montante" em Cacine

Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:

HÁ PERIQUITOS (*) NO QUITÁFINE

A região do Quitáfine, a Sul de Cacine, era considerada o santuário do PAIGC, que aí estava fortemente instalado e provido de dispositivos de segurança, que tornavam os nossos movimentos impossíveis, salvo com utilização de meios excepcionais.

Trilhos minados e sentinelas avançadas, permitiam-lhes uma tranquilidade apenas quebrada pelos obuses de 14 cm, disparados do nosso destacamento de Cameconde!

Os efectivos de que dispunham com um grupo especial de 20 lança-granadas, responsável pelas constantes flagelações a Cameconde, apoiado por um bigrupo disperso pela zona de Cassacá e Banir (onde se supunha estar o comando), eram reforçados por uma vasta população armada em auto-defesa, distribuída, entre outras, pelas tabancas de Ponta Nova, Bijine, Dameol, Cassacá, Banir, Campo, Cassebexe e Caboxanque.

O PAIGC furtava-se sistematicamente ao contacto, optando por uma estratégia defensiva de protecção às populações que controlava, privilegiando as flagelações e a colocação de engenhos explosivos!

Quem circulava a Sul de Cambaque (que distava cerca de 3 Km de Cameconde) tinha como certo algumas surpresas no trilho! Provavelmente um campo de minas e a seguir (algum humor-negro), munições de Kalash espetadas no chão formando a palavra PAIGC!

O Quitáfine permitia ainda ao PAIGC, um reabastecimento regular e seguro, processado a partir da República da Guiné, através de vários rios, em especial o Caraxe e o Camexibó!

Ao dispositivo militar juntava-se uma mata densa intransponível!

Os pára-quedistas, após uma operação no Quitáfine, só à noite conseguiram chegar a Cameconde, com grande dificuldade e orientados pelo clarão da queima de cargas de obus, em cima dos abrigos!

O grupo de Marcelino da Mata, largado de helicóptero, fez um golpe de mão a Cabonepo, a base do PAIGC mais a Norte do Quitáfine, onde estaria instalado um posto transmissor. Quando chegou, após lenta progressão através da mata… não havia lá nada… a base tinha sido abandonada momentos antes!

O Quitáfine era, efectivamente, o santuário do PAIGC, desde o início da guerra! Foi ali que se realizou, na tabanca de Cassacá – a 15 Km de Cacine e a 8 Km de Cameconde -, em meados de Fevereiro de 1964, o 1º Congresso do PAIGC, com a presença de Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira e outras individualidades do Partido!

ACÇÃO PERIQUITO

A CCaç 3520 tinha chegado ao porto de Cacine, a bordo da LDG Montante, em 24 de Janeiro de 1972, para render a CCaç 2726 – companhia açoriana comandada pelo Capitão Magalhães -, o homem que retorcia as pontas do bigode com cera e a quem o tabaco nunca faltava! Dizia-se mesmo, à boca pequena, que, quando o tabaco acabava em Cacine, o PAIGC deixava, no mato, uns macitos para o Capitão! Rumor ou realidade… ninguém sabe! Ficou por provar!

Decorria ainda o período de sobreposição, que se prolongou até 22 de Fevereiro, quando foram recebidas instruções de Bissau, para ser preparada uma operação ao Quitáfine – Cabonepo e… Cassacá!

Seríamos, então, ainda bastante inexperientes, mas nunca aquilo a que alguém chamou um verdadeiro bando, embora a preparação que recebêramos para a guerra fosse bastante incipiente, com uma IAO feita no Cumeré, que pouco valor guerreiro nos acrescentara.

A formação garantida pelos oficiais e sargentos da companhia, essa sim permitia que o pessoal se apresentasse bastante bem preparado!

Os comentários e interrogações começaram a surgir entre as poucas pessoas que tinham conhecimento da operação!

Como vamos entrar no Quitáfine, com tudo minado e com sentinelas avançadas?

Qual será o grupo de combate eleito, quem serão os milícias que o acompanham?

Porque vamos intervir a nível de grupo de combate, quando estão estacionadas duas companhias em Cacine, enquadradas por capitães do quadro?

Será que com mais efectivos e um comando experiente e profissional, não poderíamos tentar um assalto frontal à base de Cassacá?

Parece que uns sentiam que a comissão estava terminada e o embarque estava à vista, enquanto outros, recém-chegados, temiam que a sua estreia no teatro de operações não fosse a mais auspiciosa… pelo que ninguém considerava ser o melhor momento para pôr em prática uma operação de grande envergadura!

Assim sendo, avançou um grupo de combate de periquitos, reforçado por alguns milícias, para um terreno totalmente hostil e com efectivos IN muito superiores!

Enfim, o moral das tropas era elevado e os madeirenses eram gente de muita coragem!...

Cassacá, 16 de Fevereiro de 1972

Exactamente no 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC, exactamente no mesmo local! Se alguém o pensou… ninguém o confessou!

A lotaria contemplou o 1º Grupo de Combate do Alferes Alexandre Margarido (mais tarde Spínola viria a graduá-lo como Capitão), uma escolha certa, seria aquele que estaria melhor preparado, tanto pela sua formação em Operações Especiais, como pelas suas características pessoais!

O 1º Grupo de Combate seria apoiado por um grupo de milícias, formado pelos melhores elementos da respectiva companhia!

A operação foi preparada em detalhe, vindo mesmo um Major de Operações de Bissau que a comandaria o pessoal desde… Cacine! Haveria apoio aéreo de dois helicanhões! Sabia-se, então, que a abordagem ao Quitáfine se faria através do Rio Cacine primeiro, e do seu afluente Rio Poxiuco depois, dada a impossibilidade de o aceder por terra e a necessidade de não perder o factor surpresa!

Hora de partida… havia apenas dois sintex para transportar o pessoal ao longo dos rios! Nada de grave! Tudo se desenrasca! O restante pessoal será transportado em canoas gentílicas!

A viagem é lenta! Os sintex puxam as canoas para que se ganhe algum tempo! A organização é impecável e os meios fazem inveja aos exércitos melhor equipados!

A Armada Invencível chega, finalmente, ao ponto previsto para o desembarque! Os operacionais, depois de camuflarem os barcos, para reutilizarem no regresso, penetraram na mata, tentando chegar de surpresa à base do PAIGC, em Cassacá!

Andam, andam, andam… até que é avistado, já perto de uma tabanca, um solitário nativo armado! Um dos milícias, contra todas as instruções recebidas, faz fogo… o alarme estava dado!...

O cagaçal feito pela população da tabanca, incitando à descoberta e captura do grupo, é enorme!

Quebrara-se o efeito surpresa, o PAIGC poderia organizar-se e os efectivos com que contava na zona eram muito superiores e, naturalmente, melhor conhecedores da zona de acção!

A ocorrência é do conhecimento imediato do comando, em Cacine, que decide sobrevoar o local da operação numa avioneta Dornier 27, que após verificar a situação no terreno, ordena a retirada!

O pequeno grupo constata, porém, que a retirada não seria fácil!

Em pouco tempo a maré baixara, a armada estava atascada na bolanha, o rio era apenas um fio de água, insuficiente para garantir o reembarque e a retirada dos candidatos "a apanhar o IN pelas costas".

Um daqueles pequenos pormenores que, a falharem na hora “h”, transformam muitas operações planeadas ao detalhe em autênticos desafios de sobrevivência e desenrascanço!

O pequeno grupo encontrava-se assim entre a espada e a parede ou… pior, entre uma armada atolada na bolanha e 10 Km de terreno hostil, ocupado por largas dezenas de guerrilheiros e centenas de habitantes armados!

Que fazer então?

O alferes conferenciou com os seus graduados e com os elementos da milícia mais experientes, excelentes caçadores e determinantes neste terreno, não apenas para evitar o contacto com o inimigo, mas também para detectar e evitar as minas e armadilhas colocadas nos trilhos!

Acabaram por decidir criar uma manobra de diversão!

Iniciaram, então a progressão, como se o objectivo fosse chegar à base de Cassacá, para evitar que o inimigo descobrisse as embarcações, entretanto guardadas por uma secção e, simultaneamente, ganhar o tempo necessário para que a maré subisse e a armada pudesse navegar!

Não foi preciso caminhar muito para se pressentir uma emboscada de um grupo numeroso, mas barulhento, o que permitiu aos periquitos mergulharem na mata!

Com os dedos nos gatilhos mergulhados em absoluto silêncio - determinado pelo medo ou pelo treino? – o pequeno grupo, assistiu ao desencadear de forte tiroteio a uns 100 metros, não traindo a sua posição, facto este que constitui condição essencial para evitar um previsível desastre!

A situação, contudo, estava a tornar-se insustentável! A pouca experiência de movimentação na mata iria, certamente, acabar por denunciar as suas posições no terreno!

Entretanto o tempo decorrido permitiu, certamente, que os sintex e as canoas pudessem flutuar, pelo que não foi necessário simular mais o falso avanço para Cassacá!

Mas como chegar às embarcações sem ser detectado, com guerrilheiros e população armada em sua perseguição?

O alferes solicitou o apoio aéreo, que com umas valentes bujardas largadas cirurgicamente pelos helicanhões, criaram uma verdadeira confusão entre os guerrilheiros, permitindo aos piras, já então detectados e perseguidos de perto, chegarem às embarcações, entretanto já a flutuar!

Uma autêntica saga!

O reembarque foi um sucesso, mas o regresso iria representar uma nova aventura!

Avariou-se o motor de um dos sintex, o que obrigou à formação de um comboio naval indescritivel! À cabeça desse "comboio" seguia o único sintex com
motor que rebocava o outro sintex e ainda meia dúzia de canoas. Esta formação arrastou-se penosamente ao longo do Rio Cacine, por longas horas, com a pequena ondulação a ameaçar permanentemente o seu afundamento.

Completamente ensopados e exaustos, os homens desta operação de periquitos, tinham, no cais de Cacine, todos os restantes elementos das duas companhias à sua espera! Com tanto rebentamento e explosão, ninguém acreditava que todos ali chegassem… sem um arranhão!

Da nossa parte acabou assim, deste modo frustrante, com um indigno fogo de artifício (de apenas um tiro), a comemoração do 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC em Cassacá!

À noite, com pompa e circunstância a Maria Turra (nome por que era conhecida a locutora IN da rádio oficial do PAIGC), anunciava o aniquilamento completo do grupo que tentara o assalto a Cassacá!...

Pois é… poderia mesmo ter acontecido…

Um abraço do,
Juvenal Candeias
Alf Mil da CCAÇ 3520

Nota 1: (*) Na Guiné, os periquitos ou piras, era a designação dada aos tropas recém-chegados ao território.

Nota 2: O relato desta história teve a colaboração directa do Alexandre Margarido, que ainda hoje não sabe como saiu vivo do Quitáfine, e a quem agradeço com um grande abraço.

Fotos: © Juvenal Candeias (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste da série em:

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4960: Os Nossos Enfermeiros (5): Os Enfermeiros dos Lassas, na lama e no duro (Mário Fitas)

1. Mensagem do nosso camaradas Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763, Os Lassas, Cufar, 1965/66, com data de 7 de Setembro de 2009:

Enfermeiros dos Lassas na Lama e no Duro.

Luís, estou matraquilhando para pôr "Putos, Gandulos e Guerra" em condições. É doloroso, reviver tudo isto e o trabalho que dá! Tenho esperança de conseguir.

Aqui vai um pequeno testemunho de homens que calcorrearam aquela Terra Bonita a Guiné.

Eu que os vi trabalhar, com a G3, com a seringa, com todo o material em campanha, aqui fica a minha homenagem.

O Furriel Juvenal já não está connosco, o Pacheco não o conseguimos localizar.

Nos nossos encontros são louvados e acarinhados.

Vida dura a destes homens verdadeiros representantes dos "Lassas" Cumbijã acima, Cumbijã abaixo. Cufar Nalu, Camaiupa, Cabolol, Cubumba, Caboxanque, Cadique, Darsalame e muito mais. Sempre nos acompanharam. Já contei algumas histórias sobre eles.

Tinham outros amigos os nativos das tabancas: Iusse, Impungueda, Mato Farroba, Cantone, etc., etc. etc.

Coragem na guerra e não só. Eu vi pegar no pénis todo furado e a escorrer pus de um nativo, ser tratado com o carinho com que se trata um Bébé. Julgo não ter coragem.

Houve concerteza muitos outros que o mesmo fizeram!

Portanto aqui fica a todos esses que se transfomaram em anjos para aqueles que os olhos se fechavam, a minha homenagem e Obrigado!

Como sempre com o abraço desse grande e sofrido Cumbijã
Mário Fitas

Foto 1 > Em primeiro plano, Alberto Torres e em 4.ª posição, Policarpo Sousa Santos

Foto 2 > Alberto Torres em primeiro plano

Fotos: © Mário Fitas (2009). Direitos reservados.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Setembro de 2009 > 8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4918: Os nossos médicos (4): Um grande amigo, o Dr. Fernando Enriques de Lemos (Mário Fitas, ex-Fur Mil, CCAÇ 763, Cufar, 1965/66)

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4935: Os Nossos Enfermeiros (4): Valioso trabalho desenvolvido pelo Fur Mil Enf Rui Esteves (CCAÇ 3327) e a sua equipa (José da Câmara)

Guiné 63/74 - P4959: O Nosso Livro de Visitas (68): Ildefonso Alves, ex-combatente em Angola, que nos acompanha em Paris

1. Mensagem de Ildefonso Batalha Alves, com data de 8 de Setembro de 2009:

Olá rapaziada, boa tarde a todos por aí.

Acabei agora mesmo de descobrir o vosso Sítio e gostei imenso.
Desculpem, vou ser rápido, era simplesmente para vos dizer que continuem, não parem. Acho formidável a vossa iniciativa, e concerteza é já um sucesso.

Também gostaria de dizer que não estive na Guiné, mas sim em Angola, de Abril de 1972 a Julho de 1974.

Achei engraçado porque vi aqui na lista, o nome do meu irmão que vive na Lourinhã. Chama-se Armandino Alves e sei que esteve na Guiné nos anos de 1965/66.

Daqui de Paris envio-vos um abração para todos.
Bem hajam

Ildefonso Batalha Alves

O Rio Sena em Paris

Foto: © Carlos Vinhal (2002). Direitos reservados.



2. Comentário de CV

Caro camarada e amigo Ildefonso, muito obrigado por nos ter escrito, ainda por cima, sendo irmão do nosso camarada e tertuliano Armandino Alves (*).

Fazemos votos de que a vida lhe corra pelo melhor aí nas terras banhadas pelo Sena.

Receba um abraço destes seus camaradas da Guiné.
Carlos Vinhal
Co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
__________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste de 9 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4927: Os Nossos Enfermeiros (3): Às vezes até fazíamos o que não sabíamos (Armandino Alves)

Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4839: O Nosso Livro de Visitas (67): Lídia Gonçalves, filha do nosso camarada José Manuel Costa Gonçalves

Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

1. Mais um poste da série Cartas, (OUT65 a DEZ65), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66


2.ª FASE: O MATO

Paúnca, 10 Out. 1965
Todos os dias procuro levantar-me cedo, lavar-me, vestir-me como se tivesse algo muito importante e diferente para fazer.
Depois da cerimónia do hastear da bandeira, do pequeno-almoço e da distribuição dos trabalhos pelos homens que estão de faxina, vou até a caserna, ao posto de socorros, ao refeitório e está mais uma manhã passada!
Ultimamente tenho-me dedicado à limpeza do aquartelamento, principalmente a cortar o capim que cresce que eu sei lá e a reforçar a rede de arame farpado. E como os soldados estão a ficar uns sornas e só trabalham se forem obrigados, tenho de andar sempre atrás deles, muitas vezes até com um pau na mão (na brincadeira, é claro)

À noite, quando não chove, geralmente sento-me cá fora e coloco o gira-discos a tocar. Como sei que eles não apreciam jazz, pedi ao M. Santos uns discos emprestados, entre eles, os do Solnado (os famosos discos com os monólogos da “Ida à Guerra”), que têm tido um sucesso estrondoso, pois ficam ali à minha volta, sentados em cadeiras, caixotes ou mesmo no chão. E assim passamos grandes bocados da noite, entretidos a conversar e a rir.

Anteontem, quando receberam o pré, lembraram-se que eu lhes poderia descontar todos os meses uma pequena quantia para poderem comprar uma bola de futebol. Assim o fiz e descontei 5$00 a cada um. Eu e os furriéis pusemos o resto para os 300$00 que custava a bola. Ontem, fomos a Bafatá, aproveitando a boleia dos carros de Pirada, para comprar a bola, uma bela bola vermelha e à noite já cá a tinham. Hoje de manhã levantaram-se todos mais cedo para a estrear.
Organizei um jogo entre solteiros e casados e, é claro, ganharam os casados 3-2. Eu não joguei, mas já ficou combinado que, a partir desta semana, todos os dias orientarei os treinos. Isto vai servir às mil maravilhas para abater as gorduras que se estão a acumular nesta vida tão sedentária. Passaremos a levantarmo-nos às 05H00 para um pequeno crosse e um bocado de ginástica. Depois tentarei dar-lhes um pequeno treino de futebol mais ou menos no estilo do velho Szabo, tal como ainda me recordo de o ver, quando esteve no Vianense. Com palavrões e tudo!
Temos cá uns soldados pretos muito jeitosos e tenho esperanças de qualquer dia ir a Pirada e fazer uma surpresa aos soldados do Comando da Companhia que têm a fama de ser os melhorzinhos

Paúnca, 17 Out. 1965
Novidades do futebol: o Nacional de Paúnca já começou. A equipa do Comando do Pelotão formada pelos condutores, radiotelegrafistas, o maqueiro e o corneteiro, ganhou à 1ª Secção de Atiradores, por 3-0. No segundo dia, a 2ª Secção de Atiradores ganhou à 3ª Secção, por 6-0, deixando-a completamente desanimada. Na caserna não se fala noutra coisa. E, para cúmulo, uma equipa constituída por uma selecção dos melhores do Pelotão jogou contra uma equipa de civis (quase todos rapazes indígenas, que jogam muito bem) tendo ganho por 3-0.
A glória já começou a subir-lhes à cabeça e ninguém os atura. Os civis ficaram amuados e pedem a desforra que será disputada ainda hoje por volta das 17H00, para evitar o calor. É provável que ganhemos novamente, estou cá com uma fezada.
O futebol faz muito bem ao moral das tropas. Tenho a impressão que até andam com melhor aspecto, melhores cores. Eu também me sinto bem e, embora não jogue, participo nos treinos e de manhãzinha lá vou fazendo os meus crosses.

Paúnca-Pirada, 24 Out. 1965
Hoje fui até Pirada ver um jogo de futebol com a Companhia de Cavalaria que está em Bajocunda.
Em Paúnca já temos professor primário, é o Timóteo, um rapaz negro muito alto e ligeiramente coxo. Grande falador e grande bebedor também, como deu também para verificar. Esperemos que não me venha a dar problemas, pois parece ter prosápia a mais.

(De facto, como que a comprovar a minha estranheza quanto a alguns aspectos da sua conduta, vim a saber depois, pelo M. Santos, quando já estava na Metrópole, que ele afinal, tinha sido sempre um elemento do IN infiltrado e que, desaparecera repentinamente, quando sentiu avolumar as suspeitas sobre ele.)

Quanto a batuques, são todos os dias, mas não têm metade da graça dos que se faziam em Pirada. A população daqui é menos simpática e pouco comunicativa. Se não fosse por causa do capitão e daquela convivência forçada com o porcalhão da companhia (refiro-me ao Cardoso) andaria desejoso de voltar para lá. Mas assim é preferível ficar estagnado nesta absurda calma de Paúnca. À noite, tenho até experimentado ir até casa de um ou outro comerciante, para uma visita, mas francamente, são de tal maneira broncos e soezes que, regresso sempre sem vontade nenhuma de lá voltar.
Ultimamente, eu e os furriéis entretemo-nos a jogar ao Poker de dados ou à Sueca, mas também cansa e aborrece. Recebi no correio os quatros rolos de revistas que a mãe me mandou. Foi vida nova, mas também já devorei tudo!
À noite tento ouvir as emissões da Voz da América, em ondas curtas, pois costuma dar boa música de jazz, mas nem sempre se consegue ter boa audição.
Enfim, o tempo passa e, não passa…

Paúnca, 09 Nov. 1965
Fiz ontem seis meses de casado e só hoje é que me lembrou.
O Martins, o meu quarto furriel, foi para Pirada fazer parte, com a Secção dele, do novo Pelotão que o Capitão resolveu criar para o oferecer ao Alferes Cardoso que, por se o alferes adjunto dele, tinha tido sempre a sorte de nunca comandar nenhum. Apenas comandava o grupo de sargentos e praças que constituíam o núcleo de comando e serviços da Companhia, embora na verdade quem mandasse fosse o 1º sargento. Assim acabou por nunca ter participado em nenhuma das grandes operações que fizemos em Bissau e em todos os patrulhamentos regulares que fazíamos no dia-a-dia. Isso era até, como seria de esperar um dos motivos de celeuma e discórdia entre os alferes e sargentos que viam nesse facto um favorecimento de que ele soube sempre aproveitar-se escandalosamente. Agora que ele tinha pregado aquela partida de ter ido de férias que, seriam de trinta dias, e ter lá ficado três meses fingindo-se doente, o Capitão que finalmente o começou a topar, resolveu alterar a orgânica da Companhia, tirando uma Secção a cada um dos Pelotões (ou melhor, Grupos de Combate, por terem 4 secções) dos outros três alferes para, assim constituir um Pelotão para o Zéquinha (como jocosamente nos referimos ao José Cardoso) começar a alinhar como toda a gente.
Agora que ele regressou, está ainda mais repugnante. Toda a gente diz o pior dele e quase ninguém lhe fala, inclusive eu próprio. No entanto, só agora é que o Capitão fez uma coisa que já deveria ter feito logo de início. Assim talvez ele não se tivesse tornado tão nojento e cobarde.
Parece que até a própria namorada cortou relações com ele e o pobre coitado vai de mal a pior.

Paúnca, 16 Nov. 1965
O Alferes Castro que, está agora em Pirada, fez anos no passado dia 11 e convidou-me a mim e a mais dois dos meus furriéis, para irmos lá festejar com ele. Dois dias antes pedi autorização ao Capitão para me deslocar com os furriéis a Pirada. Respondeu-me que autorizava, mas no dia seguinte mandou uma mensagem via rádio a dizer que afinal só poderia ir acompanhado apenas por um furriel, pois nesse dia, teriam de ficar, obrigatoriamente, dois no quartel. Fiquei tão chateado com aquela manobra deselegante que resolvemos não ir ninguém à tal dita festa de aniversário do Castro.

O que tornou este caso ainda mais desagradável, foi o facto de o Capitão estar até a esquecer-se que, naquele dia em que me mandou fazer aquela patrulha a pé de 40 km, que durou 48 horas, no quartel tinha ficado apenas um furriel! Então para quê dois pesos e duas medidas?
Conforme depois me contaram, parece que a festa esteve um bocado fria. O Cardoso fez-se também convidado e não largou a casaca do Capitão, portando-se como um autêntico verme, sempre a bajulá-lo. Aliás o Capitão também não se portou melhor, pois insistiu com o Castro para convidar igualmente o patife do 1º sargento com quem ele não pode nem à lei da bala. Não sei porquê, o Capitão desdobra-se em mesuras com o 1º sargento, favorecendo-o com todas as benesses. Se calhar porque também pretende ficar de bem com ele ou lhe deva alguns favores, não sei.
Agora que o tempo vai acumulando tantos factos ridículos, a paciência vai-se também esgotando.

Paúnca, 21 Nov. 1965
Já são quase 5 horas da tarde, pois estou a ouvir preparar o Unimog que todos os dias vai buscar água à bolanha.
Agora mudámos de patrão. A nossa Companhia deixou de pertencer ao Batalhão de Cavalaria de Nova Lamego, para passar a pertencer ao de Bafatá. A nova estrutura do Sector modificou-se e tanto Pirada como Paúnca passaram a constituir uma faixa de terreno dependente inteiramente de Bafatá. Estamos a fugir da zona Oeste e simultaneamente da zona Norte, pois agora já não seremos chamados para actuar em Canquelifá (no canto superior direito do mapa da Guiné), como quando dependíamos de Nova Lamego, que continua a comandar essa zona.

No passado dia 19, tive cá a visita do novo Comandante que me pareceu ser um tipo mais simpático que o anterior.
Como tinha mandado caiar todo o quartel na semana antecedente, estava tudo com um aspecto impecável, o que pareceu agradar de sobremaneira ao indivíduo.
Os soldados fizeram a formatura com o melhor fardamento que ainda possuíam e ele dirigiu-lhes algumas palavras de elogio que os encheu de vaidade.
Naquela tarde, depois de se ter ido embora, decretei feriado geral e ninguém trabalhou mais, pois merecem coitados. Fazem sacrifícios que, se fosse eu a fazê-los, me tornariam esta vida mais negra que uma folha de papel químico (do preto, claro!).

Quando, em conversa, aqui na Messe, contei o boato que corria na Metrópole, sobre a possibilidade de regressarmos a casa mais cedo, um dos soldados, o Zé Maria que trabalha aqui e eu dispensei de fazer sentinela de noite por estar muito fraco, até disse:

- Se isso for verdade até engordo com a alegria!

Hoje o Furriel Ricardo adoeceu com paludismo. É a sétima ou oitava vez que lhe acontece. É também o mais fraco dos furriéis. De todos nós, parece que só eu e alguns muito poucos, é que ainda não adoeceram com a febre. Também, tenho muito cuidado de não me esquecer de tomar o comprimido de Resoquina, o que raramente acontece com a maioria dos outros soldados.
Estamos a caminhar para os 14 meses de mato e estamos de tal modo mergulhados neste ambiente que já tratamos e compreendemos os fulas como se fôssemos da mesma raça.
Ontem fomos fazer uma emboscada numa cambança (local onde habitualmente se atravessa um rio de piroga) não muito longe daqui. Suspeitava-se da presença inimiga, o que, felizmente não se confirmou mais uma vez.
Enquanto estávamos escondidos entre os arbustos junto à margem, alguém do outro lado chamou pelo rapaz que tomava conta das pirogas e que estava, muito calado, junto de mim. Depois de lhe ter feito sinal para que respondesse ao chamado, atravessou para a outra margem para satisfazer os fregueses.

O frete da passagem do rio tem uma tabela: 3$00 uma pessoa só; 6$00 uma pessoa e uma bicicleta. Ora estes nossos fregueses, que não suspeitaram que, na outra margem, os estavam a vigiar e a ouvir, quiseram intrujar o rapaz e um deles só queria mesmo pagar 5$00 por ele e pela sua bicicleta.
Por fim, o rapaz lá os trouxe e, qual não foi o espanto do mariola, quando ao desembarcar do lado de cá se viu rodeado por soldados armados.
Sentado calmamente num tronco caído, chamei-o e disse-lhe por intermédio de um soldado da milícia negra que, o que ele tinha feito não estava correcto e que teria de pagar tudo conforme a tabela, senão que o atirava ao rio obrigando-o a voltar para trás a nado. Assustado começou numa grande ladainha jurando que não tinha mais dinheiro, que tinha vindo de um enterro de um parente, etc. etc.
Mesmo assim e para que não julgasse que nos levaria por trouxas obriguei-o a pagar o resto do que devia ao rapaz, em nozes de cola que, trazia num embrulho, amarrado à bicicleta.
Mas ficou-me cá a parecer que, o que o tinha assustado mais, foi ele ter percebido que eu tinha entendido tudo o que ele tinha dito ao rapaz na outra margem do rio. E deixei-o ficar nessa convicção…
O rapaz da piroga é que estava todo divertido. Conquistei mais um amigo que, para aqui ficará a desaparecer nas brumas da memória…
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No próximo dia 1 de Dezembro, Timóteo, o professor da escola de Paúnca, vai organizar uma festarola comemorativa do feriado. Vai haver desfile e grupos folclóricos!?
Só não sei onde é que os miúdos foram buscar as fardas de Mocidade Portuguesa que exibem com tanta vaidade e orgulho, mas aquele Timóteo consegue sempre surpreender-me.

Paúnca, 10 Dez. 1965
O Alferes Castro foi a Bafatá e disse-nos que falou com o Comandante do Batalhão de Nova Lamego, acabado de chegar de férias. Segundo ele o nosso regresso está previsto para 27 de Abril, no navio Niassa.
Cheira-me a mais um boato, mas no entanto…
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O futebol continua, mas a bola é que está toda esfarrapada, de tanto bater na cerca de arame farpado. Ainda apareceu um sapateiro improvisado para a cozer, mas agora mais parece um melão.
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Finalmente acabei por me tornar empreiteiro!
Caiámos novamente o quartel e vamos agora cimentar o chão da Cantina que era em terra batida. Fiz um balcão com bambus entrelaçados e uma grossa prancha de madeira, tudo pintado com tinta de esmalte vermelha. Consegui que o Capitão me emprestasse o carpinteiro da Companhia por uma semana. Arranjei uma estante e organizei uma pequena biblioteca com livros e revistas que vou pedinchando por aqui e por ali, para que os soldados tenham mais qualquer coisa com que se entreter.
Vamos também montar um sistema de chuveiros nos balneários dos soldados que, vai evitar muito lodaçal. Felizmente toda a gente tem aderido e trabalha com entusiasmo. Já nem é preciso perder tempo a convencê-los.

Fui a Bafatá comprar bebidas e outros artigos que cá em cima não havia e agora podemo-nos gabar de ter uma Cantina em condições. Há cerveja, sumos de frutas, limonadas, leite achocolatado, vinho da Madeira, whisky, brande e licor Tríplice e até licor Drambuie. Tabaco de todas as marcas, pilhas para as lanternas e para os rádios, sabonetes, pastas de dentes, papel de carta, canetas, creme para a barba, lâminas, latinhas de Foie-Gras, espelhos e roupa interior.
Temos também latas de pó de talco Gardénia, da Diana Marsh. Até vou guardar uma para levar no regresso. Enfim, um sortido como nunca se viu igual.

Em Bafatá comprei também quatro baralhos de cartas e um jogo de Dominó. À noite, a Cantina está sempre super lotada. Espero fazer a inauguração oficial antes do Natal e até vou convidar o Capitão.

Na ceia de Natal, contamos dar a toda a gente bacalhau cozido com as tradicionais batatas e couves, bolos, fruta em calda e vinho do Porto. Para o almoço do dia de Natal, será um quarto de galinha para cada um, vinho a dobrar e pudim Flan, que conseguimos comprar num comerciante daqui.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965