segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5054: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (2): Ponte para o regresso

1. Mensagem de José Eduardo Oliveira (JERO) (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), dirigida ao nosso Editor Luís Graça, com data de 30 de Setembro de 2009:

Ganda Luís
Agradavelmente surpreendido pela tua postagem 4943 acerca da Blogoterapia (126) e dos considerandos acerca do periquito de Alcobaça, que se assina JERO.
Fico-te grato pela atenção e, acerca da tua feliz expressão do "Blogando e andando..." tenho que te confessar um pesadelo desta noite... Que, não vais acreditar, mas que eu vou arriscar...

Sou do Benfica desde pecanino e tenho-me habituado ultimamente a ver os jogos dados pela TV com a companhia de um tal "James Martin's", de 20 anos.
Durante o Belenenses-Benfica - o tal de ontem à noite - festejei cada golo com um golinho do 20 years old...

Acabou o jogo e quando ia a rolhar o "James Martin'" pareceu-me ouvir uma voz cavernosa dizer:

- JERO não me voltes a fechar na garrafa onde estou há 20 anos. Agora, que já bebeste tudo, concede-me a liberdade que... eu te concederei um desejo.

Fiquei sem palavras. O que hei-de pedir ao génio da garrafa!?Pensei, pensei e lembrei-me de um trauma dos anos 90!

- Génio posso xingar o Homem Cardoso que uma vez me disse que uma fotografia não deve levar nenhuma legenda!?.

- Podes. Escreve ao Luís Graça, da Lourinhã, que ele põe isso no blogue e toda a malta da tropa te irá razão.

Fui-me deitar às escuras. Esqueci-me de tomar o Xanax 0,5 e dormi que nem uma pedra.

Acordei esquisito. A garrafa da noite anterior estava na bancada da cozinha desarolhada. Comecei a arrumar ideias e procurei por toda a casa o génio. Não o encontrei mas... a janela da cozinha, que dá para as traseiras estava aberta.

Vim para o computador e escrevi-te. Está feito. Agora é contigo.
Já bloguei.
Agora vou andando.
JERO


PONTE PARA O REGRESSO

Contrariando a opinião do Mestre Homem Cardoso (1) que defende que “uma fotografia não tem que ter título”, esta minha fotografia precisa de um título que tentarei defender nas considerações que se seguem.
A fotografia em questão foi tirada em finais de 1964 no Rio Cacheu-Guiné, numa povoação à beira rio chamada Binta. A viagem não tinha sido de recreio e o “Alexandre da Silva”, que tinha navegado de Bissau até aquele local - mais ou menos a oitenta quilómetros acima da foz do Cacheu - levava tropas e não turistas. O navio era de carga e tinham sido precisas cerca de 17 horas de navegação para acostar ao pontão da fotografia, pomposamente apelidado de cais. O nome de cais tinha no entanto alguma lógica pois as tábuas estavam tão desconjuntadas que cair no cais era mais do que certo e seguro para quem não estivesse a pau com as tábuas. Mas… adiante.


Dá para perceber na fotografia que o rio era bastante largo frente a Binta, povoação com alguns grandes armazéns com telhados de zinco. Para lá desta zona urbana havia ainda 4 ou 5 habitações de pedra e cal de madeireiros e um perímetro delimitado por arame farpado apelidado de quartel, com uma forma mais menos rectangular.
Vivemos neste local - cerca de 170 militares da Companhia de Caçadores 675 - durante dois anos. Dois longos anos!... Vezes sem conta nos sentámos nas tábuas deste pontão, habitualmente frequentado por pescadores indígenas, que remendavam as suas redes, enquanto fumavam cachimbo e mascavam cola. (2)
Vezes sem conta olhávamos para lá do pontão sonhando com o regresso, curtindo saudades, relendo cartas dos familiares e das namoradas, chorando lágrimas furtivas, lambendo feridas do corpo e da alma, quando regressávamos das patrulhas das matas do Norte da Guiné.
__________
1- António Homem Cardoso, nascido em São Pedro do Sul em 11 de Janeiro de 1945, é um dos mais prestigiados e premiados fotógrafos portugueses, sendo ainda escritor com numerosas publicadas. Conheci-o profissionalmente na SPAL- Sociedade de Porcelanas de Alcobaça, SA., numa reunião de trabalho e foi então ,por volta dos anos 90, que tivemos a tal conversa sobre as fotografias terem ou não tem necessidade de legenda. Cabe aqui dizer que fui responsável pela área comercial da SPAL(mercado nacional) cerca de 30 anos.

2- Para os não iniciados nos costumes africanos esclarecemos que esta cola não é das que se usa para colar selos nem para snifar. Estas colas crescem na África tropical, onde estão representadas por uma dúzia de espécies. As sementes da árvore que se parece com os castanheiros, são conhecidas pelo nome de noz de cola e têm um poder excitante superior ao do café e do chá (Dicionário da Lello Universal, Volume I).

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Vezes sem conta pareceu-me ver, esfumadas no horizonte, as Torres do meu Mosteiro, do Mosteiro de Alcobaça.
Deste pontão descobrimos amanheceres cinzentos, carregados de neblina que anunciavam um novo dia a descontar na conta-corrente dos dois anos de comissão.
E ao fim da tarde - quando nos conseguíamos abstrair da guerra desse dia ou da que estava marcada para o dia seguinte – descobríamos o fim do dia avermelhado, o pôr do Sol da África, misterioso, quente, sufocante, agressivo, mas com um cheiro único, envolvente, pesado que nos esmagava os sentidos, entranhando-se na pele e na memória do olfacto.


Havia dias em que este pontão fervilhava de agitação no desembarque de géneros de pequenos barcos a motor que subiam o rio até Farim, onde se situava a sede do Batalhão 490, cerca de 20 quilómetros mais acima. Devido à guerra, o rio era uma via mais segura para as populações se deslocarem e as LDM (lanchas de desembarque do tipo daquelas que se celebrizaram no desembarque da Normandia) partiam apinhadas de mandingas e fulas da região, que em cada viagem transportavam quase todos os seus haveres – galinhas, cabritos, máquinas de costura, bicicletas e crianças, muitas crianças.

De vez quando chegava um navio patrulha o que animava o nosso dia a dia, pois a guerra da Marinha sempre foi melhor do que a dos caçadores - leia-se guerra do ar condicionado, da cerveja fresca para os praças e de alguma garrafa de whisky para as patentes mais elevadas. Há que referir que a chegada da Marinha também resultava para nós, caçadores, numa sessão de cinema com energia fornecida pelos geradores do navio.

Deste pontão arriscava-se de vez em quando uma viagem em piroga para apanhar uns peixes para melhorar o rancho ou, para alguns mais aventureiros, dar um tirinho nalgum crocodilo sonolento que estivesse a apanhar sol nas margens. Para trazer uma pele para uma mala ou para uns sapatos para a namorada, tinha de se levar para essas caçadas furtivas uma “Mauser” porque as balas da ”G3” não furavam a pele dos crocodilos. Quando havia crocodilo para esfolar havia também chatice com os habitantes de Binta que eram protegidos pela tropa mas que não davam baldas no que respeita aos crocodilos do seu rio. Queres levar a pele (a do crocodilo e a própria) para Lisboa pagas...

A vida nocturna do povoação era animadíssima como se calcula e quando não havia guerra para o dia seguinte, vinha-se apanhar o fresco junto ao pontão. Das variedades constava habitualmente tentar descortinar na noite os olhos de alguns crocodilos que vinham até junto da margem comer restos de comida deitados para o rio pelos cozinheiros da Companhia.

Numa noite em que o patrão estava fora – leia-se Comandante da Companhia - quatro malucos pediram emprestado ao cabo-quarteleiro um cartucho de dinamite de 100 gramas e com os restos de um cabrito prepararam uma armadilha mortal junto à margem, encostada como não podia deixar de ser a um dos suportes do pontão. A primeira vítima foi um cão, que lhe cheirou a cabrito e quando deu por si estava a sobrevoar a fronteira com o Senegal, que ficava a cerca de 25 quilómetros. O estoiro foi tão grande que o resto da tropa saiu dos seus quartos para repelir o ataque dos turras.

Muitos tiros depois conseguiu-se alguma calma para o grupo dos quatro explicar à rapaziada que estava em curso uma caça ao crocodilo. Perante a grandeza do estoiro anterior, reduziram a dose para 50 gramas de dinamite, com mais uma dose de cabrito fornecida por uma mandinga, a quem se prometeu a pele do dito crocodilo antes propriamente de... a ter. O risco mais elevado do negócio continuava a ser... para o mandinga e para o crocodilo...

Desta vez o crocodilo vem ao engodo, a dinamite rebentou, o pontão voou, o quartel ia caindo, mas o crocodilo... não ficou por ali! Recuperada a surdez dos caçadores e respectivos mirones alguém se lembrou de que os crocodilos não são parvos de todo e que o bicho deve ter feito detonar a dinamite quando puxou os restos cabrito para comer em local sossegado – o fundo do rio. Conclusão triste – o crocodilo deve ter apanhado um grande cagaço, talvez tivesse ficado surdo ou mesmo gago, mas a pele continuou agarrada ao seu corpo... Lixou-se o mandinga, o cão e o Estado Português, com menos 150 gramas de dinamite nos seus paióis. E o pontão é bem de ver, que teve de ser reparado em horas extraordinárias antes do regresso do Capitão Tomé Pinto, que não era para brincadeiras...

Como estão a perceber pela amostra este pontão do Cacheu dava para escrever um livro, sendo certo que ele ficou para sempre guardado nas nossas memórias
Porque foi ao longo do tempo a nossa... PONTE PARA O REGRESSO.

Ali chegámos em meados de 1964... meninos, de vinte e poucos anos, putos e dali partimos... homens de traços vincados e... almas marcadas pela dureza da guerra. Vimos este pontão pela última vez em Maio de 1966.

O simbolismo da sua imagem, desta fotografia com alma está pendurada na sala de estar da minha casa, em Alcobaça.
A maioria das pessoas que me visita quase não dá por ela.
Para mim, no capital do meu património de recordações, ela diz muito.
Para mim e cento e setenta irmãos esta fotografia do pontão do Cacheu representa a magia de uma época.

Sem palavras... recorda-me os afectos, a minha juventude, a minha generosidade, o meu gosto pela fotografia... e a minha nostalgia pelas Torres do meu Mosteiro.

Vezes sem conta pareceu-me ver, esfumadas no horizonte, as Torres do meu Mosteiro, do Mosteiro de Alcobaça


Continuo a tirar umas fotografias.

Mas... o que me apetece dizer para terminar... é que cada vez me custa mais passar um dia sem ver as Torres do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça.

A incurável nostalgia dos anos sessenta... quando nos aproximamos dos setenta!!!

José Eduardo Reis de Oliveira
(Setembro de 2009)

Nota: Tratamento de imagem da responsabilidade do meu amigo Marco Correia, a quem expresso o meu agradecimento pela sua competência e... paciência.
JERO

Estas imagens foram posteriormente editadas pelo Editor do Blogue para efeitos de publicação
CV

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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 – P5048: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (16): Leões na Guiné em 1966!

Vd. último poste da série de 13 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4943: Blogando e andando (José Eduardo Oliveira) (1): O gasóleo do Amílcar e a emboscada de Sare Dicó

Guiné 63/74 - P5053: Agradecimento colectivo ao ilustre grupo de amigos do Blogue (Hélder Sousa)

1. Comentário de Hélder Sousa (*), ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72, deixado no dia 4 de Outubro de 2009 no poste 5046, a propósito do seu aniversário:

Meus caros amigos
Sendo eu um bocado sentimental não podia deixar de ficar sensibilizado com as vossas manifestações de simpatia.

Deste modo quero fazer um agradecimento colectivo a este ilustre grupo de novos amigos que o Blogue proporcionou, quer aos que aqui postaram os seus comentários, quer aos que me escreveram directamente, quer também aos que me telefonaram.

Sem dúvida que o Blogue é grande e possui o mérito em pôr em contacto toda esta enorme quantidade de gente boa.

Ao António Graça quero-lhe dizer que não precisa agradecer as referências que lhe faço. São justas e merecidas! Nem sempre estou de acordo com ele mas quem quer unanimismos? Recebo os dez mil abraços e formulo o desejo que cem mil flores desabrochem, que cem mil flores floresçam.

Ao Juvenal Amado agradeço os seus votos com a certeza que são retribuidos.

Ao incortornável alfero Jorge Cabral digo que o abração foi aceite e que se mantém de pé a intenção do almoço, apenas aguarda a melhor oportunidade.

Ao camarigo Mexia Alves não vou repetir o que já lhe tenho dito, que fico mais enriquecido por o ter conhecido, que o considero um amigo indefectível, com um coração enorme, muitas vezes ao pé da boca, é certo, mas sempre franco e leal. É verdade, também não estou sempre de acordo com ele mas são as diferenças que nos completam.

Ao Vasco, grande Vasco, amigo recente, sempre lhe digo que essa ideia de ser atraído pelo estômago é pura invenção do Carlos Vinhal, que é um criativo...

Ao Magalhães Ribeiro, homem generoso e de constante trabalho solidário, quero agradecer os votos formulados e prometer que serão retribuídos.

Ao Mário Pinto, homem também generoso e activamente solidário, agradeço as suas felicitações.

Ao Colaço, que também admiro, agradeço igualmente as felicitações.

Ao vate Manuel Maia (não é o único, aliás, em termos de poesia, o nosso Blogue está recheado de valores) sempre lhe digo que agora já sei que ele sabe que eu sei que ele sabe, mas que o que importa é agradecer os seus votos... com uma dúvida: porquê até aos cem?

Ao Manuel Moreira os meus agradecimentos com a certeza de que serão retribuídos.

Ao Amílcar Ventura os meus agradecimentos pelos parabéns cantados.

Ao José Câmara, homem que costuma emprestar ao Blogue frescura, humor, bom senso e notícias de outras paragens, agradeço a referência ao brinde da coca-cola com o whisky em homenagem aos tempos da Guiné, mas confesso que agora já só muito raramente bebo dessa água suja do imperialismo devido a recomendação médica.

Ao Luís Graça, ao também incontornável Luís Graça, responsável por esta coisa que é o nosso Blogue, quero agradecer todas as suas palavras e dizer de forma explícita de como as estimo. No entanto fazes cada pergunta! E estavas à espera de respostas, era? Querias um postzinho, não? Tem calma, amigo, ainda andam por aí muitos piratas desejoso de reescrever a história ao seu modo...

Ao António Paiva, homem do HM de quem leio sempre com grande respeito e emoção as suas histórias, quero agradecer as suas palavras.

Ao Mário Fitas, grande Mamadu, temos então mais algo em comum para além da nossa amizade... tens então uma filha a fazer anos no meu dia... pois então, agradecimentos pelos teus votos e já agora te peço que endereces os meus à tua filha.

Ao Torcato Mendonça, homem da planície, da beira-mar, das serranias, de Portugal, os meus agradecimentos pelos seus votos e pelos abraços fortes pessoais e que envolvam fraternalmente toda esta Tertúlia.

A todos e também aos que não se expressaram por este meio, os meus agradecimentos.
Hélder S.

2. OBS:
Uma pequena nota para pedir desculpa ao Hélder. Nunca julguei que interpretassem à letra a expressão: atraído pelo estômago. Foi uma brincadeira para alegrar ainda mais um dia já de si alegre.

Hoje, muito a sério, reformulo para: atraído pela oportunidade de um são convívio com camaradas da Guiné.

Esta é a verdade, para pesar de mentes maliciosas que esperam qualquer coisinha para destruirem a reputação de um homem.
Caso para dizer, caro Hélder, com amigos destes, nem precisamos de inimigos.

Agora a sério, caro Hélder e restantes camaradas.
Pela nossa parte é um prazer fazermos esta pequena homenagem no dia em que alguém faz anos. É uma oportunidade para nos conhecermos mais um pouco, trocarmos algumas palavras e reforçarmos estes laços que se querem cada vez mais fortes, a camaradagem e a amizade. Haverá algum sítio onde se utilize o adjectivo camarigo para designar alguém de que gostamos mesmo?

CV
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5046: Parabéns a você (31): Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF, Piche e Bissau (1970/72) (Editores)

Guiné 63/74 - P5052: Notas de leitura (26): Os Heróis e o Medo, de Magalhães Pinto (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 29 de Setembro de 2009:

Caríssimo Carlos,
Penso que és tu que estás à testa do nosso glorioso negócio.
Espero enviar-te o segundo texto nos próximos dias, depois faço uma pausa.
Por favor, publica antes deste a terceira e última parte das memórias do sargento Talhadas.

Recebe um abraço do
Mário


Meus bravos, de que cor é o medo?
Beja Santos

Magalhães Pinto (economista, publicista, biógrafo e romancista) dedicou o seu segundo romance às memórias da sua comissão na Guiné (“Os heróis e o medo”, Magalhães Pinto, Âncora Editora, 2003). Tudo gira à volta de um batalhão, o 600 e tal, os Águias, com sede em Mansoa, é governador e comandante-chefe Arnaldo Schultz. A tónica fundamental, assegura o autor, gravita em torno da heroicidade, que não se mede pelo número de adversários mortos mas pelo profundo sentido de humanidade, pelo saber fechar as portas ao medo, dando aos outros a nossa coragem, a nossa solidariedade.

Magalhães Pinto apresenta o seu romance como uma história ficcionada. Há um narrador, Mário, para o qual convergem outras histórias, outras vidas. É imobilizado imprevistamente, a sua vida já estava rotinada, resigna-se, informa a família, casa, forma batalhão em Santa Margarida, ruma no Uige para Bissau. O comandante do batalhão é António Soveral, para quem a Pátria não se discute. O filho fora feito prisioneiro na Índia, a filha envolve-se na contestação académica, namorisca mesmo com alguém que é contra a guerra colonial. Amélia, a mulher do tenente-coronel Soveral suporta a solidão e todas estas contradições familiares. Os protagonistas vão aparecendo, um a um: Álvaro, o Manel fadista, José António, o namorado de Rafaela, a filha do tenente-coronel Soveral, uma chusma de gente embarca para Santa Margarida, assim apresentada: “Aquilo não era um quartel. Era um exército de quartéis. Uma longa avenida, larguíssima, ladeada pelos típicos edifícios militares mais recentes. Ao fundo, a servir de rolha à avenida, uma capela. Estilo moderno. A presença da Igreja num local onde se ensinava a matar. Onde se ensinava, também, a morrer”. A divisa do batalhão será: bravos, leiais e fiéis. É em Santa Margarida que chega a notícia da mobilização: Guiné, que todos tinham ouvido dizer ser o teatro de guerra mais violento e perigoso.

António Soveral vive os seus dramas: o filho Ricardo já foi libertado, abandona a vida militar, vai refazer a sua vida em França; o Pais, da PIDE, quis falar com ele sobre as relações da filha com gente do contra, recomenda ao tenente-coronel que encontre modos de controlar melhor a sua filha. E depois o embarque: “Firme!... Sent...op!... Direita... er! Em frente... arche!... O rufar dos tambores. A marcha militar, de novo. As botas, nessa altura ainda de sola, a baterem no empedrado, como se fossem um par apenas. Desarmados. A G3, companheira fiel de cada um deles nos próximos dois anos, não era para mostrar ali. Assim, a imagem a perdurar nos familiares pendurados na varanda do cais seria a de um passeio”. E o navio afasta-se, os oficiais na primeira classe, os sargentos na turística e os soldados nos porões. Álvaro faz poesia, assim se partiu para África, assim rapidamente se chegou a Bissau, ao seu pequeno cais, todos partem em lanchas de desembarque numa coluna de camiões Berliet, irão ser despejados junto ao quartel-general. E começa o fascínio dos contactos descrito pelo Mário: “Bô miste lavadêra? Bô miste pillha, branco? Miste missanga bonita pra mandá tua senhora?... Qué mancarra, branco?... Dois saco um peso...”

O batalhão parte para Mansoa, sua sede, as companhias dispersam-se por Mansabá, Bissorã e Olossato. Pior do que o Oio só Guilege e Gadamael, lá mais para o sul, e a ilha do Como. Antes de partirem, Mário, Álvaro e Manel percorrem Bissau. Samba Jau leva-os ao Pilão, ao bordel. Zé António, o namorado da Rafaela, é metido na tropa, vai para um quartel em Bragança.

Magalhães Pinto ficciona uma primeira operação e dá-lhe o tom mais polémico possível: o capitão Soares da Cunha, depois de uma emboscada, comanda uma chacina: “Ordenou a alguns homens para irem às viaturas buscar morteiros e granadas. Quando eles voltaram, mandou armar os morteiros e apontar à aldeia. Os homens ainda o olharam, interrogativos. Mas o rosto duro do capitão não deixava espaço para diálogos. Foi ele mesmo a enfiar no tubo a primeira granada. Ouviu-se o deslizar da granada cano abaixo, fazendo silvar o ar expelido. O barulho do choque do fulminante com o percutor confundiu-se com o assobio da granada a ser expelida do tubo e a cruzar os ares. A explosão. Em cheio na aldeia. Soares da Cunha mandou esgotar o cunhete. As granadas sucederam-se ao ritmo das explosões. Pam... pam... pam... Pancadas secas de pilão a esboroar fragilidades de adobe e colmo. Quando o cunhete ficou vazio, novamente o silêncio. A tabanca tinha deixado de existir. Toda. As moranças. As mulheres. As crianças. Os velhos”. Mário entra em solilóquio: “Tudo perde sentido aqui. Esta violência não fere, queima. É este silêncio que mais me confrange, que mais me dói. É preciso ser herói para assistir a tudo isto em silêncio”. Magalhães Pinto lá terá as suas razões para ter forjado este Wiriamu na Guiné, escrever em pleno século XXI um massacre de que nunca ninguém ouviu falar, é obra, sabe-se lá qual o alcance da parábola sobre estas populações açoitadas pela presença do guerrilheiro e das forças portuguesas.

Começam as baixas no batalhão 600 e tal, o estado de ânimo de António Soveral começa a desagregar-se. Mário escreve à mulher, está-se nas tintas para um potencial censura, confessa que precisa do seu carinho, fala em saudades. Mas aqui também não se entende a parábola de Magalhães Pinto, como se os militares portugueses vivessem em estado de sodomia: “Esta semana tenho andado com uma amigdalite. E o médico da companhia receitou-me uns supositórios. Foi o Álvaro quem mos introduziu. Havias de ver os cuidados dele com a minha doença. Deixei de chamá-lo pelo nome próprio e chamo-lhe agora, sempre, irmão. E ele também me chama irmão. Bem, às vezes, quando procuramos desabafar as tristezas numa alegria postiça, chamamo-nos manas. Ó mana, queres vir tomar um café? Devia ser um chá. Mas ninguém se lembra de bebidas tão finas, apesar de tratamento tão delicado. Tão feminino”.

As distracções são escassas, há a esplanada do Clube dos Balantas, cinema aos sábados, ao ar livre, e os livros eróticos de Cassandra Rios. Joga-se o “abafa”, um jogo de cartas de pura sorte ou azar. É nesta atmosfera que se anuncia a ida de os Águias ao acampamento de Morés. De Bissorã, Mansabá e Olossato saíram as companhias operacionais e de Mansoa partiram os comandos. As companhias foram reforçadas pelos pelotões de milícias. Mário é emboscado. As nossas tropas reagiram, o inimigo recuou. Mário e Mamadu, um mandinga, combatem lado a lado. Não havia tabanca que Mamadu não conhecesse em toda a região do Oio, ostentava uma cruz de guerra por actos de bravura. Naquele dia foi ferido. Mário parte em seu auxílio, imobiliza a força atacante. As nossas tropas capturaram um guerrilheiro, Mamadu é evacuado com um feio buraco no abdómen. Avança-se para o Morés, a água acabou, o sofrimento é enorme: “A boca adquire rugosidades desconhecidas. A língua enrola-se no palato. A garganta arde como lenha. O cérebro embota-se na ideia fixa de torrentes cristalinas. O tempo alonga-se insuportavelmente. A distância ganha dimensão de infinito. A arma, segura e fiel companheira dos momentos de perigo, torna-se um objecto supérfluo e incómodo, que apetece deixar encostado a um mangueiro qualquer”. É uma longa e lenta caminhada para o Morés.
(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5040: Historiografia da presença portuguesa (22): Bolama, Farim... Álbum fotográfico de 1943 (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5031: Notas de leitura (25): "Memórias de um guerreiro colonial", de José Talhadas - Parte III (Beja Santos)

Guiné 63/74 – P5051: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (23): Os malditos fornilhos

1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a sua 23ª estória:

Camaradas,

Sempre que os meus afazeres profissionais e familiares mo permitem, continuo a vasculhar o meu velho baú de recordações e vou passando, para o PC, alguns textos que rabisquei durante a minha comissão.
Como penso que são de interesse geral, dadas as matérias tratadas (por todos nós conhecidas), mas muitas delas já a caminho do esquecimento vou-oas enviando, com alguma nostalgia, para publicação no blogue.

Hoje abordo um dos nossos maiores pesadelos diários, a par com as assassinas minas, em cada uma das nossas saídas dos aquartelamentos:

OS MALDITOS FORNILHOS

Numa guerra traiçoeira, inúmeras vezes sem inimigo á vista, que procurava por todos os meios causar baixas às NT, tudo valia para levar adiante os seus fins.
Talvez a mais traiçoeira e eficaz de todas as armas utilizadas pelo IN, contra as nossas forças armadas, foram os amaldiçoados fornilhos.

Nas picadas e estradas, por nós percorridos, os nossos experientes picadores, descobriam imensas minas (A/C e A/P), mas os fornilhos poucos conseguiam detectar.

Os fornilhos eram montados em buracos feitos nas estradas, ou nas picadas, que eram preenchidos com material de guerra obsoleto e eram detonados á distância, semeando o pânico e o inferno entre o nosso pessoal.
Foram os causadores do maior número de mortes, estropiados e feridos nas NT, sofrendo alguns de nós, ainda hoje, de graves efeitos físicos e psíquicos dos mesmos.

Numa guerra cruel e desumana como foi a da frente da Guiné, nós também utilizamos fornilhos, nomeadamente em defesa dos nossos aquartelamentos. Em Mampatá haviam vários á volta do arame farpado.

No dia 17 de Agosto de 1970, aquando do grande ataque de surpresa do PAIGC, à Tabanca de Mampatá, o nosso principal meio de defesa foram os ditos fornilhos. O IN só retirou da sua acção agressiva que desenvolveu sobre nós, quando os mesmos rebentaram.

Constatou-se então que o inimigo tinha sofrido fortes baixas devido às explosões dos mesmos.
Também utilizamos fornilhos, em acções de emboscadas, mais precisamente no corredor de Missirã, tanto mais não tivessem servido, pelo menos foi uma forma psicológica de nos sentirmos mais seguros.

Era a lei de “quem com ferro mata… com ferro morre”. Na maior parte das vezes quem morria eram os carregadores dos equipamentos do IN, muitos deles obrigados pelo PAIGC a seguirem à frente das suas colunas.

De tanto picar estradas e trilhos, aqui deixo este verso da autoria do meu camarada Fur Mil Edmundo:

De pica na mão
lá ia a maralha
com toda a metralha
de olhos no chão
p’ra não haver falha
piquem bem o trilho
tomem atenção
sou de opinião
que se houver FORNILHO
ai que Deus nos valha


Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Fotos: Mário Pinto (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

domingo, 4 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5050: Efemérides (27): Declaração da Independência em 24 de Setembro decorreu não em Madina do Boé mas Lugajole (Patrício Ribeiro)



1. O nosso canarada e amigo Patrício Ribeiro é membro da nossa Tabanca Grande. Mais conhecido em Bissau como o verdadeiro embaixador... dos tugas, pertence à Associação Ajuda Amiga. É natural de Angola, foi fuzileiro durante a guerra colonial na sua terra e vive já há 25 na Guiné, sua segunda pátria.

2. O Patrício enviou ao Luís Graça uma interessante mensagem, da qual o Luís me solicitou a publicação com o seguinte comentário: Eduardo, O Patrício Ribeiro ("o pai dos portugueses da Guiné") tem uma tese de alto interesse: não foi em Madina do Boé que foi proclamada a independência da Guiné, como nos é historicamente contado, mas sim em Lugajole, a sudeste de Beli.

Lugajole fica na estrada Béli - Vendi Leidi (na fronteira), sob o lado esquerdo, logo abaixo de Béli... Pelo mapa (tenho o de Béli mas ainda não está 'online'), ainda é longe de Madina...

3. A mensagem enviada pelo Patrício Ribeiro é a seguinte:

A minha história… da História.

Ao ler no livro BATALHAS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL – Guerras de África Guiné – 1963 - 1974, da Academia Portuguesa de História, de Fernando Policarpo, volume 21, na página 135, verifiquei que o autor declara… que a Independência da Guiné foi proclamada em cerimónia, na “localidade de Madina do Boé” (sic), em 24 de Setembro de 1973 (foto 1).

Num passeio, que fiz em 2005 naquela região, via Ché Ché (foto 2), na companhia de uma equipa da RTP África e do correspondente do Jornal Expresso, visitamos, acompanhados pelas autoridades locais, o local onde foi declarada a Independência, junto à localidade de Lugajole, conforme Monumento ali erguido em memória à cerimonia (foto 3), que uma queimada tinha destruído.


Fica em cima de uma colina (morro), num local muito alto, de onde se pode avistar para os lados de Beli (foto 4)… quem vem lá, a diversos quilómetros (foto 5). Aqui ficam as minhas duvidas… qual seria afinal o local da proclamação: Lugajole ou Madina?

A distância entre as duas povoações é de muitos quilómetros, assim como de muitas horas de viagem em jipe.


Fonte junto ao Quartel de Madina do Boé (foto1)

Jangada do Ché Ché (foto 2)


Lugajole: Local onde foi declarado a independência da Guiné (ao fundo o Monumento) (foto 3)

Restos do Quartel de Beli (foto 4)

Em baixo, a actual povoação de Lugajole (foto 5)


Um abraço Amigo,
Patrício Ribeiro


Fotos: © Patrício Ribeiro (2009). Direitos reservados.

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Notas de M.R.:

Vd. postes anteriores desta série em:


(*) Vd. também postes de:




(**) Vd. idem postes de:





Guiné 63/74 - P5049: Parabéns a você (32): Artur Conceição, ex-Soldado de TRMS da CART 730, Bissorã, Farim e Jumbembem (1965/67) (Editores)

Há uns bons anos que o nosso camarada Artur da Conceição (*) (ex-Soldado de Transmissões da CART, Bissorã, Farim e Jumbembem, 1965/67), festeja o seu aniversário no dia 4 de Outubro.
Este ano fá-lo de modo um pouco diferente, porque os seus mais de 350 amigos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, se vêm associar ao acontecimento. Mais, combinam aparecer por aqui sempre e enquanto o Artur nos quiser ter como amigos.

Ao Artur desejamos uma longa vida com saúde e boa disposição, festejando os seus aniversários sempre junto de quem o ama.


O Artur é nosso companheiro desde Maio de 2007, altura em que se dirigiu ao nosso Editor Luís Graça:

Quero estar ao lado dos que não permitem o virar da página... O meu nome é Artur António da Conceição... Estive na Guiné (1965/1967). Fui Soldado de Transmissões de Infantaria e Condutor Auto. Pertenci à Companhia de Artilharia 730. Estive em Bissorã, Farim e Jumbembem. A minha comissão de serviço foi de 9 de Fevereiro de 1965 a 14 de Fevereiro de 1967.

Permitem-me a entrada na tertúlia ? Em que posso ajudar ?

Sou natural de Campia onde temos anualmente um convívio de todos a ex-combatentes da freguesia. Levantámos um monumento em memória dos ex-combatentes do século XX, conforme foto acima inserida.

Não tenho estado ausente desta causa, e tenho algumas obras feitas, ntre elas uma base de dados onde constam todos os que tombaram, e também os que foram condecorados, a partir da qual é possível tirar muita informação.

O ficheiro Tabela4.xls, que envio em anexo, é uma tabela criada a partir dessa mesma base e onde podemos ver algumas curiosidades. Ver por exemplo que morreram mais em combate na Guiné do que em Angola (que é 35 vezes maior).

Por hoje não mando mais nada, a não ser um grande abraço a todos os elementos da tertúlia.

Conheço dois…. o que é muito bom!!!! Mas gostava de conhecer muitos mais…….!!

Artur António da Conceição



Algumas fotografias do Artur publicadas no nosso Blogue:

Guiné > Região do Oio > Jumbembem > CART 730 (1965/67) > Estes eram meninos de Jumbembem que eu gostava de ensinar. Na fila da frente e de camisa branca está o Tomás que era esperto que nem um rato. Era o menino querido dos estica fios

Guiné > Região do Oio > Jumbembem > CART 730 (1965/67) > O que terá acontecido a estas duas meninas ??? Eram de Jumbembem, a Fili e a Djar

O Artur com o Capelão que celebrou a missa, em Brá no dia 18 de Abril de 1965, Domingo de Páscoa

Vouzela > Campia > Monumento aos Combatentes do Século XX > Inaugurado em 13 de Novembro de 1999 e dedicado aos campienses combatentes deste século. Lembra aos vindouros a participação de muitos naturais de Campia na Guerra Colonial, na Primeira Grande Guerra e em expedições a África e à India. A iniciativa inseriu-se no IV Convívio dos Combatentes e Forças Expedicionárias da Freguesia de Campia. Em 2007, realizou-se o XII Convívio. No início da cerimónia, o nosso camarada Artur Conceição no uso da palavra. Ao centro, o Capitão Álvaro Dório Correia Tavres, que esteve em Bedanda.

Guiné > Região do Oio > Jumbembém > CART 730 (1965/67) > Artur Conceição, o hortelão na sua horta onde se gabava de cultivar os melhores tomates e alfaces do CTIG.
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

21 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1772: Tabanca Grande (5): Também quero estar ao lado dos que não permitem o virar da página (Artur Conceição, CART 730, 1965/67)

8 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1824: O Aeroporto de Jumbembem e os ecologistas 'avant la lettre' (Artur Conceição)

24 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1989: Homenagem ao António da Silva Batista (Artur Conceição, CART 730, Jumbembem, 1965/67)

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2291: Convívios (36): XII Convívio dos combatentes da Freguesia de Campia, no dia 10 de Novembro de 2007 (Artur Conceição)

8 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2335: A trágica morte do Cap Rui Romero: 10 de Julho de 1966, dia de correio (Artur Conceição)

16 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2355: O meu Natal no mato (1): Jumbembem, 1965: Os homens às vezes também choram... (Artur Conceição)

10 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3045: Convívios (72): Em Campia, Vouzela, homenageando os esquecidos da guerra (Artur Conceição / José Manuel Lopes)

12 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3049: Estórias Avulsas (17): As cadelinhas de Jumbembém (Artur Conceição)

16 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3747: Fauna & flora (9): Do macaco-cão ao macaco-fidalgo... à mesa (José Nunes / Artur Conceição)

22 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4066: Humor de caserna (9): Quando os alentejanos de Jumbembem viram cair-lhes os tomates... a seus pés (Artur Conceição)

5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4899: Convívios (157): XIV Convívio dos ex-Combatentes da Freguesia de Campia – 22AGO2009 (Artur Conceição)

Vd. último poste da série de 3 de Outubro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5046: Parabéns a você (31): Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF, Piche e Bissau (1970/72) (Editores)

sábado, 3 de outubro de 2009

Guiné 63/74 – P5048: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (16): Leões na Guiné em 1966!


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 16ª história, com data de 3 de Outubro de 2009:

BLOGANDO E ANDANDO

Leões na Guiné em 1966!

O título pode parecer especulativo... mas tem algum fundo de verdade.

Passamos a explicar.

Em Maio de 1966 uma equipa de futebol do Sporting Clube de Portugal visitou a “portuguesíssima Província da Guiné para homenagear a sua Filial nº. 89 – Sporting Clube de Bissau”.

Os “leões de Alvalade” efectuaram alguns jogos de futebol em Bissau com equipas locais. E também “futebol de 5” contra equipas militares.

E como soubemos desta distante história de “Leões” na Guiné?

Na nossa rotina diária depois de em casa “blogar” vamos andar para a pista de um campo de futebol, que temos a sorte de ter ao pé da porta.

Um destes dias numa conversa com um parceiro “de pista”, que sabíamos ter jogado futebol no Sporting (Lisboa), vieram à baila algumas “conhecimentos” sobre a Guiné que nos surpreenderam.

Como é que ele sabia coisas de Bissau, de Bolama e Bafatá?


Tendo em conta a nossa diferença de idades como é que o José Carlos de Jesus tinha estado na Guiné com 18 anos de idade sem ser na qualidade de militar!?

A resposta não deixou dúvidas: - Como jogador de futebol do Sporting Clube de Portugal.

Ah, tá bem!

A conversa continuou no dia seguinte e o Zé Carlos trouxe-me uma carta do S.C.P. datada de 7 de Junho de 1966, que reproduzimos em anexo.

A carta refª. 4521/66, Minº. ML, Dactº. AC. atribui um “Voto de Louvor” a todos os jogadores que fizeram parte do grupo de futebol…pela forma valorosa como desportivamente se aplicaram no decorrer dos três jogos realizados. Acompanhou a comitiva leonina o Vice-Presidente para as Relações Externas Dr. António Alexandre Pereira da Silva. Assinava a carta o Secretário-Geral da Comissão Directiva Romeu Adrião da Silva Branco.

Colhemos entretanto a informação adicional que era Presidente do Clube Guilherme Braga Brás Medeiros (1965-1973).

Alem da carta trouxe-nos também uma fotografia de uma equipa do tempo (1964-65) do Sporting Clube de Portugal.


E o que recorda o Zé Carlos da sua passagem de Guiné 40 e tal anos depois?

Recorda várias coisas.

A longa viagem do Super Constelation de Lisboa a Bissau – cerca de 9 horas – e o “choque” com o calor e humidade quando saíram do avião a caminho da cidade.

De fato inteiro, camisa e gravata bufavam que nem… leões.

Quando chegaram ao Palácio do Governador para cumprimentarem o “General” Shultz ficaram de boca ainda mais aberta por o Governador os receber de calções e camisa.

Depois recorda as Avenidas de Bissau, o mercado e militares por todo o lado. Gente, cor, bulício e…ausência de sinais de guerra.

Em relação aos jogos no Estádio de Bissau recorda muita gente, muito entusiasmo e no final algumas cenas de pancadaria entre militares da marinha e do exército.

Na equipa do Sporting não jogaram então alguns dos grandes jogadores da época por estarem já seleccionados para e equipa de Portugal que iria, dentro de poucos meses, disputar o Campeonato do Mundo de 1966, (onde viríamos a obter o melhor resultado de sempre - um 3º.lugar).

Os jogadores em causa ainda hoje são históricos e recordados pelas gentes do futebol: Carvalho, Hilário, Morais, Zé Carlos, Alexandre Baptista e Lourenço.

O Zé Carlos recorda que em Bissau, sob a orientação do treinador Juca jogaram: Damas, Caló, Carlitos, Lino, Pedro Gomes, Dani, Colorado, Figueiredo, João Barnabé, Barão e outros atletas cujo nome já não recorda.

Fora do que se passou nos rectângulos de jogo o José Carlos de Jesus (também conhecido nos “futebóis” por Zé Carlos II) lembra com particular saudade as viagens a Bolama e a Bafatá.

Para Bolama viajaram em viaturas descapotáveis (Renault Caravell) sem escolta militar.

Para Bafatá viajaram de avião (Dakota).

Lembra-se de aterrar num pequeno campo de aviação e de viajar para a cidade num carro de “caixa aberta”.

Seguiu-se um almoço memorável à base de ostras grelhadas, como nunca mais comeu até hoje.

Deixamos para o fim a invulgar e, no que nos diz respeito, nunca ouvida história do crocodilo amestrado de Bolama.

A comitiva do Sporting foi avisada de que ia ver uma “cena” única: um crocodilo amestrado que, à voz de um domador da “casa” (leia-se de Bolama) iria sair do seu charco privativo para vir até terra firme “confraternizar” com a malta. Daria até para se tirar uma fotografia com um pé em cima das costas do crocodilo sorrindo para a objectiva.

Foi com esta expectativa elevada que os “leões” de Lisboa se aproximaram do charco das terras de Bolama.
O “domador”, empunhado um comprido pau com um pedaço de carne na ponta, pediu silêncio e aproximou-se do “poiso da fera”.

O charco, de água esverdeada e viscosa, permanecia calmo…

O “domador” arriscou mais uns passos e, de repente, o crocodilo apareceu e saltou (ou pareceu saltar).

Foi um cagaço monumental.

Domador e seus convidados fugiram a sete pés (ou mesmo mais… ).

A malta da bola não deixou os seus créditos por pés alheios e sprintou rapidamente para bem longe do charco.

O crocodilo ouviu das boas e a sua mãe não escapou de algumas graves ofensas verbais à sua honra!

As viagens de regresso a Bissau e mais tarde a Lisboa decorreram dentro da normalidade.

À distância no tempo o Zé Carlos II recorda com saudade os seus 18 anos e a viagem à Guiné.


Mas o crocodilo “amestrado” de Bolama e o cagaço colectivo da comitiva dos “leões de Alvalade” ocupam, nas suas memórias africanas , os “flashes” mais nítidos das recordações de há quarenta e tal anos atrás.

Devemos ao Zé Carlos II a evocação dos “Leões na Guiné” em 1966.

Alguém na nossa Tabanca Grande se lembra destes futebóis longínquos?

E do crocodilo de Bolama?

Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675

Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em: