segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5517: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (16): Pedrada no charco a bem dum Natal introspectivo… (António Matos)

1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos a seguinte mensagem:

Camaradas,

Uma vez mais a minha pedrada no charco a bem dum Natal introspectivo sem esquecer as crianças que nas aldeias, de mãozitas roxas, tolhidas pelo frio, que esperam desça pela chaminé o duende que lhe trará o chupa-chupa, o pião, quiçá uma malga de sopa quente....

Se os discursos sarassem feridas;

Se as nossas compaixões não se esfumassem em inócuas retóricas;

Se a nossa caridadezinha não fosse pornográfica;

Se a nossa solidariedade se mantivesse no anonimato que engrandece corações;

Se as nossas acções fossem tidas de mãos dadas com um país solidário;

com governantes que não se babam ao serem apelidados de homens mais sexy do mundo;

se não vestissem tão caro;

se não fossem tão arrogantes;

se não fossem mais bem pagos do que os seus congéneres de estatuto verdadeiramente multinacional;

se não fossem tão terrivelmente sucateiros;

quantas vezes palhaços;

se, se, se ....

Então sim, poderíamos apelar a que o Natal fosse todos os dias e a alegria de viver fosse um must!

Até lá, não sejamos ingénuos a pensar que isto vai lá...

Debitem-se menos palavras, quantas vezes ditas sem qualquer sentido que não circunstancial!!!

Mas o Natal tem essa capacidade transformadora e regeneradora das consciências pesadas...

Do vil ladrão ao execrável assassino, do mais medalhado ex combatente ao mero soldado desconhecido, todos nos desfazemos em votos de boas festas que o não são para tantos e tantos a quem a sorte abandonou...

Calemo-nos por uma vez perante o autêntico sofrimento dos infelizes e aplaudamos os voluntários das boas vontades que dão o corpo ao manifesto calcorreando as ruas e os recônditos esconderijos onde se ESCONDEM os abandonados e os esbanjados de tudo onde a dignidade se perfila na 1ª linha dos bens a perder!

Façam os possíveis por serem felizes.

António Matos
Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790
__________
Nota de MR:

Vd. poste anterior desta série em:


Guiné 63/74 - P5516: Cancioneiro da CCAÇ 557 (Cachil, Bafatá, Bissau) (1): Recordar é viver (Francisco Santos / José Colaço)

1. Mensagem de José Colaço (*), ex-Sold de Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65 (foto à direita), com data de 13 de Abril de 2009:

Um ligeiro apanhado da missão cumprida pela CCaç 557 na Guiné... [Os versos são do nosso poeta popular Francisco dos Santos, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, da CCAÇ 557, que fez agora, em 15 do corrente, 67 anos] (Foto, à esquerda).

 2. Resposta, na altura,  do L.G. (**):

Parabéns pela tua brilhante ideia de salvar as quadras do teu camarada Francisco dos Santos... Um dia destes iremos publicar o nosso romanceiro ou Cancioneiro da Guiné... E o Francisco dos Santos (alentejano ?) ficará lá muito bem, a representar os seus valentes camraradas da CCAÇ 557. Vê-se que são quadras feitas agora, de memória. Mas deve haver por aí muitas mais, se calhar envergonhadas, escondidas...

Todo este material tem um enorme interesse para a compreensão socioantroplógica do homem português da geração (a nossa) que fez a guerra de África. Isto é também a nossa História, a nossa Cultura...Dá os parabéns ao Francisco dos Santos e diz-lhe que ele merece figurar, com chapa e tudo, no quadro de honra da nossa Tabanca Grande. Vê se lhe sacas as duas fotos da praxe para o Carlos Vinhal poder fazer a sua apresentação ao resto dos tabanqueiros  (**) e... mais umas tantas quadras... Tu mesmo podes acrescentar algumas notas e comentários: por exemplo, quando e onde morreu o Nabais ?

3. Resposta do José Colaço:

Luís,  o Nabais era um rapaz muito simples,  por esse motivo era muito apoiado por todos os camaradas. Quem lhe escrevia as cartas e os aerogramas era o Francisco dos Santos. A sua morte não teve nada a ver com combates de guerra, não sei se por ironia do destino ou sei lá assisti  praticamente aos últimos minutos de vida do Nabais.  Era uma tarde bonita cheia de sol,  o Geba convidava-nos a tomar banho. Então um grupo de 10 ou 12 militares,  fomos tomar banho. O Nabais não sabia nadar,  ele estava neste caso mais ou menos à beira-rio. Entretanto notou-se a falta do Nabais mas como do grupo nenhum sabia mergulhar com capacidade para procurar o Nabais, [fez-se] uma corrida até ao quartel [para]  chamar o Fernando,  cabo condutor,  óptimo mergulhador que em poucos segundos aparece com o Nabais na palma da mão, ao cimo da água,  mas sem sinais de vida.. Ainda se tentou a recuperação mas o Nabais estava morto,  não se sabe se por afogamento ou problemas por estar a fazer a digestão. Ficou sepultado em Bafatá,  no talhão dos militares, em 13/04/1965. Quanto ao Francisco dos Santos, darei noticias,  somos muito amigos. Um abraço. José Colaço.

4. Hoje,  o Colaço manda-me uma foto do Fancisco e mais un versinhos ("Marcas da Guiné", abaixo reproduzidos):


[A CCAÇ 557]

Fomos a 557,
Companhia que cumpriu,
A história não se repete
Regressámos com muito brio.

Foi de Évora que partimos
No ano de sessenta e três,
A nossa missão cumprimos
Com altos e baixos... talvez.

Chegámos à Guiné-Bissau
Com novo clima a pairar,
Em guerra é tudo mau,
Tudo isto há que encarar.

De Bissau partimos um dia
Para o mato, com coragem;
Quase ninguém sabia
Que o Como era a paragem.

Mal a gente tinha chegado,
O pior aconteceu,
Com um tiro transviado
Um nosso colega morreu.

Onze meses foi a paragem,
Foi amargo como o fel;
Trabalhámos com coragem,
construímos o quartel.

Num espaço de labirinto,
Havia muitas madeiras,
Fizemos o nosso recinto
Só com troncos de palmeiras.

O que mais fazia falta,
Era a água potável,
A Catió ia a malta
Num serviço impecável.

No local a sobrevivência
Só por si era uma luta,
Havia que ter paciência
Pois a guerra era a disputa.

Nas matas desta Guiné
Lutámos bem com genica,
Nunca perdemos a fé,
Éramos uma grande equipa.

Fomos grandes camaradas
Nestas terras promotoras,
Mesmo com as morteiradas
E o som das metralhadoras.

Mês após mês passava,
Num total isolamento,
A comida escasseava
Mas não perdíamos o alento.

Éramos a família unida,
Por isso não digo nomes,
Sacrificámos a vida,
Que heróis todos nós fomos.

Mas veio então a mudança,
Bafatá que era a norte,
Havia mais esperança
E talvez melhor sorte.

Não queríamos muito mais,
O tempo passa a correr
Mas o soldado Nabais
No rio viria a morrer.

A morte por afogamento
Que já ninguém o previa,
Este triste acontecimento
Chocou muito a Companhia.

Há muito mais para contar,
Em toda esta aventura,
Só pensávamos em regressar
Para dar e receber ternura.

E isso aconteceu,
Em Novembro foi o dia,
O passado morreu,
Dêmos largas à alegria.


Desde o RAL3 em Évora, até ao cais da Fundição em Lisboa

Foi no RI 16 formada,
Sim, falo dela outra vez
Por 557 baptizada,
Foi a partir do RAL3

De Évora até ao Barreiro,
Se não me falha a memória,
O combóio foi o primeiro
Transporte da nossa história.

A viagem até foi boa,
Onde a ansiedade escalda,
Do Barreiro até Lisboa,
Depois o Ana Mafalda.

Pois foi este o navio
Que à Guiné nos levou,
Depois de largar o rio,
O oceano atravessou.

Chegámos àquela terra
Para nós tudo diferente,
Para além da dita guerra
Outros hábitos, outra gente.

E a Bissau se chegou,
Depois foi o dia a dia,
O que mais nos impressionou
Foi a miséria que havia.

Longe está a nossa partida,
De regresso ao nosso lar,
Um por todos p´la vida,
É a mensagem a passar.

Nesta missão encontrámos
Obstáculos a contornar,
Alguns meses ali passámos
Que pareciam não acabar.

Depois fomos parar
Ao Como e ficamos sós
P´ra lutar e trabalhar
Na defesa de todos nós.

Com o moral nada em cima,
Havia alguns requisitos,
É que,  para além do clima,
Era a luta dos mosquitos,

Não havia água pura
Onde estava a Companhia,
Só havia com fartura
Na época em que chovia.

Não usávamos só a manha
Nas estratégias inimigas,
Tínhamos a dura bolanha,
Matacanhas e formigas.

Era tiro e morteirada
Mas tudo isso se alterou,
Quando uma bazucada
Na paliçada esbarrou.

Pouco depois para já
Diminuiu a pressão,
Porque a norte em Bafatá
Iria terminar a missão.

Tivemos como baluarte
Um excelente capitão,
Connosco em qualquer parte
Nunca fugiu à razão.

Chegámos ao fim da missão,
Voltámos à terra natal,
Desembarcámos na Fundição,
Em Lisboa, Portugal !!!

Marcas da Guerra

Isto passou-se na Guiné
mas a sorte teve a seu lado,
seu nome António José
mas de Espanhol alcunhado.

P`ra saír de madrugada,
toda gente comparece,
era a tropa preparada
para o que desse e viesse.

As vidas ali expostas
só dependiam da sorte,
e foi um tiro nas costas
que o ia levando à morte.

Foi os efeitos da guerra
e teve sorte, naquele azar,
mesmo caído por terra
a vida o quis brindar.

Do sofrimento ao dever
daquela missão cumprida,
o Espanhol não vai esquecer
foi marcado, p`ra toda a vida.

Parece estar encerrado
o que niguem vai esquecer,
lá diz o velho ditado
que recordar é viver.


Um alfa bravo para todos os tabanqueiros
Francisco dos Santos.


5. Comentário de L.G.:

A esta companhia, que esteve no Cachil (mas també Bafatá e Bissau), pertenceram:

(i) Alf Mil Médico Rogério Leitão (***)
(ii) Alf Mil José Augusto Rocha (****)
(iii) Sold Trms José Colaço (*)

Há dias pusemos o Francisco Santos a nascer no Ribatejo... Ora Sarilhos Grandes pertence ao Montijo, distrito de Setúbal, e fica a sul do Tejo, não "arriba"...O Colaço brincou comigo por causa desse "lapsus linguae"... Respondi-lhe que tinha  razão, mas que, mesmo assim, considerava o Montijo  mais "ribatejano" do que "estremenho", culturalmente falando... Não sei se os montijenses estão de acordo... Mas se não estiverem também não é grave... LG
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

Vd. postes de 12 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4329: Tabanca Grande (139): Francisco Santos, ex-militar da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau, Bafatá - 1963/65)

(**) Vd. poste de 16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4196: Blogpoesia (39): CCAÇ 557, Missão cumprida na Guiné (José Colaço/Francisco dos Santos)

 Vd. também poste de 15 de Dezembro de 2009 >  Guiné 63/74 - P5470: Parabéns a você (53): Francisco dos Santos, 1º Cabo Radiotelegrafista, CCAÇ 557, Cachil, Como, 1964 (Editores)

(...) Biografia do Francisco dos Santos:

Em Sarilhos eu nasci
e fui como outros tantos,
no Montijo, perto daqui,
registaram Francisco dos Santos

Comecei a ouvir depois,
ainda menino eu lembro,
que nasci em quarenta e dois
no dia quinze de Dezembro.

Sarilhos Grandes me criou,
só para a Guiné eu sai,
sou feliz aonde estou
tudo o que tendo é aqui.

Casei, construí família,
gozo de cinco maravilhas,
para além da esposa Emília,
três netos e duas filhas.


Vd. ainda poste de 15 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5470: Parabéns a você (53): Francisco dos Santos, 1º Cabo Radiotelegrafista, CCAÇ 557, Cachil, Como, 1964 (Editores)

(***) Vd. poste de 13 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5264: Os nossos médicos (8): O Dr. Rogério da Silva Leitão, aveirense, cardiologista, CÇAÇ 557, Cachil, Como, 1963/65 (José Colaço)

(***) Vd. poste de 14 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5267: História de vida (17): Um homem no Cachil, Ilha do Como, CCAÇ 557, 1964 (José Augusto Rocha)

Vd. também poste de 18 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5125: José Augusto Rocha: da crise estudantil de 1962 à Op Tridente, Ilha do Como, 1964 (José Colaço / Luís Graça)
 



Guiné 63/74 - P5515: Notas soltas da CART 643: O grande amigo Sargento Bajouco da CART 642 (Rogério Cardoso)

1. Mensagem de Rogério Cardoso* (ex-Fur Mil Manutenção, CArt 643, Bissorã, 1964/66), com data de 21 de Dezembro de 2009:

Amigo Carlos, aqui vai uma história contada sem ter grandes dotes de escritor.


HOMENAGEM AO GRANDE AMIGO SARGENTO BAJOUCO DA CART 642

O Sargento Bajouco era um bom homem, e continua a ser, amigo de todos sem excepção. Lembro-me de duas situações caricatas.

A primeira foi quando chegámos a Bissau em Março de 1964 e as Cart 642 e 643 foram provisóriamente colocadas num armazém junto ao cais, a Bolola.
As duas Companhias estavam comodamente instaladas num edifício coberto de chapa de Lusalite, sómente com uma porta e duas janelas. O armazém era amplo, com camas em beliche de 3 e 4 sobrepostas, isto para cerca de 200 homens. À entrada havia um pequeno cubículo chamado de Secretaria, onde se guardavam uns garrafões de água que estavam bebaixo de uma secretária. Esses garrafões estavam misturados com outros que continham óleo de limpeza n.º 1.

Aconteceu uma vez que o Bajouco entrou espavorido e gritou:

- É pá, estou a morrer de sede.

Atirou-se a um garrafão e tragou um ou dois goles do óleo n.º 1 para a G3, saindo a correr para a rua aos gritos.

Agora a outra

Sabiam que o Bajouco dormia na caserna com mais 30 ou 40 sargentos, tapado com cobertores, enquanto nós todos nus. Quando às escuras, íamos destapá-lo e ele acordava logo.

Outra particularidade do Bajouco é que os seus pés eram de uma dimensão fora do comum, compridos e muito largos.

Então, numa saida, o seu Pelotão atravessou uma bolanha, e numa breve paragem alguém perguntou:

- Oh Bajouco, que pegada é esta tão grande, que bicho será este?

Ele respondeu que tinha a impressão de ser a de um hipopótamo. Disseram-lhe para pôr a sua bota no lugar e com espanto disse:

- Olha, é o meu pé!!!

Enfim são algumas cenas para recordar com alegria que todos os anos no nosso encontro voltamos a contar.

Por falar en Encintros, os Águias Negras vão-se encontrar no dia 10 de Abril de 2010 em Fátima - Boleiros, no Restaurante D. Nuno. Será o 30.º Encontro. Programem a vossa vida e não faltem.

Um abraço amigo do ex-Fur Mil da Cart 643
Rogério Cardoso
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5509: Álbum fotográfico de Rogério Cardoso (1): A Paulucha e material apreendido ao IN (Rogério Cardoso / Carlos Brito)

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5481: Estórias avulsas (65): Ainda o Fiolifioli (Armandino Alves)

Guiné 63/74 - P5514: O meu Natal no mato (26): Um regresso à Guiné com a Benedita, pelo Natal (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2009:

Queridos amigos,
já entreguei na editora a “Mulher Grande”.
É a narrativa de uma heroína anónima com peculiares incidências afectivas. Tem 90 anos e uma vida cheia, uma memória úbere, prodigiosa. A narrativa culmina numa amizade profundíssima com quem lhe colhe os depoimentos e lhe armazena as recordações. Em dado momento, a heroína, de nome Benedita pede ao seu escriba que voltem à Guiné, que ela tanto amou, mesmo fingindo esquecê-la.
Viveu em Bissorã, Teixeira Pinto, Gabu, São Domingos, entre outras localidades. Assistiu à chegada da guerra, tudo procurou cicatrizar, reelaborar, expandir. Foi a personagem principal a que me agarrei enquanto eu próprio me procurava cicatrizar, regenerar e crescer com a perda da minha Locas.

Tem, pois, todo o sentido oferecer-vos um texto desse livro, a quadra é propícia.

Agora vou escrever um livro sobre os problemas actuais dos consumidores e revolver as entranhas para ver se tenho coragem em voltar à Guiné em “A viagem do Tangomau”.

Desejo do coração a todos mil alegrias natalícias,
Mário


Um regresso à Guiné com a Benedita, pelo Natal

Por Beja Santos

Há dias, falávamos do meu Natal em Missirá, em 1968, aí relembrei a felicidade de juntar na mesma mesa a população Mandinga, todos os meus soldados, mesmo com a tristeza de termos tido recentemente a baixa do Paulo Ribeiro Semedo, um apontador de dilagrama que quase morrera na região de Chicri.
A Benedita, di-lo abertamente, não tem recordações entusiasmantes dos seus natais na Guiné, preparou ceias, acolheu gente que estava sozinha, armou presépios, obsequiou gente necessitada, até foi à missa do galo em São Domingos. Mas não houve nenhuma recordação marcante.
Então ela perguntou-me se eu gostava de voltar lá, ao que respondi que me bastava por ora a lembrança do tempo vivido. Abrindo os olhos, muito líquidos, fixando-me depois do relato que lhe fiz daquele dia 25 de Dezembro de 1968 em Missirá, veio o pedido inesperado:

- Posso pedir-lhe uma lembrança imaginada do Natal deste ano nessa Guiné que tanto nos marcou, como se fosse agora que lá estivesse?

Como já deixei de me surpreender com qualquer tipo de pedidos, sobre quaisquer assuntos, feitos à mesa, ao telefone, por e-mail ou por outra via, mecanicamente respondi que sim. Tinha muito que fazer mas ela não me deu tréguas, deixou uma mensagem no atendedor automático:

- Promessa é promessa, quero ir consigo passar o Natal à Guiné. Mande a lembrança, não deixe o prazo expirar. Escreva qualquer coisa que seja comum ao que vivemos nesses rios de água barrenta, de gente de sorriso aberto. Mas mande a lembrança antes do Dia de Reis. Cá estou à espera. Benedita.

Sentei-me à secretária, remexi nas minhas fotografias, telefonei ao Cherno Suane para lhe ouvir a voz, consultei o Abudu Soncó acerca de alguns aspectos da geografia do Cuor, e alinhei o texto que enviei por e-mail à Benedita:


Amantíssimos guinéus

Qualquer pretexto serve, a ficção é sempre um fantasma oblíquo da realidade, colocamos acidentalmente o tempo de acção desta inenarrável viagem no embarcadouro de Mato de Cão.

É véspera do dia de Natal, vou a caminho de Missirá, é ali que tenho a Estrela de Belém à minha espera. Portanto, parei em Mato de Cão, Vem ao meu encontro Manuel, luso-guineense, aqui houve uma quinta que desapareceu em 1964, finda a guerra, Manuel regressou, fez renascer das cinzas a agricultura, a destilaria, o embarcadouro donde a mancarra segue para Bissau. Na companhia de Manuel subo ao planalto de Mato de Cão de onde se avista a majestade do palmar até Sinchã Corubal.

Os Mandingas regressaram ao planalto, comove-me este bulício que nunca pudera partilhar no tempo em que aqui vim todos os dias para evitar os ataques às embarcações. Ao longe, em Chicri, reergue-se uma tabanca Balanta. Chicri, que fora sempre terra de combate. Assesto os binóculos, vejo gente azafamada.
Um céu eléctrico serve de abóbada, nesta contemplação. É quase dia de Natal, para marcar o evento (fim do Advento) os pássaros desandam silenciosamente para o sul. O tarrafo, aqui nesta margem do Geba estreito, começa a ser soterrado por uma maré cheia que se aproxima, teremos depois os roncos do macaréu, por ora o mangal é uma renda frágil de verde queimado por este estranho sol perene, para lá do mangal agita-se ao vento a cabeleira do palmeiral, na orla da circundante lala. Sente-se a fervura do dia, por ora convivemos com a branda aragem. Desço o planalto, subo ao embarcadoiro, desconjuntado, não há nenhuma canoa à volta. Aqui vim todos os dias, dias dos longos e exaltantes tempos que passei no Cuor, pedindo a Deus para que os barcos prosseguissem, incólumes, até ao seu destino. Deus escutou-me, venho agradecer-Lhe, agora que se aproxima a liturgia deste macaréu fascinante. A paisagem emudecida, espero, vai endurecer a argila da minha oração.

Ao fundo, em terras de Samba Silate, avisto agricultores Balantas que revolvem as terras, abrem diques, até se pode imaginar o som das mulheres a pilar arroz, na sombra dos frondosos poilões. Falta-me um cantil, uma bilha de barro ou mesmo uma garrafa de vidro revestida de couro pintado, preciso de me dessedentar, sentir-me apaziguado com a visão desta ramagem semelhante à do bambu, pressentindo as gramíneas, os juncos e o vigor dos tambores.

Hoje é o dia que prepara o renascimento, há um Deus-menino que vai alegrar as festas agrárias, iluminar as pulseiras de latão, excitar adolescentes com as suas danças da vaca ou do peixe-verga. Para este cerimonial de exaltação, trago comigo o braseiro de todos os incêndios de Missirá, do adobe calcinado, não há carapaça de cágado que me proteja dos sons dos tambores, apitos, ferros, matracas, até dos bombolons. Não há guerra, inveja, fanado, rito fúnebre, dança lúbrica, toada estrepitosa, corpos em contorção violenta, não há ráfia, peça de repouso, mezinha, feitiço, arma de arremesso, pano puríssimo, esteira, nada construído com mãos dentro do engenho da natureza, que se sobreponha a todas estas recordações que ponho nas mãos em oração, enquanto aguardo a chegada dos barcos que guardam no bojo arroz pilado, caju e óleo de palma.

É nisto que uma embarcação a motor se ouve nos meandros do Xime, vai aparecer suavemente neste Geba estreito. A bordo, vejo homens, mulheres e crianças, os olhos lampejam, contentes com o visitante que os saúda no embarcadouro, que lhes faz uma continência, parece a mesma continência que fazia a todos os barcos, com militares ou civis, muitos anos antes. Grito para mim, só para mim: “Hossana nas alturas!”. Esta a nossa boa acção, a boa obra é regressar sem um vinco de amargura e desejar a todos a paz na Terra, no clamor da boa vontade.

A embarcação a motor prossegue, perco-lhe a vista no tarrafo barrento, infinitos meandros há a percorrer até Bambadinca, senão mesmo até Bafatá.
Chegou a hora de continuar viagem, os amantíssimos guinéus de Mato de Cão, no Cuor foram saudados, alegremo-nos. Mais um abraço, Manuel. Sigo para uma pátria, Missirá.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > O sortilégio e a beleza do Rio Geba, entre o Xime e e Bambadinca, o chamado Geba Estreito, numa das fotos aéreas magníficas do Humberto Reis, ex- Fur Mil Op Esp, CCA 12.

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados



Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 2001 > Rio Geba. O famoso macaréu. No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança (LG)

Foto: © David Guimarães (2005). Direitos reservados



Dei uma explicação à Benedita: foi tudo escrito intencionalmente ingénuo, elaborado como se eu voltasse a ser um jovem de 20 e poucos anos, como se aquela viagem fosse possível, como se aquele embarcadouro existisse, como se houvesse navegação no Geba estreito, como se fosse admissível uma continência quase militar, como se o Deus-menino precisasse de ser recordado lá para os lados de Mato de Cão. O que é verdade é que há agora Mandingas no planalto de Mato de Cão e Balantas em Chicri. Mas talvez o mais importante de tudo é que Manuel existe e Manuel foi e é o nome do Deus-menino. E mais escrevi: “Tenha paciência, deixei de poetar, fique-se com a mediocridade da minha resposta à sua encomenda”. E a sua resposta veio prontamente: “Olhe, diz o Mia Couto que viver é cumprir sonhos, esperar notícias, que a velhice não é idade, é um cansaço. Cansaço era perdermos ousadia, toda a confiança em recomeçar, em regenerar”.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5503: Notas de leitura (44): MEMÓRIA DOS DIAS SEM FIM, romance de Luís Rosa (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5512: O meu Natal no mato (25): Apanhados em flagrante, a pôr duas minas no 'sapatinho', na estrada Xime-Bambadinca (Libério Lopes, CCAÇ 526, 1963/65)

Guiné 63/74 - P5513: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (19): Referências a lugares

1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2009:

Caro Carlos:
Desta vez o atraso no envio da estória deve-se a muitos factores: Uma ida ao “meu” Nordeste, uma ida a Espanha, etc.

Mais uma vez te digo que esta estória parece grande mas só porque tem muitas fotos. Acredita que gostaria de pôr mais algumas, mas irão noutra altura.

Gostaria muito que o Humberto Reis mostrasse as fotos à D. Rosa e sua família, onde penso que estariam as suas filhas e me dissesse alguma coisa.

É o primeiro Natal que passo na Tabanca Grande (e na Pequena também).
A todo o pessoal das duas tabancas (e das outras também), sem excepções, desejo para esta quadra (e para as outras também) o que, neste mundo, há de melhor.


Um grande abraço a todos.
Fernando Gouveia


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

19 – Referências de Bafatá – Lugares


Já numa outra estória referi que os alferes do Agrupamento iam fazer as refeições no Esquadrão, ali ao lado. Primeiro a messe era gerida, mensalmente, por cada um de nós. Porém, quando em Novembro de 69 esse Esquadrão foi rendido por outro, comandado pelo Cap. Fernando Vouga, este determinou que a messe dos 6 ou 7 alferes, fosse gerida por um sargento. Um desastre.

Como o Esquadrão tinha uma horta de onde vinham algumas hortaliças e em Bafatá havia carne e peixe à disposição, podia-se comer muito bem. O Sr. Sargento é que teria outras ideias em mente e os pratos à base de carne gordurenta de porco (a mais barata) sucediam-se.

No último mês da minha comissão comecei a sentir-me doente do estômago, ou do fígado ou das duas coisas. Outros alferes também andavam descontentes e acabaram, como eu, por desarranchar-se. É assim que surge o primeiro lugar a descrever.


O Café Restaurante Transmontana

Quando já não conseguia reter no estômago qualquer refeição mandada confeccionar pelo Sr. Sargento resolvi, in extremis, passar a comer no Transmontana, só peixe e frango cozidos com arroz. Felizmente ao fim de dois dias chegou a mensagem para vir embora.

Neste Blog já foi muito falado o Transmontana, situado numa esquina da avenida principal, à esquerda quem descia. Muitos já se referiram ao bife com batatas fritas e ovo a cavalo que ali se servia mas eu nunca antes tivera necessidade de lá ir comer. Ia, sim, muitas vezes tomar café ou comer uma sande, embora o pão fosse mau, parecia borracha.

Uma vez estava sentado na esplanada com a minha mulher que começou a conversar com o empregado Infali. Era muito simpático mas tinha um ar muito triste. Durante a conversa referiu que tinha quatro mulheres. Talvez fosse essa a razão da tristeza…

Na esplanada do Transmontana com o empregado Infali.


As três tabancas

Ah, se fosse agora, com as máquinas fotográficas digitais…Muita pena tenho de não poder descrever por imagens, o muito que vi nos meus passeios às três tabancas. Muitas fotos tirei mas muitas mais ficaram por tirar.

A tabanca da Rocha, onde tive casa, situava-se na parte alta da cidade, ao nível dos quartéis do Agrupamento e do Esquadrão. Era a mais extensa, aquela onde havia melhores casas e também a mais populosa.

Por lá ter vivido pude assistir a muitos actos sociais dos nativos como choros, batuques, cristãos e balantas, casamentos (em que a maior parte das prendas consistiam em meias cabaças) e outras festividades.

Na época própria, creio que em Dezembro, chegavam, pela estrada do Gabú, carregamentos de mancarra em burros todos engalanados com motivos florais, muito coloridos.

Era também na tabanca da Rocha que se situava o bordel bataclã, numa rua paralela à estrada para Bambadinca. Na altura nunca o ouvi designar como tal; talvez o nome tivesse surgido com a telenovela Gabriela.

A tabanca da Ponte Nova, assim chamada por ficar na “estrada” que ligava Bafatá a Geba e em que existia a ponte mais recente da cidade, desenvolvia-se ao longo do caminho e ao lado do rio Geba. Nela havia uma comunidade de saracolés, que tingiam os panos de azul. Estes podiam ver-se ao longo da tabanca, pendurados, a secar nas vedações e nas beiradas das palhotas. Nessa tabanca ficava ainda a oficina do ourives Chame.

A tabanca da Ponte Nova. Ao fundo o Geba e a foz do Colufe.

A Ponte Nova (ou Salazar como não podia deixar de ser), que deu o nome à tabanca próxima.

A tabanca do Nema era a mais pequena. Ali ia de vez em quando assistir, ao fim da tarde, à saída dos morcegos (muito negros com 50 a 60 cm de envergadura) para as suas noitadas. Logo que saíam iam, em voo rasante, beber água ao rio. Recentemente li, num livro de contos mandingas, que não iam propriamente beber mas sim molhar a pelagem do peito donde, posteriormente lambiam a água. Durante o dia ocupavam duas ou três grandes árvores que, consequentemente, quase não tinham folhas.


O Mercado

Considero-o, no seu estilo neo-árabe, como o verdadeiro ex-libris de Bafatá. Como já lhe dediquei uma estória (poste 4769) não acrescentarei mais nada.

O mercado


Zona das lavadeiras

Perto do mercado e dum arranjo ajardinado onde existia um parque infantil, era uma zona sempre visitada. Ali atracavam grandes barcos que faziam a rota Bissau-Bafatá e que, a meu ver, tinham arremedos de veleiros. Mas eram as lavadeiras, em grande número, que atraíam mais pessoal.

As lavadeiras, os barcos e o Geba com as suas canoas.


A piscina

Entre o mercado e o rio havia uma piscina, um luxo para aquele tempo…No entanto a sua água não seria mais limpa que a do Geba.

Na piscina (uma varanda sobre o Rio Geba).


O restaurante do Sr. Teófilo

Embora já referido na estória anterior, nunca é demais realçar a sua posição estratégica numa encruzilhada de caminhos. Era muito agradável assistir da sua esplanada ao desenrolar da vida de Bafatá. Crianças a caminho da escola, mulheres a caminho do mercado, homens transportando as mercadorias mais diversas, militares que entravam e saíam de Bafatá. Também dali se viam chegar aviões e helis e, rumo aos celeiros, viam-se passar os burros engalanados carregados de mancarra.

Ao fundo o restaurante do Sr. Teófilo, na saída para Bambadinca

Da esplanada do Sr. Teófilo viam-se as crianças a ir para a escola, mulheres para o mercado…


Sintra de Bafatá

Era assim designado um caminho pouco conhecido, praticamente utilizado só pelo pessoal do Agrupamento e do Esquadrão, quando se queria chegar à parte baixa de Bafatá, gozando de uma sombra que não era possível utilizando a avenida principal. Do Agrupamento descia-se um desnível de 10 a 15 metros, junto à residência do Comandante do Esquadrão (a uns 50 m). No fundo situava-se a mãe de água que abastecia toda a cidade e um fontanário, à europeia, do qual já vi uma foto publicada no Blog. A água sobrante formava um riacho que se transpunha por cima do tronco de uma árvore caída. Junto da mãe de água partia um caminho, quase em linha recta até à parte baixa de Bafatá. Passar por ali era sempre interessante. Viam-se crianças a brincar e macacos à espera que alguém lhes desse algo para comer. Também era frequente ver lagartos com cerca de 1/1, 5 m atravessarem à nossa frente, de um lado para o outro, mas absolutamente inofensivos…

Entre a Mãe de Água e a casa do Cap. do Esquadrão existia uma zona com mesas para piqueniques. A esposa do Cap. Comandante do Esquadrão costumava dar, nesse local, umas festas de que falarei mais à frente.

Sintra de Bafatá. A caminhar da parte baixa da cidade para a Mãe de Água.

Na Sintra de Bafatá transpunha-se um pequeno riacho…


O cinema

Na rua paralela ao rio e mais perto deste, tínhamos um recinto, ao ar livre, onde se exibiam alguns filmes. Por causa das luzes, projectores, etc, surgiam inúmeros insectos que eram um bom repasto para os imensos morcegos que surgiam também, urinando frequentemente em cima dos espectadores. Já em tempos referi aqui que me tornei sócio do Sporting Clube de Bafatá, ao qual o cinema pertencia, para poder usufruir de entradas mais baratas. Creio que as sessões eram semanais e eu era frequentador assíduo. Passei a conviver com o porteiro Braima. Tivemos várias conversas sobre os mais variados temas locais pelo que aprendi muito com ele. Não sei quem escolhia os filmes mas, dum modo geral, os que ali se exibiam eram muito bons, até demais…Numa das sessões foi exibido o “Deserto Vermelho” de Antonioni. Após o intervalo a assistência ficou reduzida a metade…

O cartão de sócio, um bilhete de entrada e uma senha da cota mensal.


O café da D. Rosa

Quase em frente à sede do batalhão, era muito conhecido. Mas o que se pode achar um pouco estranho, e disso peço desculpa à D. Rosa, é que nunca lá entrei. Não recordo se alguma vez vi ou não a D. Rosa, mas as filhas penso que sim. Como era sabido eram umas belas adolescentes. Não sei se haveria libanesas feias, mas as que conheci quer em Bafatá, quer em Nova Lamego, eram duma forma geral belíssimas. Quando eu vim embora, um Alferes do Agrupamento, o Vaz (alentejano), estava para casar com uma moça libanesa, penso que de fora de Bafatá, e que era duma beleza extrema.

Quanto às filhas da D. Rosa penso que as conheci muito bem, pois costumavam participar nas festas que a esposa do Cap. do Esquadrão costumava dar na zona de piqueniques da Sintra de Bafatá, ao lado da sua casa, onde se comia, bebia e… dançava.

À esquerda a sede do Batalhão e à direita o café da D. Rosa.

Um dos piqueniques, na Sintra de Bafatá, em que penso poderem estar as filhas da D. Rosa.

Um grupo de convivas no mesmo piquenique.

Fotos: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados


Não prometo ser “até para a semana”. O mais certo ser “até para o ano” camaradas...
Fernando Gouveia
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5384: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (18): Referências de Bafatá - Figuras típicas

Guiné 63/74 - P5512: O meu Natal no mato (25): Apanhados em flagrante, a pôr duas minas no 'sapatinho', na estrada Xime-Bambadinca (Libério Lopes, CCAÇ 526, 1963/65)



Guiné > Zona Leste > Xime > CCAÇ 526 (Bambadinca e Xime, 1963/65) > No Xime, esteve destacado um grupo de combate.

Foto: © Libério Lopes (2008).  Direitos reservados



1. Mensagem do Libério Lopes(*), ex-2.º Sarg Mil Inf da CCAÇ 526, Bambadinca e Xime, 1963/65, 


Caro Luís,


Junto envio um pequeno texto relacionado com a actual época festiva.

Dá-lhe o destino que entenderes.

Um abraço,
Libério.

2. Uma noite de consoada no Xime

por Libério Lopes

Passaram 45 anos mas o episódio mantém-se como se tivesse acontecido ontem.

Pensávamos nós, militares do Pelotão destacado no Xime, que iríamos passar uma noite de consoada tranquila, comendo as tradicionais batatas com bacalhau, sem couves, pois era coisa que nunca vimos nos dois anos de Guiné, tudo acompanhado com umas cervejinhas fresquinhas. De seguida viriam umas horitas de lerpa, mais duas horas de ronda e por fim um sono por vezes demasiado sobressaltado pelas picadelas dos mosquitos.

Porém, as coisas nem sempre correm como o previsto. O homem do rádio traz-nos uma mensagem para decifrar e que, depois de lida, nos tira de imediato a vontade de comer e o sono.

O Comandante de companhia ordenava que se efectuasse uma emboscada entre o Xime e a tabanca de Amedalai. E como na tropa uns mandam e os outros obedecem, nada mais havia do que cumprir essa missão.

Como havia apenas 3 secções, ao anoitecer foi deixada uma delas perto de um trilho que ligava com a tabanca de Samba Silate. Ali tomou posição, pensando o Furriel Miliciano que a comandava, que iriam ser umas horas de seca (como muitas outras vezes acontecera), já que entre o Xime e Bambadinca nunca tinha havido quaisquer sinais de IN a não ser a fuga da população da tabanca de Samba Silate (raça balanta) para o mato.(**)

Pensava ainda o comandante da secção no jantar que o esperava no Xime, quando começa a ouvir vozes a cerca de 200 m e um ruído que o leva a pensar ser a abertura de um buraco na estrada. Aguentou firme e em silêncio. Esperou alguns minutos que lhe pareceram horas. Eis, senão quando um grupo de homens se aproxima e mesmo em frente da secção emboscada, resolve abrir um buraco na estrada para ali ser colocada um mina anti-carro. Antes já tinham colocado outra.

Algumas rajadas de G3 quebraram o silêncio e acabaram de vez com a “brincadeira”. Do aquartelamento saiu de imediato outra secção em seu auxílio mas não muito preocupados pois não se tinham ouvido tiros de pistola-metralhadora, arma utilizada pelo IN. Em conjunto tem-se então noção de toda a realidade.

Ainda hoje pergunto: Que sinal teve o Comandante para mandar fazer uma emboscada nesta noite e naquela zona? Como foi possível esta coincidência da colocação da mina mesmo m frente dos nossos homens ali emboscados?

Se tudo isto não tivesse acontecido, o dia a seguir, dia de Natal, estaria na nossa memória por outros motivos. Duas minas esperavam-nos as consequências, todos nós sabemos quais seriam.

É claro que a consoada no Xime festejou-se depois da meia-noite, e de que maneira! Valeu a pena o sacrifício.

Recordo, também,  que as viagens entre o Xime e Bambadinca nunca mais foram como dantes.

Termino, desejando a todos os tertulianos, Boas Festas de Natal e um Bom Ano 2010.


Libério Candeias Lopes (**)
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

11 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3869: CCAÇ 526 (Bambadinca e Xime, 1963/65), História da Unidade (Libério Lopes)

10 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3863: Tabanca Grande (114): Libério Candeias Lopes, ex-2.º Sarg Mil Inf da CCAÇ 526 (Bambadinca e Xime, 1963/65)

(i) Mobilizada pelo Regimento de Infantaria n.º 7;

(ii) Comandada pelo Cap Inf Agostinho da Costa Alcobia, substotuído, ainda na metrópole, pelo Cap Inf  Luís Francisco Soares de Albergaria  Carreiro da Câmara;

(iii)  Foi para a Guiné no paquete Índia, em Maio de 1963, juntamente com os BCAÇ 506, 507, 599, e 600;

(iv) Até 30 de Junho esteve aquartelada em Brá, Bissau, com um pelotão destacado em Catió;

(v) Em 1 de Junho de 1963, é colocada na zona leste, ficando a depender do Batalhão de Bafatá;

(vi) É lhe atribuído um sub-sector com a área aproximada de 1.500 km2, constituída pelos Regulados de Badora, Xime, Cossé, Cabomba e Corubal (parte Norte).

(vii) O Comando da Companhia ficou instalado em Bambadinca, tendo sido destacado um pelotão para Xime, nesse mesmo dia 1 de Julho.No sector à sua responsabilidade, o IN que já actuara a Oeste e Sul de XIME até ao Rio CORUBAL, levando para os matos uma parte da população e fazendo fugir a restante, tentou expandir a sua acção para LESTE para o que atacou tabancas e quartéis, roubou culturas, emboscou as NT e procurou tornar intransitáveis as estradas;

(viii) A 15 de Julho, outro pelotão da Companhia seguiu para o Xitole em reforço das tropas ali aquarteladas. Regresso A 5 de Agosto de 1963;

(ix) Em 26 de Agosto de 1963m conhece um terceiro comandante, o Cap Inf Hleder José François Sarmento;

(x) Participou em diversas ioerações, no seu sector e fora do seu sector ("No sector à sua responsabilidade, o IN que já actuara a Oeste e Sul de XIME até ao Rio CORUBAL, levando para os matos uma parte da população e fazendo fugir a restante, tentou expandir a sua acção para LESTE para o que atacou tabancas e quartéis, roubou culturas, emboscou as NT e procurou tornar intransitáveis as estradas");

(xi) Durante os 21 meses de permanência no sub-sector, a Companhia teve 108 acções de fogo em contactos com o IN; em resultado dessas acções, o IN sofreu 48 baixas confirmadas pelas NT, havendo contudo um número muitíssimo superior de mortos e feridos referido por prisioneiros; foram apreendidas 5 espingardas, 5 pistolas-metralhadoras, 1 pistola, grande número de granadas de mão de diversos modelos e vários milhares de cartuchos;

(xii) Na tentativa de cortar os itinerários, o IN utilizou 15 engenhos A/C e 3 minas A/P; um fornilho A/C destruiu um jipe e os restantes 14 engenhos A/C foram detectados e levantados; as 3 minas A/P funcionaram, causando dois feridos: um às NT e outro à população.

A Companhia só teve duas baixas por acidente e nove feridos em combate, um dos quais evacuado para a Metrópole.

(**) Vd. poste de 11 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2930: Bambadinca, 1963: Terror em Samba Silate e Poindom (Alberto Nascimento, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 84, 1961/63)


(***) Vd. último poste da série:   8 de Dezembro de 2009 >  Guiné 63/74 - P5428: O meu Natal no mato (24): Boas Festas e Prósporo Ano Novo... (José Nunes, BENG 447, 1968/70)




domingo, 20 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5511: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (15): Duas mensagens da tertúlia - III (Editores)





1. Recebemos mais duas mensagens de Natal, uma enviada pelo nosso Camarada Álvaro Basto, ex-Fur Mil Enf da CART 3492/BART 3873, com um cartão de Boas Festas personalizado, com data de 20 de Dezembro de 2009:



2. A segunda mensagem sem qualquer identificação, cujo envio atribuo ao “soldado desconhecido”, da autoria de João Coelho dos Santos , só é publicada dada a sua rara e única beleza filosófica:

Natal de quem?....

Envio o que considero ser o meu mais belo Poema de Natal, para circular pelo mundo lusófono, tal como no ano passado.

Agora é mais conhecido com o título: "ENTÃO E EU, TODO O MUNDO ME ESQUECEU?"

Que seja lido e interpretado em todos os lares cristãos. E que se não esqueçam de referir o autor!
Soldado desconhecido

NATAL DE QUEM?

Mulheres atarefadas
Tratam do bacalhau,
Do peru, das rabanadas
-- Não esqueças o colorau,
O azeite e o bolo-rei!
- Está bem, eu sei!
- E as garrafas de vinho?
- Já vão a caminho!
- Oh mãe, estou pr'a ver
Que prendas vou ter.
Que prendas terei?
- Não sei, não sei...
Num qualquer lado,
Esquecido, abandonado,
O Deus-Menino
Murmura baixinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Senta-se a família
À volta da mesa.
Não há sinal da cruz,
Nem oração ou reza.
Tilintam copos e talheres.
Crianças, homens e mulheres
Em eufórico ambiente.
Lá fora tão frio,
Cá dentro tão quente!
Algures esquecido,
Ouve-se Jesus dorido:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Rasgam-se embrulhos,
Admiram-se as prendas,
Aumentam os barulhos
Com mais oferendas.
Amontoam-se sacos e papeis
Sem regras nem leis.
E Cristo Menino
A fazer beicinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
O sono está a chegar.
Tantos restos por mesa e chão!
Cada um vai transportar
Bem-estar no coração.
A noite vai terminar
E o Menino, quase a chorar:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?
Foi a festa do Meu Natal
E, do princípio ao fim,
Quem se lembrou de Mim?
Não tive tecto nem afecto!
Em tudo, tudo, eu medito
E pergunto no fechar da luz:
- Foi este o Natal de Jesus?!!!

(João Coelho dos Santos in Lágrima do Mar - 1996)
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P5510: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (10): Almoço de despedida do João Graça... e celebração dos 37 anos de casados do casal Silva (Pepito e Isabel)


Guiné-Bissau >  Bissau > O João Graça e, em primeiro plano, a neta do Pepito


Guiné-Bissau > Bissau >Bairro do Quelelé > 20 de Dezembro de 2009 >  Da direita para a esquerda: a Cristina (Pepa), Isabel, Pepito, João e a filha da Cristina... Presumo que a foto tenha sido tirada pelo marido da Cristina ou pela irmã, Catarina.

Fotos:  © Pepito (2009). Direitos reservados

1. Mensagem do Pepito que acaba de chegar à minha caixa de correio:


Luís: Hoje foi o almoço de despedida do teu filho (*). Coincidiu com os 37 anos de casamento do casal Silva.

O teu filho é espectacular. A facilidade de integração, de fazer companheiros e de se adaptar a ambientes que não conhecia antes, é fora do vulgar (quem sai aos seus...).

Tem feito sucesso na noite de Bissau. Ele e os amigos músicos locais, violino de um lado e viola papel ou corá mandinga do outro. É ver os restaurantes de Bissau Velho a aplaudir e a pedir que o avião da TAP de hoje, não venha.

Um Feliz Natal e um Bom 2010

pepito e isabel
ad bissau (**)

___________

Notas de L.G.:

(*) O João Graça, médico, interno de psiquiatria,  foi passar 15 dias  de férias à Guiné-Bissau, em viagem que pagou do seu bolso. Foi convidado da AD - Acção para o Desenvolvimento, para permanecer alguns dias em Iembérem, sede do Parque Nacional do Cantanhez, onde trabalhou, como médico, alguns dias, no respectivo centro de saúde materno-infantil. Fez também um fim de semana em Bubaque. Visitou um hospital de leprosos, na região de Bissau. Dedicou também um dia para fazer exames de vigilância médica dos trabalhadores da AD, no bairro do Quelelé. Queria também visitar o Hospital Nacional Simão Mendes e contactar o único especialista  em psiquiatria que lá trabalhava. Visitou igualmente a região leste (Bambadinca, Bafatá, Contuboel e Gabu). Foi ainda à região do Cacheu, a S. Domingos, onde estava a decorrer um festival cultural. Em Bissau fez novos amigos (sei que inclusive esteve com o Patrício Ribeiro) e tocou com alguns músicos locais.

Aproveito para felicitar, pela passagem de mais um aniversário de casamento, os nossos queridos amigos Pepito e Isabel, e desejar-lhes igualmente os melhores votos de Bom Natal e Feliz Ano Novo, em em meu nome e dos demais camaradas e amigos da Guiné, reunidos na Tabanca Grande.

 Eles são um casal extraodinária, de gente corajosa e solidária, que está habituada às duras provações da vida na Guiné-Bissau. Ambos agrónomos, casaram em Lisboa em 1972 e estão em Bissau a viver e a trabalhar desde 1975. Em Bissau, nasceram os dois filhos mais novos, Ivan e Catarina.  Em Bissau, vivem e trabalham a Cristina e a Catarina, ambas com a nacionalidade portuguesa. O Ivan vive em Portugal (tem uma filha).  Igualmente em Portugal, vive a mãe do Pepito (a Dra. Clara Schwarz que, com 94 anos, fala com regularidade com o filho através da Internet e é visita regular do nosso blogue...), além da mãe da Isabel, a senhora Levy Ribeiro.

Ao Pepito e à Isabel estou grato pelo carinho,  hospitalidade e amizade com que receberam o meu filho que, de resto, já é um amigo da família Schwarz da Silva e Levy Ribeiro, aqui em Portugal... O João deve chegar amanhã às 7h00 no avião da TAP.


(**) Vd. poste anterior desta série:   18 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5494: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (9): Inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje, em 20 de Janeiro de 2010.

Guiné 63/74 - P5509: Álbum fotográfico de Rogério Cardoso (1): A Paulucha e material apreendido ao IN (Rogério Cardoso / Carlos Brito)

1. Mensagem de Carlos Brito (ex-Fur Mil da CCS/BART 645, Mansoa, 1964/66), com data de 14 de Dezembro de 2009:

Amigo Carlos Vinhal,
As fotos que junto, foram-me enviadas pelo meu amigo e ex-camarada Rogério Cardoso da CArt 643/BArt 645 e ambos concordamos que elas são dignas de figurarem na Tabanca Grande.

O Rogério só agora está a iniciar-se nestas coisas da Net. Deu-me carta branca para as difundir e eu pensei que a melhor maneira seria enviá-las para o blog só que... bem, depois se verá. Eu, pessoalmente ainda nao aderi ao blog por razões técnicas (não tenho scanner) e, confesso, também não saberia como as postar no caso de já ter aderido.

Mas aqui vai:

O Rogério Cardoso era Fur Mil Manutenção da CArt 643.

Foi condecorado por ao ter-se oferecido para substuir um camarada doente, ter sido ferido em combate. Ele foi atingido por uma granada de RPG, que não explodiu, mas que lhe fracturou uma perna. Mesmo ferido, teve o bom(?) senso de pegar na granada e atirá-la para longe.

Também ele foi o autor e mentor da AM , feita num Unimog, que aparece nestas fotos e que baptizou de Paulucha, em honra da sua filha Paula.

Na minha modesta opiniao a CArt 643 teve um desempenho, brilhante, talvez os melhores Aguias Negras . Mas, como já disse anteriormente todos foram bons...para nada.

O Rogério é também um dos fundadores da Associação Amizade do BArt 645.

Amigo Carlos Vinhal, por favor põe estas fotos no blog.
Há aínda alguns Aguias sobreviventes, que vão gostar muito de as ver.
Os meus agradecimentos.

Carlos Brito
Ex-Fur Mil
CCS/BArt 645


Fotos 1 e 2 > Rogério e a autometralhadora Paulucha



Foto 3 > A "equipa" que estava a construir a AM Paulucha

Foto 4 > Fur Mils Rogério, Fernando e 2.° Sarg Mil Hipólito e Fur Mil Graça.

Fotos 5; 6 e 7 > Armas capturadas ao IN numa Operação com a CCaç 564





Fotos 8; 9 e 10 > Mais armas, onde se vê a granada de Pancerovka que partiu a perna ao Rogério





Foto 11 > As mesmas armas e a granada citada

Foto 12 > Unimog destruido por uma mina, a 3 Km da pista de aviação de Bissorã. A viatura incendiou do que resultaram 2 feridos, o condutor (natural de Barcelos), que tinha a alcunha de Substikem, (grave), e o Fur Mil Vaguemestre Massano, (ligeiro). Este último já faleceu.

Fotos 13 e 14 > Estrada de Mansoa/Bissorã onde se pode ver uma Daimler e o que julgo ser o pessoal a plantar mancarra.


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Notas de CV:

Sobre o BART 645 vd. postes de:

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2636: Convívios (42): Encontro do BART 645 em Fátima, no dia 29 de Março de 2008 (Jorge Santos)

28 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2894: O Nosso Livro de Visitas (14): Carlos Brito, ex-Fur Mil Inf, BART 645 (Oio, 1964/66)
e
27 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4594: Fichas de Unidades (3): História do BART 645 (José Martins)

Guiné 63/74 - P5508: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (11): Esta água tem pouco vinho

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 19 de Dezembro de 2009:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história palaciana.

Mais um Natal se aproxima. Para todos os camaradas aqui ficam os meus votos de um muito Boas Festas, muita saúde, e muita alegria na companhia de todos aqueles que vos são muito queridos.
Mas bom mesmo seria que todos nós pudessemos fazer Natal todos os dias do ano.

Um abraço do tamanho do Atlântico que nos une,
José Câmara




Esta água tem pouco vinho

Os camaradas que passaram pelo AGRBIS no início do ano de 1971, devem lembrar-se que o vinho servido nos refeitórios era bastante aguado e, quase sempre, mais quente que o desejável.

Uma manhã, regressado do serviço ao Palácio, o José Francisco Serpa, um florense da Ponte da Fajã Grande, soldado da CCaç 3327 e da minha Secção contava, alegremente, ao Comandante da Companhia que, como faxina de serviço, tinha levado as amostras do rancho ao Capitão, Ajudante de Campo do General Spínola. Para o seu estado hilariante tinha contribuído o facto do referido Capitão ter reconhecido que a água tinha pouco vinho.

Mal sabia eu que a história se repetiria, com consequências bem diferentes.

Dias depois, estando eu de serviço no Palácio, fiz as amostras das iguarias do dia e, com um Soldado da Guarda, dirigi-me ao gabinete do Capitão, mas este não se encontrava lá. Por indicação de um Alferes dos Serviços de Apoio, soube que o Capitão estava na Sala de Reuniões. Bati à porta que, ao abrir-se, deu para perceber que ali estava a ter lugar uma reunião de Altos Comandos Militares da Guiné, sendo o Capitão o graduado mais novo na sala.

Pedida a devida licença para entrar, o Capitão sugeriu que os graduados mais antigos provassem as iguarias do dia. Um oficial da Marinha, Contra-Almirante, se bem me recordo, limitou-se a dizer que provaria o vinho enquanto um Coronel da Força Aérea disse que provaria o peixe.

Assim começou a odisseia do dia.

O oficial da Força Aérea ao tentar espetar o garfo no peixe, teve o azar da posta dar um pequeno salto no prato e quase cair ao chão. De imediato interpelou-me se eram só cabeças de peixe que iriam ser servidas aos Guardas do Palácio. Retorqui que não tinha a certeza, mas que aquela não sendo a maior era a mais bonita que tinha vindo. Com a minha resposta arranquei uma gargalhada de boa disposição daqueles homens.

O melhor estava para vir. O oficial da Marinha provou o vinho e perguntou aos presentes se também o queriam fazer. Todos disseram que não. Então aquele oficial perguntou-me se eu costumava beber daquele vinho e se eu gostava dele. Respondi-lhe que bebia, mas que não gostava de vinho com água.

- É isso mesmo! Esta água tem pouco vinho - disse o Contra-Almirante.

Para minha surpresa, perguntou-me se eu sabia porque é que o vinho era tão aguado. Nessa altura reparei que o meu soldado chocalhava como uma debulhadora na faina do trigo lá na terra. Do Capitão apercebi-me de um pequeno sinal de cabeça a incentivar-me à resposta que saíu, essencialmente assim:

- Muito possivelmente acrescentam água ao vinho para cortarem a força do álcool. Também sei que acrescentam algum gelo que, como pode reparar, já se derreteu. O essencial seria ter jarros para vinho, jarros para água e uma terrina com gelo. Assim, cada um beberia o vinho como mais gostasse.

O oficial da Marinha de imediato deu ordem ao Capitão para informar o Coronel Santos Costa, mais conhecido pelo apelido Onze para, a partir daquele dia, passar a servir vinho, água e gelo em recipientes separados.

E assim se cumpriu. No AGRBIS passamos a beber vinho como nos aprouvesse.

No palácio, pelas experiências que eu vivi, aprendi grandes lições para os dias que se avizinhavam nas minhas deambulações pela província da Guiné, quiçá para a minha vida. Entre elas, foram marcantes a humildade e a compreensão que vi, sempre, estampadas naqueles homens que tinham a capacidade de decidir. Porque o respeito dos outros se conquista pela força do carácter, da honestidade e do exemplo, eu apreendi a respeitar aqueles homens.

Dias depois seguiria para a Mata dos Madeiros.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5469: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (10): As palmas das vitórias de uma Guerra que não era nossa