terça-feira, 27 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6259: Notas de leitura (98): Em Chão de Papel na Terra da Guiné, de Amândio César (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai a recensão do segundo e último livro do Amândio César sobre a Guiné.
Ele vai aparecer fugazmente no arranque do meu livro “A Viagem do Tangomau”. Com efeito, na noite de 10 de Abril de 1967, na véspera de eu ir para Mafra, fui jantar com o Ruy Cinatti ao restaurante Avis, ao lado do Pirata Bar, junto do Cinema Éden.

A primeira surpresa foi à porta do restaurante, um homem que eu já visto na televisão aproximou-se do Cinatti e perguntou-lhe: “Ouve lá, o Salazar já morreu?”. Intrigado, pedi mais tarde ao Cinatti explicações do que ouvira. Replicou-me: “Não ligue, é um dos maiores escritores portugueses, é o Tomaz de Figueiredo, é um homem das direitas que odeia o Salazar”.

Subimos, já estávamos à mesa, ribombou ali perto um vozeirão: “Ó Cinatti não me ofereces um copinho de vinho verde?” O Cinatti apresenta-me o Amândio César, além do vozeirão, um corpo entroncado, uma conversação com compulsiva. Enquanto comíamos o meio bife do Avis, deitou abaixo quatro garrafas de vinho Gatão. Fomos depois para casa do Cinatti onde derrubou uísque, em doses incontroladas. Despontava o dia quando fomos deixá-lo à Avenida Infante Santo, na sua casa. Obrigou-me a subir para ir buscar “Kaputt”, de Curzio Malaparte, deu-me a seguinte explicação: “Já que vais para a guerra, tens de conhecer as descrições geniais e inigualáveis do horror. Lê e medita”. É que meditei mesmo. Kaputt continua a ser para mim o melhor livro de guerra que alguma vez se escreveu.

Procurei homenageá-lo, pu-lo como primeira leitura em Missirá. Não estou arrependido. Em 11 de Abril, levá-lo-ei debaixo do braço, começava a nossa a amizade. Tenho pena de nunca mais ter visto o Amândio César. Quando se fala em neo-realismo, não vejo uma só referência ao seu livro de contos “Subsolo”, creio que ainda há preconceitos ideológicos aberrantes. César escrevia muito bem, impõe-se fazer-lhe justiça.

Um abraço do
Mário


Amândio César novamente na terra de Honório Barreto

Beja Santos

Poeta, contista, ensaísta, Amândio César foi igualmente repórter e os seus livros sobre Angola e Guiné tiveram no seu tempo larga divulgação, nomeadamente “Angola 1961”. De “Guiné 1965: Contra-ataque”, editado nesse ano, já fizemos a devida recensão. Faltava a referência Em “Chão Papel” na Terra da Guiné, publicado pela Agência-Geral do Ultramar (1967).

Amândio César cobre um conjunto de acontecimentos nomeadamente na península de Bissau (por isso fala em “Chão Papel”). Apoiante indefectível do Império, não esconde os seus ideários nem escamoteia os objectivos propagandísticos, faz um balanço do que ocorreu entre 1965 e 1967, desfaz-se em elogios a Arnaldo Schulz, desanca no PAIGC e profere epítetos pouco lisonjeiros acerca de Amílcar Cabral. Nada de surpresas. Relata acontecimentos como a Feira do Livro de Bissau de 1966, visita o liceu de Honório Barreto e as suas actividades culturais, faz o panegírico de militares falecidos em combate (caso do capitão Tinoco de Faria, pára-quedista), alude às actividades de benemerência do Movimento Nacional Feminino da Guiné, admirador de Hélio Felgas menciona como notável o seu livro “Os Movimentos Terroristas de Angola, Guiné e Moçambique” (Felgas refere as lutas entre o PAIGC e a FLING, inexistentes a partir de 1965, altura em que a FLING se tornou um grupo sem qualquer tipo de apoios internacionais, assiste a cerimoniais muçulmanos demonstrativos da tolerância religiosa, dissecou os empreendimentos da era Schulz, de fio a pavio. Continuando na laude ao espírito visionário de Schulz refere a próxima ressurreição de Bolama que, como é sabido de todos, não chegou a ocorrer. Mas o que escreve tem muito significado.

“A impressão desoladora que me causou Bolama, já não voltará, por certo a acontecer”. A antiga capital que Amândio César considera uma das cidades mais belas que vira nos trópicos, onde tudo ali lembra história e tudo recorda um passado, já estava em fase de desmantelamento. A aposta seria o turismo, a renovação de equipamentos, investimentos no campo agrícola, apoio às cooperativas agrícolas, mais estabelecimentos de ensino, etc. Bolama nunca mais voltou a reerguer-se, tudo leva a crer que nada a retirará da agonia que eu pude confirmar em 1991, passei-me, em total estupefacção, por ruas onde constavam, em placas esmaltadas, os nomes de Teófilo Braga e Manuel Arriaga, uma tipografia como não deve haver outra em toda a África, a praia de Ofir reduzida a um escombro.

Comprovou que a Mocidade Portuguesa tinha mais dinâmica lá do que cá. E, dado importante, refere as grandes vitórias sobre a doença que na hora actual deviam ser relidas para reflexão do desastre de saúde pública em que vive a Guiné-Bissau: o trabalho da missão do sono era considerado pela OMS como verdadeiramente exemplar; o número de doentes de lepra conhecia uma redução assinalável; o Hospital Central de Bissau estava bem apetrechado, a medicina tropical na vanguarda do conhecimento científico. A agricultura, segundo Amândio César, dava passos gigantescos, surgiam indústrias, melhoramentos nos equipamentos portuários, a rede de comunicações progredia a olhos vistos.

É um livro que dá que pensar, naturalmente. Quando vemos agora escrito que António Spínola dizia abertamente que Schulz lhe legara o terreno militar em decomposição, nalguns casos em estado crítico, que não cuidara do reordenamento das populações e não soubera impulsionar o desenvolvimento socioeconómico da Província, há que pôr ao espelho elogios como os de Amândio César e perceber que a propaganda não passa de um cuidado paliativo.

Amândio César foi um repórter que escreveu com exaltação e investimento total das suas convicções. Este registo de crónicas é indispensável para o repertório da literatura do período da guerra colonial.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6196: Notas de leitura (96): Aquelas Longas Horas, de Manuel Barão da Cunha (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 25 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6248: Notas de leitura (97): Livro do Cor. Costa Campos – Guiné – 2. Actividades de Permuta e Comércio Externo (Mário Fitas)

Guiné 63/74 - P6258: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (1): A viagem

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 16 de Abril de 2010:

Meus caros camarigos Luís, Carlos, Virgínio e Eduardo
Recomposto agora das dores de “crescimento” por força de ter feito 61 anos, venho colocar à vossa douta consideração uma “ideia” que me “relampejou” precisamente e por causa do meu agradecimento aos “inúmeros comentários/parabéns”, (é só para fazer inveja ao Eduardo e ao Carlos), e que é o seguinte.

Os versos que então enviei fazem parte de uma etapa da minha vida, que de maneira muito concreta se prendem com a minha “estadia” na Guiné.

Com efeito, passados 20 anos da minha ida para a Guiné, deparei-me, ou melhor tive de me confrontar com a vida que tinha vivido e vivia, e que não era de modo nenhum uma vida que tivesse sentido.

A ida e permanência na Guiné, desorganizaram-me por completo e não tendo conseguido uma reintegração normal na sociedade de Lisboa ao tempo do meu regresso, rumei a Luanda, julgando que voltando a África, conseguiria encontrar o equilíbrio que me faltava.

Se por um lado não me meti em “sarilhos de maior”, o ter levado com o 25 de Abril em África, e a vivência nessa terra cheia de excessos, em vez de me ajudarem a encontrar caminho, pelo contrário mantiveram-me num estado latente de nervosismo e insensatez que se vai revelar nos anos seguintes já em Portugal, até pelo menos por volta de fins de 1991, precisamente 20 anos depois do meu embarque para a Guiné.

Nessa altura, algo começa a mudar em mim e eu começo a questionar-me sobre a minha vida e o sentido da mesma.

Hoje quando olho para trás, acredito que terá sido um prenúncio do meu encontro com a Fé Cristã e Católica que vai mudar radicalmente a minha vida.

Tudo isto para dizer, que nesse período de fins de 1991 e inicio 1992, coloco em causa a minha própria vida, passada, presente e futura, e faço-o algumas vezes por escrito, de que é exemplo os versos que já foram publicados na Tabanca Grande.

Pois o que leva a todo este “arrazoado” de palavras que vos escrevo, é colocar à vossa consideração a publicação de alguns escritos desse tempo, como por exemplo uma série com um título do tipo:
“20 Anos depois da Guiné, à procura de mim!”

Agora, com toda a amizade e frontalidade que nos une, quero pedir-vos que sejam perfeitamente directos na vossa apreciação e me digam “preto no branco” se tem sentido e cabe na orientação “editorial” da Tabanca Grande a publicação de tais escritos.

Com a mesma amizade e alegria aceitarei a vossa decisão.

Anexo um primeiro texto, em prosa, que podereis publicar ou atirar para a “cesta secção”, conforme melhor entenderdes.

Um grande e camarigo abraço para todos do
Joaquim Mexia Alves



DEPOIS DA GUINÉ À PROCURA DE MIM

20 ANOS DEPOIS (1)

A Viagem

Estou sentado na areia da praia com as mãos apoiando o queixo e o olhar fixo no longe.

Na minha cabeça passam as imagens, (imaginadas), das caravelas a partir rumo ao desconhecido.

Uma ponta de inveja começa a crescer dentro de mim e em pouco tempo transforma-se numa exaltação que me enche por completo.

Partir para sítio nenhum, onde nada existe e onde tudo talvez nada se encontre!

Que aventura, que excitação, que desafio!

Vejo-me já a cruzar as águas dos oceanos, a minha imagem a rir de exaltação, reflectida no espelho prateado das ondas, as gaivotas a acompanharem-me no seu vôo perfeito, a incitarem-me com o seu grasnar ensurdecedor e aquela permanente sensação de estar quase a chegar a lado nenhum.

E se não há mais Terra? E se tudo acaba no espaço? E se não chego ao fim só porque não há fim nenhum?

É quase brutal a alegria de querer conhecer o desconhecido. Traz-me cânticos aos lábios, o meu cérebro trabalha a velocidades já mais atingidas, o meu corpo está dorido de tanta excitação inacabada.

Já lá vai tanto tempo e eu continuo a viagem com a mesma vontade com que a comecei.

De repente surge um ponto no horizonte que rapidamente ganha tamanho e importância.

É uma explosão de vida! Cheguei, consegui, descobri!!!

E é um paraíso, nada falta, tudo é bom, tudo é calmo. A sensação vai crescendo à medida da descoberta, cada vez é mais forte, mais completa.

Desta vez acertei!

Depois de tudo conhecido e explorado, passada a euforia da conquista, começo a reparar que afinal sempre deve haver melhor, sempre deve haver mais coisas, sempre deve haver mais calma, sempre deve haver mais ... tudo.

E recomeça a inquietação, o não poder estar parado, a falta de qualquer coisa para a qual devo estar fadado.

Aquela sensação dorida de que se tudo já está satisfeito, eu ainda tenho muita vida para descobrir, para viver, para criar.

Alguém precisa de mim, em algum sítio, em algum tempo, em algum espaço.

Nem que esse alguém, seja eu!

Preparo-me para a nova viagem, que no fundo é a mesma. E rio-me. Rio-me, porque os meus preparativos para a viagem, são partir!

Mais uma vez as sensações fortes e amigas tomam conta de mim: a boca ri, os olhos brilham, o corpo incha de excitação, a cabeça fervilha de ideias perfiladas, que nunca acabam, onde as outras não começam.

E parto mais uma vez com o coração ao alto, tendo como companheiro de viagem o meu próprio sentir.

E o que mais me espanta é que nada disto me cansa, porque nesta viagem tão longa, todos os dias há coisa nova, não há ondas que sejam iguais, nuvens que sejam parecidas, nem caminhos que se sobreponham.

Há um renovar constante, um renascer permanente. Até o caminho percorrido tem coisas para descobrir.

Mas o que é mais interessante, é saber que nunca vai acabar, que a viagem vai continuar e que se alguém me quiser acompanhar tem de ter a mais linda qualidade: é o nunca querer ficar!!!

Chegarei ao fim um dia?

Se chegar, meu Deus, não me faças acabar, enche-me todo de sentir e então faz-me ... explodir!!!

Escrito em 26.11.91
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Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

23 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6223: O 6º aniversário do nosso blogue (18): Ensinamento de vida (Joaquim Mexia Alves)
e
6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6112: Parabéns a você (99): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil OP Esp (Os editores)

Guiné 63/74 - P6257: O segredo de... (12): O meu sobrinho Malan Djaló, aliás, Malan Nanque, o rapazito de 8 ou 9 anos anos, apanhado pelo Grupo Fantasmas, do Alf Mil Comando Saraiva, em 11 de Novembro de 1964, em Gundagué Beafada, Xime... (Amadú Djaló)


Revolta do Gueto de Varsóvia - Foto do Relatório Stroop por Jurgen Stroop para Heinrich Himmler, de Maio de 1943. A legenda em alemão diz: "Retirados à força dos covis". Pessoas reconhecidas nesta foto: (i) O rapaz da frente não foi reconhecido, algumas identidades possíveis: Artur Dab Siemiatek, Levi Zelinwarger (junto à sua mãe Chana Zelinwarger) e Tsvi Nussbaum; (ii) Matylda Lamet Goldfinger; (iii) Leo Kartuziński - recuado com um saco branco no ombro; (iv) Golda Stavarowski - também recuado, primeira mulher da direita, com uma mão levantada; (v) Josef Blösche - Soldado das SS com uma submetralhadora


 Fonte:  Foto e legenda:  Wikimedia Commons (com a devida vénia...) (*)


1. Uma das primeiras operações (a segunda, depois de uma ida ao Óio) que o Amadú fez, integrado no Grupo Fantasmas, do Alf Saraiva, foi no meu conhecido Buruntoni, no Xime, em 11 de Novembro de 1964.

Na véspera, o grupo deslocara-se de barco, de Bissau até ao Xime. A 11, andaram toda a noite, a corta-mato, com um guia local. Como era quase inevitável, nas matas do Xime, o guia perdeu-se. O objectivo era um acampamento da guerrilha. Chegaram ao Buruntoni por volta das 7h00, quando o sol já ia alto… Deparam-se, entretanto, com um “rapazito de 8 ou 9 anos” (p. 91).

“Interrogado, disse que ia para o campo de lavra dos pais. Sobre o acampamento da guerrilha que procurávamos [, em Darsalame Baio, not do V.B.], disse que ficava na outra margem do rio Buruntoni”…

O grupo seguiu até à margem, com o Alf Saraiva continuando a fazer perguntas ao miúdo que, aterrorizado (como é fácil de imaginar), não teria outro remédio senão colaborar...

E é aqui que eu leio uma das belas e sublimes páginas do livro, reveladoras da grandeza humana do Amadú, futa-fula, muçulmano, bom crente. Vale a pena transcrever (coma devida vénia ao autor e ao editor):.

(…)  Sobre o local onde costumava ficara a sentinela, o rapazito disse que ficava atrás de nós. Então, o alferes deu instruções para voltarmos atrás, para ver se conseguíamos apanhar a sentinela.

O Alferes Saraiva passou para a frente e fomo-nos aproximando do local, onde julgávamos que ela estava. Vimo-la numa árvore. O alferes abriu fogo e ele caiu imediatamente. Corremos para ele, e quando lá chegámos já estava moribundo. Com a arma do sentinela nas nossas mãos, continuámos a marcha para o Xime, até que demos com uma tabanca abandonada que se chamava Gundagué Beafada. Perto deste local encontrámos a tropa de Bambadinca que estava com a missão de nos recolher. Encontrei alguns companheiros da minha incorporação e, quando estava a abraçá-los, vi o alferes, de arma ao ombro, e o menino com a mão na nuca, de olhar fixo no alferes. Cheguei-me para junto do alferes e ele disse-me:
- Amadú, que vamos fazer ao puto ?
- Levá-lo, meu alferes ?!
- Ele é turra, Amadú!
- O meu alferes tem mais formação e conhecimento que eu, mas parece-me que com esta idade, o menino não é inimigo nem amigo.
- Então, por que vivia no mato, Amadú ?
- Porque que os pais vivem no mato, meu Alferes!
- E tu, o que queres fazer com ele, Amadú ?
- Deixamo-lo no quartel de Bambadinca.

O capitão da companhia de recolha estava junto de nós. O alferes perguntou se eles queriam ficar com o miúdo. Negativo, respondeu o capitão. O alferes ficou a olhar para mim e eu disse:
- Levamo-lo connosco para o quartel. Se o meu alferes não quiser que ele fique no quartel, eu fico com ele na minha casa.
- Não tens mulher, como é que vais tomar conta dele ?
- A minha irmã toma conta!
- Tens a certeza, Amadú ? Fica à tua responsabilidade.
- Inteiramente, meu alferes.

Agarrei no menino e começámos a andar até ao Xime e depois para Bambadinca. (…) (pp. 91/93)…

Enquanto regressam, ainda nesse dia, a Bissau, tomando um barco que estava prestes a partir, por volta das 18h, e chegando a Brá já depois da meia-noite, o Amadú escreve:

(…) Eu estava muito satisfeito comigo próprio e com o alferes. Assim que ele aceitou o meu pedido de ficar com o miúdo, que se chamava Malan Nanque, um companheiro europeu do meu grupo, o Mendes, que tinha apanhado uma maleta com cortes de fazenda, ofereceu-ma para fazer roupa para o rapazito. Quando chegámos a Bissau, levei-a ao alfaiate, e os cortes de tecido deram para 3 calções e 2 camisas. Ainda lhe comprei um par de sapatos e uns chinelos.

Agora que estou a escrever e a a recordar este episódio, tenho os olhos húmidos. Estou a ver o miúdo à frente da arma com a mão na nuca, a tremer todo, a olhar para o matador. Ele, o menino, tinha acabado de ver o alferes matar a sentinela e devia pensar que agora era a vez dele (pp. 93/94).

Em nota de pé de página, é contado o desfecho, mais ou menos feliz, desta história de compaixão humana, que merece figurar numa antologia de histórias de guerra:

O rapazito, Malan Nanque, beafada, mudou de apelido para poder frequentar a escola. Passou a ser meu sobrinho e viveu com a minha família em Bafatá. Durante muitos anos ninguém, da nossa família soube que o Malan Djaló tinha sido capturado pelos Fantasmas, numa manhã de Novembro de 1964. (**)

Anos depois, em 1973, levei-o a ver a mãe, em Bissau. Mas Malan continuou a viver na nossa casa. Uns anos mais tarde, já com, a Guiné independente, deu aulas de português em quartéis do PAIGC. Casou, teve um filho, adoeceu e morreu pouco tempos depois no hospital de Batafá. O único filho que teve, uma menina, também sobreviveu pouco tenpo. Morreu, ainda não tinha dois anos. (Nota 59, pp. 93/94).

Extractos de: Amadu Bailo Djaló - Guineense, comando, português. Lisboa: Associação de Comandos. 2010. (***)

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Notas de L.G.:

(*) A foto da ignomínia... Uma das fotos mais tristemente famosas da II Guerra Mundial... de todas as guerras. Lembrei-me de imediato desta foto, ao ler a história (comovedora) de que o Amadú foi protagonista num sítio que eu conheci muito bem (eu, o 1º Cabo Galvão, e outra malta da CCAÇ 12, da CART 2520 e do Pel Caç Nat 63),  Gundagué Beafada:

Vd. poste, da I Série, 10 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVIII: Violenta emboscada em L (Op Boga Destemida, CCAÇ 12, CART 2520 e Pel Caç Nat 63, em Gundagué Beafada, Fevereiro de 1970)

(**) Vd. último poste da série >18 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5670: O segredo de... (11): Um ataque a Bissau, uma bravata do Hoss e do Django (Sílvio Fagundes Abrantes, BCP 12, 1970/71)

(***) Sobre o Mauricio Saraiva (1939-2003) e o seu Grupo Fantasmas, vd. o poste do Luis Rainha, de 31 de Marco de 2010, no blogue Comandos Guine 1964 a 1966

(…) Não querendo menosprezar ninguém, até porque sou Comando CENTURIÃO, quero aqui afirmar que o GRUPO FANTASMAS foi de todos os Grupos formados e existentes na Guiné que mais louvores e condecorações teve. Teve um Chefe excepcional, que foi um belissimo condutor de HOMENS, um guerrilheiro fantástico e um exímio estratega.

Foi ele, Capitão Maurício Leonel Sousa Saraiva, dos militares Portugueses mais condecorados de todos os tempos e quiçá dos tempos vindouros. Este Homem, de H grande, grande Português e grande Patriota, ainda estava para sofrer os horrores da guerra não convencional. (…)  [Era] um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de Familiares seus. (…)


Sobre o seu comandante, com quem esteve nove meses  (até  Maio de 1965),  e por quem nutria respeito, admiração e afecto, o Amadú Djaló é parco em pormenores, nomeadamente sobre aspectos, eventualmente mais controversos, do seu comportamento como homem e militar.  Aliás, ele é, quase sempre, de uma grande discrição e até deferência em relação aos seus "companheiros europeus" (sic). Só é crítico quando vê "europeu" a tratar, com menos respeito, bajuda e mulher grande... Perante umn capitão manifestamente racista, que ele conheceu no CICA/BAC, em Bissau, em 1962 ("Preto é como tartaruga, só quando lhe chegamos fogo ao cu, é que tira cabeça!", p. 41), Amadú é condescendente, compreensivo e caridoso: "Pela minha parte, ele era um diabo, não era um ser humano. Um homem com tanta cultura, oficial do Exército Português, não deveria trata deste modo os subordinados", p. 41).

Vd. poste de 22 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6210: Os gloriosos malucos das máquinas voadoras (21): Meu tenente, eu e o Tomás Camará não vamos com o Honório! (Amadu Djaló)

Guiné 63/74 - P6256: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (7): Em Empada, peripécias de um 1.º Cabo a substituir um Furriel Miliciano

1. Continuação da narrativa referente à estadia de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70) em Empada:

A CCAÇ 2381 em Empada

Parte II

Por Arménio Estorninho


Duas situações com ameaças disciplinares, quando o Fur Mil, Bertino Cardoso, fora de férias à Metrópole ficando eu fiquei a responder pela Secção Auto


- Certo dia é chegada uma DO-27, que nos trazia a correspondência, frescos, legumes, frutas e outros, era necessário uma viatura para ir à pista com pessoal para segurança e trazer o que for deixado. Não havendo um condutor na Secção (estavam em outras funções e/ou desenfiados) para o serviço, de imediato aprestei-me para o fazer embarcando militares e civis na carroçaria. Dando início à marcha da viatura, eis que um taipal mal trancado se abre, tendo um militar caído para o pavimento e sofrido uma luxação num pulso. Caso a Enfermagem não o recuperasse, teria de ser feito um auto de ocorrência e o militar evacuado para os Serviços do Hospital Militar 241, em Bissau.

Devido à situação clínica do militar, sou chamado à Secretaria perante o 2.º Sargento João Gouveia, tendo-lhe sinteticamente exposto o acontecido. Por sua vez, o sargento retorquiu que eu não podia conduzir a viatura porque estava distribuída a um condutor. Dando-lhe a resposta que não havia no momento um condutor disponível e a viatura não estar distribuída, sendo eu possuidor de carta de condução militar, e estando como responsável pela Secção, sendo urgente a segurança à Pista e outro pessoal, resolvi fazer o serviço.

O Sargento “armado em pudico”, com ameaças impróprias (avancemos, ele não chegara ao fim da comissão), continuando o diálogo disse-lhe: se tenho carta e sou o responsável, porque não posso conduzir viaturas da Companhia em situações prementes e o senhor que não tem Carta Militar, pega na chave leva o jipe quando quer e lhe apetece e vai com ele passear pela povoação. (sic)

Moral da “estória,” com resposta pronta do Sargento Gouveia: sabes que eu tenho boné com pala só posso olhar para baixo, não posso olhar para cima e assim como tu também não.

Contudo ainda me disse que não podia olhar para o nosso Alferes que estava presente e do qual não me vem à memória o nome.
Da situação fiquei grato e reconhecido aos meus Companheiros Enfermeiros, pelos esforços postos e não sendo necessária a eventual evacuação.

- Quando foi de férias à Metrópole o responsável pela Secção Auto, o ex-Fur Mil Bertino Cardoso, deu-me instruções de que não era necessário requisitar combustíveis, embora eu lhe observasse que a quantidade existente poderia vir a ser insuficiente.
Com o avançar do tempo a reserva de gasóleo para o gerador eléctrico ia baixando (mas também me pareceu que houve rato) e pela média de gastos verifico que até à reposição ia faltar para uma semana. Do facto dou conta ao Capitão Aidos.
Apanhei logo ameaças de um processo disciplinar, que ele nada tinha a ver de quem era a culpa e eu é que respondia caso não houvesse gasóleo para o gerador. Contudo a sorte esteve comigo, tendo em conta na data de estar em fase de Lua Cheia. Propus ao Capitão que o gerador funcionasse somente enquanto a luminosidade do luar fosse insuficiente. Concordara após verificar não haver qualquer inconveniente e foi amigo, contudo em caso de ataque In seria imediatamente ligado, eu comprometia-me a ir accioná-lo, não dormindo nas horas suspeitas.

Rezei a todos os Santinhos da minha Paróquia e de mais algumas, felizmente nada acontecera que ficasse prejudicado pela situação deparada.

Com a chegada do Furriel Mec Auto foi um descarregar da bateria e focando a inadmissível situação deixada.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6246: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (6): Em Empada, primeiras impressões e morte de um camarada por electrocussão

Guiné 63/74 - P6255: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (12): Os três G e a proclamação da Independência

1. Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74) fala-nos hoje do que foi a acção do PAIGC nas frentes de Guidaje, Guileje e Gadamael, os célebres três Gs, e da proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau por aquele movimento em 24 de Setembro de 1973.


Os Marados de Gadamael

e os dias da Batalha de Guidaje


Parte XII

Daniel de Matos


Os “três G” e o desfecho das três frentes de guerra em África

Continuam a curiosidade e a estupefacção gerais sobre o andamento da guerra no mato, mais acentuadamente nas zonas fronteiriças. Bissau é uma cidade vestida de “piolhos verdes”, ainda que muitos deles trajando à civil. A capital do Vietname não será diferente, com movimento idêntico e constante de viaturas militares atafulhando o trânsito e de tropas invadindo comércio, bares, restaurantes e zonas de putedo. Para além dos inúmeros quartéis que a circundam, a cidade é um autêntico depósito de adidos, por onde passam os que vêm ao hospital tratar-se disto e daquilo, os que vêm para cá de férias ou estão em trânsito de e para as mesmas, os que são mandados para estagiar numa treta qualquer, – todos os pretextos são bons para quem está no interior dar uma fugidinha, desenfiar-se para Bissau por uma temporada, para respirar fundo. Juntam-se a estes os muitos quadros militares dos gabinetes, os tais que fazem a guerra no ar condicionado basofiando, pois em geral não são parcos a disparar em todas as direcções, quando abrem a boca…


“G” de Guileje, “G” de Gadamael…

Se encontramos alguém conhecido e nos pergunta por onde temos andado e dizemos Guidaje, só falta benzerem-se, ficarem atónitos e quererem logo saber tudo tim-por-tim-tim. Tal batalha, no entanto, já está a perder a actualidade. Em todas as esplanadas não se fala de outra coisa: a nossa conhecida Gadamael está mesmo em grande risco, vivem-se por lá dias horríveis. Lembro-me que, caso estivesse sob um ataque continuado de artilharia como aquele que sofremos no norte, as suas fragilidades seriam idênticas ou maiores que as de Guidaje. Ali não há refúgios subterrâneos nem tectos reforçados com grossas placas de cimento a que possamos chamar abrigo. Bem, é certo que em Guileje existiam e o resultado foi o que se viu… Há outras semelhanças entre Guidaje e Guileje: ficam ambas junto às fronteiras (do Senegal e da Guiné Conacry), estavam as duas dependentes do abastecimento aéreo, eram ligadas ao exterior por um único acesso (a primeira, a Bigene e Binta, e a segunda, a Gadamael), sendo fáceis de isolar se estes caminhos fossem (como foram) cortados. Todavia, tinham uma diferença de vulto, que se revelou definitiva quanto à capacidade de resistência: Guidaje possuía água própria (não sei se estou a divagar, mas lembro-me de ouvir falar da existência dum furo de extracção dentro do quartel); Guileje não tinha água! Aqui, o pessoal ia buscá-la a quatro quilómetros de distância, na direcção do Mejo e por caminhos propícios às emboscadas… Quanto a Gadamael, a situação é intermédia, isto é, a água potável não está dentro do quartel, mas o local de abastecimento é muito próximo e essa dificuldade só existirá caso se verifique um cerco muitíssimo próximo do arame (o que sempre me pareceu improvável de acontecer, até pelas características do terreno circundante, mas estamos sempre a aprender)…

Um soldado nosso recebera um aerograma dum amigo, membro do Pelotão de Reconhecimento Fox n.º 2260 – ou seja, de camaradas que ficaram em Gadamael após a nossa rendição, – e o cenário descrito era dantesco e com tendência a agravar-se. O número de mortos e feridos começa a equivaler-se ao de Guidaje, também estão a construir um cemitério local e o cerco está consumado. Além dos contingentes locais próprios agora está ali o pessoal que chegou de Guileje (o mesmo se dirá em relação aos civis) e o único contacto possível de toda esta gente com o exterior é o braço do rio Sapo (afluente do Cacine). Por outras vias vamos sabendo que já tudo começa a escassear e, à medida que os dias passam, o fogo é cada vez mais violento e amplia-se de dia para dia a destruição dos edifícios (que virá a ser total). Vendo-se incapacitados de se oporem aos intensos bombardeamentos e de darem a volta aos acontecimentos, há militares (a esmagadora maioria) que resolvem abandonar o aquartelamento pela mata do lado do Cantanhez, contornando o tarrafe e a costa de mangal e fugindo em direcção às margens mais palmilháveis do rio Cacine, em busca de refúgio. De notar que, de quase três companhias só cerca de trinta homens permaneceriam no quartel defendendo a posição com morteiros 81. Quer o 15.º Pelotão de Artilharia quer o Grupo de Artilharia de Campanha n.º 10 (Obus 11,4) tinham ficado inoperacionais após um ataque IN de morteiros 120, que destruiu material importante e lhes provocou três mortos (primeiro-cabo David Sousa Cunha, soldado Bassiro Demba e soldado Domena Indi) e ainda onze feridos.

No dia 1 de Junho, começou de manhãzinha o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael. Houve períodos em que a chuva de granadas de morteiros 120 (às 18 de cada vez) caía de três em três minutos. Logo pelas dez horas ficou inoperacional e praticamente destruído o pelotão de artilharia, que sofreu três mortos e onze feridos. Gadamael ficou reduzida ao morteiro 81 que tinha alcance insuficiente para dar resposta aos bombardeamentos do IN. Conta-se que momentos antes tinha aterrado na pista do quartel um helicóptero que transportava o general Spínola, mas que este teve de ser empurrado para dentro do aparelho a fim de levantar voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e os rebentamentos ocorreriam no ponto de aterragem do helicóptero, a cinquenta metros do edifício da secretaria, das messes e das transmissões. Num quartel sem abrigos e com um elevado número de militares concentrados lá dentro, as baixas foram aumentando sem surpresa. Na contabilidade feita ao final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos. Aos poucos, foram tentando fazer evacuações de feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia. "Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva, o oficial enviado em substituição o Major Coutinho e Lima. Num cenário de desespero e os soldados começaram a andar junto às valas a circular apenas dentro da aldeia civil (colada ao quartel, mas poupada ao fogo inimigo). O Capitão Ferreira da Silva, atarefado com as evacuações, só quando o Furriel Carvalho (do morteiro 81) lhe foi dizer que já não tinha granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a defesa do quartel estava reduzida a um grupo diminuto de homens. Cerca de 80% das nossas tropas decidiu abandonar o aquartelamento pelos seus próprios pés, independentemente do apoio de duas companhias de pára-quedistas que se deslocaram para a região a aí ficariam estacionadas.

Os pára-quedistas da CCP 121, que tinham estado connosco em Guidaje, não tiveram a mesma sorte que nós quanto a dias de descanso: no dia 12 saíram de Bissalanca em direcção a sul, tendo Gadamael como destino. Não foram os únicos, já havia pessoal das CCP 122 e 123 na missão de “salvamento”, pois uma retirada idêntica à de Guileje estava “em cima da mesa”. A nossa “irmã gémea” CCaç 3520 de Cacine, que já tivera efectivos deslocados em Guileje, esteve igualmente mobilizada para apoiar a defesa do nosso antigo quartel e, com ela, o DFE-21 transportado em zebros.

O “general do monóculo”, que entretanto se tinha deslocado a Cacine, deixou ordens para que ninguém socorresse os fugitivos, que considerava “cobardes”. Só que no navio Orion*, cujo Comandante é Pedro Lauret e que na véspera tinha levado uma companhia de páras até Cacine, impera o bom-senso. A tripulação revolta-se e, como se impõe, marimba-se na opinião de Spínola e recupera entre 300 a 400 “cobardes” que se encontram espalhados pelas margens, em estado verdadeiramente lastimoso, desesperado. Entre eles, há um sem número de feridos a quem o Enfermeiro Abrantes (auxiliado pelo Grumete Ulisses Faria Pereira) presta os primeiros socorros e/ou orienta uma série de ajudantes voluntários a fazê-lo. O então Comandante do Orion refere que “à noite, a coberta das praças estava completamente repleta de feridos”, não restando espaço para que ninguém pudesse deitar-se. Mas alguns necessitam de evacuação aérea.


Guiné > Região de Tombali > Rio Cacine > 1971 ou 1972 > Pedro Lauret, oficial imediato do NRP Orion (1971/73), na ponta do navio, a navegar no Cacine, tendo a seu lado o comandante Rita, com quem fez a primeira metade da sua comissão na Guiné. "Um grande homem, um grande comandante" (PL).



A LFG Orion no Cacheu. Foto do Lema Santos, com a vénia devida


“G” de Guidaje

Só em Maio de 1973, o PAIGC contabilizou duzentas e vinte acções militares no território. Em Guidaje, desde o dia 8, sofremos um total de 43 ataques, com artilharia pesada, morteiros e foguetões, e mais uma vintena delas na vizinha Bigene. Causaram 7 mortes, 30 feridos militares e 15 civis, a somar às baixas sofridas nas colunas (mortos 22, feridos 70) e na operação Ametista Real (10 mortos, 22 feridos e 3 desaparecidos). Em números oficiais, registou-se um total de 39 mortos militares, 122 feridos e 3 desaparecidos.

Quem sou eu para ousar pôr estes números em causa? Entendo, porém, que quem lá esteve fica com a sensação de que poderão não corresponder inteiramente à realidade, que haverá falhas por insuficiência de registos ou quaisquer outras razões. Nos relatos, surgem frequentes contradições em relação aos número de soldados mortos e desaparecidos (por exemplo, na picada Binta/Guidaje, em relação aos corpos que lá ficaram sem sepultura). As coisas baterão certas no tocante aos militares de origem europeia (continente e ilhas adjacentes), só que o mesmo se afigura com menos rigor quanto a soldados (e milícias) de naturalidade africana. Lembro-me de ter notícia (e de, nalguns casos, presenciar) da existência de civis que foram feridos e/ou morreram nas flagelações, emboscadas e minas, e que não terão sido contabilizados. Houve muitos feridos ligeiros que receberam tratamentos diversos sem se deslocarem às enfermarias. Em artigos e entrevistas publicados muito mais tarde sobre esta matéria (e onde, entre outros testemunhos chega a participar, por exemplo, o Tenente-Coronel Coreia de Campos), é referido que no mês de Maio se contaram 167 bombardeamentos a Guidaje (mais 50 em Abril), e houve a lamentar 100 mortos… É também mencionado que durante o mesmo mês terão participado de alguma forma na batalha de Guidaje cerca de mil e trezentos militares portugueses, a maior concentração alguma vez efectuada nos teatros da guerra colonial em todo o continente africano.


(Em jeito de conclusão)

Tombaram em Guidaje quatro Marados de Gadamael (três ficaram lá sepultados) e outros deixaram sangue e muitos suores frios a ensopar aquela terra. Doravante, pelo menos aqueles que lerem estas linhas já nos podem incluir nos registos, foi assim que lá fomos parar… Provavelmente nenhuma outra Companhia do Exército/Infantaria teve o infortúnio de correr os três destinos mais fatídicos deste penúltimo ano da guerra. Dizem os entendidos que o PAIGC quis capturar Guidaje, Guileje e Gadamael, promovendo uma operação “em pinça”, ou “tenaz”, para certificar o seu poderio além-fronteiras. Dirigentes da guerrilha sempre desmentiram que a ocupação de Guidaje estivesse nos seus planos, o que tem lógica, pois era uma aldeia sem qualquer interesse estratégico, valeria mais como posto fronteiriço que, existindo ou não, teria um valor relativo. O mesmo não se dirá dos aquartelamentos a sul. Com Guileje ocupada, se o mesmo acontecesse a Gadamael, equivaleria a uma vasta área de território em que Portugal deixaria de ter qualquer posto avançado, só restaria Cacine, sem quaisquer outras povoações em redor. Apesar da resistência portuguesa em Gadamael, (o ataque final só foi sustido depois da nossa aviação ter bombardeado a base de Kandiafara, para lá da fronteira com a Guiné-Conakry), o PAIGC demonstrou em Setembro de 1973 quem controlava efectivamente a Guiné, quando no dia 24 proclamou unilateralmente a independência em Madina do Boé e viu rapidamente reconhecido na arena internacional o novo Estado da Guiné-Bissau.

Passei o 24 de Setembro de serviço, a montar segurança numa das entradas de Bafatá, mais concretamente num posto que existia sobre a nova ponte do Geba, que era suspensa e uma espécie de miniatura da ponte sobre o Tejo (havia carteiras de fósforos com a sua fotografia e, se bem me lembro, também se chamava Salazar). Tínhamos aí uma pequena telefonia, através da qual ouvi a cerimónia da independência transmitida em directo pela Rádio Libertação. Medindo bem, se algum acesso estivesse a funcionar, a distância em linha recta entre Bafatá a Madina do Boé seria coisa pouca, pelo que a situação provocou-me um sentimento, no mínimo, estranho. Na manhã seguinte, quando a minha equipa foi rendida (o serviço era de 24 horas) e me dirigi à messe para tomar o pequeno-almoço, perguntei aos presentes se mais alguém tinha escutado o mesmo que eu e a resposta foi negativa. Narrei o que se passara, com a convicção absoluta de estarmos numa data que ficaria na História e, meio a brincar meio a sério, acrescentei que já me sentia um “estrangeiro” a pisar o chão da Guiné, provocando um sorriso generalizado, porém, amarelo.

Ao cerco, o PAIGC chamou Operação Amílcar Cabral (recorde-se que o dirigente histórico da guerrilha havia sido assassinado a 20 de Janeiro de 1973). E houve também a Operação Nô Pintcha. Os êxitos alcançados fizeram propalar a derrota militar do colonialismo português na Guiné, dando razão aos que defendiam que só uma solução política, – e, logo, negociada, – poderia resolver o conflito. Na arena internacional, os acontecimentos nos chamados “três G” abriram portas à inevitabilidade da independência e ao alastramento da mesma resolução às restantes colónias africanas, fosse, por tabela, em Cabo Verde, fosse em Angola e Moçambique (cada uma com as suas especificidades quando ao estado das respectivas guerrilhas, mas com o denominador comum de terem a razão política do seu lado), ou fosse ainda em S. Tomé e Príncipe. Dir-se-á que a motivação das forças armadas portuguesas era cada vez menos elevada. Realmente, o contacto com as injustiças sociais e descriminações de todo o tipo em nome de valores cada vez mais desacreditados fez abrir os olhos a muitos de nós. Havia neste tempo pouco mais de cem Companhias em exercício na Guiné e só onze delas eram comandadas por capitães do quadro permanente na frente de combate. Todos os outros eram milicianos, quer dizer, pessoal muito menos vocacionado para alimentar uma guerra injusta, que em geral já tinha lido o que era proibido ler-se na Academia Militar, que já participara (ou, no mínimo, assistira) a lutas estudantis que punham em causa o regime e reconheciam os direitos dos povos das colónias à independência…

A verdade é que o PAIGC, com a evidência dos estragos causados às nossas forças armadas a norte e sul, e da proclamação da independência efectuada bem dentro do território (com a presença testemunhal de delegações estrangeiras e de jornalistas internacionais) alterou aos olhos do mundo a situação, quer política quer militar da Guiné: em vez de ser uma colónia com territórios libertados pela guerrilha, passou a ser um Estado com territórios ocupados por estrangeiros (nós)! E isso passou a fazer TODA a diferença…
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 22 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 – P6217: Estórias de Guileje (8): O papel da fragata Orion na batalha de Gadamael (Manuel Reis, ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350)

Vd. último poste da série de 24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6235: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (11): Os dias da batalha de Guidaje, 31 de Maio e 1 a 12 de Junho de 1973

Guiné 63/74 - P6254: Parabéns a você (110): Hugo Guerra, Coronel DFA Ref (Ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 55 e 60, Gandembel, Ponte Balana, Chamarra, S. Domingos, 1968/70) (Editores)

1. Neste dia 27 de Abril de 2010, festejamos pela segunda vez no nosso Blogue o aniversário do nosso camarada Hugo Guerra* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60, Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70, que é hoje Coronel, DFA, na reforma).

É portanto com redobrado prazer que aqui estamos de novo para lhe desejar muita saúde, muitas felicidades e uma longa vida, junto dos seus familiares e amigos.

Marcamos desde já encontro no próximo ano, neste mesmo dia, para renovação dos nossos votos.

Caro Hugo Guerra, a tertúlia associa-se à tua alegria e envia-te um abraço colectivo.

2. Comentário de L. G.:

Hugo, no teu dia de festa, mando-te um grande chicoração, formulo muitos votos de boa saúde (que é o que precisas mais neste momento) e de longevidade (com qualidade de vida...), na companhia da tua simpatiquíssima esposa, Ema,  com quem tive o prazer de conversar há dias, pelo telefone. Ela, que teve a coragem de voltar à universidade (para fazer o curso de técnica superior de serviço social), terá o apoio que entender pedir-me e que eu  lhe puder dar, nomeadamente sob a forma de textos de apoio nas áreas da sociologia da saúde e do trabalho. Reforça a mensagem que eu lhe transmiti. Espero poder encontrar-vos, a ambos, no nosso belo e fraternal convívio, marcado para 26 de Junho, em Monte Real. Vejo que já estão inscritos.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2312: Tabanca Grande (43): Hugo Guerra, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 55 e 50 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70)
e
27 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4255: Parabéns a você (6): Hugo Guerra, o homem que foi evacuado duas vezes e meia, faz hoje anos (Editores)

(...) O Hugo Guerra, ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70)... Não, ele nunca comandou o Pel Caç Nat 50. Já nos pediu para corrigir este pormenor curricular... Aqui fica a correcção. (...)


Podem ver todos os postes deste nosso camarada no marcador Hugo Guerra.

Vd. último poste da série de 24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6234: Parabéns a você (109): David Guimarães, o melhor rapaz da Tabanca do Xitole (Luís Graça)

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6253: O povo e o município de Moura homenagearam, no passado dia 10, os seus 29 mortos na guerra colonial (Parte II) (Luís Graça / José Brás)








Moura > Largo de São Francisco > 10 de Abril de 2010 > Concentração junto ao monumento aos mortos da guerra colonial, naturais do concelho.  Antes da deposição, por parte da nossa camarada Giselda Pessoa, em nome da Comissão Organizadora (CO),  de um ramo de flores na base do monumento, foram evocados, um a um,  os nomes dos nossos 29 camaradas mortos nas três frentes da guerra colonial (Angola, Guiné e Moçambique), tarefa essa que coube ao  José Mira Infante (ex-Fur Mil, em Angola), da CO.  Respeitou-se depois um minuto de silêncio à memória dos 29 camaradas mortos durante a guerra colonial.



Vídeo (3' 52''): Luís Graça (2010). Alojado no You Tube> Nhabijoes.


1. Mensagem do José Brás:



Data: 21 de abril de 2010 11:28
Assunto: Chorinho é música do Brasil?

OS TEUS OLHOS SÃO MAIS VERDES QUANDO CHORAS (#)


E os meus,  nem sei da cor que são quando choro.
E choro!
Chorei sem vergonha, ainda agora, diante da gente que se juntava à mesa do almoço, em Moura.

Eu explico melhor.

Colóquio de homenagem à memória de quem saiu de Moura para morrer em África, diziam, que em defesa da pátria (*).

Durante a minha intervenção, a custo me contive porque as palavras saltavam sem controlo, directamente do coração para o oxigénio da sala cheia.

Ainda assim, a determinada altura, querendo dizer a palavra décadas, perdi-me em deca...deca...deca, olhei em volta a pedir socorro e alguém na mesa disse décadas.

Escapei. O pânico passou e acabei um discurso de 20 minutos que havia pensado para palavras diferentes.

Almoço alentejano, depois, bom vinho, branco com uns enchidos, uns queijinhos e tal. Tinto também com um bom prato de carne, conversa com os vizinhos da mesa.

Um daqueles grupos corais polifónicos [, o Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense], juntou-se, enlearam braço a braço, cantaram e... esbarrondei-me.

Aquela voz vinha da terra e os cantores eram apenas as colunas do sacro sistema sonoro que consagrava o telúrico.

Pensei! Estes gajos não existem. Quer dizer, a gente que representam, cantando de braço dado, não são eles. Pode até dizer-se que nem existe já tal gente, perdida nos séculos de uma vida dura e firme, de batalhas contra a fome a exploração desumana, de sol-a-sol engravidando a terra do patrão.

Não, porra! Que sufoco era aquele que me chegava do fundo de mim, me esganava subindo até à boca, aos olhos, à cor e à temperatura da pele da face?

Tentei resistir e não pude. Tentei esconder e não pude.
Ao meu lado a companheira do Luís estendeu um guardanapo e disse não te contenhas.

Já não escondia. Os outros,  fingindo que não viam e eu fingindo que não sabia que eles viam.

Parou o cante mas não as lágrimas, teimando no caminho que a força da gravidade lhes impunha.

Largos minutos para que serenasse, num jogo conivente e colectivo de faz de conta que não foi nada.

Recuperado da pancada súbita, não esperei muito. Agarrei minhas coisas e, quase à francesa, levantei o braço direito e disse obrigado até à próxima, pessoal!

José Brás

(#) Título de poema de amiga minha do Norte
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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste anterior desta série > 18 de Abril de 2010 >  Guiné 63/74 - P6175: O povo e o município de Moura homenagearam, no passado dia 10, os seus 29 mortos na guerra colonial (Parte I) (Luís Graça / Francisco Godinho)

Guiné 63/74 - P6252: Tabanca Grande (215): O Francisco Silva, hoje cirurgião, ortopedista, no Hospital Amadora-Sintra, foi o substituto do infortunado Alf Mil Op Esp Nuno Gonçalves da Costa, do Pel Caç Nat 51, morto por um dos seus homens em 16 de Julho de 1973


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Iemberem > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita ao sul > Em primeiro palno, ao meio, o Dr. Francisco Silva, madeirense, cirurgião, especialista em ortopedia,  a exercer  o Hospital Fernando da Fonseca, Amadora-Sintra, médico assistente do nosso camarada Hugo Guerra. À sua esquerda, a Maria Alice e à direita Salifo Camará, 87 anos, régulo de Cadique Nalu e Lautchandé, antigo Combatente da Liberdade da Pátria. Foto tirada por ocasião da visita ao centro de saúde materno-infantil de Iemberem.

O que eu não sabia é que o Francisco Silva tinha um "segredo" para me contar...

O Francisco Silva, que viajou de jipe, por terra, com mais camaradas, na viagem à Guiné, de ida e volta, por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008), foi Alferes Miliciano, tendo pertencido à CART 3492, que esteve no Xitole (com o Joaquim Mexia Alves e o Álvaro Basto).

O Francisco Silva revelou-me  na altura ter saído da CART 3492 para substituir um alferes morto na parada, pelos seus homens, africanos (ou por um dos seus homens, já não sei  precisar bem) do  Pel Caç Nat 51, sediado em Jumbembem, sector de Farim. Segundo o Francisco Silva, o alferes terá sido morto por que "era um tipo bom de mais, com problemas para impor a sua autoridade ao pelotão (que era etnicamente heterogéneo, e tinha um historial de problemas de disciplina)"...

Sabemos agora, através do Fernando Araújo (*), que esse infortunado camarada chamava-se Nuno Gonçalves da Costa, era natural de Arcos de Valdevez, e terá sido morto, "traiçoeiramente", a sangue frio, à queima-roupa, " com 3 tiros de G3", disparados por um militar do seu Pel Caç Nat 51, que não acatou o castigo (um reforço) que lhe imposto pelo seu comandante. A data fatídica foi em 16 de Julho de 1973. Os seus restos mortais repousam no cemitério da sua freguesia natal, São Jorge.








Lisboa, Belém, Forte do Bom Sucesso > 10 de Junho de 2009 > Mini-encontro do pessoal da Tabanca Grande  (**) > Virgínio Briote e o Francisco Silva, hoje, médico, ortopedista no Hospital Amadora-Sintra (colega, portanto de outro membro da nossa Tababa Grande, o Dr. João Graça, interno de psiquiatria, embora ainda não se conheçam pessoalmente)... 

O Francisco esteve no Xitole, na CART 3492 (1971/74) (com, entre outros  camaradas membros da nossa Tabanca Grande, o J.  Mexia Alves, o Álvaro Basto, o Artur Soares, o António Barroso, nomes que me vêm à memória, e que eu cito de cor, correndo o risco de esquecer outros...), e depois em Jumbembem, na região de Farim (onde lhe coube substituir o comandante do Pel Caç Nat 51, morto na parada por um dos seus homens)... 

O Francisco Silva tem comparecido, juntamente com a esposa, Elisabete Silva, nos nossos convivios, quer da Tabanca Grande,  quer da Tabanca de Matosinhos (pelo uma vez, quando foi a um congresso médico , no Porto, em Outubro de 2009), quer da sua companhia original, a CART 3492.

O Francisco já consta, desde Março de 2008, da nossa lista de membros da Tabanca Grande. Julgo que nos falta o seu endereço de email. E uma foto do tempo de Guiné. De qualquer modo, é injusto não ter sido ainda formalmente apresentado à nossa Tabanca Grande. Fica aqui reparado o lapso.

Fotos: © Luís Graça (2008). Direitos reservad
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Notas de L.G.:

Guiné 63/74 - P6251: No 25 de Abril de 1974 eu estava em... (12): Canfuja, sector de Piche, com o Jamanca e a CCAÇ 21, no rasto do PAIGC (Amadú Djaló, Alf Comando Graduado)

Mensagem vinda do Com-Chefe

AGÊNCIAS NOTICIOSAS INFORMAM QUE GOVERNO PROFESSOR MARCELO CAETANO FOI DERRUBADO POR MOVIMENTO DAS FORÇAS ARMADAS. NÃO RECEBIDA QUALQUER COMUNICAÇÃO OFICIAL. ADMITINDO QUE IN POSSA TENTAR EXPLORAR SITUAÇÃO INCREMENTO SUA ACTIVIDADE SUBVERSIVA. TODOS OS COMANDOS DEVEM ADOPTAR MÁXIMA VIGILÂNCIA E GARANTIR PRONTA CAPACIDADE REACÇÃO. COMANDANTES UNIDADES SÓ DEVEM RESPEITAR ORDENS QUE RECEBAM APÓS RIGOROSA AUTENTICAÇÃO SUA ORDEM. AUTENTICADO.

Transcrição manual da mensagem original, em impresso normalizado, recebido em Guidaje, em 26 de Abril de 1974 (*)

Fonte:  © João Dias da Silva (2008). Direitos reservados



Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > Em quase todos os aquartelamentos do CTIG, houve a seguir ao 25 de Abril de 1974, entre Maio e Junho,  tentativas mais ou menos bem sucedidas de aproximação do PAIGC com vista ao cessar-fogo, ao fim da guerra e à reconciliação (e vice-versa). Nesta foto, vemos o camarada, amigo, ex-Fur Mil José Manuel Lopes (o poeta Josema)  com um guerrilheiro do PAIGC. Mais difícil terá sido a aproximação entre o PAIGC e os militares guineenses que estavam do lado das NT, como foi o caso dos Comandos Africanos.

Foto: © José Manuel (2008). Direitos reservados.

 
 



Guiné > Zona leste > Paúnca > CCAÇ 11 > Junho de 1974 > O J. Casimiro Carvalho (ex-Fur Mil Op esp., oriundo da CCAV 8350, Guileje, 1972/73) em convívio com guerrilheiros do PAIGC.

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Pirada > 3ª CCAV / BCAV 8323 (1973/74) > Bateria anti-aérea montada pelas NT, em Pirada, já depois do 25 de Abril. Chegou-se a recear, em entrada em cena, de Migs soviéticos, em relação aos quais estas anti-aéreas, do tempo da II Guerra Mundial, seriam completamente inúteis...

Foto: © Joaquim Vicente Silva (2009). Direitos reservados

 
 1. Em 5 de Junho de 1973, o Amadu Djaló (agora Alferes Comando graduado)  foi tranferido com mais oito oficiais do Batalhão de Comandos para a CCAÇ 21, com sede em Bambadinca… Na véspera do 25 de Abril de 1974, a CCAÇ 21 está em Piche, “no rasto do PAIGC”…Será a última saída do Amadu… A 27 de Abril de 1974, regressa a Bambadinca. Eis como ele descreve os seus últimos dias de guerra (publicados no seu livro, sendo resultado - esta e outras partes - das entrevistas feitas pelo Virgínio Briote):

No dia 22 de Abril de 1974 encarregaram-nos de seguir o PAIGC, visitar também essas tabancas procurando obter informações sobre a actividade da guerrilha. O plano era sair de Piche, a pé, passar pelas tabancas de Ufoias, Pajama, Ufra e Unago e passar a noite numa tabanca abandonada, entre Unago e Canjufa (p. 272). (…)

De manhã, tínhamos recebido, por rádio, a ordem de retirada. E depois dessa hora nunca mais nos contactaram. Estávamos no dia 24 de Abril de 1974. Passámos a noite em Canjufa, com a intenção de recolhermos ao Gabu. No dia seguinte, 25 de Abril, às 9h00, ouvimos o rádio [, de um mílícia]. Golpe de Estado em Lisboa ? Ficámos todo o dia à espera de mais notícias e decidimos permanecer no local até nova ordem. Depois começámos a chamar pelo rádio todos os postos. Piche, Pirada, Gabu, Bambadinca, ninguém respondia. Mais uma noite aqui, ordenou o Jamanca [, tenente graduado comando, que comandava a CCAÇ 21] No dia 26, já passava das 16h0, depois de constantes chamadas pelo rádio, fomos contactados pelo Comando-Chefe, em Bissau. Que estavam a ouvir as nossas chamadas e perguntavam-nos quem éramos. Jamanca respondeu, disse quem éramos e do Comando-Chefe mandaram-nos continuar em escuta. Ouvimo-los chamar o Gabu e ficámos a a aguardar, até que mais ou menos um hora depois, chegaram três Unimogues 404 para levar uma companhia inteira. (…) (p. 275).


Depois do 25 de Abril, outros encontros 


Nunca mais vou viver dias assim. Depois de sabermos que tinha havido um golpe militar em Lisboa, aqueles dias a seguir não sei bem como os descrever. Nos últimos dias de Abril ou princípios de Maio de 1974, encontrei-me frente a frente com o PAIGC, com o cabo-verdiano Antero Alfama, um bom homem. Na altura ainda todos, brancos e pretos, tinham armas nas mãos. O Antero perguntou-me quem eu era, como me chamava. Eu estava acompanhado de um furriel da nossa companhia, a CCAÇ 21, e no grupo também se encontravam, alguns furriéis, cabos e soldados de Bambadinca, negros, da nossa companhia africana. [Alguns, possivelmente oriundos da CCAÇ 12].


Abro a conversa assim: 
- A nossa maior preocupação é que nós somos irmãos, andámos na guerra durante muitos anos, houve um muro entre nós que foi agora derrubado. Precisamos de falar com vocês, para nos aproximarmos. 


No local estava muita gente e cada vez se juntavam mais pessoas. Então fomos para outro lado, com aquela gente toda atrás de nós. Antero olhou-me e disse:
 -Olha, Amadú, nós não temos militares, o que temos é guerrilheiros. Amanhã, para formar o Exército da Guiné vocês vão ser precisos. Têm formação militar completa, o que os nossos homens ainda não têm. 


O que acabava de me dizer podia ser verdadeiro, mas pareceu-me uma saída política. E a conversa terminou com a promessa de nos voltarmos a encontrar. (…) (pp. 276/277).

Amadu voltará a encontrar o homem do PAIGC no Xime e em Bafatá, nos dias seguintes. O Amadú foi utilizado, em pleno chão fula, em Bafatá, para servir de “intermediário” nas reuniões do Alfama com a população. “Não tinha ainda suficiente confiança no povo, desconfiava que podia estar gente ligada à DGS que o pudesse matar” (p. 277).

Passados mais uns tempos (em finais de Maio ou princípios de Junho de 1974), o Amadú tem um encontro com o comandante João Silva, numa tabanca senegalesa, junto à fronteira, a seguir a Cambaju. A descrição do encontro e a transcriação do teor das conversas são importantes para se perceber as contradições de sentimentos e de ideias que havia no seio do PAIGC, relativamente ao passado, ao presente e ao futuro dos guineenses que se alistaram nas fileiras do Exército português.

(…) À minha frente estava um homem de aspecto afável, mais ou menos da minha idade [, c. 43 anos,], o comandante João Silva, um balanta muito prestigiado entre o PAIGC. Apertámos as mãos e convidou-me a acompanhá-lo. (…) Entrámos numa sala, eu, Cassamá [, antigo soldado do esquadrão de Bafatá, agora dono de um carrinha de caixa aberta que fazia serviço de táxi entre Bafatá e Cambaju,],o Maude Embaló, conselheiro, um comissário político de que não me lembro o nome, o comandante João Silva, o Pedro Nazi, responsável pela segurança da zona e vários soldados armados do PAIGC.


Depois de ter dito o meu nome, que era alferes dos Comandos Africanos, feita a minha apresentação, o João Silva virou-se para o Pedro Nazi e disse-lhe.
- Então, já ouviste ? - E convidou-o a falar.


(…) O Pedro Nazi começou assim
- Está bom. As minhas palavras… eu não tenho muito a dizer. Este camarada que está aí sentado, nunca se lembrou que este dia chegava. Para mim, Pedro Nazi, um trapo no ombro não me engana para matar os meus irmãos. Branco não se engana com dinheiro na mão para matar os meus irmãos. Os Comandos fizeram grandes crimes nas zonas libertadas. Se os comandos entravam numa dessas zonas, essas zonas andavam a chorar três ou quatro meses, um pai que perdeu um filho, o filho que perdeu o pai, uma mulher que perdeu o marido, um homem que perdeu a esposa. Foram matanças, crimes! Os brancos têm número de militares superior a nós, os brancos têm carros, carros de combate, aviõees, mas Deus deu-nos a razão e os brancos perderam a guerra. Agora hoje está aí sentado para falarmos de Guiné! Ele nunca pensou, nunca passou pela cabeça dele, que algum dia viria ter connosco para falarmos da nossa terra, da Guiné. Eu já falei o que tinha a falar.


Então quando João Silva se estava a preparar para falar, eu, que tinha ficado muito chocado com as palavras do Pedro Nazi, disse:
 - Desculpa, João, eu quero responder às palavras que ouvi. - E enfrentei os olhos do Pedro Nazi. -Camarada Pedro, é ainda muito cedo para falar da maneira que o camarada falou agora. Muito cedo. Nós não viemos cá saber o que se passou. Porque se nas zonas libertadadas vocês apresentam mil órfãos, nós vos mostramos órfãos aqui na zona. O chicote da guerra é cumprido, muito comprido. Quando quer bater no inimigo também pode tocar em inocentes. Nós levámos em consideração os orfãos e as viúvas que vocês fizeram cá. Foi a guerra. Tenho a certeza que as bombas que vocês lançaram em Bafatá, aquelas bombas mataram população inocente. A vossa ideia era matar militares, mas mataram civis. Nós, quando entrámos nas zonas libertadas, quando havia disparos contra nós, disparámos também e matávamos civis. O povo das zonas libertadas não nos pode julgar porque sempre considerou os militares como criminosos e por isso quando viam tropa,  fugiam. E o povo das zonas urbanas também não vos pode julgar nem considerar o PAIGC criminoso. Por isso, vamos deixar essa parte de lado, camarada. 

Logo, João Silva gritou Viva PAIGC, Viva PAIGC e as pessoas que estavam com ele gritavam Viva PAIGC. E João Silva continuou:
 - Hoje fiquei satisfeito. Já sei que nós vamos ter a independência. Temos homens como este no Exército Português, que reconhece o passado, porque nós não somos militares, somos guerrilheiros. Exército são eles. Este irmão esteve onze anos num lado, eu estive no outro, um contra o outro. Ele não morreu até hoje, eu também não, estamos aqui sentados a conversar, o que nós pedimos é que não haja mais motivos para ele ou eu fazermos mais guerra. Fiquei muito satisfeito. A única coisa que peço ao camarada é coragem, é coragem que eu te peço. (…) (p. 279)

Foi um encontro afável, mas com algum tensão, de certo modo premonitória. E o Amadú conclui:

Com as palavras do comandante João Silva fiquei mais satisfeito, mais aliviado, mas houve uma altura, quando estava a falar o Pedro Nazi, eu perguntei a mim próprio, por que é que eu tinha vindo. O Cassama, o motorista (..) quando comecei a falar vi-o a escorregar do banco para o chão e enfiar a cabeça entre as mãos. No fim do encontro, o Cassamá estava com presa de sair dali. (…) O João Silva, o Pedro Nazi e a comitiva acompanharam-nos até à fronteira. Apertámos as mãos e a abraçámo-nos. Recordo que Pedro me recomendou coragem (… ) (pp. 279/280). 

E bem precisa foi, a coragem, para o Amadu conseguir sobreviver e chegar, mais tarde, são e salvo, a Portugal… Ele está entre nós desde 1986, depois de ter sido preso mais do que uma vez na sua terra natal… Com 70 anos, velho e cansado, o Amadú agora só quer é voltar ao seu chão, à sua gente, à sua família...

Depois do encontro com o João Silva e o Pedro Nazi, os novos senhores da Guiné-Bissau, Amadu sabia que “agora, 25 de Abril, nova era” (p. 280)… (**)
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Notas de L.G.

(*) Vd. postes desta série >


14 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2939: No 25 de Abril eu estava em... (1): Guidage (João Dias da Silva, CCAÇ 4150, 1973/74

(...) 25 de Abril de 1974 – Parece que hoje houve um GOLPE DE ESTADO MILITAR, em Lisboa.


Passámos todo o dia à volta do rádio, ouvindo as edições especiais da BBC em língua portuguesa, a tentar saber algo sobre o sucedido.

Por enquanto está tudo muito, muito confuso, pois todas as notícias são precedidas de "parece que" ou finalizadas por "não confirmado". Vive-se por aqui um certo estado de tensão por não se saber nada em concreto. Há que aguardar.

Pelas 22H45 chegou uma mensagem relâmpago confidencial do COM-CHEFE (Brig Bettencourt Rodrigues) a informar que corriam notícias que o Governo de Marcelo Caetano tinha sido derrubado, mas que eram só boatos (...).

19 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2963: No 25 de Abril eu estava em... (2): Gadamael e a vontade de lutar do PAIGC também era pouca (Anónimo, Alf Mil Op Esp)

(...) Depois do 25 de Abril nós tivemos muitos encontros com quadros do PAIGC em Gadamael e é óbvio, pelas nossas conversas, que o poder militar deles não era assim tão superior ao nosso assim como não era a vontade [de] luta[r].

No meu parecer Portugal teria arranjado meios de defesa para uma guerra convencional porque esta envolveria seguramente a Guiné Conacri e os nossos aliados (se é que os posso chamar assim) enviariam material.

Para terminar, na minha opinião se o 25 de Abril não tivesse acontecido, a guerra duraria muito mais tempo até uma solução política ser arranjada e muitos de nós por lá teriam ficado. Uma guerra de guerrilha não se ganha nem se perde desde que haja interesses dos dois lados a financiá-la. (...)


1 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3262: No 25 de Abril eu estava em... (3): Gadamael e depois Cufar (José Gonçalves, ex-Alf Mil Op Esp, CCAÇ 4152)

(...) Era em principio de Maio de 1974, pouco depois do 25 de Abril . Estava na messe de oficiais a beber o meu whisky quando o barman me diz que estava um preto a querer falar com o comandante. Eu fui ver o que era e deparo com um indivíduo, desconhecido, bem vestido e com muita cortesia me pediu para falar com o comandante. Perguntei-lhe quem era e o que queria do comandante. Para minha surpresa disse-me que era o comissário político do PAIGC para a zona de Gadamael e que queria falar com o comandante sobre o 25 de Abril. Fiquei de boca aberta, como é de calcular, e mandei-o entrar e pedi para chamarem o comandante. (...)

22 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3498: No 25 de Abril eu estava em... (4) Agrupamento de Transmissões, Bissau (Belarmino Sardinha)

(...) Após grande agitação no Agrupamento de Transmissões, uns dois ou três dias imediatamente anteriores ao 25 de Abril de 1974, por parte de alguns oficiais que perguntavam com frequência se tinha vindo esta ou aquela mensagem, acordámos todos, os que não estavam de serviço, com a certeza de que algo se tinha passado na noite de 24 para 25 de Abril de 1974.

O nosso comandante, à data Tenente-Coronel, Mateus da Silva, tinha substituído interinamente o então Governador e Chefe Supremo da Forças Armadas Bettencourt Rodrigues. Esta situação manteve-se durante e até à chegada do Coronel, graduado em Brigadeiro, Carlos Fabião.

Foi este o nosso despertar, no Agrupamento de Transmissões, no dia da revolução dos cravos. (...)

 4 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3561: No 25 de Abril eu estava em... (5) Bissau, ouvindo vivas a Spínola, pai do nosso povo (J. Casimiro Carvalho)
 
(...) Carta, Bissau, 30/4/74

Querida mãezinha: (…) Isto aqui anda a ‘ferver’. Os africanos andam aos montes na cidade e partem montras e há porrada. Acabou a DGS e eles andam loucos de alegria, só querem é apanhar ex-membros da extinta DGS., que estão a ser evacuados da Província.

Andam com cartazes deste género: Abaixo a repressão, Abaixo a DGS, Viva Spínola, pai do nosso povo, Liberdade ao nosso povo, etc

Andam às centenas. Tropas às centenas (armadas até aos dentes) patrulham a cidade dia e noite, até dormem nas ruas com ração de combate. Parece Belfast. À noite não me atrevo a ir à cidade. É por isso que estou a escrever-lhe senão levava mais uns dias.(…)

30 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4106: No 25 de Abril eu estava em... (6): Pirada, a ferro e fogo (Joaquim Vicente Silva, 3ª CCAV / BCAV 8323)

(...) No dia 25 de Abril de madrugada, saímos dois pelotões, mais os sapadores. Fomos levantar algumas minas que estavam na picada em direcção a Gabu (Nova Lamego). Regressámos a Pirada por volta das dez da manhã. Participei nesta saída, tínhamos de fazer a protecção aos sapadores.

Eram mais ou menos dez e meia, eu já tinha tomado banho e estava no meu quarto, abrigo nº. 1, deitado em cima da minha cama e ouvi um pequeno estalido. Um colega que estava cá fora sentado num banco, gritou logo:
-Saiam para a vala que isto é o início de um ataque!...

Naquele dia o PAIGG bombardeou Pirada com muitos mísseis e morteiros, alguns caíram bem perto do local onde eu me encontrava, eu não morri por sorte. A meu lado, morreram três africanos nossos colegas, um míssil caiu-lhes aos pés e cortou-os em pedaços. Nunca tinha visto nada daquilo. Fiquei horrorizado, ainda hoje mexe comigo. (..)

(**) Amadu Bailo Djaló - Guineense, comando, português. Lisboa: Associação de Comandos, 2010.  Sobre o Amadu, ver mais postes aqui.

domingo, 25 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6250: O 6º aniversário do nosso blogue (30): Eu, a Tabanca Grande e o 25 de Abril (Jorge Portojo)


1. Do nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo) (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70, e membro-fundador da Tabanca de Matosinhos, mas com morança também na Tabanca dos Melros):



 Data: 25 de Abril de 2010 19:06
Assunto: Tabanca Grande - 25 de Abril


Terá sido coincidência o blogue ter nascido num aniversário, ou próximo disso, do 25 de Abril ? Aposto que sim. Que não foi coincidência.

Camaradas, companheiro, camarigos, todos já se referiram a ele. Ao blogue e ao espírito que levou à sua criação. Creio que disseram tudo. Pela parte que me toca apenas posso dizer que foi por ele, directa ou indirectamente, que vim a conhecer a maior parte da malta com quem hoje confraternizo. Ao vivo e pela Net. Nele li coisas lindas, vi publicadas algumas estórias minhas partilhadas por outros camaradas. Só por isso, que não é pouco, eu me sinto agradecido.

Me desculpem (palavra chata que não gosto de escrever nem dizer, a não ser que fira alguém, e nessa altura digo-a mesmo, mas acho que não temos outra para demonstramos certos sentimentos ) a ignorância, mas quando vi o vídeo do Jorge Felix há mais de um mês, julguei que era nessa altura que o blogue, ou a feliz ideia do seu criador, faria aninhos.

Mas o blogue, o seu autor e os seus editores, os historiadores, os cartógrafos, os redactores, os fotógrafos, estão de parabéns todos os dias do ano.

Este espaço acaba por ser uma irmandade, com prós e contras e ainda bem, e que por qualquer razão estranha para o mundo, que não para nós, nos faz dizer que algures,  existe um País que tem um bocadinho de terra que amamos. E que tentamos ajudar como se fosse a nossa aldeia aqui deste lado do Atlântico.
Estou para aqui a divagar, quando o que eu queria era escrever algo sobre o 25 de Abril.
Não sei se dará direito a Post. Isso é com os editores.

O tema 25 de Abril. [Sobre o qual há 85 referências no nosso blogue. L.G.]

Acho que nenhum de nós quer o 24 de Abril.

Ninguém quereria que seus filhos passassem pela nossa experiência em África e na Guiné em particular. E a minha até terá sido das menos difíceis. Em termos de guerra. Mas não foi só a guerra, mas tudo que ela transmitiu colateralmente: O clima, a alimentação, as hierarquias militares. E aqui bate o ponto do 25 de Abril. Já o disse e aqui escrevi e talvez  não só em comentários a escritos de camaradas. O único militar de Abril honesto e decente foi o Salgueiro Maia. E se bem nos lembrarmos, foi o único que deu a cara e esteve sozinho no momento capital. E que já era um revoltado por natureza.

Ou porque tive experiências durante os meus 3 anos de SM obrigatório com alguns deles, ou por descrer das próprias pessoas em si, o certo é que nunca alinhei nas ideias do chamado MFA.

Lembro que no Porto se fez uma manifestação, parece que grandiosa, ao General Spínola. A empresa onde trabalhava na altura, fechou, com os trabalhadores excitados para estarem presentes. Houve quem ficasse admirado por me ver continuar a trabalhar (a verdade que também não fui só eu que me mantive no lugar),  Patrões (boa gente) incluídos.

Mas como um dos camaradas disse, e eu concordo, a revolução deu-se por causa e efeito dos milicianos. Oficiais, note-se. Porque os milicianos sargentos, não tinham onde cair mortos. Salvo seja, porque a sustentação das forças armadas deveu-se em grande parte a eles. Desde a exploração monetária, à sustentabilidade do pessoal - leia-se soldados - à operacionalidade, à mobilidade, enfim, o chamado pau para toda a colher. Eles foram de tudo, inclusive ultrajados pela classe do Q.P. Mas não foram tidos nem achados nessa "guerra" de poder académico-militar.

Claro que houve oficiais milicianos, principalmente alferes operacionais,  que estiveram sempre ali ao lado do seu pessoal. E a quem o regime, logo a guerra, estragou vidas. E porque alguns enveredaram pelo profissionalismo militar, os do QP começaram a ver com maus olhos a igualdade. E para completar e complicar a situação, a chamada de civis em situação de reserva (como o meu irmão) ou em outras situações - Neto, Picado, os que conheço e me lembro de momento - provocaram e aumentaram a azia. Não para fazerem um 25 de Abril, digo eu, mas para se fazerem notar aos olhos dos governantes, já que Spínolas, Gomes da Costa e compadres se limitavam a escrever anotações à parte, para a governação do País.

Mais do que nunca, hoje estou desiludido com o País. Como se pode ler e ouvir, os militares que deram verdadeiramente com o corpo ao manifesto, são como se nunca tivessem existido. As verdadeiras glórias militares são os de agora - talvez até o sejam- os que estiveram no Iraque, em Timor, os que estão no Afeganistão, na Croácia (?) na Nato e por aí fora. Quási 14 anos estão esquecidos - limpos (?) da história de Portugal. Quantos deficientes ainda existem desses anos ? Quantos deficientes que não sabem que o são há ? Quantos sobrevivem com nada ? Quantos vivem mal ?

Entretanto, os que podemos, vamos contribuindo com qualquer coisita para ajudar os que estão naquela terra distante que,  segundo as últimas conversas dos que de lá vêm depois de matar saudades, é um País de lixo, desgovernado, corrupto.

Mas como diz e muito bem o Mexia Alves, primeiro os nossos. E desses,, quem quer saber ?
Um abraço para a Tabanca. E um muito especial para o Luís.

Desculpem (lá está a palavra chata) qualquer coisinha.

Jorge/Portojo