sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6874: Meu pai, meu velho, meu camarada (23): Parabéns a vocês! Luís Henriques e Armando Lopes, 90 anos, uma vida! (Luís Graça)



Portugal > Cadaval > Adão Lobo > 1950 > Equipa de futebol do Sporting Clube Lourinhanense, da Lourinhã, no campo de jogos do Adão Lobo. O segundo da primeira fila, da esquerda para a dierieta, é o meu pai, Luís Henriques, então com 29 anos... Esteve toda a vida ligada ao futebol, quer como jojador quer como dirigente e treinador de futebol das camadas mais jovens... Fez ontem 90  anos... Esta foto foi tirada em 1950, no dia em que o Benfica (seu clube de eleição) ganhou a Taça Latina (pode-se ler-se na legenda da foto... Ao que parece foi o primeiro feito internacional do S.L. Benfica: ganhou à Lázio nas meias-finais e depois ao Bordéus na final)... É também uma homenagem à geração do meu pai para quem o futebol foi uma paixão... Aquiio ficam os seus nomes, que o meu ontem me deu, de memória (!): "De pé, da esquerda para a direita, o filho do Vitor Pedro,  Miranda (Alfaiate), Jorge Tarofa (ou Jorge Serralheiro),  José Costa (que haveria de morrer em Angola), José Miguel, Américo Russo,  Manuel Swing, António Serralheiro; na primeira fila, da esquerda para a direita,  Vitor Pedro, Luís Henriques, António Zé da Graça, Manuel Dias (Néu), Artur Borges, João Borges". E acrescenta o meu pai: "Perdemos 3 a 2. Nesse dioa faltaram três ou quatro dos nossos melhores jogadores: o Gino (ou Higino), o Mário pepe, o Manuel Ferrador, o António Costa"...

Foto: © Luís Graça (2010). Todos os direitos reservados


Seleção de futebol da Guiné, em 1954 (?) > "Dos futebolistas na foto, ainda consigo identificar alguns... (...) De pé da esquerda para a direita: Antero Bubo (caboverdiano); o jogador seguinte é guineense, cujo nome me escapa; Armando Lopes (Búfalo Bill, meu pai) (**); o nome dos restantes também me escapa... Agachados: terceiro a contar da esquerda, o guarda redes principal Júlio Almeida (antigo funcionário da granja de Pessubé que trabalhou com Amílcar Cabral e é referenciado como um dos fundadores do PAIGC); quinto atleta, Joazinho Burgo; o último... escapa-me o nome mas sei que é avô do Miguel, da selecção de Portugal... que esteve no Mundial" (Nelson Herbert).

Foto: © Nelson Herbert (2010). Todos os direitos reservados



1. Em homenagem ao meu velho (*) que fez ontem 90 anos, um vida! E ao Armando Lopes, o Búfalo Bill, mais novo 4 dias, pai do Nelson Herbert. Ambos estiveram no Mindelo, em 1943, ao mesmo tempo, por alguns dias. Têm em comum Cabo Verde e o Futebol. Não terão jogado futebol juntos, é muito pouco provável... O pai do Nelson entrou para a tropa em 15 de Agosto de 1943.  O meu pai esteve lá entre Julho de 1941 e Setembro de 1943. Não se terão sequer conhecido. Depois de Cabo Verde, sua terra natal, o Armando foi para a Guiné, e lá fez carreira como futebolista e como trabalhador da junta da administração dos portos. Fará 90 anos no próximo dia 23. Parabéns aos dois, por terem chegado até a esta bonita idade... Ao meu foi omtem feita uma festinha de homenagem: tem 4 filhos, 12 netos e 4 bisnetos... (LG)

Na antiga picada do Xime-Ponta do Inglês
por Luís Graça

Não havia nada
Na antiga estrada
Do Xime-Ponta do Inglês,
Ligando o Geba ao Corubal.

Não havia nada naquele lugar
Que era de tormento,
Àquela hora mortal
Da madrugada.
Nada, onde um homem
Pudesse afogar a sua fome,
Matar a sua sede,
Aliviar o seu sofrimento.

Nem sequer um banco de pedra
Como aquele em que agora me sento,
Frente ao Tejo,
Fresco, límpido, matinal,
E onde alguém escreveu,
Em letra garrafal:
“Amo-te, Marta,
És a razão do meu viver”.

Hoje estou à beira Tejo
E não vou a caminho da Foz do Corubal.
O Tejo corre para o Atlântico,
E o Corubal para o Geba.
Em Lisboa tenho o azul do céu,
Que, dizem, é o azul mais puro do mundo.
No Geba, tenho uma G3,
Tarrafo, lodo, merda,
Dois cantis vazios,
Um céu de bronze,
E mil e uma razões para (sobre)viver.

Nem poderia haver
Nenhum banco de pedra,
Nem nenhum jardim,
Nem nenhuma Marta
À minha espera.
Nem muito menos nenhuma Marta
Que fosse a minha razão de viver.

Quando muito, um fantasma,
Surgido do cacimbo matinal,
Por detrás do baga-baga,
Armado de Kalash!

Não tinha, de resto, razão de viver,
“Raison d’ètre”, diria a minha “copine”,
Se eu fosse refractário,
E tivesse dado o salto para França.

Não tinha nenhuma razão de viver,
Nem de morrer,
Nem de matar,
Não tinha sequer nenhuma razão
Para estar ali, àquela hora.

Não havia nada
Na antiga picada abandonada
Do Xime-Ponta do Inglês.
Nem um “pub” irlandês
Com a ruiva Guiness
A piscar-te olho,
A ti, herói português,
Com um improvável genoma celta.
Nem uma tasca afadistada
Da tua saudosa Lisboa,
Com a perna da morena,
Esbelta,
Lânguida,
A faca na liga,
Deixando antever
Os doces mistérios da sua floresta-galeria.

Não, não havia nada,
Nem uma decrépita gasolineira
Doa filmes do Faraoeste da minha infância,
Onde abastecer a tua Daimler,
Salta pocinhas, minas e armadilhas,
Em que ias de Bambadinca ao Xime
Simplesmente para beber uma cerveja,
Sem escolta nem picagem,
Num jogo de roleta russa.

Nem muito menos a Marta-Mátria,
Republicana e laica,
Verde e rubra,
De busto farto,
De peito feito às balas,
Dando a volta à cabeça dos rapazes,
Dando-lhes tusa,
Na Feira Grande de Setembro:
- Vai mais um tirinho, ó freguês!

Não, não havia nada,
Nem sequer uma simples mulher,
Uma fêmea de bunda larga,
Ou até uma simples mulher polícia sinaleira,
Cata-ventos,
Bailarina,
Redondinha,
Assexuada,
De pelo na venta
E apito na boca,
No cruzamento dos quatro caminhos.

Não, já não vou de G3 em punho,
Em defesa da honra das donzelas
Da minha Pátria.
Chamem-se elas Marta ou Mátria.
Não, já não vou, cego, surdo e mudo,
A correr,
Disposto a morrer,
Com ganas de gritar “Pátria ou Morte!”,
Na velha picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês
Onde não havia nada.
Nem ao menos um tosco espanta-pardais,
Especado no meio do capim,
Em vez do campo de mancarra do fula,
Ou do teu jardim,
Do Éden,
Ou até uma simples seta,
De pau tosco,
A apontar-te a direcção do inferno,
A maldição bíblica do pecado,
Omnipresente,
Obsessivamente eterno.

Havia apenas,
No fim da picada, o inferno.
À minha espera,
À nossa espera.
Às 8h45 da manhã
Do dia 26 de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Da era De Cristo.
E Conacri ali tão perto!

O caminho mais curto para o inferno ?
Não o vês ?
A picada, abandonada, do Xime-Ponta do Inglês,
Onde Cristo seguramente nunca parou
Nem amou
Nem penou
Nem sofreu
Nem pecou,
Nem rezou.

O teu Cristo etnocêntrico,
Judeu,
Semita,
Que nem sequer era caucasiano,
E nem muito menos sonhava onde era a Senegâmbia
Nem o Império do Mal(i).

Pensar global,
Sonhar alto,
Agir local,
Meu sacana…
Ou melhor ainda:
Não pensar,
Muito menos sonhar,
Tiro instintivo, a varrer o capim.

Eis a ordem do capitão
Que tem acima o major,
Na sua avioneta,
No seu PCV,
E no topo o general,
O Com-Chefe,
O Caco Baldé,
O Homem Grande de Bissau,
Herr Spínola.

E à frente de todos,
Com o seu inseparável cachimbo,
O Seco Camará,
Seco de carnes,
Velho e valoroso guia das NT,
Pau para toda a obra,
Cão de fila,
Mandinga do Xime,
Herói da minha galeria de heróis,
Verdadeiro líder, etimologicamente falando,
Aquele que vai à frente mostrando o caminho.

Nesta guerra de baixa intensidade,
Não dês vazão ao Tratado das Paixões da Alma.
E por favor poupe, senhor, as munições.
Da NATO.
Dizem que a glória te espera”,
Escreveu um “serial killer”,
Roqueteiro,
Com fama de fazer saltar cabeças a 50 metros,
Ao longo da alameda dos bissilões.
“Vai para casa, tuga,
Que a tua namorada põe-te os cornos”…

Não, não havia nada
Naquela picada, abandonada,
Do Xime-Ponta do Inglês.

Lourinhã, 19 de Agosto de 2010

___________

Nota de L.G.:

(*) Último poste da série > 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6096: Meu pai, meu velho, meu camarada (20): Nunca te esqueças de escrever à tua mãe (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P6873: Parabéns a você (141): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Guiné, 1969/71 (Os Editores)

1. Neste dia 20 de Agosto de 2010, festeja o seu aniversário o nosso camarada Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971), a quem a tertúlia do nosso Blogue vem dar os parabéns.

Estamos também a desejar-lhe uma vida tão longa quanto possível, tendo sempre por perto as pessoas que mais contribuem para o seu bem estar espiritual. 
Um pouco mais longe da vista, mas sempre atentos, estão estes mais de 400 amigos e camaradas.

Caro Amaro, neste dia especial para ti, que se repete em cada ano, deixamos-te um abraço de felicitações.


Monte Real 2010 > Manuel Amaro em conversa com Paulo Santiago e Victor Tavares
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4840: Parabéns a você (20): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6870: Parabéns a você (140): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763, Cufar 1965/66 (Editores)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6872: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (7): Ébano Febre Africana, de Ryszard Kapuscinski (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Estou mesmo a acabar as férias e Ryszard Kapuscinski não podia ser melhor companhia.

Aconselho a todos os confrades que leiam esta longa viagem de 40 anos desde os primórdios da descolonização até ao surrealismo da guerra da Eritreia. Estamos a falar do mesmo Kapuscinski que é autor de uma outra obra de grande fôlego “Mais um Dia de Vida – Angola, 1975”, publicado também na editora Campo das Letras, em 1998.

Vou agora parar uns dias, mas garanto que vou levar este empolgante Ébano até ao fim.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (7)

por Beja Santos

Ébano, uma grande angular sobre África...
para compreender melhor a Guiné-Bissau



Arrefeceu ao anoitecer, no entanto o arvoredo está silencioso, imóvel, como se esperasse o fim desta semana em braseiro. O termo das férias é uma evidência, segunda-feira saio daqui melancólico, gosto a valer desta casa toda em pedra, cercada de floresta, com um zumbido do IC8 lá ao fundo. Para já, travo a melancolia com toda esta exaltação que tem acompanhado a leitura da obra com que findo as férias com chave de ouro: “Ébano, Febre Africana”, por Ryszard Kapuscinski, Campo das Letras, 2002. O polaco Ryszard Kapuscinski é tido por muitos especialistas como um dos maiores jornalistas do século XX. Tendo começado a sua vida profissional como correspondente na Ásia e no Médio Oriente, reteve na sua obra-prima Ébano 40 anos de África. Ali começou em 1957. Como ele esclarece, Ébano não é um livro sobre África mas sobre encontros que teve com africanos. África é um continente demasiado grande para poder ser descrito. África é um conceito geográfico, um cosmos versátil, imprevisível, dominado por uma natureza luxuriante, que por vezes ultrapassa o paraíso bíblico, devastada por questões étnicas avassaladoras. A África de Kapuscinski remete-nos para as reportagens que ele efectuou logo em 1958, quando esteve no Gana, no arranque da descolonização.

Ele fala-nos de quando saiu do avião se ter sentido confrontado com o cheiro dos trópicos: “Cheiro de corpos quentes e peixe seco, carne apodrecida e mandioca tostada, flores secas e plantas aquáticas podres, resumindo, um cheiro a tudo o que é simultaneamente agradável e nojento, aquilo que atrai e repele. Este cheiro sopra das palmeiras próximas até nós, nasce na terra quente, liberta-se dos esgotos da cidade”. E sente-se surpreendido pelo andar dos africanos nessa Acra densamente urbanizada: “Na rua misturam-se automóveis e peões. Tudo se move ao mesmo tempo. Peões, carros, bicicletas, carrinhos de mão, vacas e cabras. Na berma, para lá do esgoto, desenrola-se a vida doméstica e a vida comercial, as mulheres apiloam a mandioca, tostam bolbos de taro sobre brasas de carvão, preparam alguma receita especial. Tudo às claras, como se houvesse uma regra que mandasse toda a gente sair de casa às 8 da manhã para vir para a rua”. No Gana Nkrumah é o líder incontestado. Kapuscinski vai conversar com Kofi Baako, o ministro para a educação e informação. O modo como decorre a entrevista faz ver a Kapuscinski que estes líderes africanos descobrem a política e a independência com devoção e sinceridade, falam do progresso como os iluministas falavam da Razão. O jornalista apercebe-se da profunda religiosidade africana que toma conta da realidade, que se fundamenta no mundo dos antepassados no reino dos espíritos. A noção de tempo é uma categoria passiva, uma inversão completa do pensamento europeu. O africano está habituado a esperar e está dominado pelas contingências da vida em grupo, subordinado ao clã. Viajando de autocarro entre Acra e Kumasi, o jornalista revê a evolução acelerada entre o colonialismo do final do século XIX e o processo da descolonização. Foi na II Guerra Mundial que se deu a viragem. Até aí, a diferença de raça e cor da pele foi o tema central, todos os conflitos se reduziam à oposição branco-negro: o branco era o senhor, o dominador, era intocável. Os africanos foram chamados a combater nessa guerra em teatro europeu e fazem uma descoberta chocante: que a potência colonizadora também pode ser vencida (caso da França), vêem os brancos a refugiarem-se em pânico durante os bombardeamentos, esfomeados. Até então o único contacto que tinham tido com a vida dos brancos era com a vida luxuosa que os colonizadores gozavam. Esses veteranos regressaram a África e adquiriram a noção de independência. Foi assim que tudo começou na descoberta de uma nova entidade. De novo na rua, Kapuscinski sente-se maravilhado com a comunicação entre africanos e escreve: “O modo como se é saudado e a atmosfera do primeiro encontro são determinantes para o destino de uma relação. Deve mostrar-se desde o primeiro encontro uma grande alegria e uma simpatia espontânea. É frequente ver-se duas pessoas paradas no meio da rua, vergadas pelo riso. Não significa que estejam a contar anedotas uma à outra. Estão apenas a cumprimentar-se. Se o riso acabar de repente ou a saudação está terminada e pode agora passar-se ao tema central da conversa, ou então os intervenientes no acto de saudação estão só a dar descanso aos respectivos diafragmas”.

Já em Dar-es-Salam, o autor analisa a africanização, um processo tenso, díspar, com novas manifestações de luta pelo poder. Porque o novo poder vem acompanhado do seu clã, tem que partilhar tudo com os irmãos e com os primos, quem não respeitar este princípio condena-se à exclusão. Quem pode escapar a esta lógica são os não nacionais, caso dos comerciantes oriundos do Próximo Oriente ou da Ásia, que continuam a viver dentro das suas categorias sociais. Com a africanização, antigas relações interétnicas que tinham sido congeladas ou simplesmente ignoradas pelo colonizador, ressuscitaram, activaram-se. No caso preciso de Uganda, os antigos reinos reacenderam os seus conflitos. O jornalista adoece com a malária, sentiu-se invadido por um frio atroz, penetrante, começou a tiritar e a ter convulsões. Ele fala assim deste sofrimento: “Entramos no mundo que ainda há instantes ignorávamos completamente, mundo que acaba por nos vencer, descobrimos dentro de nós vales, fendas e abismos glaciares. Depois da crise, fica-se um verdadeiro destroço humano, uma pessoa nada numa poça de suor, tudo lhe dói, sente tonturas e náuseas. Quando se pega ao colo de uma pessoa assim, tem-se a sensação que ela não tem nem ossos nem músculos”.

O olhar do jornalista dirige-se agora para a expansão colonial, que passou das cidades do litoral para as profundezas do continente: é o tempo a epopeia dos caminhos-de-ferro, estradas e pontes. É nisto que um golpe de Estado rebenta em Zanzibar, é para ali que se dirigem os jornalistas. O aeroporto de Zanzibar está encerrado, os jornalistas dirigem-se a Dar-es-Salam. Depois de várias negociações, alugaram um pequeno avião e voaram para Zanzibar. Atónito, descobre a improvisação, as ordens e contra-ordens dos revoltosos. Zanzibar ficou conhecida pelo seu comércio de escravos que durou 400 anos, nele participaram a Europa, as suas Américas e numerosos países do próximo oriente e da Ásia. Por aqui passaram caravanas de escravos oriundos do Congo, Malawi, Zâmbia, Uganda e Sudão. É um país onde os árabes dominam os africanos negros, estão em permanente discórdia. O golpe de Estado foi desencadeado por John Okello, de 25 anos, meio analfabeto que tem um slogan: “Deus deu Zanzibar aos africanos e prometeu-me que a ilha ia voltar a ser nossa”. Para isso é preciso expulsar os árabes e aguardar a retirada dos ingleses. Na véspera da revolta, Okello autoproclama-se marechal de campo e os trabalhadores agrícolas e polícias atribuem-lhe o grau de general do exército. O encontro entre os jornalistas e Okello é surpreendente. Como iremos ver a seguir.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6867: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6871: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (1): O Chico do Palácio

1. Como nem só de memórias boas se fez a guerra, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos uma história para a sua nova série Outras memórias da minha guerra.


Outras memórias da minha guerra (1)

O Chico do Palácio

Por José Ferreira da Silva

De seu nome era Francisco Ribeiro e conhecido entre os amigos pelo Chico. E, dos mais íntimos, pelo Chico do Palácio. Havia duas razões para esse cognome: uma por ser natural e morador da zona do Palácio de Cristal do Porto; outra porque, efectivamente. lá havia um macaco enjaulado, com esse nome, famoso na região tripeira e arredores.

O Chico ficara órfão de mãe logo ao nascer. E o pai, que vivia paredes meias com o álcool, - “bateu a bota quando eu tinha 4 anos e não deixou pena nenhuma porque não nos ajudava nada”, lamentava-se o Chico. Por isso, lá continuou a ser criado entre as bancas das vendedeiras de fruta, chouriço, azeitonas e tremoços, onde se alimentava. Tinha uma irmã mais velha, que também se desenrascava como podia. Ele fazia questão de afirmar que sempre viveu por sua conta, mesmo em criança, pedindo e roubando fruta e comida. Era franzino, de pele bastante gasta e picada das bexigas, e aparentava ter quase o dobro da idade. Talvez devido às privações alimentares e outras e ao vicio de fumar. Sofria muito durante as operações militares pela falta do tabaco.

Ao contrário do que constava, tanto o Chico como os seus vizinhos da Banharia, Massarelos, Ribeira, Valbom, Rio Tinto ou Matosinhos, eram uns tipos bestiais. Era gente madura, de língua afiada e nunca derrotada em debate com qualquer letrado. Dava gosto ouvi-los, com aquele sotaque do Puaerto e com expressões simples e de frontalidade sem limites. Abriam-nos um mundo encantador onde os seres mais humildes viviam o dia a dia, o mais alegremente possível. Praticavam a solidariedade extrema, desde a partilha de um resto de comida à “barona” de um cigarro. Manoel de Oliveira, o maior cineasta português, evidenciou-se muito cedo com um filme que retratou aquela gente ribeirinha – Aniki Bó-Bó.

Usavam de uma linguagem própria e viva. Era normal ouvir-se entre eles: “tafôda morcom”, “ouve lá, ó manca-mulas”!, “a lambisgóia andava a armar-se ao pingarelho”, “Oh bacano chuta aí uma barona”, “ Oh fachina, deixa-te de paleógrafo e vai mazé buscar morfos pá gente matar a traça”, “só pensas encher a mula”, “tás coa tromba foleira”. “a patroa fodeu-lhe a fronha toda”. “era um pastor, enforcou-se cô aquela pandorca”, “q safôda, armou-se em Pipi da Tabela para fisgar uma faneca daquelas e não viu que ela andava no negócio das carnes há tanto tempo!. Aposto que ela lhe jurou quinda tinha os três.” Etc., etc..

Dizia-se que eram cantigueiritos, faroleiros e gabarolas. Mas não era verdade. Estes eram simplesmente os argumentos de quem não tinha hipóteses de os enfrentar. Provou-se que, em combate, não recuavam perante os maiores perigos.

O Chico era muito popular entre a malta da tropa. Parecia o irmão mais velho daquela tropa toda. Brincava e gozava com todos, mas sempre de uma forma cortês que não agredia. Quando, em plena formatura, informal e imperturbável, acusava ao Alferes : - “ête gajo tá-ma chatear os cornos”, apontando para um dos colegas –, era mais para brincar com o próprio Alferes, um açoriano, que proferia muitas vezes essa expressão.

Outro Chico de outro Palácio

No último fim-de-semana em Viana do Castelo, uns 3 ou 4 dias antes de partirmos para a Guiné, estive de serviço no Domingo e encontrei o Chico no Quartel:

- Então, que anda aqui a fazer, não foi despedir-se da família? E ele respondeu:

- Que família? Se fosse a casa da minha irmã, o mânfio dela ainda me cravava os tostõezitos que ganhei a fazer os serviços.

Daqui se depreende facilmente que o Chico não se sentia muito afectado com a mobilização para a guerra nem mostrava saudades de ninguém. O que mais o preocupava era o vício de fumar continuamente. E era nisso que ele gastava o dinheiríto. Raro era o mês em que ele não nos vinha pedir algum (a mim e ao Mariz, de Anadia), até receber o pré da Companhia.

No dia do pré, saía da Secretaria e vinha directamente ao nosso encontro. Batia à porta do quarto, entrava delicadamente, virava-se para um de cada vez, a exibir o dinheiro na mão esquerda. Contava com a mão direita o montante em dívida e entregava-o, agradecendo. De seguida, pagos todos os credores, desfiava o restante, levantava-o, esticava-se e dizia:

- Este é que é o meu e agora sim, é que o posso meter no meu bolso.

E enfiava-o orgulhosamente no bolso esquerdo da camisa. Então, já com as mãos livres pedia:

- Posso fumar?  Esta nobre cena repetiu-se sempre com o mesmo rigor e satisfação.

Estávamos nos últimos dias de Agosto 67 e tivemos que fazer mais uma operação em zona perigosa. Era no Tombali, entradas da mata do Cantanhez. Nessa altura, o Comandante do PAIGC, Nino Vieira, que era dali, andava muito activo. Valeu-nos o seu ex-amigo João Bacar Jaló, o famoso futuro chefe dos Comandos Africanos, que, então, estava sediado em Príame/Catió e fazia muitas operações connosco. Para nós era muito bom porque aqueles milícias africanos era muito experientes e costumavam ir na frente.

De repente, suspendeu-se a progressão na mata e iniciaram um regresso bastante apressado. Na frente, a tropa do Tenente Bacar havia detectado uma emboscada, montada à nossa espera e entendeu-se que o melhor seria retirar rapidamente, até porque o inimigo poderia envolver-nos e vir atrás de nós. Era uma zona densa, muito fechada, com muitos arbustos e bastante armadilhada, o que obrigava a todos passarem pelo mesmo trilho. O nosso Capitão disse-me para montar rapidamente alguma segurança atrás, enquanto se fazia a retirada. Inicialmente, os militares quase corriam mas, à medida que chegavam a uma pequena linha de água, atrasavam-se devido às dificuldades em atravessá-la. Sentimos bastante ansiedade devido ao perigo de existir tanta tropa concentrada num pequeno espaço e a nossa segurança ser diminuta, pois estava limitada a uma pequena frente de 4 ou 5 atiradores, estando o pelotão ao longo do trilho.

Podia ter sido uma tragédia. Quem tenha passado por uma situação idêntica, sabe bem o pavor que se sente quando se começa a retirar. Ou no caso de ataque de abelhas em zonas de perigo (normalmente à entrada dos acampamentos inimigos). Mas mais aflitivo ainda é ver toda a gente a correr e nós a termos que esperar para manter a segurança .

Foi neste ambiente de apreensão e de medo que o Chico, a acusar ainda mais a ansiedade, pois já levava cerca de 24 horas sem fumar, entre outras observações catastróficas, mandou mais uma das suas tiradas:

- Aquele filho da puta do sargento Viscoso, não nos pagou ontem, porque estava à espera que algum lerpasse nesta operação. É mais aquele que vai para o porco alentejano ... e fez o gesto, com os dedos em rotação.

Uns minutos depois, também retirámos e sentimos dificuldades agravadas a atravessar a linha de água, porque o trilho era, agora, só lama e ninguém se mexia sem a ajuda de outros. Convém lembrar que, nestas situações, bastava pararmos para nos enterrarmos lentamente com o peso do próprio corpo. Dentro do rego levantávamos um de cada vez, que, depois, era puxado do lado de cima por outro. Fui eu que ajudei o Chico do lado de baixo e de cima foi o Massarelos. O Chico deu-lhe a arma G3, com a coronha para cima, segurando-se no cano e o Massarelos agarrou-a pela coronha. Como a arma escorregava, devido ao lodo, o Massarelos tentou segurá-la melhor e os dedos foram parar junto ao gatilho. A arma não estava em posição de segurança. Deu-se um disparo e o Chico foi atingido na anca direita, de cima para baixo, razão por que a bala não o atravessou (e não me atingiu). A movimentação, era, como atrás foi dito, muito difícil, ele esvaiu-se em sangue, e não houve meio para o evacuar para a base do Batalhão, em Catió.

Tal como ao nascer, o Chico não teve a sorte do mundo que o escolheu. O Massarelos, que era seu vizinho e seu principal amigo, passou o resto da tropa entre lamúrias e copos, acusando uma tristeza profunda. Há mais de 30 anos que ninguém sabe dele.

(Silva da Cart 1689)
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Nota de CV:

(*) vd. poste de 12 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6846: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (6): O Cabo Felgueiras

Guiné 63/74 - P6870: Parabéns a você (140): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763, Cufar 1965/66 (Editores)

Postal de aniversário de autoria do nosso Private Designer Miguel Pessoa


1. Hoje, dia 19 de Agosto de 2010, está de parabéns, por completar mais um ano de vida, cheio de vitalidade e juventude, o nosso camarada Mário Fitas (ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 763, Os Lassas, Cufar, 1965/66).

Aqui está a Tabanca em peso a felicitar o Mário por esta feliz data, desejando-lhe um dia bem passado junto da sua esposa, filhos e demais familiares e amigos. 

Já que o mês é de festas, bebamos mais um copo, este à saúde deste nosso camarada.

Como ainda estamos na segunda juventude, é com a maior das certezas que marcamos desde já encontro para 2011, para que com a mesma pedalada nos reunamos, em pensamento, em volta do nosso tertuliano e amigo Mário Fitas, para comemorarmos mais um seu aniversário, aquele que antecederá os 70 anos.

Caríssimo camarigo Mário Fitas, recebe um abraço enorme, desculpa lá, mas ainda maior que o teu Cumbijã, que a Tabanca manda inteirinho para ti.
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Notas de CV:

(*) Vd poste de 19 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4834: Parabéns a você (19): Mário Vicente Fitas Ralheta, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 763 (Os Editores)

Vd. último poste da série de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6859: Parabéns a você (139): José Manuel Moreira Cancela da CCAÇ 2382 (Os Editores)

Guiné 63/74 - P6869: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (26): Portugueses na Lapónia... sem distress (José Belo)

1. Foto e texto de José Belo (Mensagem enviada com data de ontem)


O VERÃO NA LAPÓNIA em....stress de calor! 

Caros Amigos e Camaradas:

Um Continente, mesmo de um extremo ao outro, é bem pequeno para a nossa Tabanca e os seus leitores. Nao é que me apareceram, literalmente, "à porta de casa",  em Abisko, bem já dentro do Círculo Polar Ártico, na Lapónia Sueca, 3 casais de portugueses, leitores do blogue de Luís Graça e Camaradas da Guiné?!! 

Interessados pelo norte da Escandinávia, seguiram a sugestão do nosso Camarada da Tabanca do Centro, Carlos Santos, de quem são amigos, deram uma olhadela ao blogue da Tabanca da Lapónia e... aqui apareceram, em viagem que os levou da Lapónia Finlandesa, à Sueca e Norueguesa. 

Sem os conhecer de lado nenhum,e sem saber "o que são" ou no que "acreditam", tivemos momentos inesquecíveis de convívio Lusitano. Mais uma vez, temos que concordar que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca é.....Grande! (*)

Um grande abraço amigo.

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quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6868: Blogpoesia (80): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (7) (Manuel Maia)

QUISERA EU... (7)

por Manuel Maia*

Vi matadores e mortos perfilarem
e um estranho ritual iniciarem,
psicostasia egípcia, surreal...
Vi mortos reclamarem por justiça
gritando o envolvimento nessa liça
de ver "pesagem d´alma", enquanto tal...

Em Haia, vi sentar no tribunal,
culpados do imenso lodaçal,
descolonização dita exemplar...
De um lado militares de alta patente,
do outro, onde a vergonha é sempre ausente,
a corja da política a julgar...

Vermelhos almirantes, generais,
ignóbeis vis farsantes, amorais,
capazes das vilezas mais horrendas...
Rasgando acordos dão a uma facção
poder e armamento em profusão,
gerando e fomentando mais contendas...

Milhares serão os mortos nessas terras,
agora fruto d`intestinas guerras,
riquezas mil havia p`ra sugar...
Envoltos no negócio d`armamento,
ligados com o tráfico nojento,
alguns de alta patente militar...

Sabendo d`asquerosa conexão,
ministro da defesa da nação,
prepara dossier denunciador...
O gesto foi sabido p`la escumalha,
que célere contrata um vil canalha,
do crime enorme expert sabotador...

Atrasa Boeing/Tap a descolagem,
que "empurra" chefe AD para viagem
no Cessna sabotado no hangar...
Ministro da defesa e Sá Carneiro,
sucumbem na explosão deste "ligeiro"
mais quatro a quem a morte foi buscar...

Urdida e bem montada a ratoeira,
ao povo é atirada então poeira,
com comissões d`inquérito à rajada...
A Yard enviou o criminoso,
P.J.soltou logo o "mafioso",
não fosse ele implicar a canalhada...

De crocodilo as lágrimas vertidas,
politiqueira corja, mal fingidas,
palavras de pesar, soltou então...
Da guerra alguma tropa já arredia,
juntara-se à escumalha que queria
avolumar nos bancos seu cifrão...
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Notas de CV:

(*) Manuel Maia foi Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74.

Vd. poste de 17 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6860: (Ex)citações (91): A Guerra Colonial, todos querem ser heróis (Manuel Maia)

Vd. último poste da série de 8 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6837: Blogpoesia (79): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (6) (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P6867: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (6) : Quadros de Viagem de um Diplomata, de Luiz Gonzaga Ferreira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Descansem, estou quase a acabar as férias. Foram curtas, preciso de mais.
Li este livro quando estava a preparar a Mulher Grande, precisava de perceber o fervilhar da vida senegalesa na altura em que o grupo de François Mendy atacou São Domingos, onde pus a viver a minha heroína. A História não especula, não põe hipóteses. Mas é impossível deixar de perguntar o que teria acontecido se Salazar continuasse a apoiar a solução de autonomia progressiva para a Guiné Portuguesa.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (6)

por Beja Santos

Quando, em Dakar, se negociava uma autonomia pacífica da Guiné


No dia 11 de Agosto de 1963 um DC5 aterrou em Bissalanca e dele saíram Silva Cunha, então Secretário de Estado do Ultramar, diplomatas do MNE e o último cônsul português em Dakar, Luiz Gonzaga Ferreira. Este conjunto de personalidades ia aguardar a comunicação que Salazar faria ao país no dia seguinte, dando conta da sua decisão, tomada depois de se reunir com Benjamim Pinto Bull, Presidente da União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP) de aceitar a abertura de negociações para uma autonomia política da Guiné. A esta declaração de Salazar, o conjunto de personalidades e o Governador da Guiné receberiam Benjamim Pinto Bull para iniciar as negociações dessa autodeterminação progressiva.

O que se disse acima não é ficção, está perfeitamente documentado e consta do livro “Quadros de Viagem de Um Diplomata”, por Luiz Gonzaga Ferreira*, Vega, 1998. Ao longo de mais de 400 páginas, o diplomata, que iniciou a sua carreira em Dakar, em 1960, dá-nos conta sobre os bastidores da acção diplomática portuguesa no Senegal e oferece-nos uma importante memória sobre a política de Senghor e o que ele pensava da transição pacífica da Guiné para a independência e, não menos importante, quem eram e como actuavam os diferentes movimentos independentistas que operavam em Dakar, a partir de 1959. Vamos aos factos.

Primeiro, as condições em que se chegou para que o próprio ditador tenha concordado com uma solução negociada com a UNGP. Léopold Sédar Senghor adoptou uma imagem moderada e um perfil de negociador no contexto da antiga África Ocidental Francesa. Poeta africano, autor do princípio da Negritude, apaixonado pela cultura francesa, partidário da democracia parlamentar, debatia-se por aprofundar essa via no Senegal e na vizinhança e sujeitava-se a ter que acompanhar o estado de exaltação das independências e até as próprias vozes radicais que se ouviam no Gana, em Marrocos ou no Congo. Senghor temia os projectos políticos de Sekou Touré e desconfiava do marxismo de Amílcar Cabral. Impelido para o corte de relações com Portugal, manteve, mesmo depois da saída do Embaixador português, relações cordiais com o cônsul. A colónia guineense era representativa no Senegal, tal como a colónia cabo-verdiana. Por muita moderação que imprimissem nas relações com os movimentos independentistas, Senghor estava consciente, sobretudo a partir de 1961, que ou se entrava na luta armada ou na negociação com as autoridades portuguesas. Os movimentos de libertação da Angola, Guiné e Moçambique já se tinham encontrado em Casablanca, agiam com uma estratégia conjunta. Os países africanos preparavam a criação da Organização da Unidade Africana. Para além de lhe repugnar a guerra, Senghor temia a circulação de armamentos pela região do Casamansa, antigo território português, até 1886. Senghor e grande parte dos dirigentes do seu partido, o UPS – Union Progressiste Senegalaise pretendiam a solução moderada, por isso apoiaram a UNGP. Senghor assistira em 1961 às investidas de um grupo de manjacos do Movimento de Libertação da Guiné de François Mendy, que atacaram São Domingos, Susana e Varela. Os movimentos nacionalistas radicais não aceitaram a concorrência da UNGP que procurava promover valores de paz e conciliação. Senghor apostou declaradamente na UNGP. A partir de Dakar, Luiz Gonzaga Ferreira ia informando Bissau e o MNE. Os Estados Unidos não sabiam muito bem quem apoiar, a URSS, nessa época, fazia ainda um jogo duplo entre o FLING e o PAIGC. Este, tinha já em preparação um vasto conjunto de quadros e prepara a sublevação do Sul da Guiné. Os argumentos de uma autonomização progressiva, entregando a Guiné aos guineenses terá seduzido Salazar que aceitou o jogo do diplomático que secretamente era tecido em Dakar por um jovem que iniciava a sua carreira.

Segundo, o enredo negocial urdido passou por captar as simpatias dos altos dirigentes senegaleses para uma situação que impedisse abrir o flanco aos grupos esquerdistas senegaleses, sempre prontos a ver armados os nacionalistas guineenses e cabo-verdianos. A partir do momento em que cortou relações ao nível da embaixada, Senghor teve que fazer uma escolha e fê-la: secretamente, começou a pedir empenho ao governador Peixoto Correia para criar uma atmosfera de aceitação da UNGP em Bissau. Ao longo de centenas de páginas, o embaixador Luiz Gonzaga Ferreira descreve os altos e baixos do regime de Senghor e o equilíbrio que este procurava manter entre o “sonho revolucionário” e uma África independente dialogante com o mundo ocidental. Um simples cônsul move-se entre nacionalistas, dá uma opinião favorável à constituição de uma frente independentista pacífica, descreve demoradamente a actuação dessa miríade de movimentos, na maioria dos casos sem nenhuma representatividade e o apoio dado ao grupo de Pinto Bull que era, segundo o autor, maioritariamente apoiado na época pelos guineenses que viviam no Senegal.

Também, a acreditar no que escreve o autor, é patente que o PAIGC era altamente contestado pela comunidade cabo-verdiana do Senegal que não via com bons olhos o mesmo Estado numa unidade em que não se reconheciam. Neste ponto, estamos perante uma leitura excepcional, pois é possível decepcionar como esta UNGP constituiu a última oportunidade de ter evitado, segundo o autor, a luta armada bem sucedida que o PAIGC desencadeou a partir de 1963.

Terceiro, qualquer possibilidade de ter havido uma Guiné independente multipartidária, dirigida por guineenses, desapareceu com o discurso de Salazar de 12 de Agosto de 1963. Num curto parágrafo deitou tudo por terra, ele que apoiara a negociação com a UNGP ao dizer: “Que todos o saibam – em nenhum momento e sob que pretexto, jamais parcela alguma do território nacional e nenhuma parte da soberania nacional serão alienadas”. Igualmente, no terreno das hipóteses, a proibição desta autonomia deitou por terra outras soluções em Angola e Moçambique. O pano caiu nesse dia. Em Adis Abeba nasceu a Organização da Unidade Africana, o nacionalismo africano entrava na rampa de lançamento, todas as soluções moderadas se tornaram questionáveis, indesejáveis.

Há, por conseguinte, todo o interesse em fazer o registo desta obra como documento singular onde são desveladas todos as iniciativas que precederam soluções pacíficas para a independência da Guiné.

(Continua)

(*) Embaixador Luiz Gonzaga Ferreira, uma carreira que se iniciou em Dakar, que passou pelo Congo, Líbano, Cuba, Bruxelas e Bulgária.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6857: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (5) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6866: O Nosso Livro de Visitas (97): José Pinto Ferreira, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, CCS/BCAÇ 237 (Tite, Julho de 1961 / Outubro de 1963): Evocando o lendário Cap Curto (CCAÇ 153, Fulacunda, 1961/63)


Vila Real > Agosto de 1963 > CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63) > O regresso a casa... Na foto, o 1º pelotão... Repare-se no fardamento, o caqui amarelo...

Foto:  Cortesia de João Baptista (2008), autor do blogue Fulacunda (entretanto falecido)

1. Mensagem do nosso leitor José Pinto Ferreira


Data: 13 de Agosto de 2010 23:18
Assunto: Memória Viva (Postes 2752, 3717, 3724, 3726 e 3731 (*)

Caros amigos:

Permitam-me que os trate assim. Chamo-me José Pinto Ferreira, fui nascido, baptizado e criado até aos 14 anos na freguesia de Ariz, concelho de Marco de Canaveses. Após aquela idade fui pregar para outra freguesia à procura de mais e melhores oportunidades de conquistar um futuro mais apetecível.
Já crescidinho regressei à terra natal onde resido, actualmente na Rua do Canto, nº 38,  4625-037 Ariz, Marco de Canaveses, com o telefone nº. 255589702, e em alternativa o telefone em horário laboral, nº.255589380.

Feita esta apresentação, um pouco corriqueira, vamos ao que me interessa colocar-vos à consideração e que entendi titular de Memória Viva.

Fui militar, classe de 1959. Pertenci á Arma de Engenharia, Batalhão de Transmissões , tendo sido telegrafista no R.E.2,e posteriormente no Centro de Transmissões do Quartel General da 1ª. R.M., nos anos 60/61. Neste Centro de Transmissões fui escravo da especialidade que tinha, trabalhando de noite e dia, com prevenções sucessivas como quando do assalto ao Santa Maria.

Em Julho/61 fui para a Guiné integrado no Comando do BCAÇ 237,aquartelado em Tite até Outubro/63.

Depois do que acima fica dito, quero dizer-lhes que a Guerra da Guiné merece ser contada sem paixões nem vaidades. Quase diariamente corro a persiana e espreito a janela do Vosso Blogue, o que me permite dizer ter a opinião de alguma crítica ao que é dito nos Postes referenciados.

Fui telegrafista muito activo ao serviço do Comando do BCAÇ 237, o que me permitiu assimilar algumas verdades nunca desmentidas. Dito isto, peço que aceitem e reflictam no que se diz nos Postes acima referidos:

(i) O Comandante da CCAÇ 153 foi o Capitão José dos Santos Carreto Curto, aquartelado em Fulacunda. Era um oficial corajoso, visto como inimigo fidalgal pela Rádio Conakry. Nunca terá cortado cabeças a ninguém, mas tão só sido acusado injustamente de um acto menos digno que terá sido praticado por um seu subordinado no IN, morto quando fugia para o Rio. ACTOS REPELENTES, sem confirmação,  não devem ser credibilizados.

(ii) Mudando o tema, quero dizer que as tropas que foram para a Guiné a partir de 1961 também eram portuguesas. Não tiremos a Verdade à História e saibamos com humildade dignificar os que foram antes, mas também os que partiram depois.

(iii) Para terminar digo-lhes que até hoje não me apercebi que alguém tenha referido o ex-Comandante Militar da Guiné, Coronel Bessa. Este Comandante visitou Tite em Janeiro/63, dia seguinte ao ataque do Quartel [23], tendo sido afrontado pelo Comandante do BCAÇ 237,  José António Tavares de Pina, de que ou resolvia rapidamente o problema da falta de meios humanos do Batalhão, ou arreava ferros e os seus homens fariam o mesmo.

Adeus,  Amigos

Até Sempre (**)

2. Comentário de L.G.:

Já em tempos, mais exactamente em 23 de Abril deste ano, fui contactado,  por telefone, pelo José Pinto Ferreira,  natural de (e residente em) Marco de Canaveses, concelho com o qual de resto tenho afinidades, pelo casamento e pela amizade. No essencial, o José Pinto quis dar-me alguns esclarecimentos sobre o Cap Inf José Curto, comandante da CCAÇ 153 / BCAÇ 237, subunidade que estava sediada em Fulacunda, aquando do ataque a Tite em 23 de Janeiro de 1963, data tradicionalmente tida como a do início da guerra na Guiné.

Sobre a lenda do então Cap Inf José Curto (de que eu própio me dei conta na visita que fiz ao Cantanhez, no início de Março de 2008, aquando realizaçãodo Simpósio Internacionalde Guiledje, Bissau, 1-7 de Março de 2008), o ex-1º Cabo Radiotelegrafista contou-me o que sabia, nestes termos:  houve um guerrilheiro que foi morto, já lá as bandas do Cantanhez, num ataque de surpresa a uma das barracas do PAIGC. Ao que parece, era um tipo importante da guerrilha, que estava no ínicio da sua organização, e que foi reconhecido pelo guia ou por um caipaio. Estávamos no início da guerra, com todo o sul já polvorosa. Um militar da companhia terá, à revelia, do seu comandante,  decepado o cadáver, para trazer, para Fulacunda,  uma prova da sua eliminação física.

Este terá sido o princípio da lenda... O capitão passou a ser o diabo, o terror do sul da Guiné, segundo a Rádio Conacry. Para o José Pinto, o capitão José Curto era um militar corajoso que foi apanhado pelo eclodir da guerra de guerrilha no sul (Regiões de Quínara e Tombali), e para a qual as NT estavam muito pouco ou nada preparadas, em termos humanos, psicológicos e militares... O raio de acção da sua companhia ia de Fulacunda a Cacine (onde tinha um Grupo de Combate!).

 Atenção: ele, José Pinto,  não presenciou este acto, "ouviu contar" à malta da companhia (que pertencia ao mesmo batalhão)... Fiquei de voltar a falar com ele, desta vez pessoalmente,  em Ariz, o que até agora ainda não se proporcionou... Recebo agora este mail em que ele volta a reabilitar a memória do Cap José Curto (hoje general reformado, ao que ele me diz).

Fico na dúvida se o José Pinto quer integrar a nossa Tabanca Grande. Se sim, faltam-nos as duas fotos da praxe. Terei muito gosto em inscrevê-lo como membro do nosso blogue, para mais sendo um homem da minha segunda terra. Fico, pois, à espera de notícias. Entretanto, para a semana talvez o possa encontrar pessoalmente.

Ao nosso blogue interessa apenas a verdade dos factos. Como é nossa norma, não fazemos juízos de valor sobre o comportamento, individual, de nenhum combatente da guerra colonial na Guiné, muito menos dos nossos camaradas operacionais (de soldado a capitão).

Sobre o episódio acima narrado, tenho uma outra versão, mais consistente e válida, de um graduado da própria  CCAÇ 153, e que estava com o seu comandante, Cap Inf José Curto,  nesse dia e local, e que portanto é uma testemunha privilegiada. Sei que, depois do regresso à metrópole, em meados de 1963, o pessoal da CCAÇ 153 nunca conseguiu reunir-se e muito menos com o seu comandante, sobre o qual de resto esse graduado confirma a opinião do José Pinto de ser um "oficial corajoso".

O nome deste camarada não será divulgado. Poderá no entanto vir a integrar a nossa Tabanca Grande, no caso de aceitar o meu convite. Até à data só tínhamos notícia do João Baptista, Fur Mil da CCAÇ 153, e açoriano, autor do blogue Fulacunda, mas infelizmente já  falecido há um ou dois anos.
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Notas de L.G.:

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6865: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (16): A chegada à Guiné e a terras de Ingoré

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 9 de Agosto de 2010:

A chegada à Guiné e a terras de Ingoré, da qual irei narrar singelas “estórias”, também fazem parte do puzzle do historial da CCaç 2381 “Os Maiorais.”

Em 06 de Maio/68, deu-se a chegada do Navio T/T Niassa a Bissau e o desembarque das tropas. Por sua vez a CCaç 2381 fez transbordo para a LDG 101 “Alfange” que zarpando e navegando para norte, ao largo da costa, seguiu com destino a São Vicente - Ingoré. Entrando no Rio Cacheu, na noite do dia 07 para 08 de Maio, avistamos a localidade de Cacheu com a sua iluminação. Prosseguindo, deparamos com o Cais de São Vicente pelas 07h30m. Neste acontecimento que ficou na memória de todos nós, ninguém se encontrava a aguardar-nos e tendo-se dado o desembarque apressadamente, dando como motivos o posicionamento do movimento de maré e a preocupação da manobrabilidade da LDG 101 “Alfange,” conjugando com a segurança da navegabilidade no rio Cacheu, a fim de ir ainda a tempo de abicar no Cais de Barro.

Foto 1 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Rio Cacheu > LDG 101 “Alfange” em manobras para abicar.
Fonte da imagem: Arquivo do Museu da Marinha, sendo solicitada ao tempo a sua extracção de Reservanaval.blogspot.com e colocação, com a cortesia do Camarada Lema Santos (MLS)

A LDG 101 “Alfange” não conseguira chegar a S. Vicente no dia 7 de Maio, como programado, dado ao acerto da conjugação da maré durante o dia.
Por sua vez os elementos da CCaç1801, que deviam receber-nos já estavam saturadas de esperar, fazendo-se noite receberam instruções para regressarem a Ingoré.

O Comandante da LDG 101 “Alfange” 1.º Tenente José Manuel C. Passos, antes de reiniciar a viagem informou que de Ingoré já sabiam da nossa presença e vinham a caminho ao nosso encontro.

Assim, o pessoal da CCaç 2381 espraiara-se na margem direita do rio Cacheu pela estrada que lhe fica adjacente (foto 2). Da situação de isolamento deparada, o Comandante da Lancha facultara dois cunhetes de balas de G3 e se algo mais houve foram granadas de mão, por caricato eu também tinha oito balas as quais retirara aquando da minha passagem pela carreira de tiro na Carregueira, sentindo-me dentro de uma certa segurança (depois conclui que aquilo era manteiga no focinho de um cão). Se o In soubesse éramos todos apanhados à mão.

Foto 2 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Ingoré > Cais S. Vicente em 1998 > Local onde a companhia espraiou-se, na margem oposta era terra do In (Mata do Canchungo – Teixeira Pinto). Ao tempo não existiam aquelas moranças.
Imagem extraída do Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné, I Série DXCVI, foi solicitado o uso, com a devida vénia ao camarada Francisco Allen.

Estamos isolados, são cerca das nove horas e começamos a ouvir o roncar de viaturas, depois vimos chegar os “nossos protectores” elementos da CCaç 1801 que vieram tirar-nos de um pesadelo. Ala que se faz tarde, todos embarcamos. Pelo caminho foram feitos tiros de G3 a gazelas, antes de passarmos por Antotinha (Tabanca em construção de reordenamento da população) a caminho de Ingoré.

Chegados a Ingoré, seguiu-se a expectativa e a devida acomodação da companhia. A quase todos foram servidos colchões de sumacimento, uma manta e dois lençóis. Com a manta fiz um catre, por isso tendo-a danificado. O meu amigo Cabo Quarteleiro queria o pagamento da mesma aquando da entrega, mas  foi fintado por uma troca.

Após a chegada, em dia que a companhia efectuara escolta a uma coluna auto a Sedengal e a Barro, fora-me solicitado para montar uma roda num Unimog, então pedi ferramenta, mas de momento não havia um macaco mecânico na oficina. Estava a começar bem, porque o único de que havia seguira na coluna auto.

E agora foi tentar desenrascar-me tanto quanto possível, utilizando pranchas fazendo-as de alavancas com a colocação de contra pesos. Levei cerca de duas horas para executar aquele trabalho, que normalmente com equipamento adequado levaria apenas dez minutos.

A situação desenrolara-se num barracão que se localizava na rua principal em frente ao Aquartelamento, tendo sido presenciada pelo Comandante da CCaç 1801, Capitão de Inf. José Daniel B. Adão, que ali se encontrava numa pequena secretária fazendo as suas anotações. Vendo aquela tarefa e não me conhecendo, perguntara o que ali estava fazendo e se era da sua companhia, porque estava queimado do Sol. Tendo-lhe dito que era periquito, e como era algarvio, desde Março sempre que possível fazia praia. Quanto ao serviço era a montagem de uma roda que se apresentava morosa, devido à falta temporária de um macaco para levantar o Unimog. Olhara-me de soslaio “quem é este artista”, mas concordou comigo.

Foto 3 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu >  Ingoré > 1968 > Em horas de ócio, a minha primeira foto na Guiné, sentado num cadeirão. Este deverá ser o que está na foto do José M. Ferreira, tirada em Ingoré 1963/4 (P6792).

Na tropa há de tudo, certo dia na caserna aparecera um Soldado da minha companhia vindo todo lavado em lágrimas “de baba e ranho", termo algarvio, lastimando porque a sua mulher lhe escrevera dizendo que tinha o filho muito doente e precisava de 2.000$00 para tratamentos. Porque levou mais de meia hora a choramingar, convencido da sinceridade do artista, como bom samaritano, contribui com um empréstimo de 500$00 (ele nunca disse que não me pagava, mas como foi evacuado...). Ao que me contaram o pobre do homem tem mãos ágeis e vai tratando da sua “vidinha” na baixa do Porto.

Em fins de Maio/68, o In actuou do lado da fronteira tentando referenciar Ingoré com uma manobra de diversão, enviando espaçadamente várias granadas de armas pesadas, as quais caíam distante. Pretendiam assim aliciar as NT de forma perspicaz, não tendo sido ripostado por ordem do Comando, por este ter em conta que não havia noção do local de saída de fogo In, e por palpite seria um desperdício de material.
De manhã partiu uma patrulha de reconhecimento e foi referenciada a posição In.

Foto 4 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Ingoré > 1968 > Eu junto da Caserna onde estava hospedado.

Da situação havida serviu para criarmos experiência, recebendo instruções do comando e dos velhos (CCaç 1801), na procura de um abrigo, a forma de proceder e já foi muito “atão… atão.., atão… atão..!” expressão algarvia.

Em 09 de Junho/68, a CCaç 2381 (2 GCOMB), a CCaç 1801 (1 GCOMB) e 1 Secção de Milícias, efectuaram uma acção de reconhecimento na fronteira com o Senegal sendo feitos quatro prisioneiros (prescindiram de dois dada a sua idade avançada).

Chegados a Ingoré, um dos prisioneiros fora colocado numa pequena cela, falava-se que quando lhe levaram comida atirara um balde “penicada”aos militares em serviço, e o Cabo reagiu disparando a G3, mas tendo dito que foi por tentativa de fuga. Se eu fui ao local e vi no pavimento porcaria, frutos do caju e furos na porta da cela feitos por balas, assim estaria esta fechada ou foi para simular um álibi. Eu pergunto, daquela forma como poderia efectuar a fuga. O segundo fora algemado, preso com a uma corda e havendo um vigia, depois fora enviado para Bissau e nada mais se soubera.

Na noite de São João de 1968, houve fanfarra e marcha (foto 5), fora organizada por Camaradas da CCaç 2381, com instrumentos de ocasião e da minha parte dava fracos acordes com uma guitarra portuguesa. Pela surpresa a população de Ingoré veio à rua aplaudindo e os camaradas mais velhos levaram-nos de tolos.

Foto 5 – Guiné-Bissau > Região de Cacheu > Ingoré > 1968 > A Fanfarra e Marcha de São João, era constituída por Furriéis e Praças da CCaç 2381.
A devida vénia ao Amigo e Camarada Zé Teixeira, que é o primeiro a contar da direita.

Também no dia 23 de Junho/68, fiz serviço de ronda aos postos de sentinela instalados na periferia da Tabanca, era por turnos e com visitas nos intervalos das rendições, fazendo-o montado em cima de uma auto-metralhadora Daimler, era necessária muita astúcia dada a fraca estabilidade e a má condução que esta viatura oferecia.

No norte da Guiné havia uma endemia da doença do sono, trata-se de uma parasitose que entra na circulação do sangue quando uma picada da mosca Tsé-tsé contaminada e que progride rapidamente. Ao tempo era irreversível, não havia medicação para a sua terapêutica, levando o infectado à morte em poucas semanas. Tendo observado um milícia que deambulava por Ingoré, apresentando os sintomas de psicose da fala e dos movimentos.

Por várias vezes efectuei serviço de mecânico auto das viaturas que estavam adstritas aos grupos de combate e operários que diariamente eram escalados para segurança e trabalhos de construção do reordenamento da população em Antotinha.
Em 09 de Julho/68, após a última vez que nesse local fiz serviço, quando já era noite, grupo In acercou-se da dita obra em construção sem qualquer oposição, montando sistema de dinamitação e fizeram um esfrangalhasso.

Foto 6 – Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1968 > Estou a simular a pontaria com a Metralhadora Pesada Browning, arma de calibre 12,7mm que pode usar munições para vários fins. Antes tinha sido reparada pelo 1.º Cabo Mec Armas, Acácio da Silva (na foto) com o meu apoio.
Camarada José M. Ferreira, concordo contigo, por conseguinte não se trata da arma Breda (Comentário P6792).

Durante o período de permanência em Ingoré, a CCaç 2381 efectuara treino operacional com o apoio CCaç 1801, tendo ficado posteriormente como companhia de intervenção do COMCHEF.

Em 18 de Julho de 1968, a companhia embarcou na LDG 101 “Alfange,” no Cais de São Vicente - Ingoré com destino a Aldeia Formosa, via Buba.

Com um grande abraço
Arménio G.F. Estorninho

Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas
CCaç 2381 “Os Maiorais”
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 11 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6844: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (15): Buba, quotidiano, deveres e desenrascanços

Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde era o salão de futebol de cinco e a Casa (comercial) Ultramarina onde era a messe dos oficiais


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Inscrição da CCAÇ 2435, a companhia que construiu o aquartelamento em 1969


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > Local onde estava situado o poste da bandeira; à esquerda as ruínas do refeitório com a padaria


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família > O antigo forno na padaria


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Visita do Cherno Baldé e família >  Posto de vigilância permanente equipado com uma metralhadora.


Bissau > 2006 > Futuros jogadores (Yussuf e Domingos Baldé).

Fotos (e legendas): © Cherno Baldé (2010). Todos os direitos reservados


1. Mensagem de 24 de Julho p.p., enviada pelo Cherno Abdulai Baldé

Assunto: Envio de mais uma crónica sobre Fajonquito

Estimado amigo e irmão Luís Graça,

Venho, como tem sido hábito, enviar mais uma crónica fazendo parte das minhas memórias de infância.

Estive, há poucos dias, em Fajonquito, com as crianças que já reclamavam uma visita aos locais citados na crónica sobre Canhamina: Surumael, Djunkoré e os seus djinés, o recinto da antiga mata dos poilões e o quartel de Fajonquito de cujas imagens aproveito para enviar algumas.

A crónica de hoje trata do período de transição para a independência e algumas turbulências e contradições que o acompanharam. Vejam se gostam e se não gostarem também digam. Espero não ter sido ousado demais e ferir algumas sensibilidades.

Um grande abraço,
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

2. Memórias do Chico, menino e moço > A MUDANÇA DAS BANDEIRAS (1974)
por Cherno Baldé

(i) Os sinais de uma mudança anunciada

Em Fajonquito, o período entre o mês de Junho a Agosto de 1974, tinha sido marcado pela chegada de uma nova companhia (BCaç 4514/72), conhecida entre nós como a companhia de Gadamael; a visita dos primeiros elementos da guerrilha e a saída definitiva das tropas portuguesas de Fajonquito. 

Período rico em acontecimentos, manifestações de apoio e festas, que algumas vezes assumiam formas dramáticas e outras simplesmente cómicas, mas foi sobretudo um período de indefinição, de ansiedades e de questões sem resposta, relativamente ao futuro.

No plano pessoal, tinha conseguido em Contuboel, um bom resultado nos exames da 4.ª Classe que fechavam o ciclo do ensino primário. Não fizemos nenhuma festa, porque o nosso capitão, Sambaro Djau, tinha reprovado nos exames. Para mim, isto representava uma bela “revanche”, pois, com mais de sete anos de serviço no grupo, e estando sempre na linha da frente, o melhor que tinha conseguido era a frustrante patente de 1.º cabo. Quase nada.

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Para as pessoas mais atentas, sempre há um prenúncio que serve de sinal para o que acontece a seguir. Entre os fulas são os chamados “dillé”. Assim, a queda repentina de uma pessoa adulta, a recepção na cabeça de excrementos de uma ave (se for de um Jagudi pode trazer consigo a marca de uma desgraça) etc., são sinais a ter seriamente em conta. 

Para mim, este sinal tinha sido uma informação que poderia ser muito importante não estivesse fora do seu contexto normal e transmitida por Marques, soldado operacional do 2.º Pelotão da CCAÇ 3549 (Deixós-Poisar), de forma clandestina a uma criança ainda inocente, logo a seguir ao assassinato de Amílcar Cabral em 1973.

Encontrou-me perto do salão preparando-se para mais uma partida de futebol com os colegas e, pegando no meu braço, afastou-me um pouco do grupo como sempre fazia quando queria falar comigo a sós. Fazendo parte dos meus admiradores, habitualmente, o tema era sobre futebol, desta vez, e sem qualquer preparação prévia, falou-me assim:

- Chico, olha que o vosso padrinho morreu, pá!

Não tendo percebido e, pensando que se tratava de algum acidente relacionado com os meus amigos, particularmente ao meu turbulento patrão Dias, condutor auto, perguntei:

- Qual dos meus padrinhos é que morreu, o Dias?

- Não,  pá, é o Cabral.

Eu não conhecia nenhum Cabral, nem de perto nem de longe, que pudesse ser meu padrinho, o Marques, pressentindo que iriam chover as perguntas, olhando para os lados como se estivesse com medo de alguém, afastou-se para o refeitório sem mais explicações, deixando-me coberto de perplexidade. Teria sido um simples desabafo e mais nada. Não me preocupei mais com isso, alias, era um grande alívio, afinal de contas, não tinha nenhum amigo com esse nome. No entanto este seria o tal sinal de aviso premonitório

Partindo desse pressuposto básico, na minha opinião, é mais fácil compreender o desenlace final que se seguiu ao 25 de Abril quando os portugueses muito apressadamente entregaram tudo, sem condições, sem contrapartidas


(ii) Os recados vindos de Oio ou a delegação que voltou bredouille

Quando se tornou claro para toda a gente que, com a partida das tropas portuguesas os guerrilheiros do PAIGC seriam os novos mestres do terreiro, dentre a população civil começou a ser delineado um plano de contacto e de recepção. 

Os fulas, maioritários, conscientes da alteração de forças e das novas condições que se desenhavam, da sua postura perante a guerra e face a uma guerrilha praticamente desconhecida, solicitaram aos seus vizinhos mandingas para que fossem eles a tomar a dianteira e servissem de porta-vozes da aldeia. Com essa táctica, pensavam poder sondar sobre as reais intenções da guerrilha e o que se escondia sob a etiqueta das bonitas palavras de “liberdade e unidade nacional”. Ė o que se poderia chamar “o jogo da lebre contra a perdiz” nos contos africanos.

Esta iniciativa tinha sido rapidamente apropriada por Ansumane Sissé,  um ex-guerrilheiro arrependido,  que, mais tarde soubemos, fazia um jogo duplo entre as duas partes em guerra, tinha beneficiado de apoios para a sua instalação e reinserção no quadro da política de (des)mobilização dos quadros do PAIGC, mas também mantinha os contactos com a guerrilha, fornecendo, de vez em quando, algumas informações. Não fosse o diabo tecê-las.

Embarcados num veículo de um comerciante local, os dignitários seguiram com destino a região de Oio, zona de Caresse, onde eram conhecidas as bases dos guerrilheiros. Dentre os numerosos candidatos, foram seleccionados apenas alguns ao critério e gosto do Sr. Ansumane, que, repentinamente, tinha assumido o estatuto de líder, fazendo valer os supostos conhecimentos e contactos que possuía. Depois de muitos anos de supremacia fula e dos seus patrões portugueses, parecia ter chegado, finalmente, a hora do ajuste de contas.

O meu pai, como muitos outros, não tinha sido escolhido e esta notícia tinha caído como uma bomba na sua cabeça de homem sensato e precavido. Lembro-me ainda do seu olhar vazio, algo aturdido e descontrolado, caminhando cabisbaixo e alheio a tudo, arrastando na estrada de terra vermelha e poeirenta o seu duplo “bubu” azul celeste bordado e suas “babuchas” árabes de cor branca, consumindo-se na preocupação engendrada pela precariedade e incerteza da situação. 

Por ironia do destino aqueles que até então eram os bandidos seriam agora os senhores. “Quem pode compreender as partidas que a vida nos prega, hein?” Estaria ele a pensar. Em casa ele tinha, pelo menos, dois retornados para proteger e sustentar, um antigo leopardo ferido de insónias e um gato preto já sem unhas, isto, sem falar do resto da família. O pior seria a humilhação pública de ser obrigado a fugir.

A delegação voltou ao pôr-do-sol e, ao contrário do que se esperava, não tinham regressado ao som dos tambores, flautas e nhanhero1 e logo que chegaram dispersaram-se,  desaparecendo nas sombras nocturnas das estreitas varandas de palhotas húmidas do mês de Agosto. Aos mais curiosos respondiam:

- “Disseram-nos para ficarmos quietos e esperar, no momento certo eles virão ter connosco”.

Na verdade, eles nem sequer tinham sido recebidos e por um triz não foram presos por invasão de zona de guerra, ainda repleto de minas. Teriam sido energicamente repreendidos pela sua precipitação e insensatez e, por fim, foram encarregues de transmitir a toda a população que, na óptica do partido e dos seus dirigentes, não havia cidadãos de primeira e de segunda, que o objectivo da luta armada era libertar o povo da dominação colonial e da opressão fascista e não trocar esta por outra com pessoas diferentes, por outras palavras, não havia diferenças entre fulas e mandingas, todos seriam tratados da mesma maneira, iguais perante a lei com direitos e obrigações para cumprir.

Por outro lado, o Ansumane não tinha obtido o reconhecimento que todos esperavam. Assim, as nuvens negras do céu tinham-se dissipado um pouco para dar lugar a um horizonte mais claro, mesmo se ainda era cedo demais para dançar. 

Importa dizer que esta informação foi salutar e teve o condão de evitar a situação de debandada geral que já se pressentia dentro da comunidade fula. O gado, principal riqueza da comunidade, já estava posicionado, havia muito tempo, perto da fronteira com o Senegal.
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1 - Instrumento de musica tradicional dos fulas feito de fios de cabelo extraídos do rabo de cavalo.


(iii) A chegada dos guerrilheiros

Passaram-se dias e semanas e quando menos se esperava, foi anunciada a chegada dos guerrilheiros que devia acontecer para os lados de Oio/Caresse, zona donde se esperava que viessem, naturalmente. Toda a aldeia saiu para assistir à  chegada mas, era falso alarme. No sítio indicado não estava ninguém.

Passados alguns dias, foi feito o mesmo anúncio mas, já metade da aldeia estava na dúvida e preferia esperar pela confirmação. Desta vez, efectivamente, estavam lá e, não era do lado de Caresse (oeste) mas do lado sul (Bairro Mandinga de Morcunda), donde menos se podia esperar. Tratava-se de uma táctica da guerrilha, simples diversão ou prudência de quem ainda não acreditava na sua sorte? Talvez fosse tudo isso ao mesmo tempo.

Rapidamente a notícia correu pelas aldeias da redondeza, as pessoas afluíram em massa. Crianças, jovens, mulheres, velhos; todos queriam ver a gente do mato, aliás, os “bandidos” agora convertidos em heróis da libertação nacional. Depois de todas as campanhas de desinformação do regime colonial, o que vimos era simplesmente inacreditável. Afinal, eram pessoas normais, como nós, dos pés a cabeça. Não tinham rabos como os animais, nem chifres como imaginamos os diabos. Encontrámo-los, alguns sentados, outros de pé, dispersos debaixo da sombra das mangueiras. Cabeludos, magricelas, olhos vermelhos, uma expressão visual que se situava algures entre o homem e o animal.

Exceptuando as armas e os uniformes que traziam, eram exactamente iguais aos prisioneiros que tínhamos visto no quartel alguns anos antes (na altura a população civil era muito céptica quanto ao serem verdadeiros “Paigecistas” inclinando-se mais para a ideia de que seriam, quando muito, cortadores de chabéu, perdidos entre as remotas aldeias oincas no mato de Caresse). 

Controvérsia a parte, aqueles prisioneiros, de facto, não estavam fardados e o aspecto esfarrapado, nauseabundo, mais metia dó que medo. Sempre que podíamos, metíamos algumas coisinhas por baixo das paredes de chapas que serviam de celas, com o nariz apertado entre os dedos. Porém, entre nós, nem todos partilhavam o mesmo sentimento e havia quem aproveitasse a ocasião para dar umas pisadelas nas mãos esfomeadas que apalpavam a terra e o ar a procura do abençoado pedaço de pão. Tinham fome.

- Quem são estes, os cubanos? 
- perguntava alguém ao vizinho do lado. Sem resposta.

- São estes que nos metiam tanto medo!? - comentou, incrédula, uma mulher fula que trazia ao colo uma criança, tendo no corpo apenas o pano amarrado até a cintura pondo a mostra os seios usados, elásticos, espalmados sobre o ventre (é uma pena o “nós Alfero” não ter passado por aqui).

- Não se iluda mulher, no mato, cada um destes bandidos vale por dez 
- explicou  o Quéta “chauffeur”, antigo companheiro do Tenente Jamanca.

Os homens que se apresentaram eram poucos, (um bigrupo?) e pareciam ser mais altos do que eram na realidade, como os corredores de fundo. O comandante era um homem de etnia mandinga, de meia-idade, alto e simpático que logo cativou as atenções, vindo a revelar-se um excelente orador. 

Ele mudou os hábitos da aldeia. As suas reuniões de presença obrigatória não demoravam menos de 12 horas, o que lhe valeu a alcunha de Presidente Seku Turé. Quando as pessoas eram convocadas, diziam as suas mulheres: “Mariama, prepare a comida de manhã cedo, porque vamos a reunião de Seku Turé”. No decorrer das longas reuniões do partido, aqueles que pediam para ir satisfazer alguma necessidade fisiológica, mulheres inclusive, eram acompanhados por homens armados. Começávamos a colher os frutos da verdadeira independência bem à moda dos movimentos de libertação em África.

Os guerrilheiros usavam uniformes castanhos ou cinzentos (pontilhados de pequenas formigas pretas). Eram diferentes dos sarapintados que estávamos habituados a ver. Pareciam novos e os corpos magros, quase esqueléticos, particularmente dos fulas, nadavam dentro dos uniformes o que dava a sensação de que não estariam lá muito habituados a usá-los. 

A maioria tinha nos pés sapatos de cor castanha, feitos de um tecido duro e resistente, amarrados com cordel. Eram leves e combinavam bem com a cor das fardas. Alguns deles usavam, ainda, plásticos simples comprados, talvez, no Senegal. Não havia muito rigor no fardamento. Os seus olhos, esses, eram muito vivos e penetrantes, em alerta permanente, com as armas ao alcance das mãos. Pela primeira vez, víamos com os nossos olhos, a famosa RPG7.


(iv) A atracção pela metrópole

Mais tarde, quando a retirada do que restava das tropas portuguesas já era iminente, um outro soldado, mecânico-auto, o Jorge, da companhia de Gadamael, ofereceu-me o livro que seria o primeiro da minha vida, cujo título era: “inglês sem mestre” sob um fundo de tiras azuis e vermelhas cruzadas. 

Fiquei com vergonha de dizer que não o conseguia ler. Esta oferta tinha mexido comigo e tinha-me incitado a aprender a ler. Na época, não sabendo interpretar o seu conteúdo, ofereci-o ao meu irmão mais velho que estava mais avançado na escola e que o levaria consigo na sua primeira viagem de estudos a Portugal em 1980. Com ar muito triste e lamentando a nossa sorte,  o Jorge disse-me naquele dia:

- Olha, Chico, nós vamos embora, os “turras” vão tomar conta disto e são capazes de matar a todos, se quiseres ir comigo eu falo com o teu pai.

- Não, nós vamos dar-lhes as nossas vacas e ficamos em paz - respondi-lhe, rindo.

Não tinha reagido a sua oferta, como se não tivesse percebido, na realidade não estava interessado. Durante todo o tempo que passamos no quartel entre os portugueses, a informação que tínhamos da metrópole era muito escassa, dispersa, esporádica, idílica, feita principalmente de imagens de meninas brancas, cor da neve, anjos do céu, exibindo-se no jardim de Éden com os seus vestidos “volantes” (cheira bem… cheira a Lisboa!), docemente embaladas pelo fado da Amália e o trepidante futebol do Benfica de Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra, mas era, apesar de tudo, um país de brancos.

A ideia de viver, de forma permanente, no meio dos brancos e suas esquisitices não me seduzia muito, pese o facto de gostar infinitamente dos seus frangos gordurosos, da batata inglesa, do bacalhau salgado e do cheiro dos chouriços vermelhos (Alláh, o clemente e misericordioso, me perdoará por esta pequena fraqueza humana). 

Mesmo supondo que eu quisesse ir, de certeza que a minha avó não mo permitiria. Ela era o meu anjo da guarda e tinha horror aos soldados, com as suas orelhas vermelhas e seus modos libertinos. “Os brancos não respeitam a idade”, dizia. “Se não, como é que se explica que os chefes (os oficiais) sejam mais novos que os subordinados?”. A vista dos soldados, ela fugia e se entrincheirava dentro da sua palhota.

Entretanto, a sua neta, nascida em tempos de Guiné- melhor do seu único filho varão, passava horas a fio a namoricar, mesmo a porta, com um malandro de orelhas vermelhas que só aparecia envolto na escuridão da noite.

Mas, o verdadeiro motivo porque não fui tentado em viajar para a metrópole, estava ligado à forma de lá chegar. Tinham-nos informado, de fontes seguras, que a única forma de uma criança entrar no navio e fazer a viagem era estar metida dentro de um caixão como faziam com os periquitos ou outros animais de estimação. A minha ideia sobre o assunto era clara e firme. Viajar metido num caixão era não, nunca e jamais. Podiam ficar com todas as sardinhas da Europa.

No fundo, também, não acreditava muito nas afirmações do meu amigo Jorge pois, os germes do nacionalismo que tinham conquistado terreno no inicio dos anos 70 e a propaganda que tinha antecedido a entrada do PAIGC já estavam a fazer efeito na consciência de muitos guineenses que não estavam seriamente comprometidos com a guerra. 

O meu caso não era isolado pois, mesmo entre as pessoas adultas e que tinham servido na guerra e estando agora desmobilizadas como o Mamadu Baldé (mais conhecido por Mamadu Senegal, antigo chefe de milícias, originário do Senegal, citado numa das narrativas de José Cortes), e muitos outros naturais da zona encontravam-se no meio das pessoas que foram receber os guerrilheiros, num ambiente de festa e confraternização.

Depois da primeira visita, vieram mais outros grupos vindos de outras “barracas” (acampamentos), recebidos sempre com o mesmo entusiasmo pela população civil e militares portugueses e, no meio disso tudo, podia-se notar um facto bem curioso, a meu ver. Pela forma como os recebiam e se congratulavam, trocando pequenos presentes e “lembranças”, os soldados portugueses pareciam muito mais satisfeitos com o fim da guerra do que os guerrilheiros. 

Talvez pela primeira vez na história dos conflitos armados, um dos beligerantes que, para todos os efeitos, tinha perdido a guerra, parecia estar feliz por não ter vencido. Era compreensível mas nem por isso deixava de ser intrigante.

Na minha infância, havia duas classes de pessoas as quais nutria uma grande admiração e cujo meio frequentava com muito gosto: Era a dos atletas/lutadores tradicionais (habitualmente fulas pretos) e a dos soldados (de todos os tipos), ambos apresentando características muito semelhantes no que se refere ao seu comportamento: Irreverência congénita, ousadia e provocação, ausência de pudor e inclinação para violar regras sociais pré-estabelecidas e/ou velhos tabus, a fraqueza pelas mulheres e sobretudo a predisposição constante para criar situações ridículas, hilariantes.

Lembro-me, a propósito, de uma conversa entre dois milícias em que um deles explicava ao outro, de forma convincente, que aos brancos não lhes interessava o fim das guerras, de todas as guerras e, acrescentava:

- “Na terra deles há uma coisa pequena do tamanho de uma agulha que era capaz de arrasar todo o território da Guiné e matar todos os terroristas num abrir e fechar de olhos”. 

Agora, eu sei que ele se referia as trágicas bombas largadas sobre Hiroshima e Nagasaki. O segundo milícia, mais lúcido, tinha replicado ao primeiro:
 - “Deus nos livra, se isso acontecesse, tu ias esconder o teu traseiro fedorento onde, na cova de um porco-espinho?” 

Perante a gargalhada geral dos presentes, a conversa que tinha começado de forma amena, terminara em pancadaria. Quem teria razão?


(v) A Mudança das bandeiras

Na manhã do dia 1 de Setembro de 1974, os poucos soldados que ainda estavam presentes, perfilaram no centro do aquartelamento para cumprir o último acto militar da entrega do quartel de Fajonquito. De um lado estavam os portugueses, doutro, os guerrilheiros. Frente a frente, pela última vez. Todos fardados com rigor. Cada grupo com a sua bandeira. As cores não eram muito diferentes, vermelha, verde e amarela. Só divergiam nos motivos, na origem e no destino. Os “ex-bandidos” também estavam distintos nesta derradeira cerimónia de passar o testemunho.

Notava-se que na fila dos portugueses, não havia muita diferença, pareciam ter sido escolhidos a dedo, altura mediana. Já do lado dos nossos, a disparidade era gritante, enquanto uns eram baixinhos,  outros eram desmesuradamente altos. Como na música e na dança, na África tropical a desordem é só aparente.

Da boca do oficial saíram, de forma vigorosa, os “firme” e “ombrós-arma”, acompanhados de movimentos da tropa a condizer, a corneta soou estridente seguida pelo coro dos cães da aldeia em protesto, as armas foram apresentadas a altura dos peitos soerguidos. Primeiro, arriaram a bandeira portuguesa, lentamente no início, mas quando ia quase a meio do percurso, contrariando o ritmo habitual, com largos esticões o soldado fê-la cair rapidamente, atirando o pano em cima dos ombros, enquanto desfazia o nó. O gesto denunciava alguma impaciência. Depois, foi a vez da nova bandeira subir e flutuar ao vento. Garanto-vos que estávamos ansiosos e orgulhosos.

O guerrilheiro encarregue do acto, deu dois passos a frente, encaixou a bandeira na corda e puxando uma das pontas, fê-la subir, normalmente. E quando estava quase a chegar ao topo, por qualquer razão, estas se emaranharam entre si deixando a bandeira presa, não podendo subir nem descer. Foi precisa uma pequena ajuda do soldado português para acabar com a trapalhada das cordas e terminar, finalmente, com a parada (seria isto um sinal para o futuro?). 

Depois houve uma troca de apertos de mãos de parte a parte. Havia uma pequena assistência de populares do lado de fora dos arames farpados. Não tinham sido convidados.

Olhando para trás no tempo, esta cena onde uma dúzia de soldados está perfilada frente a frente, procedendo a passagem simbólica do poder de uma terra que tinha sido administrada durante muitos anos por militares, na ausência de qualquer autoridade ou representantes da sociedade civil, desperta em mim, pouco a pouco, a sensação de que a Guiné, a nossa querida Guiné, de facto, não tinha sido preparada para viver sob um regime civil com base em princípios de governação democrática. 

Por outras palavras, a população da Guiné foi, e durante muito tempo, preparada para conviver com as ditaduras militares. Não surpreende muito, a ordem da sucessão parece inequívoca. De distrito militar repressivo (princípios do século XX), o território passou para uma província militarizada e em guerra (1963/74) e desta seguimos directamente para uma ditadura de guerrilheiros impreparados, ávidos de poder e sedentos de sangue. Não existe e nunca existiu uma tradição de poder civil, situada acima dos grupos étnicos. Neste aspecto, em particular, as ex-colónias francesas estavam ou ainda estão a milhas de avanço. As imagens filmadas sobre as independências desses países são disso um facto bastante revelador, pondo de parte o caso da Algéria.


(vi)  Os meus amigos guerrilheiros

Foi preciso esperar pela terceira vaga de guerrilheiros, sempre em bigrupos, para finalmente conseguir fazer alguma amizade. Eram dois combatentes de etnia Balanta, naturais de Banta (região de Quinara), o Dinis e o Marcos. Pelo menos é o que me tinham dito.

Se os portugueses me tinham ensinado as primeiras letras de forma desinteressada, foi com esses jovens Balantas que acabei por assumir a real necessidade de aplicar-me aos estudos a fim de melhor poder contribuir para a construção da nossa pátria (um vocábulo novo, com consonância especial, na altura).

Com os soldados portugueses tinha começado a moldar um instrumento, uma ferramenta de pesquisa e de trabalho mas foram estes guerrilheiros do PAIGC, esfarrapados e desnutridos que, imbuídos do espírito genuíno de libertação e emancipação de todos os povos da Guiné sem distinção, na altura, me ajudaram na definição do objectivo da minha escola. O que antes era longínquo e desconhecido passou a ser conhecido e desejado.

Em casa o meu pai recebeu-os efusivamente, tirando o chapéu da cabeça e curvando-se em sinal de respeito antes de lhes apertar as mãos, como sempre fazia diante das autoridades. O Dinis, calma e serenamente, explicou-nos que estes gestos já não se justificavam pois, todos eles eram filhos do povo.

- Nós lutamos para acabar com a humilhação do nosso povo em geral e dos nossos pais em particular, homens e mulheres, foi isso que Cabral nos ensinou e é isso que vamos transmitir aos nossos irmãos mais novos. 

Ele falava olhando para mim, meigamente.

Na estrutura militar dos guerrilheiros, havia o comandante e o adjunto do comandante, mas a partir dali já era difícil descortinar a sequência hierárquica, tanto para cima como para baixo na cadeia. Eram sinais de uma desordem latente donde podia nascer a anarquia que viria ao de cima, anos depois. 

O Dinis era um combatente simples, um aldeão que, não sendo muito instruído era relativamente bem informado sobre as ideias e conceitos políticos da época. As suas palavras eram simples e claras e com ele iniciei a minha aprendizagem na escola do pensamento político que começava com Cabral e terminava em Marx e Engels ou vice-versa. 

Nesta viagem de iniciação político-ideológica, o Lenine era a criança prodígio que tinha encontrado o livro de um velho sábio (Marx) e graças ao qual ele tinha revelado ao mundo as ideias revolucionárias de como tornar o mundo mais justo, mais progressista, apesar das contrariedades criadas pelas forças reaccionárias da direita capitalista (os demónios). “Foram as ideias contidas nesse livro antigo que, também, permitiram a libertação do nosso povo, através de Amílcar e seus companheiros”, concluía Dinis.

No entanto ele não sabia dizer se, eventualmente, Cabral teria encontrado com o jovem Lenine, quando foi a Moscovo, a procura de tais ideias. Ele se defendia, dizendo: “Tu és jovem e já bastante avançado na escola, depois, quando fores para a União Soviética, perguntas a eles para saber, eu não sei, não estive lá, sou um simples combatente”. 

Saberia mais tarde que Cabral tinha nascido no ano de 1924, no mesmo ano em que morria o líder dos sovietes. O mais importante aqui não era a forma mas sim o conteúdo.

A passagem dos guerrilheiros por Fajonquito foi breve, mas antes de partir, desmantelaram completamente o quartel, onde nunca chegaram a se instalar verdadeiramente, seja pelo pobre número de efectivos ou por outras razões desconhecidas. A atenção estava, sobretudo, concentrada sobre Canhámina e os caminhos de acesso a fronteira com o Senegal. 

Quanto ao resto, os olhos atentos dos comissários políticos se encarregariam de velar. O fim do quartel representou, para a aldeia, o inicio da escuridão, a noite, com o desaparecimento do único grupo gerador da localidade. Ninguém tinha pensado nas consequências, aliás, nem sequer tinham dado a população a possibilidade de pensar.

Mais tarde soube que o Dinis e o Marcos se tinham voluntariamente desmobilizado e regressado para a sua aldeia natal onde continuariam a trabalhar com os jovens da sua tabanca, ajudando na recuperação das bolanhas abandonadas durante a guerra e continuando a sensibilização dos mais novos sobre os ensinamentos de Cabral no meio de histórias da luta de libertação nacional para a qual tinham dado o melhor da sua juventude.

No ano seguinte, após ter concluído o ensino primário, cumpriria a promessa feita ao Dinis de continuar os estudos na cidade, mais precisamente no ciclo preparatório de Bafatá que tinha sido aberto poucos anos antes. Já não era somente a fome e a batalha pelo reconhecimento do grupo que me impeliam para a frente mas, também, a fome pelos livros, pelo saber, pensando, no meu íntimo que, a única forma de voltar a reencontrar os meus divertidos e irreverentes amigos brancos era pela via da escola.

Antes porém, de fazer a minha primeira viagem a Europa em 1985, mais precisamente à URSS, tinha ido à tabanca de Banta, no sector de Empada, à procura dos meus velhos camaradas de 1974. Na localidade, esperava-me uma pequena surpresa, pois, ninguém se lembrava dos antigos combatentes do PAIGC com os nomes de Dinis e/ou Marcos. 

Penso que, teria acontecido uma dessas práticas muito comuns entre os Guineenses das zonas rurais, de usar nomes (cristãos, logo civilizados) fabricados para o momento e a ocasião aos quais podiam livrar-se mais rapidamente que um camaleão muda as suas cores. Na aldeia, teriam voltado aos seus verdadeiros nomes da terra, ocupando os assentos que as suas idades sociais lhes reservavam dentro da comunidade (que não coincidiam necessariamente com a idade biológica), animando as festas dos “ irãs” que habitam os grandes poilões da floresta sagrada do sul.

No caminho de regresso à cidade, perguntava-me a mim mesmo se eles existiram de facto ou se tudo não passara de pura imaginação do espírito fértil de uma criança que queria acordar cedo demais?

Fajonquito, 17 de Junho de 2010

Cherno Baldé

[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]
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Nota de L.G.:

(*) Vd último poste da série: 14 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6735: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (17): A desertificação da nossa terra: até os macacos pára-quedistas nos estão a deixar

Em tempo:

O autor do poste enviou novo texto, revisto, para substituir o publicado anteriormente.
CV
17AGO2010
22h30m