quarta-feira, 28 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9672: Cancioneiro de Gandembel (1): Do Hino de Gandembel ao poema épico Os Gandembéis (Parte I) (Idálio Reis)


Monte Real, Palace Hotel, 26 de Junho de 2010 > V Encontro Nacional do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > O saudoso João Barge (1944-2010), ao meio, com o Idálio Reis (à direita, segurando uma cópia das letras do Cancioneiro de Gandembel) e o camarada Eduardo Moutinho dos Santos, ex-capitão miliciano (que comandou a CCaç 2381 "Os Maiorais", 1968/70),  hoje advogado e presidente da Mesa da Assembleia Geral da ONG Tabanca Pequena (Matosinhos).

O João, já o conhecia, superficialmente, de um dos primeiros convívios da Tabanca do Centro. Natural de Aveiro, foi +professor no Instituto Politécnico de Leiria. Agora, o que não imaginava é que ele era também um dos homens-toupeira de Gandembel e um dos famosos letristas do Cancioneiro de Gandembel. Daí ele aparecer ao lado do Idálio Reis que, de resto, me ficou de mandar uma cópia das letras do Cancioneiro (que não se resume ao hino)... Infelizmente, uns meses depois  a morte  roubou-nos o João Barge. 

  

Foto: © Luís Graça (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. Nos dia 9 e 10 do corrente, troquei com o Idálio Reis (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Ponte Balana,  Nova Lamego, 1968/69)
  a seguinte correspondência:

1.1. Idálio: (...) Diz-me se posso publicar,  no todo ou em parte, no nosso blogue, os Gandembéis!... Aliás, gostava que fosses tu a apresentar: (i) o hino de Gandembel; e (ii) Os Gandembéis (incluindo a introdução sobre o vosso quotidiano em Gandembel)...


Ainda não tinha visto nada parecido, uma magnífica paródia dos Lusíadas!... (Bem, o nosso poeta Manuel Maia, o bardo do Cantanhez, fê-lo em relação à história de Portugal, mas é produção recente)...

Arte, mestria, drama, tragédia, epopeia, humor de caserna!... Uma obra-prima que mete o Cancioneiro do Niassa a um canto (sem desprimor para os anónimos autores, dos 3 ramos das forças armadas, da base de Metangula, que escreveram as letras das cerca de 4 dezenas de canções que integram o cancioneiro moçambicano).

Isto foi escrito em 1969, ainda no calor da batalha, seguramente não muito longe de Gandembel... Ainda cheira a pólvora, ainda sabe a sangue, suor e lágrimas:

(...) "Em Gandembel, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas as vezes a morte apercebida,
No arame farpado, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida;
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida ?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno. (...)


Isto só pode ter sido escrito por gente com talento (literário), cultura, sensibilidade e... muitos dias de sofrimento e de insónias!!!


Quem são os seus autores ? Tu falas em "2 humildes anónimos"... Isto é claramente "made in Guinea", embora pós-Gandembel, quando vocês foram para o leste, para o Gabu, segundo percebi... Foram escritos em Nova Lamego, é isso, na "ressaca" de Gadembel ?!...Tinhas uma cópia em papel ? Foi reconstituído mais tarde ? De memória, seria impossível... Tens seguramente uma cópia...Nunca me tinhas falado dos "Gandembéis"...

Estou em pulgas para começar a publicar isso, numa nova série, com o teu nome associado... De alguma maneira, estamos ali todos naqueles cantos e naquelas oitavas decassílabas (são cerca de 65 estrofes, divididas por 4 cantos!)... Diz-me qualquer coisa... 


Como sabes, o blogue deu a conhecer ao mundo "o suplício de Sísifo" de Gandembel, há uns anos atrás, na série Fotobiografia da CCAÇ 2317 (*)...Mas hoje temos muito mais audiência: em média, 4 mil visitas por dia (...)

1.2. Respostade Idálio Reis, com data de 10 do corrente:


Meu caro Luís: Em primeiro, aflorarei alguns aspectos quanto à divulgação do livro. Como te referi, atendendo a que o meu primeiro convívio de ex-camaradas da tropa é o de Monte Real, é meu desejo que o início da sua partilha tenha efectivamente aí lugar.

É para a tertúlia da Tabanca Grande, um dia de festa-convívio, e surge a ocasião mais que propícia para se concretizar esta intenção. E terá um digno cicerone, que é o J. Mexia Alves.

Também, como facilmente reconheces, já houve alguns pedidos para o seu envio, e a resposta foi sempre a mesma: (i) se lá estiveres, tudo bem; (ii) acaso não puderes estar presente, pede a um companheiro mais afim para to levar.

Abri, se a palavra for recta, com todo o carinho, duas excepções: há dias, apareceu-me o Paulo Santiago em minha casa, veio propositadamente de Aguada - não é longe da minha aldeia - com quem partilhei um exemplar, com um outro como portador para o seu conterrâneo Victor Tavares. O Torcato Mendonça, para ficar mais sossegado, enviei-lhe a cópia final das provas, em formato pdf.


E sobre isto, julgo que terias o mesmo procedimento, ou haverá algum equívoco da minha parte?

Quanto ao capítulo Os Gandembéis, imodéstia à parte, ficou bem, até porque junta alguma gente da Companhia. Já há muito tempo, o Blogue divulga o Hino. Desde o meu António Almeida, de alguns baladeiros, até aos Furkuntunda, foi uma dádiva muito especial.

Quanto aos Gandembéis, obviamente que sabia da sua existência, mas só consegui obter uma cópia, já em período posterior aos meus apontamentos no Blogue. Como referes, é uma obra-prima. Está lá a história da Companhia, inclusive a do Bigode Reis, que pela Guiné toda faça espanto, de RDMs e recusas singulares, de Gandembel as terras e do Carreiro os ares. E há um fundo de verdade, nestas palavras.

É uma obra que o apaziguador tempo de Nova Lamego proporcionou.  Os seus autores, são anónimos e humildes. De todo o modo, faço-te a revelação: um deles, foi o malogrado e inesquecível João Barge, um filólogo de escol, e que decerto seria a única pessoa capaz de emprestar tanta arte e sensibilidade à sua pena.

Ainda que tivesse surgido em Gandembel, nos finais de outubro/princípios de novembro [de 1968], e num período em que se vivia já numa situação de mais alívio, teve a ajuda de um dos pioneiros da Companhia, um ex-furriel que ao tempo já era professor primário.

Luís, quanto à sua antecipada divulgação, fica ao teu critério. O capítulo tem um texto meu, e o resto já sabes. Para o efeito, faço anexar esse capítulo.


Por fim, uma mensagem. Gostava muito, que o livro fosse inserto da forma que já te enunciei. Ao Blogue, pertence-lhe uma grande quota-parte do seu aparecimento.

Um caloroso abraço do Idálio Rreis.


Guiné > Zona leste >  Nova Lamego (?) > CCAÇ 2317 (1968/69)  > Depois do abandono de Gandembel / Ponte Balana, em 28 de janeiro de 1969, por ordem do Com-Chefe, a companhia  é colocada no leste, no Gabu... 372 ataques e flagelações em menos de 9 meses (abr 68/ jan 69) é capaz de ser um recorde digno do Guiness... Foto nº 223, do álbum de Idálio Reis.



Guiné > Região de Tombali > Gandembel / Balana >CCAÇ 2317 (1968/69) > O Alf Mil Reis, junto à ponte sobre o Rio Balana, Balanazinha, construída em 1946. Foto do álbum de Idálio Reis.

Foto: © Idálio Reis  (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


2. OS Gandembéis: O Nosso Cancioneiro, as nossas músicas, os nossos poetas (Parte I)

por Idálio Reis (*)

Na fria e imensa crueldade dos sofridos tempos de vivência em Gandembel, não seria possível resistir, por inteiro, se um forte espírito de solidariedade e de companheirismo não se irmanassem numa incontida e estóica perseverança. Teria de haver, alicerçada na junção indefectível daqueles homens, tantas e tantas vezes assolados pela perfídia do inimigo, ocasiões a surgirem, para podermos desfrutar de bons momentos de lazer, já que tão essenciais elas se revelavam no alívio de almas angustiosas e inquietantes, que aquele malévolo poiso, acintosa e despudoradamente,  desencadeava.

Se, de todo, jamais poderíamos ficar indemnes a essas incontáveis vicissitudes resultantes das diversas contingências de uma guerra que não dava tréguas, forçosamente teríamos que arranjar formas capciosas de as enfrentar, a fim de serenar os nossos abalados espíritos. A confraternização entre todos, era a mola crucial para o esconjuro, e muito certamente a forma mais enternecedora para superar os fantasmas, que assolavam pungentemente os nossos lídimos sentimentos de aversão e revolta.

No geral, já com a Companhia instalada nas suas casernas-abrigo, e quando as tarefas não se tornavam impeditivas, as tardes propiciavam à junção de grupos mais afins, para reinventarem entretenimentos, e deixar passar o tempo insinuantemente, e que representavam autênticos momentos de um indelével prazer, à mercê da espontaneidade e da imaginação que cada um de nós fazia surtir, para vir a ser a preferida de momento.

Para além de incluir o arranjo de certos artefactos de carácter colectivo, tendentes ao conforto, como os casos de pequenas cabanas muito simples, onde coubessem uma mesa e bancos, de chuveiros em que a água emanasse em maior débito, ou até de zonas da lavagem de roupa ou das marmitas/latas do rancho, havia lugar às brincadeiras de puro divertimento e encanto, que a meninice retivera, mas com um único senão, que era a zona de recreio ser limitativa, imposta por razões de segurança pessoal. É que mesmo durante a claridade do dia, não se inibia a que houvesse olhos e ouvidos permanentemente atentos à emergência de putativos perigos advindos do exterior ao arame farpado.

Mas, se uns tinham mais apetência pelos jogos ao ar livre, outros preferiam os passatempos de caserna, onde preponderava a arte da prestidigitação dos baralhos de cartas, em que o jogo da sueca detinha uma larga primazia. Formaram-se parelhas de grande valia, particularmente difíceis de derrotar nalguns campeonatos que se realizavam a troco de umas cervejas frescas, que era a bebida de maior requinte, que de quando em vez até surgia em Gandembel.


Havia uns quantos, mais propensos a outros tipos de iniciativas, de índole branda e afectiva, que através de um singelo aerograma, buscavam corresponder-se com uma madrinha de guerra de encantamento e sedução, e que em determinadas circunstâncias, muitas vezes se vieram a tornar elementos fundamentais na estabilidade de temperamentos emotivos.

Havia também os mais artífices, que em geral, transformavam produtos utilizados da guerra, em pequenos e preciosos artigos de paz, que se guardavam como adereços de primazia, e ainda hoje perduram como gratificante recordação da comissão.

Mas, os de carácter mais expansivo, talvez os que melhor sabiam contrapor a tolerância às hostilidades, de forma a quietarem as suas incomodidades, entretinham-se no cantarolar ou assobiar as músicas das canções em voga, aprendidas nos bailaricos de há poucos meses atrás.

No trauteio dessas canções, havia uma colectânea vasta para fazer surgir o despique, como forma de reconhecer os mais exímios no ajuste ressonador dessas melopeias.

E daí, surgiu espontaneamente uma ocasião única, singular, um momento particularmente grato, de alguém ter concebido com imaginação e engenho, o hino de Gandembel. Após algumas sessões de requintada afinação, não duraria muito tempo para que não fosse amplamente aceite por toda a Companhia. 


(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd.  postes da série:

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo´

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel

2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras

9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em Gandembel

23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço

21 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28

8 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1935: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (8): Pára-quedistas em Gandembel massacram bigrupo do PAIGC, em Set 1968

19 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

18 de Setembro de 2007>Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)

(**) Fonte:  REIS, Idálio - A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana. Ed. de autor, [Cantanhede], 2012, pp. 197-198.

terça-feira, 27 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9671: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (34): Cherno Fanca, aliás Cherno Comando, aliás Cherno Amadu...As peripécias de um jovem fula nos labirintos da guerra colonial



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Guiné > Zona leste > Fajonquito > s/d [c. 1965] > Fajonquito era famosa pelos seus burros... O algarvio Sérgio Neves tanto lidava com burros como com viaturas automóveis... Ele aqui ao volante do único carro existente em Fajonquito, um Simca. Era propriedade de um residente local, guineese, que o emprestava ao mecânico da tropa para dar umas voltinhas.


Fotos do álbum fotográfico de Sérgio Neves, Fur Mil Mec Auto, CCAÇ 674 (Fajonquito, 1964/66), falecido em 1997, gentil e carinhosamente disponibilizadas pelo seu irmão, o nosso camarada Constantino Neves.ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71. De seu nome completo, Sérgio Faustino das Neves era algarvio, de Luz de Tavira. Fez uma segunda comissão (1968/69), como 2º srgt mil, CART 2369 em Moçambique (Lourenço Marques, Mueda, Vila Cabral , Nampula e Meponda - Lago de Niass, em Mueda, onde travou amizade como Daniel Roxo. A CCAÇ 674 esteve em Bissau, Fá Mandinga, Fajonquito e Bissau. Era comandada pelo Cap Inf José Rosado Castelo Rio. Mobilizada pelo RI 16, partiu para o TO da Guiné em 8/5/1964 e regressou à metrópole em 27/4/1966.

Fotos: © Constantino (ou Tino) Neves (2007). Todos os direitos reservados.


1. Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (34) > Cherno Fanca... Cherno Comando... Cherno Amadu ... As peripécias de um jovem fula nos labirintos da Guerra Colonial


A história passa-se no regulado de Sancorlã e o herói chama-se Cherno Baldé, um nome tanto ou quanto vulgar na sociedade fula de então. Era natural de Fanca ou Sintchã Fanca, aldeia situada a nordeste de Fajonquito, local histórico para os conquistadores portugueses e fulas onde, por volta de 1886 os homens de Mussa Molo, rei de Firdu, enfrentaram o intrépido Cap Marques Geraldes, depois de algumas escaramuças nas margens do rei Geba, próximo do presídio de mesmo nome, na circunscrição de Bafatá.

Cherno Fanca, como ficou conhecido mais tarde, rapaz esguio e pernalta, já era quase um homem quando começa a frequentar a pequena praça e centro comercial de Fajonquito, em finais dos anos 60, para onde vinha regularmente, com o seu grupo de idade, transacionar em longas caravanas de mulas carregadas de produtos agrícolas, em especial o amendoim, meticulosamente confecionada em enormes sacos (cent-kiló), viajando em cima dos animais de carga.





Guiné > Carta da Antiga Província Portuguesa da Guiné (1961) > Escala 1/500 mil > Detalhes > Posição relativa de Fajonquito (carta de Colina do Norte) e Sinchã Fanca (carta de Tendino)



Eram tempos em que a riqueza de uma família se media pelo número de mulas obtidas por ano agrícola. Uma mula, em língua local, correspondia a dois sacos de cem quilos que era a carga do animal, sendo raríssimas as famílias que conseguiam obter mais de dez mulas por ano. As partidas para os centros comerciais eram antecedidas de longos e minuciosos preparativos, pois se tratava de ocasiões únicas em que rapazes e raparigas exibiam-se em público, vestidos da sua melhor indumentária.

A distância a percorrer não era muito grande, mas a solenidade conferida às viagens em grupos, nas primeiras horas de manhã, exigia alguma preparação prévia, precavendo-se de eventuais surpresas no caminho. Os rapazes levavam consigo as mulas carregadas de amendoim, mel e seus derivados enquanto as raparigas levavam à cabeça o coconote, em cima do qual colocavam a roupa e os chinelos preparados para a ocasião que só usariam quando tivessem entrado nas primeiras moranças de Fajonquito.

Era um dia intenso e muito importante na vida dos jovens que, para muitos, podia acontecer uma única vez ao ano. Quanto aos compradores, não havia problemas de maior, pois cada família estava ligada a uma casa comercial, sua cliente: Havia a casa dos irmãos Adriano e Casimiro Pinheiro, o Campo Quinal (o narigudo), a casa Carduz (Cardoso) ou ainda o Barbosa. Eram comerciantes lusos radicados há muito tempo no chão fula.






















Guiné > Zona leste > Fajonquito > s/d [c. 1965] > O Sérgio Neves com camaradas seus, e com miúdos da localidade... Alguns deles acampavam literalmente no aquartelamento... Na foto de cima, está com o proprietário do Simca... O Cherno Baldé vai adorar ver (ou rever) estas fotos, publicadas no nosso blogue em novembro de 2010. É possível que reconhgeça alguns dos rafeiros do seu tempo.
Fotos: © Constantino (ou Tino) Neves (2007). Todos os direitos reservados.



Quanto ao Cherno, a sua maior preocupação prendia-se com a maneira de fazer frente aos rapazes daquela pequena praça, seus colegas de idade, que jogavam bola, comunicavam entre si numa língua estranha chamada criol e gostavam de pregar partidas estúpidas aos aldeões das localidades vizinhas que se atreviam a entrar na sua zona de influência. Ele lembrava-se, como se fosse ontem, da cena que acontecera com o Aliu-Samba ou Samba-Kondjam (1), do grupo dos últimos e derradeiros apreciadores de vinho de palma entre os fulas. Este, que regressava da casa dos homens (Biré) (2), com algumas calmas (3) de vinho de palma a mais, como sempre, vinha cambaleando e quando chega ao pé dos rapazes pede para que o deixem bater na bola. Estes, sem hesitar, colocam a dita bola a certa distância e o pobre homem, impulsionado pelo álcool e tomando balanço o quanto baste, bate nela com toda a força da sua embriaguês. Não, ele não bateu, ele, a maneira dos não iniciados, cupiu (4) na bola, isto é, fê-lo com as pontas dos dedos do pé.

O “óóiiihh!!!” que saiu da boca de Aliu-Samba subiu, levado pelo vento, até as ruínas de Berecolon ao norte e o seu eco dispersou-se, invadindo a planície de Suncujuma e entrando de rompante nas moranças de Fajonquito em todas as direcções. Depois, seguiu-se um demorado silêncio de escuta e de apreensão. O que teria acontecido para motivar este grito de morte? O grito de um adulto era sempre motivo de uma grande inquietação.

O que tinha acontecido era simplesmente impensável e criminoso.

Em lugar da bola, alguém, dentre os rapazes, tinha colocado uma enorme pedra dentro dos trapos da bola improvisada que, com o impacto, tinha transformado os dedos de Aliu-Samba numa pasta vermelha de sangue e carne moída sem falar da pirueta que o seu corpo comprido e magro, deu pelo ar antes de se estatelar no chão. Quando a aldeia soube, finalmente, o que tinha acontecido, ouviu-se um ensurdecedor coro de gargalhadas, seguidas de suspiros de alivio. Os rapazes tinham dado uma boa lição ao cafir (5), amante do vinho de palma, a água do diabo. Nada mais normal.


Pouco a pouco o Cherno Fanca acabou por se impor no panorama dos grupos e eventos dos jovens de Fajonquito, devido a frequência das visitas e sua participação ativa nos encontros, em disputas cerradas de futebol, de luta tradicional ou de corrida de velocípedes, quando não eram os encontros de futebol, pretos contra brancos, com os elementos da tropa metropolitana, cativando assim os cabecilhas dos grupos locais.

Com o passar do tempo, rapidamente, as ambições do Cherno Fanca, ultrapassando o exíguo circulo de Fajonquito, subiram de nível, abraçando novos horizontes, pois a semelhança de muitos adolescentes da sua idade, já não escondia o seu desejo de vir a usar a farda militar e porque não, integrar mesmo os Comandos Africanos, a tropa de elite que mais atraía os jovens da Guiné. Assim, quando o chamavam pelo nome de Cherno Fanca ele corrigia prontamente:
- Não, eu sou o Cherno Comando, vivo ou morto!!! 
Foi por essa altura que teria chegado a Fajonquito, trazido pelos ventos daquela sofrida e interminável guerra, uma espécie de encenação teatral e que pretendia ser um canto de louvor à bravura indómita dos Comandos Africanos e na qual a juventude de então se deleitava. Ninguém podia suspeitar que, terminada a guerra, o dito cujo se transformaria na mais fina chacota aos mesmos. A cena desenrolava-se com duas ou mais pessoas alinhadas em formatura, pose de comando, pernas firmes, ligeiramente abertas e peito para cima. Os espectadores faziam perguntas em uníssono e eles respondiam com voz corajosa e cheia de determinação:
- Comandós! ... quere bianda? - Não!- Comandós! ... quere batata? – Não!
- Comandós! ... quere bajuda? – Não!
- Comandós! ... quere guerra? – Sim!
- Comandós! ... quere guerra? – Sim!
Mas para se ser comando não bastava querer, era preciso ser aguerrido, passar por algumas etapas de preparação e foi assim que, mesmo a contragosto, ele alista-se para integrar o grupo da milícia local. Em seguida, a sua postura insolente e corajosa, o seu estilo único de fardamento elitista copiado dos Comandos distinguem-no rapidamente dos seus companheiros milícias e a sua fama galga as fronteiras do regulado. E foi sem grandes surpresas que a notícia da sua mobilização para integrar os Comandos se espalhou através das numerosas bocas de Fajonquito. 

Assim, em finais de 1972 o Cherno, muito emocionado, apresenta-se no centro de instrução de Fá Mandinga, arredores de Bafatá. Com a sua partida, Fajonquito e arredores nunca mais voltariam a ser a mesma coisa, pois tinham perdido de uma só vez o seu garboso filho adoptivo, exímio e polivalente atleta, animador de festas, milícia de ocasião, mas comando por amor e vocação, insubstituível; vivo ou morto, como gostava de lembrar.

Corria o ano de 1973 quando, um belo dia, em pleno dia de festa e grande concentração de pessoas na pequena praça de Fajonquito, eis que se apresenta a entrada da estrada vermelha e poeirenta da aldeia, o inconfundível focinho de um Berliet Tramagal que, numa galopada brutal, atravessa a multidão dirigindo-se para baixo, a segunda entrada do aquartelamento. Foi nesse momento que aconteceu o episódio que seria depois objeto de muitos debates e expeculações durante muitos anos.
Quando o Berliet passa, vê-se um vulto preto a sair dele e atirar-se num salto para cima como um pássaro que se lança ao voo e, dando uma volta completa no ar, pouco a pouco se distende, se endireita, posiciona o corpo, as pernas e poisa-se levemente dobrando os joelhos ao tocar no chão e ergue-se no mesmo instante esticando e equilibrando as suas compridas pernas de cegonha.
Apanhados de surpresa, as pessoas ainda demoraram algum tempo para compreender o que se passava e a poeira provocada pela passagem do veículo também complicava a visibilidade. Mas não foi preciso esperar muito e antes que a poeira acabasse por se assentar, os olhos curiosos das pessoas presentes viram e reconheceram o jovem pernalta que, a todo o custo, queria ser comando e foi então que se levantou dentre a multidão a ovação ao seu magnifico herói com o tradicional grito de reconhecimento e admiração:
- Ė o Cherno!!..Cherno Fanca!!..Cherno Comando!!..Gârri Djinnéé6!!..Bharródi maúdhi (7)!!!...
Estava fardado de camuflado novo, apertado ao corpo, com uma pequena boina na cabeça, inclinada ao lado, ostentando placas distintivas da sua corporação no peito e nos ombros onde se podia ler “Comando”. Trazia um punhal preso do lado direito do cinturão. A sua arma de fogo era menor do que aquelas que estávamos habituados a ver e no lugar da coronha tinha dois ferros horizontais e móveis o que a tornava diminuta, autêntico brinquedo, nas mãos possantes do jovem comando.

Depois da espectacular e exuberante apresentação ao público de Fajonquito que o vira crescer e tornar-se homem, exibindo sempre o seu largo sorriso de dentes brancos, seguiu para a sua aldeia natal, pois ele não podia demorar-se, tinha acabado de jurar a bandeira e esperava-o, agora, o árduo trabalho das operações militares que, todavia, não significavam nada diante do prazer que tinha experimentado ao voltar ao seu palco de preferência com o qual sonhara durante toda a sua vida de adolescente. 

Voltaria a Fajonquito muitas mais vezes, mas já não seria o mesmo Cherno, alegre e desprendido que, tão fácil como isso, despia a farda para jogar a bola ou medir forças com os jovens mandingas da sua idade, em prolongadas lutas noite adentro, sob o ritmo dos tambores e aplausos das meninas que lhe limpavam o suor da cara com os seus lenços de cabeça numa fraterna demonstração de carinho e de afeto ou ainda quando pegava a sua namorada e escandalosamente a abraçava em público sem pudor, sem receio dos olhares reprovadores dos mais velhos. Voltaria muitas vezes, mas nunca seria a mesma pessoa. A guerra, entretanto, tinha consumido toda a sua bonomia.

Com a independência em 1974, também ele foi desmobilizado, voltando para a sua aldeia, com a mesma ingenuidade e ligeireza com que tinha partido. Olhos vermelhos de sangue e olhar melancólico, o nosso Cherno Comando em nada se diferenciava do guerrilheiro saído das matas, meio homem, meio animal. Naqueles olhos havia sinais de sofrimento e alguma inquietação. No mesmo ano, juntamente com os colegas, foi trabalhar no Senegal durante a campanha da colheita do amendoim, onde voltou com uma bicicleta nova marca Peugeot. Pensava poder retomar o seu vai-vem entre a sua aldeia e a praça de Fajonquito como fazia antigamente, mas rapidamente apercebeu-se que os tempos tinham mudado. A vigilância e a perseguição política apertava e os raptos noturnos de antigos militares se multiplicavam.

Neste novo e perigoso contexto, o jovem comando teve que utilizar o melhor que tinha no seu arsenal de astúcias para não cair nas malhas dos comissários políticos do PAIGC. Conhecendo a tática dos guerrilheiros que só atuavam na calada da noite, ele aparecia em Fajonquito durante o dia e desaparecia com o anoitecer sem deixar rastos. Parecia mesmo estar a escarnecer a inteligência dos comissários e seus numerosos agentes. Nunca dormia duas vezes no mesmo sítio. E quando se cansou deste jogo do gato e do rato, atravessou a fronteira e foi radicar-se na região da Casamança, Senegal, em casa de familiares.

Quando voltou, novamente, nos anos 80, o homem estava quase irreconhecível. O grand-bubu branco que cobria o seu corpo, as babuchas brancas nos pés e o enorme lençol branco encaracolado na cabeça e rosto, a maneira dos homens do deserto, emprestavam-lhe a sublime imagem de um homem humilde e respeitável. Em pouco tempo, o nosso ex-comando tinha-se transformado num conceituado Marabu, manipulando com a sua mão direita, de forma continua, um extenso rosário, com a mesma perícia com que outrora apertava o gatilho da sua G3. Ele era o primeiro a entrar e o último a sair na mesquita de Fajonquito, onde vinha, a pé, todas as sextas-feiras, talvez para rezar a favor das almas consumidas pelo horror da guerra ou pela paz dos que teimavam em continuar vivos num país que já não lhes pertencia. Os comissários políticos do PAIGC há muito que tinham abandonado as aldeias para se concentrar nas cidades onde arrebataram o espólio da guerra, destinado a compensar os difíceis anos da sua luta terrorista nas matas e estradas da Guiné.

Em Fajonquito não sabiam como lidar com esta nova metamorfose do Cherno e quando alguém lhe chamava pelo antigo nome, espreitando através dos seus óculos escuros para melhor enxergar seu interlocutor, muito calmamente, corrigia:
- Desculpa meu respeitável irmão, mas o meu nome é Cherno Amadu, sou o Almame de Sintchã Fanca, a vossa inteira disposição.

As pessoas ouviam incrédulas, encolhiam os ombros e iam a sua vida, afinal de contas cada um era livre de ser aquilo que lhe convinha melhor nesta(s) vida(s) de mudanças perpétuas e imprevisíveis.


Cherno Abdulai Baldé, Bissau, Março de 2012.

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Notas de C.A.B.:

1. Kondjam – Vinho

2. Biré – Palavra de origem mandinga que se refere ao local onde os homens se reuniam para beber vinho de palma antes da islamização.

3. Calmas – Copos feitos de pequenos cabazes que provêm de uma planta rastejante muito vulgar na África tropical.

4. Cupiu – Uma expressão crioula que substitui a palavra bater quando é feito com a ponta dos dedos do pé.

5. Cafir – Pessoa descrente ou não muçulmano.

6. Gârri Djinnéé – Grande Jin, uma expressão de origem árabe. Jin é um ser imaginário e invisível com poderes extraordinários e que vive ao lado dos homens.

7. Bharródi maúdhi- Grande animal, uma alusão à coragem e agilidade de um leão e ao porte impressionante de um elefante.

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Nota do editor:
Último poste da série > 22 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9638: Memórias do Chico, menino e moço (33): Lembrando os meus amigos da CCAÇ 3549... e discorrendo sobre o meu pessimismo crónico (Cherno Baldé)

Guiné 63/74 - P9670: Parabéns a você (397): Carlos Vinhal (64) e Eduardo Magalhães (60), dois dos nossos queridos co-editores



1. Aos meus queridos co-editores Carlos Vinhal e Eduardo Magalhães Ribeiro (por esta ordem, que a velhice é um posto!), em meu nome, do Virgínio Briote, dos demais colaboradores permanentes (Hélder Sousa, Humberto Reis, Jorge Cabral, José Martins e Torcato Mendonça), e ainda em nome de todo o tabancal... 

Hoje é dia de festa na Tabanca Grande, que vocês os dois têm ajudado a construir, vocês e mais um batalhão de camaradas... Sempre com trabalho árduo, mas com carinho... A menos de um mês de celebrarmos o nosso 8º aniversário - o blogue nasceu oficialmente a 23 de abril de 2004 -, quero-vos dizer quanto tenho apreciado a vossa lealdade, dedicação, empenho e competência ao longo destes já longos quilómetros de picada, algumas vezes com as suas abatizes, as suas minas e armadilhas, os seus fornilhos, as suas bailarinas...

Permitam-me que vos diga quanto prezo a vossa camaradagem e o facto de, ao fim destes anos todos, vocês dois me tratarem não apenas como camarada mas também amigo... É privilégio, é honra... Para cada um de vocês, aqui vai uma adivinha para ler em voz alta na hora do espumante!... Um dia de festa em grande! L.G.


Na Tabanca,  anda cá e lá,
Sem nunca perder o norte,
Já morou em Mansabá,
Mas agora tem mais sorte!

O escritório é em Leça,
Condomínio da Palmeira,
Faz o trabalho sem pressa,
Que a pressa só dá asneira.

É casado com a Dina,
Trata por tu o general,
O soldado e a bailarina
Quem é, quem é ?… O Vinhal!



Gozam os velhos da Guiné,
Com o pira de Mansoa,
Foi ranger, e ranger é,
Tirando isso, boa pessoa!

Faz hoje sessenta anos,
E quer dobrá-los na terra,
Sem perdoar aos bacanos
Que acabaram com a guerra.

Tem um discurso radical:
“Da Pátria  não fui o coveiro,
Sou soldado de Portugal,
Ontem, hoje, ... sou o Ribeiro!”



Dizem que é Grande a Tabanca,
Não se lhe vendo o fundo:
A uns cura, a outros... manca,
Não agrada a todo o mundo!

Meio milhar de exemplares
De uma espécie em extinção,
Ontem, todos com bons ares,
Hoje, ai! o pé, ai! o coração...

Não são historiadores,
Têm o seu dia de glória!
Parabéns aos editores,
Que nos tratam da memória!


Texto: Luís Graça (2012) / Ilustrações: Mário Miguéis (2011)



O novo visual do blogue do Eduardo MR, Rangers & Coisas do MR. Parabéns ao Eduardo também pelo seu blogue, que já existe desde 2008, tem cerca de 6 dezenas de seguidores, 22 mil visitas por ano e acolhe, com especial brio e carinho, os nossos camaradas de operações especiais.


2. Texto de homenagem aos nossos dois aniversariantes, enviado atempadamente pelo José Manuel Matos Dinis (abreviadamente JD, e não DJ... embora às vezes nos faça falta, no blogue e por extensão na Tabanca Grande, um DJ - Disc Jockey):

Este brevíssimo texto é dedicado aos camaradas editores, Carlos Vinhal e Eduardo Magalhães Ribeiro,  que, numa ajustada estratégia para enfrentar a crise, decidiram comemorar os aniversários na mesma data. São, por isso, credores da nossa admiração, e exemplos a apontar pelo Sr Gaspar, que trabalha no ministério das finanças.

Mas onde os ditos aniversariantes ganharam justa admiração, foi, e é, no blogue que agora consultamos.

Se o mais sénior é trave-mestra que garante a regularidade das publicações, o "pira" está lá para o que der e vier, e ambos são provas gigantes de camaradagem, competência e amizade genuína, porque sacrificam as suas vidas pessoais e familiares, e têm como única recompensa a manutenção de um blogue que faz história, e constitui um acervo de informações variadas sobre o período da guerra colonial na Guiné.

Acima de relações pessoais, de preferências ou implicâncias de diversa ordem, eles publicam sem preconceito e sem censura, dando o exemplo de serviço público (porque é disso que realmente se trata), generoso e independente.

Depois deste introito, chego à parte das emoções, ao festejo alegre de mais um ano contabilizado nas contas de cada um deles, e à fácil constatação de que se mantêm jovens e activos, condição de que todos nós nos devemos congratular. Por isso, hoje, eles deveriam ficar suficientemente livres para as comemorações, para fazerem o que lhes der na gana, abusar nos doces, e acompanhá-los com uma pinguinha lacrimosa, como era tradição do Porto, mas, se for outra a pinguinha, merecem qualquer escolha que façam. 

No meu recato, vou brindar-lhes com votos de muitas e alegres repetições da data, e deixar escrito que tenho por eles, para além da amizade sincera, uma verdadeira veneração.

Abraços fraternos
JD

3. Do António J. Pereira da Costa para os nossos 3 aniversariantes de hoje:

Magalhães, Pires e Vinhal
Eduardo, Armando e Pires:
Editam o nosso blogue,
Dá-lhe os parabéns, se os vires.

António Costa


4. Do Juvenal Amado para o Carlos Vinhal:






5. Do Mário Beja Santos para o Carlos Vinhal:


Carlos, meu caríssimo Amigo,

Há os agulheiros do céu e os agulheiros do blogue. Sem ti a nossa vida seria um caos.

Recordo-te sempre que vou à Gulbenkian ver as óperas transmitidas diretamente do Metropolitan Opera House, nos intervalos para além dos deuses cantantes entrevistarem outros deuses cantantes,  temos a cena do bastidor, aquela faina complexíssima de fazer subir e descer cenários descomunais, gerar confluências, pôr tudo em ordem para quando se abrir o pano apareça, na sua inteireza , o espetáculo.
Quando nos ligamos todos os dias ao nosso blogue nem sempre cuidamos do trabalho disciplinado, da disponibilidade dos voluntários que estão por detrás da cena. Tenho profunda admiração pelo teu trabalho e julgo que tu continuarás por mais dezenas de anos a atear o fogo, cada vez com mais trabalho e com mais responsabilidade pois nessa altura seremos o jornal digital mais influente do nosso tempo, em qualquer língua. Um abraço do peito, o agradecimento de um amigo que te quer muito bem, Mário.


6. Do Mário Fitas para o Eduardo MR:



Caro camarada Ranger em boa companhia [, o Jorge Cabral], tendo como pano de fundo a respeitosa memória dos nossos camaradas mais queridos, aqui ficam as minhas felicitações pelo teu aniversário.
Que tenhas um dia cheio das maiores felicidades junto de todos que te são queridos.

Um abraço do tamanho do Cumbijã, 
Mário Fitas 



7. Do Mário Fitas para o Carlos Vinhal:


Mocidade 

A mocidade esplêndida, vibrante, 
Ardente, extraordinária, audaciosa, 
Que vê num cardo a folha de uma rosa; 

Essa que fez de mim Judeu Errante 
Do espírito, a torrente caudalosa, 
Dos vendavais irmã tempestuosa,
 __Trago-a em mim vermelha, triunfante! 

No meu sangue rubis correm dispersos:
 __ Chamas subindo ao alto nos meus versos, 
Papoilas nos meus lábios a florir! 

Ama-me doida, estonteadoramente, 
Ó meu amor! que o coração da gente 
É tão pequeno... e a vida água a fugir... 

Caro Carlos, com esta foto e o soneto de Florbela envio o desejo de eterna juventude. 
Um dia muito feliz junto da Dina e todos restantes familiares e amigos. 

Fraterno Abraço, do tamanho do Cumbijã. 
Mário Fitas


8. Do nosso bardo do Cantanhez, Manuel Maia, para os dois aniversariantes:




                                                        COMBATENTES

Quarenta e oito o ano, mês terceiro,
aos vinte e sete dias, prazenteiro,
nasceu Carlos Vinhal, um bom amigo.
Cinquenta e dois, depois de novecentos,
nascido em mesmo dia de "bons ventos",
chegou "Pira Eduardo", aqui vos digo...

Tendo ambos abraçado o blog/fé
de ajuda aos veteranos da Guiné,
p`ra além já dos quinhentos cá presentes...
Entendo ser dever de todos nós,
dizer-lhes, hoje aqui, de viva voz:
Bem-hajam, bons amigos combatentes!


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Nota do editor:

Último poste da série: 27 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9669: Parabéns a você (396): Armando Pires, ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861 (Guiné, 1969/70)

Guiné 63/74 - P9669: Parabéns a você (396): Armando Pires, ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861 (Guiné, 1969/70)

Sobre o nosso camarada Armando Pires, ver aqui mais postes.

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2. Mensagem do nosso camarada António Nobre (ex-Fur Mil da CCAÇ 2464/BCAÇ 2861, Buba, Nhala e Binar, 1969/70) dedicada ao nosso aniversariante:

Meu Caro Armando
A “AMIZADE” EXISTE... EXISTE SEMPRE.

No longínquo ano de 1968, quando nos conhecemos no BC10 em Chaves, unidade esta onde formámos o BCaç 2861, constituído pelas CCaç 2464/5/6, deu para perceber que o Armando Pires era um HOMEM solidário e que gostava de cultivar amizades, sempre sinceras e desinteressadas. Quem já esqueceu aquelas “brutas” farras à noite, designadamente as “ceias” ajantaradas com o pão quente que comprávamos na Panificação aquando do nosso regresso ao Quartel? Foram tempos fantásticos, em que cimentámos uma grande amizade, posteriormente continuada em Binar aquando da tua passagem por aquela localidade onde a minha Companhia - CCaç 2464 - terminou a comissão.
Enfim, bons tempos que infelizmente não voltam.

Tudo isto vem a propósito do teu aniversario de hoje - estamos a ficar “cotas”.

Muita saúde para ti e toda a família e que nos possamos falar durante muitos anos.

Um grande abraço e até sempre
António Nobre
Ex-Fur Mil
CCaç 2464
Guiné, 1969/1970
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9654: Parabéns a você (395): Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9668: Agradecimento de Rui Silva à tertúlia, a propósito das mensagens recebidas pelo seu aniversário

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 26 de Março de 2012:

Luís e Vinhal:
Recebam as minhas mais fortes saudações.
Agradecia que no Blogue registassem o meu agradecimento aos camaradas e amigos que me deram os parabéns pelo meu aniversário* e da seguinte forma:

A todos os meus camaradas e amigos(as) e camarigos que tiveram a gentileza de me enviarem os parabéns pelo meu aniversário, aqui fica, de forma muito sensibilizada, o meu agradecimento. Bem hajam.

Aproveito para formular os maiores votos de muita saúde e felicidade nas suas pessoas e também para saudar todos os tabanqueiros deste insuperável Blogue.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9654: Parabéns a você (395): Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67)

Guiné 63/74 - P9667: Blogoterapia (204): Não tenho palavras para agradecer o calor que trouxeram ao meu coração (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves destinada à tertúlia, hoje mesmo chegada ao nosso Blogue:

Escreveram os meus camarigos aqui neste blogue que há momentos em que as palavras faltam e não sabemos o que dizer, perante a dor dos outros, neste caso, a minha dor pela morte do meu irmão Zé*.

Pois também não há palavras para agradecer o calor que cada de vós um trouxe ao meu coração, com a vossa amizade e camarigagem.

Acreditem ou não, (não são palavras de mera retórica), senti ontem que os meus camarigos da Guiné estavam comigo e me acompanhavam naquelas horas.

Já sabem, meu camarigos que eu sou muito emocional, (e já não mudo), por isso aqui vos afirmo a minha indescritível gratidão e amizade.

A todos, sem excepção, não citando nomes para não correr o riso de me esquecer de algum.

Um grande, grato e camarigo abraço do
Joaquim Mexia Alves.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9652: In Memoriam (114): José Mexia Alves, irmão do nosso camarada Joaquim Mexia Alves (Editores / Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 24 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9651: Blogoterapia (203): O Meu Pai (Joaquim Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P9666: O PIFAS, de saudosa memória (11): Também havia relatos da bola, em março de 1970... (Arménio Estorninho)


Guiné > Bissau > Março de 1970 > Estádio Sarmento Rodrigues (hoje, Estádio Lino Correia) > Jogo de futebol entre o Sporting de Bissau e a UDIB, com transmissão radiofónica. Se a memória não me falha, quem fazia o relato era o Carlos Soares (está numa mesa). Vemos à esquerda, a zona onde se localizava a Verbena e o Cinema UDIB.

Foto: © Arménio Estorninho (2010). Todos os direitos reservados.


1. Comentário  ao poste P9663 (*),  aposto por  de Arménio Estorninho (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Os Maiorais, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70) [ foto atual, à esquerda]

Mais uma fotografia para juntar à pretensão de agregar material sobre as emissões da Rádio do PIFAS.

Encontra-se no meu Poste P6373, em Foto-10, a imagem de um Jogo de Futebol entre o Sporting de Bissau contra o  UDIB, e que efectuara-se em Março de 1970;

Numa mesa apresenta-se instalado o Sargento Carlos Soares, com o fim de efectuar o relato radiofónico do jogo de futebol que estava ali a decorrer.

Saudações Tabanquenhas (**)

Arménio Estorninho

2. Comentário de L.G.:


2.1. Recorde-se que havia dois clubes de futebol rivais em Bissau, o Sport Bissau e Benfica, e o UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau). Os seus jogadores formavam, no incío dos anos 60,  a base ou a quase totalidade da seleção de futebol da província da Guiné. Um terceiro clube era o Sporting Club de Bissau. E, fora de Bissau, destacava-se o Clube de Futebol Os Balantas de Mansoa, e ainda o Sporting Clube de Bafatá (já aqui referido várias vezes no nosso blogue, e que já existia pelo menos desde o tempo do Governador Sarmento Rodrigues).

O nosso amigo Nelson Herbert foi júnior no Sporting, embora a sua paixão clubística fosse o UDIB, o clube da elite de Bissau (onde o seu pai, Armando Lopes, Búfalo Bill, foi craque na segunda metade da década de 1940 e depois nos anos 50, ainda antes de se mudar para o Sport Bissau e Benfica).

Aliás, o Nelson Herbert já nos prometou publicar aqui mais informação sobre a história do futebol na Guiné-Bissau, até porque o futebol  forneceu ao PAIGC alguns dos seus destacados dirigentes e militantes  (por ex.,  Júlio Almeida, Júlio Semedo, Bobo Keita, Lino Correia). Parece que o 'Nino' Vieira também chegou a jogar na UDIB. Mas os futebolistas mais antigos, de origem caboverdiana, como Armando Lopes e Joãozinho Burgo, nunca enveredaram pela via do nacionalismo independentista, pelo contrário consideraram-se sempre portugueses... De qualquer modo, tanto a PIDE como o PAIGC tinham "olheiros"  na seleção nacional guineense... Infelizmente, a guerra e a independência terão matado o futebol guineense (**)...



Guiné > Região do Oio > Mansoa >  Sede do Clube de Futebol Os Balantas > Foto do nosso camarada, membro do nosso blopue, Henrique Cabral,  ex-Fur Mil da CCAÇ 1420 (1965/67), autor do blogue Rumo a Fulacunda.


Foto: © Henrique Cabral  (2010). Todos os direitos reservados.




Apesar disso, o futebol continua a ser ronco, na Guiné-Bissau. Aliás, como em outros lados em África, parece ser o desporo dos pobres... Hoje há clubes novos, mesmo fora de Bissau, o que não deixa de ser interesssante. Por exemplo, o Campeonato de Futebol da Guiné-Bissau,  1ª Divisão, foi  criado em 1975, e na época de 2011/12, está a ser disputado pelos 10 clubes, sendo 6 de Bissau:


Académica de Ingoré (Ingoré) [ Região do Cacheu]
Atlético Clube de Bissorã (Bissorã) (Região do Oio)
Clube de Futebol Os Balantas de Mansoa (Mansoa) [Região do Oio]
Futebol Clube de Cuntum (Bissau)
Mavegro Futebol Clube (Bissau)
Sport Bissau e Benfica (Bissau)
Sport Clube dos Portos de Bissau (Bissau)
Sporting Clube de Bafatá (Bafatá) [Região de Bafatá]
Sporting Clube da Guiné-Bissau (Bissau)
União Desportiva Internacional Bissau  (Bissau)

Mas também há outros clubes de futebol, da II e III Divisões, representando localidades por onde pássamos ou onde estivemso (Binar, Bolama, Canchungo, Farim, Gabu, Mansabá, Nhacra, São Domingos e outros).

Já agora, e como mera curiosidade, aqui ficam mais alguns dados sobre o futebol de hoje, na Guiné-Bissau:

(i) O clube com mais títulos de Campeão Nacional, 14,  é o Sporting Clube de Bissau [, ou Sporting de Bissau];


(ii) Vem a seguir o Sport Bissau e Benfica [ou Benfica de Bissau], com 8 títulos;
(iii) Em terceiro lugar, ex-aequo,  vem a  UDIB (Bissau) e Os Balantas de Mansoa, com 3 títulos cada.


2.2. Voltando ao PIFAS, e aos nossos tempos... Não nos parece, entretanto,  que o PIFAS fizesse relatos de futebol em direto, até pelo seu  horário de emissão (3 horas diárias, em 3 segmentos de hora: ). Em todo o caso, é natural que noticiasse os resultados e desse até  resumos das partidas mais importantes, a partir de relatos pré-gravados.  Presumimos que o srgt Carlos Santos fosse, na época, locutor do PIFAS.

O futebol guineense, praticamente confinado a Bissau,  era desconhecido da maior parte da malta que estava no mato. Os resultados dos jogos poderiam apenas interessar alguma população civil, concentrada em Bissau. É possível que alguns militares metropolitanos jogassem, na época, em alguns clubes locais. É natural, por outro lado,  que a emissora oficial da província fizesse relatos em direto, até porque os relatos da bola eram populares na época. Conviria, entretanto,  esclarecer se o srgt Carlos Santos está aqui a representar o PIFAS ou a emissora oficial, um e outra com  estúdios próprios.
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Notas do editor:

(*) 24 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9653: O nosso Blogue na Antena 1 pela voz de Luís Graça, no programa Emoções de João Paulo Diniz (Carlos Filipe Coelho)

(**) Vd. Ludopedio >   Futebol e guerra - Bissau, Guiné-Bissau, por Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes, 3.03.2010

(**) Último poste da série >  23 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9645: O PIFAS, de saudosa memória (10): A mascote, um caso sério de popularidade (José Romão)... E até o 'Nino' Vieira ouvia o programa! (João Paulo Diniz)

Guiné 63/74 – P9665: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (18): A minha homenagem a Bacar, ao Bacar do Olossato

1. Mensagem do nosso camarada Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 19 de Março de 2012:

Caros Luís e Vinhal:
Com um grande abraço aqui vai mais uma página “arrancada” do meu caderno da memórias.

Bem hajam!
Rui Silva


Como sempre as minhas primeiras palavras são de saudação para todos os camaradas ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Das minhas memórias: “PÁGINAS NEGRAS COM SALPICOS COR-DE-ROSA”

Singela (e singela por ser feita por quem a faz) mas de sentimento profundo (julgo com a mesma dimensão em toda a gente da 816) homenagem a um homem africano e guineense que lutou com bravura inexcedível ao lado das NT: o Bacar, o Bacar do Olossato (1964/66).

Olossato (Olossato, Olossato, onde tudo é muito chato e a vida não dá prazer; Companhia, Companhia, quer de noite quer de dia há sempre muito que fazer…) - refrão da música e letra feita no Olossato pelo meu amigo, também Furriel da 816, Belchior.

O Bacar lutou ao lado (à frente, sempre à frente, como ele queria) das NT porque estava convicto que lutava do lado da verdade, do lado da razão, afinal como muitos nativos. Um “afrituguês”, portanto, como muitos, muitos mesmo.

- Uma opção terrível para todos os nativos, desde as inocentes crianças aos desamparados idosos: De que lado dos beligerantes ficar? Ficar num, significava ter os tiros pela frente, do outro -.

Diga-se de passagem e em abono da verdade que o Capitão Luís Riquito não punha homens nativos à frente da coluna, sempre alternados nativos com os brancos da metrópole. Não havia a mínima discriminação entre brancos e nativos.

O Bacar era dos poucos que tinha uma G3 e usava camuflado tal qual a tropa.

O Bacar, o grande e inesquecível Bacar, que um dia, inexplicavelmente, olhando à sua rara esperteza, é vítima duma cilada inimiga que o fez cair de uma forma infantil. Homens como o Bacar era do que nós precisávamos. Astuto, corajoso e destemido, conhecedor do mato como das suas próprias mãos, deslocava-se neste como um animal felino. Parecia que pelo cheiro ele pressentia o inimigo. O Bacar saía sempre com a tropa e, em muitas das vezes, também como guia, e sempre à frente como ele queria. Quando ele saía connosco parecia que levávamos outra alma. Era um talismã. Tinha já colaborado com a 566 (Companhia que nos antecedeu no Olossato) de maneira decisiva e era já nessa altura que tinha a promessa de vir para a metrópole com aquela Companhia, mas foi-lhe “pedido” para colaborar também com a 816, com a promessa do então Governador Schulz, de que viria finalmente para a metrópole acompanhando a Companhia 816 aquando do regresso desta.

Muito perguntava ele, animado do maior entusiasmo, sobre o que era a vida, os costumes, as estradas, o movimento, etc., daquilo que para ele era um lindo sonho: a Metrópole. Perguntava muito sobre Lisboa onde porventura ele ficaria. Falávamos-lhe dos automóveis, dos carros elétricos, do Tejo, do comboio que anda debaixo da terra, das coristas do Parque Mayer, dos arranha-céus, dos monumentos, etc. Tudo aquilo que há de grandioso e belo numa cidade como Lisboa. Os olhos dele, que naquela altura ainda viam, brilhavam e buliçavam ao ouvir as nossas histórias. O Bacar tinha duas mulheres, à boa maneira mandinga e que até se davam muito bem, para grande admiração nossa. Outras gentes, outros costumes. O mandinga que não bebe vinho nem come carne de porco. A criança mandinga seguia já religiosamente este preceito. Admirável!

O Bacar, o infortunado Bacar, viria sim, para a metrópole mas que nada veria nesta. Que destino tão cruel! Nada ia ver das muitas maravilhas que aquela lhe poderia proporcionar e das quais lhe íamos metendo na cabeça. Nada veria do que muito sonhou e imaginou. O que lhe aconteceu foi mais um motivo de pesar e de consternação em toda a malta. O Bacar veio para a metrópole afinal mais cedo do que julgava, mas… completamente cego e muito inferiorizado. O Bacar todo ele vida e espírito, dera lugar a um farrapo humano que ainda vivia.

Um célebre domingo, pela manhãzinha, quando ainda saboreávamos a cama depois de um sono retemperador, ouvimos um grande rebentamento próximo do quartel. Como sempre, muito do pessoal convergiu para o suposto lugar do estrondo. Quando também para lá nos dirigíamos, alguém que já de lá vinha disse comiserada e laconicamente: - Foi o Bacar. Mas, o quê, o que poderá ter acontecido ao Bacar?. Perguntas como esta, saíram logo das nossas bocas. O Bacar? Acontecer ao Bacar? Logo depois um Unimog deposita dois corpos à porta da Enfermaria. Um deles era o do Bacar, cheio de buracos por todo o corpo originados pelos estilhaços de uma granada (fornilho? bailarina?) armadilhada. Metade de uma perna dependurada, e o pobre do Bacar gemia, perante o olhar triste da malta que o rodeava. O outro também estava ferido, mas pouco.

Receámos logo por a perna do Bacar, mas o que nunca passou por a cabeça de alguém é de que ele viria a perder as duas vistas, como só mais tarde viemos a saber.

Pobre Bacar, tão astuto e corajoso como inteligente, tinha caído infantilmente numa armadilha quando com outro andava a colher mancarra ali a umas escassas centenas de metros do quartel junto ao trilho que nos levava ao Morés. Um cinto, feito de pele de caça, no meio do carreiro, como que perdido; um cinto de préstimo tentador e então o Bacar apanha-o e, ao fazê-lo, ao puxá-lo, accionou a armadilha. O estrondo entoou pelos ares indiciando uma detonação muito forte e potente e então o Bacar foi sacudido e arremessado de forma violenta. O efeito da detonação foi tão forte que pela deslocação do ar, ou por susto, o companheiro de safra do Bacar, que estava empoleirado numa palmeira junto à copa a colher xabéu, caiu desamparadamente no solo o que lhe causa fractura duma perna. Triste epílogo do Bacar na guerra e quiçá na vida. O Capitão Riquito era dos que menos escondia o seu pesar, pois o Bacar, além de um bom conselheiro do Capitão, era um grande e indefectível amigo de toda a Companhia, isto para não destacar as suas façanhas no mato e em combate. E assim o Bacar que tinha a promessa de vir para a metrópole com a 816, afinal viria mais cedo, mas jamais veria os automóveis, a multidão, os autocarros de 2 andares, os eléctricos, os reclames luminosos, o rio Tejo e os seus barcos e todo o mais com que lhe vínhamos enchendo a cabeça. Muito comoveu aquela cena de quando ele ainda estava na enfermaria, logo depois do acidente e onde os três enfermeiros, incansavelmente, lhes prestavam os socorros possíveis antes de ser evacuado para Bissau, ele pediu e apertou entre as suas mãos uma mão do Riquito, o Comandante da CCAÇ 816, dizendo:
- Assim estou melhor.

A malta, como sempre, teve uns largos minutos de tristeza e lamentação, mas a resignação era sempre o melhor e único remédio para as contrariedades e então novo estado de alma se levantaria. Era assim o segundo grande revés da Companhia. O que aconteceu afinal fazia parte do cenário da guerra e esta era o nosso quotidiano…

Assim era e assim teria de ser, e havia que reagir da melhor maneira possível, continuando a encarar a guerra com toda a força física e espiritual, que em face dos factos como o que eu acabo de relatar, paradoxalmente, nos dava mais forças e pundonor para prosseguirmos na tentativa de acabar, destroçar, tudo e todos que faziam ou fomentavam o terrorismo, concomitantemente defendendo a integridade daquilo que era nosso, que era de Portugal e dos… portugueses.

Bacar, onde quer que estejas terás sempre a maior consideração e admiração da 816 e certamente também da 566.

Um bonito recanto do rio Olossato, afluente do Cacheu e que passava perto da povoação e do lado da saída para Farim, que o Bacar seguramente conhecia e melhor que ninguém.

(foto extraída da net com a devida vénia ao seu legítimo autor)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 – P9487: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (17): O Regresso (muita sorte!)